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1 O ESTADO DA VIOLÊNCIA E A VIOLÊNCIA DO ESTADO Luciana Pavowski Franco Silvestre 1 Jussara Ayres Bourguignon RESUMO: Este texto parte das concepções de Hobbes, Locke, Rousseau e Weber a fim de tratar dos elementos que contribuíram para a criação do Estado moderno, descrevendo as principais funções dadas a este e como para cumprir com estas funções passou a ser detentor do monopólio do uso legítimo da força/violência. O que mostra-se muito presente na contemporaneidade, e nos faz refletir sobre as formas em que este vem sendo utilizado, enquanto elemento de controle que se mostra repressivo para determinadas parcelas da população e ainda hoje continua a ter como uma das justificativas a manutenção da ordem. PALAVRAS-CHAVE: Estado, violência, controle social repressivo. CONSIDERAÇÕES INICIAIS Este artigo apresenta alguns dos aspectos resultantes da pesquisa de Dissertação do Mestrado em Ciências Sociais Aplicadas 2 , que teve como título “Privação de liberdade e a Criminalização de adolescentes: um estudo sobre o Centro de Socioeducação de Ponta Grossa - Pr”. A referida pesquisa buscou verificar quais os fatores socioeconômicos que favoreceram o processo de criminalização e privação de liberdade de adolescentes no Cense de Ponta Grossa Pr. Neste contexto, um dos elementos fundantes identificados, foi a atuação do Estado enquanto detentor do monopólio do uso legítimo da violência física conforme definiu Weber, o que nos remete a pensar nos elementos que deram origem e legitimidade a este poder estatal, enquanto uma das funções que determinaram a criação do Estado e muito presente na contemporaneidade, e nos faz refletir sobre as formas em que este vem sendo utilizado, enquanto elemento de controle que se mostra repressivo para determinadas parcelas da população em nosso país. 1 Doutoranda em Ciências Sociais Aplicadas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa, e-mail: [email protected]. 2 Mestrado em Ciências Sociais Aplicadas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa concluído em 2013.

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O ESTADO DA VIOLÊNCIA E A VIOLÊNCIA DO ESTADO

Luciana Pavowski Franco Silvestre1

Jussara Ayres Bourguignon

RESUMO: Este texto parte das concepções de Hobbes, Locke, Rousseau e Weber a fim de tratar dos

elementos que contribuíram para a criação do Estado moderno, descrevendo as principais funções

dadas a este e como para cumprir com estas funções passou a ser detentor do monopólio do uso

legítimo da força/violência. O que mostra-se muito presente na contemporaneidade, e nos faz refletir

sobre as formas em que este vem sendo utilizado, enquanto elemento de controle que se mostra

repressivo para determinadas parcelas da população e ainda hoje continua a ter como uma das

justificativas a manutenção da ordem.

PALAVRAS-CHAVE: Estado, violência, controle social repressivo.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Este artigo apresenta alguns dos aspectos resultantes da pesquisa de Dissertação do

Mestrado em Ciências Sociais Aplicadas2, que teve como título “Privação de liberdade e a

Criminalização de adolescentes: um estudo sobre o Centro de Socioeducação de Ponta Grossa

- Pr”. A referida pesquisa buscou verificar quais os fatores socioeconômicos que favoreceram

o processo de criminalização e privação de liberdade de adolescentes no Cense de Ponta

Grossa – Pr.

Neste contexto, um dos elementos fundantes identificados, foi a atuação do Estado

enquanto detentor do monopólio do uso legítimo da violência física conforme definiu Weber,

o que nos remete a pensar nos elementos que deram origem e legitimidade a este poder

estatal, enquanto uma das funções que determinaram a criação do Estado e muito presente na

contemporaneidade, e nos faz refletir sobre as formas em que este vem sendo utilizado,

enquanto elemento de controle que se mostra repressivo para determinadas parcelas da

população em nosso país.

1 Doutoranda em Ciências Sociais Aplicadas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa, e-mail:

[email protected]. 2 Mestrado em Ciências Sociais Aplicadas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa concluído em 2013.

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PERCURSO METODOLÓGICO

A dissertação tratou-se de uma pesquisa interdisciplinar, de cunho sociojurídico, que

articulou as dimensões qualitativa e quantitativa, através do estudo de caso.

Os procedimentos metodológicos utilizados foram pesquisa bibliográfica, pesquisa

documental, com recorte temporal entre janeiro e abril de 2012, informação verbal, entrevista

por pautas junto aos adolescentes selecionados e seus familiares. Os depoimentos dos

adolescentes e dos familiares destes foram analisados sob o recurso da análise de conteúdo.

A pesquisa foi realizada mediante autorização da COEP - Comissão de Ética em

Pesquisa, que emitiu o parecer nº 134/2011 aprovando a pesquisa, no dia 24/11/2011, bem

como, da Secretaria de Estado da Família e Desenvolvimento Social, órgão responsável no

Estado do Paraná pela execução das medidas socioeducativas de internação e de semi

liberdade.

Para este artigo apresenta-se parte da pesquisa bibliográfica e da pesquisa documental,

apontando-se alguns dos elementos identificados e que contribuem para o processo de

criminalização dos adolescentes que cumprem medida socioeducativa de internação no Cense

de Ponta Grossa – Pr.

ESTADO: DETENTOR DO MONOPÓLIO DO USO LEGÍTIMO DA VIOLÊNCIA

Ao propor-se a reflexão sobre os elementos que determinam o controle social como

uma das principais funções do Estado e a identificação de alguns fatores que relacionam este

controle social com a repressão diante de determinadas parcelas da população,

necessariamente precisa-se fazer alguns apontamentos sobre a origem deste Estado.

Com este intuito, partiu-se da concepção e das principais funções de Estado definidos

pelos contratualistas Hobbes, Locke e Rousseau. Estes autores clássicos tem em comum o

entendimento da existência de um contrato para a formação do Estado Moderno, o que é

concebido como um movimento teórico e político. Na sequência faz-se alguns apontamentos a

respeito das concepções de Weber no que se refere ao monopólio do uso legítimo da violência

por parte do Estado.

Partindo de Hobbes, que em sua obra clássica Leviatã (1651) descreve que em seu

estado natural de liberdade, os homens viviam em permanente competição com seus

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semelhantes, eternamente em guerra. Deste entendimento surge a celebre frase de Hobbes

onde descreve que “o homem é o lobo do homem” e como a partir disto tem origem o Estado,

A causa final, finalidade e desígnio dos homens (que amam naturalmente a liberdade e o

domínio sobre os outros), ao introduzir aquela restrição sobre si mesmos sob a qual vemos

viver no Estado, é a precaução com a sua própria conservação e com uma vida mais

satisfeita. Quer dizer, o desejo de sair daquela mísera condição de guerra, que é a

consequência necessária [...] das paixões naturais dos homens, quando não há um poder

visível capaz de os manter em respeito e os forçar, por medo do castigo, ao cumprimento

dos seus pactos e à observância das leis de natureza [...] (HOBBES, 1965, p.143)

O Estado é constituído, então, para garantir a vida, tirando o homem do seu estado

natural. Nestes termos, Hobbes propõe o estabelecimento de um pacto entre os homens, que

teria por finalidade reprimir parcelas da liberdade individual, possibilitando a convivência

entre os mesmos, o que torna necessário haver, uma representação comum, imbuída de poder

e força que seja capaz de controlar esta multidão de homens, mantendo-os fiel às cláusulas do

contrato que estabelecem, cedendo suas vontades individuais e sua liberdade natural a fim de

promover o bem comum, submetendo-as ao soberano.

Designar um homem ou uma assembleia de homens como portador de suas pessoas,

admitindo-se e reconhecendo-se cada um como autor de todos os atos que aquele que assim

é portador de sua pessoa praticar ou levar a praticar, em tudo que disser respeito à paz e à

segurança comuns; todos submetendo desse modo as suas vontades à vontade dele, e as

suas decisões a sua decisão. (HOBBES, 1965, p. 147)

Deste modo é instituído o Estado, composto pelo soberano que possui poder absoluto,

e pelos súditos, que submeteram suas vontades e estão sujeitos a ele e deram autoridade ao

soberano para que o mesmo utilizasse de poder e força para garantir uma convivência de paz e

segurança.

E por fazerem parte de um Estado, os homens passam a serem obrigados a

respeitar as leis civis, que são construídas pelo soberano, e que têm por finalidade limitar a

liberdade individual, para que não prejudiquem a si mesmos nem aos outros, delimitando,

também, aquilo que é certo e errado, tendo por finalidade o bem comum.

Quando qualquer lei estabelecida pelo soberano não é respeitada, tem-se um crime.

Como este principia o fim do Estado, visto que é necessária a existência de leis para a

manutenção da ordem, criaram-se as punições que diferem entre si pela gravidade da violação

cometida “Uma pena é um dano infligido pela autoridade pública, a quem fez ou omitiu o que

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pela mesma autoridade é considerado transgressão da lei, a fim de que assim a vontade dos

homens fique mais disposta a obediência” (HOBBES, 1965, p.186). Desta forma, Hobbes

descreve a criação do Estado Moderno, que tem como funções principais a garantia de uma

convivência de paz e segurança, o que legitima o monopólio do uso da violência pelo Estado,

pois tal como Hobbes afirma “os pactos sem a espada não passam de palavras, sem força para

dar segurança a ninguém” (HOBBES, 1965, p. 143).

Na concepção de Locke, no estado de natureza, os homens viviam em harmonia, em

paz e em conciliação entre seus semelhantes em busca da preservação. Tudo isto em absoluta

liberdade para fazer suas escolhas. Neste estado reinava a igualdade e justiça, onde os homens

buscavam contribuir uns com os outros de maneira harmoniosa,

Um estado, também de igualdade, onde a reciprocidade determina todo o poder e toda a

competência, ninguém tendo mais que os outros; evidentemente, seres criados da mesma

espécie e da mesma condição [...]. (LOCKE, 2001, p. 83).

No entanto, Locke não trata deste estado como permanente, e prevê a possibilidade de

ocorrência de situações que levam ao que o autor denomina como estado de guerra, onde as

características acima descritas não mais existem e onde passa a reinar “[...] um estado de

inimizade, maldade, violência e destruição mútua.” (LOCKE, 2001, p. 92).

Sendo este estado de guerra, uma das razões que determinaram que os homens

abrissem mão de sua liberdade natural e pactuassem a criação de um Estado que tem como

uma das suas principais funções a convivência em sociedade, no entanto, Locke destaca que

“[...] o objetivo capital e principal da união dos homens em comunidades sociais e de sua

submissão a governos é a preservação de sua propriedade.” (LOCKE, 2001, p. 156) o que na

concepção de Locke se referia a vida, a liberdade e aos bens.

Para Rousseau, o Estado só existe se todos puderem participar com igualdade, e

considera a propriedade como ponto fundamental da desigualdade, onde declara que ninguém

deve ser tão rico que possa comprar o outro e nem tão pobre que precise se vender para o

outro.

Desta forma, na concepção de Rousseau, o Estado é criado a partir da vontade geral,

que é o consenso possível quando vontades chegam a um ponto de acordo, um contrato social

que resulta na vida em sociedade.

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Para viver em sociedade a partir deste contrato social, o homem deixa de viver no

estado de natureza e conforme previsto já entre Hobbes e Locke, abre mão de sua liberdade

em busca da paz e segurança, além disto, novamente é identificada a função do Estado no que

se refere a defesa da propriedade “O que o homem perde pelo contrato social é sua liberdade

natural e um direito ilimitado a tudo o que lhe diz respeito e pode alcançar. O que ele ganha, é

a liberdade civil e a propriedade de tudo o que possui.” (ROUSSEAU, 1978, p. 39).

Rousseau descreve que a passagem do estado de natureza para uma vida em sociedade

se torna em determinado momento a opção viável a fim de garantir a sobrevivência

Suponho aos homens terem chegado a um ponto em que os obstáculos que atentam a sua

conservação natural excedem, pela sua resistência, as forças que cada indivíduo pode

empregar para manter-se nesse estado. Então neste estado primitivo não se pode subsistir, e

o gênero humano pereceria se não mudasse de modo de ser. (Rousseau, 1978, p. 35).

Weber também foi um importante filósofo que contribuiu de maneira considerável

para a compreensão dos fatores de que tratam este texto.

Considera o Estado um aparelho de dominação que tem como pressuposto as relações

desiguais, e reivindica o monopólio do uso legítimo da violência para administrar a ordem e

coibir a violência.

O Estado moderno é um agrupamento de dominação que apresenta caráter institucional e

que procurou (com êxito) monopolizar, nos limites de um território, a violência física

legítima como instrumento de domínio e que, tendo esse objetivo, reuniu nas mãos dos

dirigentes os meios materiais de gestão. (WEBER, 2006, p.62)

O Estado utiliza do medo e da violência institucionalizada para legitimar o uso da força,

no entanto, Weber destaca que “A violência não é, evidentemente, o único instrumento de que se

vale o Estado – não haja a respeito qualquer dúvida, mas é seu instrumento específico.” (WEBER,

2006, p. 56). Desta forma, o direito penal se mostra como um dos meios mais eficazes de para

exigir o cumprimento de leis e normas a fim de coibir a violência e manter a ordem.

Em Ciência e Política duas vocações, Weber trata da intima relação existente entre Estado,

violência, poder e política. Relação que o autor considera como de dominação do homem sobre o

homem, mas que mostra-se como um fenômeno naturalizado, existente nas relações “Em todos

os tempos, os agrupamentos políticos mais diversos - a começar pela família – recorreram à

violência física, tendo-a como instrumento normal do poder.” (2006, p. 56).

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Weber descreve que a dominação pode ocorrer de três formas, Racional legal, quando

se baseia na legalidade definida por normas e estatutos jurídicos. É a chamada administração

burocrática, onde desaparecem as relações servis entre soberano e funcionário. A tradicional,

fundamentada na santidade da tradição e crença na legitimidade do soberano, não existem

regras ou normas e os dominados devem obediência ao soberano e a terceira forma é o

patriarcalismo ou patrimonialismo, e está relacionada a figura do carismático, sinônimo de

graça, qualidade que se reconhece numa personalidade.

Neste cenário, o Estado é criado e “[...] se transforma, portanto, na única fonte do

direito à violência.” (WEBER, 2006, p. 56).

Estas considerações contribuem para compreendermos como o Estado moderno foi criado

tendo como principais funções a garantia da paz e segurança e a defesa da propriedade e como a

partir disto justificou-se o monopólio do uso legítimo da violência pelo aparelho estatal.

O CONTROLE SOCIAL REPRESSIVO

Na contemporaneidade, estes elementos se fazem ainda muito presentes. O Estado tem

ainda hoje como uma de suas principais funções o controle social, que é justificado com a

finalidade de garantir a vida em sociedade.

Para isto, conforme mencionou Weber, não utiliza somente da força, apesar de

continuar com o monopólio do uso legítimo desta, mas tem como importante instrumento o

direito penal, que é funcional a ordem, e é utilizado como forma de adequar os

comportamentos.

Apresentam-se trechos de algumas decisões judiciais de internação de adolescentes no

Cense de Ponta Grossa – Pr, identificadas no decorrer da realização da pesquisa documental,

que são considerados relevantes diante das questões supra citadas:

“A internação provisória se faz presente para garantia da ordem pública, para evitar que o

adolescente refratário às normas de boa conduta, com notória periculosidade, não descambe

para a senda criminosa, bem como para acautelar o meio social, que diante de crime tão

bárbaro crime exige a pronta atuação das autoridades, sob pena de abalo da credibilidade

da justiça e a instalação da desordem civil” (E 13 anos).

“[...] considerando a grave repercussão social do fato imputado aos adolescentes, dos quais

decorrem evidentes reflexos negativos e até traumáticos na vida da comunidade local, cujos

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membros foram tomados por forte sentimento de impunidade e insegurança, cabe ao Poder

Judiciário a determinação da segregação provisória, sob pena de ter ferido a própria

credibilidade perante a sociedade” (L 17 anos).

Existem muito estudiosos dedicados a identificar na atualidade elementos que

demonstram as relações existentes entre a forma como se pune e as formas como se

constituem as políticas sociais, bem como sobre as relações existentes entre economia e

controle social.

Neste sentido, pode-se dizer que na medida em que o Estado reduz a sua atuação

diante da efetivação de politicas sociais, tende a aumentar as políticas de repressão e

contenção. Sendo este um dos fatores que determinam que o controle social exercido pelo

Estado mostre-se repressivo para determinadas parcelas da população.

Sobre isto, Pisarello (2007) entende que a crise das garantias sociais e a expansão do

direito penal são formas de controle social, onde os pequenos delitos precisam ser

controlados, ocorrendo um agravamento do direito penal na medida em que ocorre a redução

dos direitos sociais.

Pode-se identificar através da criminologia crítica, alguns estudos que estabelecem as

possíveis relações existentes entre economia e controle social, além de descrever como vem

ocorrendo às opções realizadas por alguns Estados em substituir as políticas públicas por

políticas de vigilância e encarceramento. Waccquant em “Punir os pobres: a nova gestão da

miséria nos Estados Unidos” descreve que

O desdobramento dessa política estatal de criminalização das conseqüências da pobreza

patrocinada pelo Estado opera de acordo com duas modalidades principais. A primeira, e

menos visível, salvo para os diretamente afetados por ela, consiste em reorganizar os

serviços sociais em instrumentos de vigilância e controle das categorias indóceis e nova

ordem econômica e moral. O segundo componente da política de contenção repressiva dos

pobres é o recurso maciço e sistemático à prisão.” (2003, p.111).

Este fenômeno é descrito como “substituição progressiva de um (semi-) Estado-

providência por um Estado penal e policial, para o qual a criminalização da marginalidade e a

contenção punitiva das categorias deserdadas fazem as vezes da política social na extremidade

inferior da estrutura de classe e étnica” (WACQUANT, 2003, p.86).

Alessandro De Giorgi em “A miséria governada através do sistema penal” ressalta:

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O controle do desvio enquanto legitimação aparente das instituições penais constitui, pois,

uma construção social por meio da qual as classes dominantes preservam as bases materiais

da sua própria dominação. As instituições de controle não tratam a criminalidade como

fenômeno danoso aos interesses da sociedade em seu conjunto; ao contrário, por meio da

reprodução de um imaginário social que legitima a ordem existente, elas contribuem para

ocultar as contradições internas ao sistema de produção capitalista. Em outras palavras, numa

sociedade capitalista o direito penal não pode ser colocado a serviço de um ‘interesse geral’

inexistente: ele se torna, necessariamente, a expressão de um poder de classe (2006, p.36).

O Estado mantém ainda hoje, como uma de suas principais funções, o controle social

institucional, além de exercer o controle social difuso, com o objetivo de buscar garantir,

conforme se relata anteriormente desde sua origem, que é a vida em sociedade, dentro de um

contexto de relações de poder constituídas e que se dão de forma desigual e excludente. Estes

fatores, analisados em conjunto, permitem identificar os elementos que determinam que o

controle social não seja exercido da mesma forma diante de toda a sociedade, mas que se

mostre muito mais punitiva diante de determinadas parcelas da população.

Busato (2008), faz importantes reflexões no que se refere às formas como o direito

penal vem contribuindo para este processo, quando descreve que:

O discurso que aparece então é o da necessidade absoluta de segurança, que faz justificar

um tratamento diferenciado e recrudescente ao delinquente, convertendo o modelo de

controle social do intolerável em um modelo intolerável de controle social, transformando-

se de um Direito Penal do risco em um Direito Penal do inimigo. (BUSATO, 2008, p. 97).

Fato que, conforme menciona o autor, se refere a “[...] institucionalizar a diferença de

tratamento entre o ‘cidadão’ e o ‘inimigo’ [...] legitimando o Estado a escolher o perfil dos

‘inimigos’ de plantão.” (BUSATO, 2008, p. 112) processo que dentro do sistema penal é

denominado como ideologia da defesa social em que “[...] o delito e o delinquente seriam o

mal e a sociedade o bem.” (BISSOLI FILHO, 2002, p. 76). Esta divisão nos remete a teoria

contratualista já mencionada, no que se refere à formação do Estado e às finalidades

atribuídas a este diante da organização da vida em sociedade, em que abre-se mão da vida no

estado de natureza a fim de buscar a proteção diante de um estado de guerra que seria

instituído sem a presença de um poder regulador das relações.

O fato é que este “inimigo” não é um ser indefinido dentro da sociedade em que

vivemos, mas foi criado a partir de características, estereótipos, estigmas específicos, que os

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tornam vulneráveis3 diante do sistema penal e diante de outros mecanismos de controle social

punitivos já mencionados. Este processo, conforme Mongruel, é denominado como teoria da

rotulação ou enfoque do etiquetamento, e se constitui em processos formais e informais de

seleção de pessoas a serem criminalizadas, pois se diz sem duvidas que não são todas as

pessoas que cometem contravenções penais ou atos infracionais que são responsabilizadas por

isto, o que nos remete a compactuar com Mongruel quando afirma que “[...] o processo de

criminalização é um processo de produção de criminosos.” (2002, p. 171).

Em geral, é bastante óbvio que quase todas as prisões do mundo estão povoadas por pobres.

Isto indica que há um processo de seleção das pessoas às quais se qualifica como

‘delinquentes’ e não, como se pretende, um mero processo de seleção de condutas ou ações

qualificadas como tais. (ZAFFARONI, 2011, p. 60).

Desta forma, a criminalidade se constitui como uma característica, uma etiqueta

atribuída a determinados sujeitos e que seleciona os indivíduos a serem criminalizados, o que

para Péres (2002), ocorre primeiro através da definição legal do que é o crime e

posteriormente pela seleção que etiqueta, seleciona o autor como criminoso entre todos os que

praticam a referida conduta. Ressalta ainda que:

[...] a regularidade com que os estratos sociais mais pobres são envolvidos neste processo

desnuda a constatação de que a criminalidade, sob tal ângulo, se afigura como uma realidade

social construída de forma extremamente seletiva e desigual. (PÉRES, 2002, p. 68).

Através deste enfoque, identifica-se que o criminoso é criado a partir de determinados

atributos e características decorrentes da condição social e econômica em que vive.

3 Pautamos a concepção de vulnerabilidade conforme a Política Nacional de Assistência Social (2004), que ao

definir os usuários da referida política, descreve “[...] cidadãos e grupos que se encontram em situação de

vulnerabilidade e riscos, tais como: famílias e indivíduos com perda ou fragilidade de vínculos de

afetividade, pertencimento e sociabilidade; ciclos de vida; identidades estigmatizadas em termos étnico,

cultural e sexual; desvantagem pessoal resultante de deficiências; exclusão pela pobreza e, ou, no acesso às

demais políticas públicas; uso de substâncias psicoativas; diferentes formas de violência advinda do núcleo

familiar, grupos e indivíduos; inserção precária ou não inserção no mercado de trabalho formal e informal;

estratégias diferenciadas de sobrevivência que podem representar risco pessoal e social.” (BRASIL, 2004, p.

33). Desta forma, as situações de vulnerabilidade podem estar relacionadas a fatores econômicos ou a outros

fatores que levam a fragilização de vínculos familiares e comunitários ou discriminações, enquanto que as

situações de risco podem resultar de determinadas vulnerabilidades existentes, e se referem a situações de

violações de direitos, como situações de violência e rompimento de vínculos, por exemplo, situações que

demandam serviços mais complexos e sendo compreendido pela Política Nacional de Assistência Social

(2004) como de proteção social especial.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com estes elementos pode-se refletir sobre alguns dos determinantes da criação do

Estado que teve como funções principais a defesa da propriedade e da vida em sociedade,

através da garantia de segurança e paz e como com este fim possui o monopólio do uso

legítimo da violência. Pode-se refletir ainda sobre como estes elementos se fazem presentes

na contemporaneidade na forma como se organiza o Estado e como busca a legitimidade de

suas ações, além de perceber como o uso a força se faz presente nas ações deste Estado.

Identificam-se os efeitos deletérios do sistema penal, amplamente conhecidos e

discutidos por pesquisadores e profissionais das mais diversas áreas, e que trouxemos como

referência a partir da discussão da criminologia crítica; e a existência de um processo de

etiquetamento de indivíduos portadores de determinadas características que passam a ser

criminalizadas, e que vem ocupando os espaços de encarceramento, dentre eles o Centro de

Socioeducação de Ponta Grossa – Pr.

A pesquisa documental, realizada através da consulta dos documentos individuais dos 91

adolescentes que cumpriram medida socioeducativa de internação no Cense de Ponta Grossa entre

janeiro e abril de 2012, possibilitaram a identificação do perfil dos adolescentes internados no

período da pesquisa, bem como, de algumas das vulnerabilidades vivenciadas por estes.

Verificou-se que a maior concentração de idade está entre 16 e 18 anos, com um total

de 82,5% dos adolescentes internados nesta faixa etária.

Ao referir-se especificamente a situação educacional, nota-se situação de alta

vulnerabilidade e de risco social, decorrentes da violação do direito social a educação, direito

instituído no art. 6º da Constituição Federal, bem como pelo Capítulo IV do Estatuto da

Criança e do Adolescente, que estabelece o “Direito à educação, à cultura, ao esporte e ao

lazer”, considerando-se que 86% dos adolescentes internados no Cense no período da

pesquisa estavam em evasão escolar antes da apreensão.

Estes aspectos se tornam mais significativos quando são relacionados com a idade dos

adolescentes, pois é possível identificar que dos 91 adolescentes internados no período da

pesquisa, 86 informaram a série cursada. Destes 86 adolescentes, todos apresentaram

defasagem idade/série, com distorções bastante significativas. Encontra-se a maior

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concentração de evasão escolar entre a 4ª e 6ª série do ensino fundamental, com um

percentual de 70% do total de adolescentes.

Visualiza-se que a grande maioria dos adolescentes, 90,4%, relataram estar residindo

com a família antes de serem internados no Cense. Seguindo o contexto nacional no que se

refere às configurações familiares, apresentaram diferentes composições do núcleo familiar, a

partir do que foram registradas situações em que os adolescentes residiam somente com um

dos pais, com ambos, e até mesmo tendo outras pessoas da família como referência, como

avós, tios ou irmãos.

As famílias apresentaram composição que variou entre 2 e 11 pessoas, com uma

concentração maior entre as famílias compostas por 3 e 4 membros, com 26% das famílias

em cada um destes percentuais.

Com o cruzamento das informações referentes à renda e composição familiar, tornou-

se possível concluir que a maior concentração de renda per capita encontra-se entre R$ 200,00

e R$399,00, recorrente em 50% das famílias dos adolescentes. Valor abaixo da renda

domiciliar per capita no Estado do Paraná, que é de R$ 747,00; na região Sul R$ 778,00; e no

Brasil R$ 668,00, conforme dados apresentados pelo IBGE 2010.

Quanto aos aspectos ocupacionais, 61% dos adolescentes informaram o trabalho

desenvolvido pelos pais ou responsáveis, sendo que dentre estes, os pais foram citados 37

vezes, as mães 31 vezes e as avós 7 vezes. Dentre os pais, 57% realizavam trabalho informal,

sendo que 32% trabalhavam como pedreiro ou servente de pedreiro. Dentre as mães, 67%

trabalhavam de maneira informal, índice 10% superior ao apresentado pelos pais.

Dentre os trabalhos realizados pelas mães, 32% estavam relacionados ao

desenvolvimento de atividades como diarista ou empregada doméstica, sendo estas as

atividades mais citadas pelos adolescentes. Com relação às avós, 86% estavam aposentadas.

Dando continuidade a pesquisa documental, foi encontrado um aspecto relevante

relacionado a saúde, no que se refere ao uso de drogas, considerando que dos 91 adolescentes,

72 relataram ter feito uso de drogas, o que corresponde a 79% dos adolescentes em

cumprimento de internação no período da. Somente esta informação seria bastante

significativa para apontar para a gravidade de um dos aspectos da saúde dos adolescentes e

que os coloca em situação de alta vulnerabilidade e risco social.

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Diante destes diversos fatores que evidenciam as vulnerabilidades socioeconômicas

presentes na vida dos adolescentes, buscou-se identificar as medidas de proteção aplicadas a

estes, diante do que destaca-se que apenas 26 adolescentes, o que corresponde a 29% do total

dos adolescentes internados, mencionaram o recebimento de alguma medida de proteção.

Identifica-se que dentre os adolescentes que mencionaram ter recebido medida de

proteção, alguns registraram mais de um encaminhamento realizado, no entanto, percebe-se

que os dados mais significativos se referem ao encaminhamento para tratamento em

comunidade terapêutica, o que foi informado por 14 adolescentes. Além desta, foram

registradas as medidas de acolhimento institucional e tratamento psiquiátrico, o que

demonstra a prevalência de medidas que retiraram os adolescentes de seu ambiente familiar e

comunitário.

Neste sentido, evidencia-se a existência de fatores que determinam a ocorrência do

controle social repressivo para determinadas parcelas da população, fato que é histórico,

complexo e síntese de múltiplas determinações e que tiveram alguns de seus elementos

apresentados neste artigo.

REFERÊNCIAS

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