as marcas da dor: uma anÁlise da violÊncia domÉstica … · 2018-01-17 · 1 seminário...

13
1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X AS MARCAS DA DOR: UMA ANÁLISE DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NA CIDADE DE NATAL/RN Mikarla Gomes da Silva 1 Resumo: O estado do Rio Grande do Norte aparece em quinto lugar quando o assunto é violência doméstica segundo dados divulgados em 2015 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Desse modo, o trabalho tem o objetivo apresentar a lei 11.340/06 mais conhecida como Lei Maria da Penha, na cidade de Natal/RN, esta que se estabelece como primeira ferramenta legal de enfrentamento a violência de gênero contra a mulher. Neste sentido, o trabalho avalia a Lei 11.340/06, a priori, com uma análise sobre a violência doméstica contra o feminino e como esta se interliga com o conceito de feminicídio, uma vez que à violência contra a mulher é fruto de uma construção histórica, cultural e social pautadas nas categorias de gênero e de relação de poder. No mais, a pesquisa tenta identificar quem atravessa o gênero agredido no que corresponde à classe social, raça/cor e geração, uma vez que os números globais colocam as mulheres negras, pobres e na faixa etária entre 18 a 30 anos como vítimas da violência. Palavras-chave: Gênero. Violência Doméstica. Lei 11.340/06. Feminicídio. A violência doméstica revela-se nas relações íntimas/conjugais um lugar-lócus que é predominantemente o espaço privado, assim ocorre na privacidade do casal, ou seja, no lar/casa podendo atingir familiares e pessoas que lá convivem (BANDEIRA, 2013). Contudo, se desmonta a ideia romantizada do espaço doméstico/privado como lugar do afeto, amor, proteção e segurança, visto que a violência doméstica escolhe este como lugar de suas múltiplas violências, como se este fosse o lugar seguro, invisível e silenciado de cometê-la, na ideia de que o que ocorre em casa fica em casa, ou ainda em briga de marido e mulher não se mete a colher. Destarte, é no privado que a violência contra a mulher, refiro-me aqui, a conjugal, atinge índices alarmantes, constituindo este como o espaço favorável de violência contra o feminino. A violência contra as mulheres, sobretudo, a doméstica é um mecanismo que fundamenta subordinação frente ao masculino, visto que há um sistema simbólico que hierarquiza e legitima uma ordem geral de controle sobre os corpos femininos (FEMENÍAS & ROSSI, 2009). Essa função ou ainda norma social aparece como uma “arma” cultural que condiciona os sujeitos a sistemas estruturados que cria espaços de significação e de reconhecimento. Esse binômio homem-mulher localiza também o pólo superior-inferior e esta condição articula os espaços e territórios possíveis dos papéis sociais e sexuais. Portanto, o espaço doméstico/privado pode ser compreendido 1 Mestranda pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte - Natal/Brasil

Upload: others

Post on 23-Jul-2020

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: AS MARCAS DA DOR: UMA ANÁLISE DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA … · 2018-01-17 · 1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

1

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

AS MARCAS DA DOR: UMA ANÁLISE DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NA CIDADE DE

NATAL/RN

Mikarla Gomes da Silva1

Resumo: O estado do Rio Grande do Norte aparece em quinto lugar quando o assunto é violência

doméstica segundo dados divulgados em 2015 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

(IBGE). Desse modo, o trabalho tem o objetivo apresentar a lei 11.340/06 mais conhecida como Lei

Maria da Penha, na cidade de Natal/RN, esta que se estabelece como primeira ferramenta legal de

enfrentamento a violência de gênero contra a mulher. Neste sentido, o trabalho avalia a Lei

11.340/06, a priori, com uma análise sobre a violência doméstica contra o feminino e como esta se

interliga com o conceito de feminicídio, uma vez que à violência contra a mulher é fruto de uma

construção histórica, cultural e social pautadas nas categorias de gênero e de relação de poder. No

mais, a pesquisa tenta identificar quem atravessa o gênero agredido no que corresponde à classe

social, raça/cor e geração, uma vez que os números globais colocam as mulheres negras, pobres e

na faixa etária entre 18 a 30 anos como vítimas da violência.

Palavras-chave: Gênero. Violência Doméstica. Lei 11.340/06. Feminicídio.

A violência doméstica revela-se nas relações íntimas/conjugais um lugar-lócus que é

predominantemente o espaço privado, assim ocorre na privacidade do casal, ou seja, no lar/casa

podendo atingir familiares e pessoas que lá convivem (BANDEIRA, 2013). Contudo, se desmonta a

ideia romantizada do espaço doméstico/privado como lugar do afeto, amor, proteção e segurança,

visto que a violência doméstica escolhe este como lugar de suas múltiplas violências, como se este

fosse o lugar seguro, invisível e silenciado de cometê-la, na ideia de que o que ocorre em casa fica

em casa, ou ainda em briga de marido e mulher não se mete a colher. Destarte, é no privado que a

violência contra a mulher, refiro-me aqui, a conjugal, atinge índices alarmantes, constituindo este

como o espaço favorável de violência contra o feminino.

A violência contra as mulheres, sobretudo, a doméstica é um mecanismo que fundamenta

subordinação frente ao masculino, visto que há um sistema simbólico que hierarquiza e legitima

uma ordem geral de controle sobre os corpos femininos (FEMENÍAS & ROSSI, 2009). Essa função

ou ainda norma social aparece como uma “arma” cultural que condiciona os sujeitos a sistemas

estruturados que cria espaços de significação e de reconhecimento. Esse binômio homem-mulher

localiza também o pólo superior-inferior e esta condição articula os espaços e territórios possíveis

dos papéis sociais e sexuais. Portanto, o espaço doméstico/privado pode ser compreendido

1 Mestranda pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte - Natal/Brasil

Page 2: AS MARCAS DA DOR: UMA ANÁLISE DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA … · 2018-01-17 · 1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

2

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

historicamente como lugar do silêncio e da disciplina, paradoxalmente como o lugar que protege a

violência.

Objetivando apresentar como a violência doméstica e o feminicídio aparecem como

expressões continua de reiteração de violência no corpo feminino estruturou-se o texto em três

momentos: no primeiro, Mulher: violência sem sangue com sangue e com morte discorre-se sobre

como a violência tem marcado o corpo feminino. Ao problematizar a violência e suas dimensões

traçamos diálogo direto com as formulações propostas na Lei 11.340/06, Lei Maria da Penha e a lei

do Feminícidio, apresentado as violências contidas nas Leis como violência sem sangue

(BANDEIRA, 2013), violência com sangue e violência com morte. No segundo momento, intitulado

Rio Grande do Norte: quando as violências sem sangue e com sangue se transforma em violência

com morte apresento números que colocam o estado como lugar da violência de gênero, sobretudo, a

violência doméstica marcada no corpo feminino no ano de 2016. Destarte, o trabalho analisa como a

violência doméstica contra o feminino na cidade de Natal/RN se interliga com o conceito de

feminicídio, uma vez que à violência de gênero, sobretudo contra a mulher é fruto de uma construção

histórica, cultural e social pautadas nas categorias de gênero e de relação de poder. Por fim, reflito

sobre o continnum da violência e suas reiterações nos mais diversos espaços.

Faz se necessário aqui apresentar brevemente como compreende-se o gênero, uma vez que

essa discussão é primária ao falarmos da Lei Maria da Penha, bem como da Lei do Feminicídio.

Deste modo, apreendemos gênero com um construto social e retiramos os marcadores biologizantes,

visto que estamos em concordância com a proposta analítica de Judith Butler (2003) de pensar a

performatividade, logo o gênero é assumido no texto a partir de identidade representada pelo

próprio sujeito. Assim a compreensão de gênero na qual construímos o trabalho e que tomamos

como conceito para pensar o gênero em si é a noção de gênero como plural (BENTO, 2006) onde o

gênero, sexo e sexualidade se distinguem.

Nesta perspectiva há uma junção das performances de gênero e sexuais através da

percepção que ambos são produções sociais e culturais, mas que são diferentes, pois a atuação de

um destes domínios não implica na necessidade ou anulação do outro (BENTO, 2006). No mais,

ratificamos a apreensão do conceito como produção social e cultural. Outrossim, vale ressaltar que

o texto da Lei Maria da Penha, está em consonância com a perspectiva adotada, visto que o mesmo

deixa explícito que o termo gênero é concebido a partir da identidade de gênero, com isso, a

performance de gênero (BULTLER, 2003) compõe o reconhecimento dos sujeitos por meio de sua

auto representação. Ao apresentar o gênero a partir de uma perspectiva plural, a Lei possibilita

Page 3: AS MARCAS DA DOR: UMA ANÁLISE DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA … · 2018-01-17 · 1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

3

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

proteger e abranger de maneira mais ampla as mulheres vítimas de violência doméstica e

intrafamiliar.

Mulher: violência sem sangue, com sangue e com morte

O artigo 7º do inciso II da Lei Maria da Penha, elucida que a violência psicológica

configura-se como qualquer dano emocional que provoque estrago a saúde psicológica originado de

ameaça, xingamentos, manipulação, chantagem, isolamento, entre outros. Conforme Isadora Vier

Machado e Miriam Pillar Grossi (2015) os meios ou estratégias que podem acarretar a violência

psicológica está embutido de características que se cruzam entre os danos do plano moral e no plano

psicológico. Diante disto, as autoras compreendem a violência psicológica a partir de suas

multiplicidades, um conjunto de violências que afere o psicológico composta por modalidades. As

violências psicológicas para estas centralizam-se “na historicidade da Leia Maria da Penha e a

concretiza enquanto lugar de memória dos movimentos feministas brasileiros” (MACHADO &

GROSSI,2015, p.562), uma vez que este corrobora para ampliar a noção de violência com a

intenção de proteger os sujeitos de direito, no caso da lei, as mulheres.

À luz das concepções conceituais das autoras referenciadas de pensar as violências

psicológicas a partir da dor no corpo a dor na alma, apreendemos esta a partir do que Bandeira

(2013) nomeia como violências sem sangue e abarcamos outras violências apresentadas na Lei

Maria da Penha, tais como, a violência moral e a violência patrimonial. Nesse sentido, apresento a

violência sem sangue a partir dos incisos II, IV e V da Lei 11.340/06, uma vez que entendo que há

nestas violências um controle dos sujeitos a partir de um terrorismo psicológico e moral,

inicialmente apresentada através das “sutilezas” e certa invisibilidade da própria violência. O medo,

controle, destruição parcial ou total de seus bens, xingamentos, difamação e humilhação, por muitas

vezes se dá de forma imperceptível, desta forma, é na repetição das violências que se identifica a

própria violência. Vale destacar que a violência simbólica se aproxima de certa forma a violência

psicológica, visto que está se faz presente nas relações de força, logo o poder vai conferir e

legitimar os significados das violências.

A violência psicológica pode ser concebida como a violência primária mediante as outras,

contudo esta pode desencadear as demais violências. Segundo Virgínia Feix (2011), a violência

psicológica está essencialmente relacionada a todas as outras expressões de violência doméstica e

familiar contra a mulher.

Para Feix (2011):

Page 4: AS MARCAS DA DOR: UMA ANÁLISE DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA … · 2018-01-17 · 1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

4

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

Os ataques à liberdade de escolha pela afirmação constante da incapacidade da mulher de

fazer e sustentar eticamente suas escolhas infantilizam-na enquanto sujeito; impedindo-a de

desenvolver sua identidade com autonomia, pelo permanente ataque a sua tentativa de

diferenciação e afirmação de sua alteridade em relação ao agressor, ou seja, como outro ser,

capaz de autodeterminação. As condutas descritas no inciso II como violência psicológica

estão intimamente relacionadas ao boicote do ser; ao boicote à liberdade de escolha, que

nos define como humanos. (FEIX, 2011, p.205).

No desafio de pensar os entraves e consequências que as violências sem sangue introjetam,

neste caso, nas mulheres, concordo com Feix (2011) ao afirmar que a violência psicológica fere e

marca a subjetividade dos que passam constantemente por este tipo de violência e que esta é a

violência que perpassa pelas demais. Logo, sofre-se uma dupla violência, visto que se adiciona o

sofrimento psicológico com o físico, sexual, moral ou patrimonial.

De acordo com Machado e Grossi (2015) o conceito de violência psicológica apresentada na

Lei 11.340/06 é essencial porque demarca uma nova postura frente às violências contra as mulheres,

além de indicar uma nova visão das próprias mulheres como sujeitos de direitos. É necessário

destacar que o conceito de violência psicológica conforme as autoras a Lei 11.340/06 “revela que a

implementação da Lei Maria da Penha é uma tarefa permeada pelas subjetividades, crenças e

formação específica das/os agentes de segurança e justiça em questão” (MACHADO & GROSSI,

2015, p.572).

Destarte, ao apresentar a violência sem sangue, compreendida aqui como violência

psicológica, moral e patrimonial entendemos que estas não deixam marcas físicas, porém as marcas

atacam a subjetividade, uma ferida/ dor que pode permear por tempo indeterminado. As calúnias,

ameaças, xingamentos, assédios, humilhação, controle, ferem a relação mais íntima e subjetiva dos

sujeitos, “não são necessariamente ataques ao corpo, mas a identidade a subjetividade da mulher,

em outras palavras, o que a constitui como pessoa” (BANDEIRA, 2013, p.74). Assim, as práticas

da violência sem sangue, sobretudo, a violência psicológica pode ser compreendida como primeira

etapa do ciclo de violência e reverberar nas demais.

A partir da contribuição teórica de Bandeira (2013) tomamos a ideia de pensar as violências

sem sangue como aquelas oriundas da violência psicológica, violência patrimonial e violência

moral. Neste caminho vamos além e pensamos nas violências com sangue e violências com morte,

entendendo as violências com sangue a partir do parágrafo 7º do capítulo II da Lei 11.340/06, Lei

Maria da Penha, a violência física e a violência sexual.

Deste modo, ao apresentar a violência física e a violência sexual como violências com

sangue estou aferindo a estas o domínio do corpo feminino como sujeito da violência visível, dado

que estas violências tem como principal objetivo ferir e marcar os corpos femininos. Marcas estas

Page 5: AS MARCAS DA DOR: UMA ANÁLISE DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA … · 2018-01-17 · 1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

5

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

que diferentemente das violências sem sangue tem seu marcador a visibilidade da dor, dos tons de

roxos, logo se faz visível.

Feix (2011) aponta a violência física são legitimadas nas relações de poder, de um domínio

do homem sobre a mulher, visto que estas institui-se como dispositivo de controle, disciplinador e

regulador dos corpos. (FOUCAULT, 2004). Logo, a violência doméstica sugere uma experiência

especifica centrada na conversão de diferenças e de assimetrias em uma relação hierarquia de

desigualdade, gerando práticas de dominação, exploração (BANDEIRA, 2013). Destarte as

violências apresentadas na Lei Maria da Penha, são compreendidas como recursos, mecanismos de

controle e dominação dos homens sobre as mulheres, visto que as violências se inscrevem e

exteriorizam na dor dos corpos agredidos, violentados, explorados, desmoralizado. Assim, as

violências que denominamos como violências com sangue são as que apresentam o corpo da mulher

como um “corpo de batalha”2 e, nesta luta, como já mencionado as marcas são visíveis.

No percurso de pensar a violência doméstica como um fenômeno socialmente construído

que ocorre no interior das relações sociais, trazemos para o diálogo Mariza Corrêa (1981). A autora

mostra como as violências encontram na sociedade justificativas, respostas para legitimar o ato da

violência. Nesse sentido, apresento como violência com morte o feminicídio, visto que compreendo

que esta pode ser entendida como a última etapa da violência contra a mulher, pensando as relações

conjugais/íntimas, que acarretaram na morte da mulher pelo companheiro ou ex-companheiro.

Assim, eventualmente as violências apresentadas na Lei 11.340/06 pode originar na violência com

morte, logo quando se extrapola os abusos verbais, psicológicos e físicos.

Conforme Corrêa (1981), os homicídios de mulheres praticados por seus companheiros ou

ex-companheiros parecia oferecer o privilégio da impunidade, onde mais uma vez via a mulher em

uma situação estruturalmente subordinada. Os crimes passionais eram julgados a partir da conduta

moral do réu ou vítima como se este fosse referência para “legitimar” dada violência. Ademais, a

mulher no cenário de vítima era duplamente violentada, primeiro pelo companheiro, segundo pelo

judiciário, era julgada pela sua conduta moral e social. Para autora os “crime passionais” tinham

como motivação o: adultério, a legítima defesa e defesa da honra, este último nos lembra a tradição

patriarcalista onde a honra é defendida/lavada com próprio sangue.

Os advogados de defesa de maridos, noivos, namorados ou amantes, assassinos de suas

companheiras, passaram a afirmar então que a paixão era uma espécie de loucura

momentânea, tornando irresponsáveis na ocasião do crime os que estavam por ela

possuídos” (CORRÊA, 1981, p.22).

2 Expressão utilizada por Lourdes Bandeira em Conferência realizada no Senado Federal, intitulada “Feminicídio como

violência política” no dia 16 de fevereiro de 2017.

Page 6: AS MARCAS DA DOR: UMA ANÁLISE DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA … · 2018-01-17 · 1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

6

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

Dessa forma, podemos inferir que os homens em sua maioria matavam as mulheres por

motivo de traição, não aceitação de vê-la com outro mesmo com o fim do relacionamento e homens

que diziam defender sua honra (como uma defesa de sua masculinidade). Estes que foram

defendidos e absolvidos socialmente e juridicamente pautados em discursos introjetados

socialmente em uma sociedade estruturalmente machista, que legitima a violência contra o feminino

a partir de uma legitima defesa da honra, em outras palavras, absolvem estes conferindo ao mesmo

como se eles fossem as vítimas e não os réus, logo crimes absolvidos pela ofensa a honra e a

dignidade familiar. A ideia de legitima defesa da honra traz consigo a justificativa de recompor um

sentimento de dignidade, ao matar a mulher adultera e seu amante parece retomar sua dignidade,

sua masculinidade lhe é devolvida ou reconstruída.

Segundo Pimentel, Pandjiarjian e Belloque (2006) até o início do século XXI persistiram-se

a luta por leis e jurisprudência que enquadrasse os agressores, sobretudo, porque os resultados de

sentenças que davam liberdade aos agressores marcam de maneira significativa a incorporação de

estereótipos, preconceitos e discriminação das mulheres. Com isso, podemos dizer que ao decretar

liberdade de agressores e assassinos quem sai “vencedor” é o sistema machista, visto que era na

soltura e legitimação do crime como permissível que o machismo se fortalecia. A violência contra

as mulheres é apreendida como uma violação dos direitos humanos das mulheres, porém o que

concerne à violência com morte no Brasil é só no ano de 2015 que sanciona-se uma lei tipificada

acerca dos crimes cometidos em virtude da violência contra a mulher, a Lei 13,104/15, que cria o

delito de feminicídio, refiro-me à violência com morte. Deste modo, até então homens matavam

suas esposas, companheiras ou namoradas em nome de uma suposta honra conjugal ou familiar

O feminicídio, crime contra a mulher, retira todo caráter de crime de amor, como reivindica

e reivindicava a luta feminista e de movimento de mulheres. Ao chamar de crime passional é como

se tirasse toda a subjetividade feminina e reconhecesse o sujeito masculino como sujeito absoluto,

detentor de poder (vítima e vitorioso). A lei do feminicídio outorgada no Brasil em 15 de março de

2015 coloca a mulher em ênfase, esta é a vítima e não a “réu”. A Lei 13.104/2015 qualifica o

feminicídio como crime de homicídio. O feminicídio no Brasil está de certo modo atrelado a

violência doméstica, como este fosse uma extensão da Lei Maria da Penha, visto que as duas leis

tem por finalidade proteger os direitos das mulheres, bem como coibir e prevenir a violência. Além

disso, o feminicídio tem o seu principal cenário o contexto de violência doméstica e familiar e, que

geralmente é precedido pelas violências sem sangue e violências com sangue. Deste modo, a morte

de mulheres pelo fato de serem mulheres abonada sócio culturalmente por uma história de

Page 7: AS MARCAS DA DOR: UMA ANÁLISE DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA … · 2018-01-17 · 1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

7

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

dominação, subordinação, de poder do homem sobre a mulher respaldou os assassinatos

relacionados a gênero, logo o feminicídio.

Neste contexto, o feminicídio no Brasil tem um significado político haja vista que denuncia

a falta de compromisso por parte das Convenções internacionais. Sendo assim, pode ser

compreendido como uma violência política relacionado ao fato de não se tratar de uma violência

eventual, mas sim em uma prática que tem seu fundamento a relação desigual de poder. Assim, o

Mapa da Violência 2015 aponta que dos 4.762 assassinatos de mulheres registrados no ano de 2013

no Brasil, a maioria foram cometidos por familiares, 50,3%, no qual 33,2% foi cometido por

companheiro ou ex-companheiro e ainda evidencia que a casa é o lugar da morte, portanto, o local

de risco para as mulheres. Logo, o feminicídio aparece como continuação da violência doméstica,

sua fase final.

O Mapa da Violência nos alude para outros números significativos, onde apresenta que

mesmo com a Lei Maria da Penha em vigor houve um aumento da violência contra a mulher no ano

de 2006 e uma pequena queda no ano de 2007 e posteriormente os números da violência contra a

mulher voltou a aumentar. Os números da violência de 2005 a 2013 mostra que a implementação da

Lei Maria da Penha nos seus anos iniciais não conteve de forma efetiva a diminuição da violência

contra a mulher, reverberando esta em violência com morte. Portanto o feminicídio “ocorre quando

o Estado não garante a seguridade das mulheres ou cria ambientes no qual as mulheres não estão

seguras em suas comunidades ou lares” (LISBOA, 2010, p.64).

Rio Grande do Norte: quando as violências sem sangue e com sangue se transformam em

violência com morte

O Rio Grande do Norte ocupa o 5º lugar no ranking quando assunto é violência doméstica

(WAISELFIZ, 2015). O estado apresenta uma taxa de 6,2% (79.708) de mulheres agredidas por

pessoas que mantém algum vínculo afetivo. Assim, percebe-se que a violência doméstica mesmo

com a implementação da Lei Maria da Penha não conteve nos seus sete anos de vigência

(2006/2013) a violência contra a mulher no âmbito doméstico. Segundo Waiselfiz (2015), somente

cinco estados brasileiros diminuíram os índices da violência contra as mulheres, Rondônia, Espírito

Santo, Pernambuco, São Paulo e Rio de Janeiro, os demais estados as taxas de violência

aumentaram. O mapa ainda aponta que o Rio Grande do Norte teve um acréscimo significativo de

homicídios de mulheres potiguares de 33 mortes em 2003 para 89 mortes em 2013.

Page 8: AS MARCAS DA DOR: UMA ANÁLISE DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA … · 2018-01-17 · 1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

8

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

Dados: OBVIO RN- Janeiro-Novembro

Segundo o Observatório da Violência Letal Intencional do Rio Grande do Norte (OBVIO

RN) os assassinato de mulheres no estado potiguar decorrente do feminicídio tem aumentado

gradativamente, ano após ano, de acordo com gráfico acima o crime de feminicídio foi qualificado a

partir de assassinatos oriundos de violência doméstica e violência de gênero , destaca-se que

Observatório de Violência Letal Intencional do Rio Grande do Norte não contabilizara o estupro

seguido de morte, no entanto este faz parte das violências atreladas ao feminicídio, sendo assim se

contabilizássemos os números do estupro seguido de morte dentro dos casos de feminicídio no RN

teríamos em 2016 das 95 mulheres mortas 37 casos de mulheres mortas pela violência com morte.

Nesse contexto de violência contra a mulher no Rio Grande do Norte atrelado ao feminicídio

vale lembrarmos agosto de 2016 onde 11 mulheres em aproximadamente 11 dias foram

assassinadas. Destas, sete mulheres foram vítimas de feminicídio, entendido aqui como também o

último ciclo da violência doméstica e, que chamamos de violência com morte. Edilene Felipe,

Josefa Ferreira, Francycris Silva foram mortas pelos seus maridos, já Ana D’Avila, Maria do

Socorro, Mykaela Rhuanna e Nayara Régia3 foram mortas pelos ex-companheiros. Mortas no

contexto de relações interpessoais e íntimas ou por alguma razão pessoal por parte do agressor,

podendo estar associado à violência doméstica; e pela apropriação do corpo feminino como

proprietário sob o ideal se não for minha não será demais ninguém.

Ana D’Ávila foi a primeira vítima de feminicídio do agosto sangrento do Rio Grande do

Norte, foi assassinada pelo ex- companheiro em Santa Cruz, cidade vizinha da capital potiguar

Segundo o delegado da região, Silva Júnior, o responsável teria sido o companheiro dela.

Ana chegou a procurar a delegacia em março, quando foi aberto inquérito de violência

doméstica e o juiz determinou o afastamento do companheiro. Apesar da medida, o

3 Fonte: http://www.bbc.com/portuguese/brasil-37278496

66

2610 4 4 2

55

256 4 8 1

5332

3 5 00

20406080

Homicídio Feminicídio Lesão corporalseguida de

morte

Latrocinío Estupro seguidode morte

Outros

Condutas Violentas Letais Intencionais de Mulheres- RN

2014 2015 2016

Page 9: AS MARCAS DA DOR: UMA ANÁLISE DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA … · 2018-01-17 · 1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

9

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

homem invadiu a casa em que Ana vivia e a matou a facadas. Ela teria gritado por ajuda ao

vê-lo armado.4 Edilene Felipe foi morta a facadas pelo seu marido na cidade de São José do Mipibu, grande

Natal. De acordo com o delegado Geriz, responsável pelo caso "Ele era ciumento, bruto, e queria

voltar para ela. Eles estavam separados havia oito dias. Na noite do crime, conversaram em casa

...Quando os filhos acordaram, a mãe estava morta5”.

Mykaella Ruanna foi morta a tiros pelo seu ex- companheiro ao sair da academia na cidade

de Natal. O seu filho 3 anos presenciou o crime.

"Pa, pa, pa, pa". O som dos tiros que mataram a diarista Mykaella Ruanna Fagundes, de 21

anos, no Rio Grande do Norte, é repetido pelo filho dela - órfão aos três anos...Ele estava na

hora que aconteceu (o crime), diz uma parente da vítima à BBC Brasil. "E sabe que a mãe

não volta”6

As mortes te mulheres vítimas de seus companheiros ou ex-companheiros não teve seu fim no mês de

agosto, em 12 de dezembro de 2016 o assassinato de Ana Lívia Sales mulher de 19 anos, mãe de uma criança

de seis meses chocou o estado, o caso da Ana foi uma de tantas outras mulheres que no ano de 2016 entrou na

estatística da violência com morte. Ana Lívia fora morta pelo seu ex- companheiro, pai da criança enquanto

amamentava o seu filho na casa da ex-sogra por golpes de faca. De acordo com jornais locais Ana Lívia teria

ido à casa do ex- companheiro amamentar o filho que passara o dia com o pai, foi acompanhada por uma

amiga, pois tinha medo que acontecesse algo, a amiga ficou do lado de fora esperando a mesma

comunicando-se pelo celular. Em mensagens antes do crime teria dito a amiga que estava com medo, que ele

tinham trancado a porta7.

Uma amiga de Ana Lívia esperava por ela na frente da casa e foi a última pessoa a falar com a vítima

pessoalmente e pelo celular. Na última mensagem enviada pela vítima para a amiga ela escreveu "tô

com medo". A amiga respondeu "qualquer coisa grita". De acordo com a amiga da vítima, o casal

se separou recentemente e a mulher já tinha prestado queixa à Polícia Civil por violência

doméstica. Vizinhos disseram que ouviam as agressões que seriam motivadas por ciúmes8

O agressor e assassino de Ana Lívia Sales, Felipe Cunha Pinto, 19 anos confessou o crime e disse ter

sido motivado por legitima defesa. Felipe Cunha não fora o único a afirmar que teria cometido o crime por

legitima defesa, outros disseram ser por traição, logo entendo que estes mataram suas companheiras ou ex-

companheiras por legitima defesa da honra, mais uma vez na premissa se não vai ser minha não será de mais

ninguém. É nesse ideal de legitima defesa, principalmente, da honra que homens seguem matando suas

companheiras ou ex-companheira. É necessário destacar que a mulheres que sofrem violência doméstica são

4 Idem. 5 Idem 6 Idem 7Fonte:http://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2016/12/mae-e-morta-facadas-na-grande-natal-enquanto-

amamentava-bebe.html 8 Idem

Page 10: AS MARCAS DA DOR: UMA ANÁLISE DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA … · 2018-01-17 · 1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

10

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

primeiramente mortas simbolicamente, uma vez que entendemos que as violências sem sangue e com sangue

são as mortes inicias dado que estas essas ceifam as mulheres pouco a pouco. Desse modo, questionamos: o

que é necessário fazer para que mais mulheres não sejam mortas pelos seus companheiros ou ex-

companheiros? Quem a cultura do machismo matará/agredirá/violentará hoje?

Reflexões finais

Pensar os variados tipos de violência contra a mulher no sentido político nos permite refletir,

a partir das concepções de Judith Butler (2015), sobre como a mulher em situação de violência

constante – seja simbólica, psicológica ou física – está inserida numa condição precária da vida.

Butler (2015) define condição precária da vida como sendo:

[...] A condição politicamente induzida na qual certas populações sofrem com redes sociais

e econômicas de apoio deficientes e ficam expostas de forma diferenciada às violações, à

violência e à morte. Essas populações estão mais expostas a doenças, pobreza, fome,

deslocamentos e violência sem nenhuma proteção. A condição precária também caracteriza

a condição politicamente induzida de maximização da precariedade para populações

expostas à violência arbitrária do Estado que com frequência não têm opção a não ser

recorrer ao próprio Estado contra o qual precisam de proteção. Em outras palavras, elas

recorrem ao Estado em busca de proteção, mas o Estado é precisamente aquilo do que elas

precisam ser protegidas. Estar protegido da violência do Estado-Nação é estar exposto à

violência exercida pelo Estado-Nação; assim, depender do Estado-Nação para a proteção

contra a violência significa precisamente trocar uma violência potencial por outra. Deve

haver, de fato, poucas alternativas. É claro que nem toda violência advém do Estado-Nação,

mas são muito raros os casos contemporâneos de violência que não tenham nenhuma

relação com essa forma política (BUTLER, 2015, p. 46-47).

Nesse sentido, a partir das formulações da Butler (2015) podemos também fazer uma

relação sobre os tipos de violência cometidos pelo o Estado seguindo a mesma linha de raciocínio já

apresentada: violência com sangue, violência sem sangue, violência com morte. Estamos tentando

demonstrar com isso que a mulher vítima de violência doméstica ao recorrer aos mecanismos

oferecidos pelo Estado com o objetivo de proteção ou amparo, acaba por não se sentir nem

protegida nem aparada pelo fato de que o próprio Estado não proporciona itinerários cabíveis para

que essa vítima se sinta devidamente resguardada pelo o Estado, como, por exemplo, nos casos já

citados onde as vítimas sofrem duplamente a violência cometida contra o seu gênero feminino, uma

vez em casa e a outra na delegacia, uma vez no âmbito doméstico e a outra no ambiente hospitalar.

Essas questões referem-se sociologicamente e historicamente a como o machismo está incutido nas

relações interpessoais e institucionais.

Pensando numericamente o estado do Rio Grande do Norte tem 168 municípios e apenas 5

Delegacias Especializadas em Atendimento à Mulher que funcionam de segunda a sexta das 09

Page 11: AS MARCAS DA DOR: UMA ANÁLISE DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA … · 2018-01-17 · 1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

11

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

horas as 18:00 horas. Segundo os dados do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte o estado

tem 15 mil processos judiciais relacionados aos crimes contra a mulher, desses 15 mil processos a

maior parte é oriunda de Natal9 que é a capital do estado, Parnamirim que se encontra na Grande

Natal e Mossoró que é o polo regional do oeste potiguar. Natal apresenta-se como município do Rio

Grande do Norte mais violento para as mulheres e nesse número as interseccionalidades

correspondem aos últimos dados apresentados pelo Mapa da Violência de 2015 a qual apresentam

as mulheres negras, pobres e na faixa etária entre 18 a 30 anos como vítimas da violência sem

sangue e violência com sangue, o que acaba refletindo na violência com morte.

Dessa maneira, se torna ainda mais visível a possibilidade de considerar a violência contra a

mulher como um atentado a vivência do gênero feminino, tendo como pressuposto que a violência

como prática social pode ser entendida como uma prática de não reconhecimento da importância da

vida do “Outro”. Esse “Outro” sujeito, ou seja, a mulher que é passível de ser violentada, humilhada

ou assassinada, tem a sua vida perdida ou negada pelo fato do agressor não reconhecer na figura

feminina uma vida que merece ser vivida ou respeitada.

Afirmar que uma vida pode ser lesada, por exemplo, ou que pode ser perdida, destruída ou

sistematicamente negligenciada até a morte é sublinhar não somente a finitude de uma vida

(o fato de que a morte é certa), mas também sua precariedade (porque a vida requer que

várias condições sociais e econômicas sejam atendidas para ser mantidas como uma vida).

A precariedade implica viver socialmente, isto é, o fato de que a vida de alguém está

sempre, de alguma forma, nas mãos do outro (BUTLER, 2015, p. 31).

As questões que essa discussão desemboca e que servem para complexificar ainda mais a

nossa reflexão são: de quantos “Outros” podemos falar quando nos referimos à violência contra a

mulher? Do “Outro” como sujeito agressor? Do “Outro” como instituição incorporada no papel do

Estado que em suas atribuições não oferece com efetividade proteção e amparo às vítimas de

violência doméstica? Ou do “Outro” como norma social produzida e reproduzida através do

machismo? As respostas para essas indagações talvez sejam acionadas por meio do

entrecruzamento formado pelo possível complemento de suas resoluções explicativas. Em outras

palavras, o que estamos tentando dizer é que não se pode isolar o ponto de vista sobre a violência

contra a mulher em apenas uma via de acesso. Um dos apontamentos do trabalho é que na maioria

dos casos estudados, desde o momento da denúncia, a mulher está sujeita a sofrer variados tipos de

violência em diferentes espaços por diferentes pessoas. Essas violências “secundárias” podem ser

9 Natal tem duas Delegacias Especializadas de Atendimento a Mulher. A Delegacia Especializada da Zona Sul,

localizada na Rua do Saneamento, 28 – Ribeira e a Delegacia Especializada da Zona Norte, localizada na – Av. Dr.

João Medeiros Filho, s/n - Potengi. Ambas funcionam pela manhã/tarde de segunda-feira a sexta-feira.

Page 12: AS MARCAS DA DOR: UMA ANÁLISE DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA … · 2018-01-17 · 1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

12

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

entendidas como extensões do atentado à vida física, psicológica ou simbólica da mulher em

ambiente doméstico.

Referências

BANDEIRA, L. M. A violência doméstica: uma fratura social nas relações vivenciadas entre

homens e mulheres. In: Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado: uma

década de mudanças na opinião pública. 1ed.São Paulo: Perseu Abramo, 2013.

BENTO, Berenice. “A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual”. Rio

de Janeiro: Garamond, 2006.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade/ Judith Butler;

tradução, Renato Aguiar. –Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

BUTLER, Judith. Quadros de Guerra: Quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2015.

BRASIL, Lei Maria da Penha. Lei n. 11.340/2006. Coíbe a violência doméstica e familiar contra a

mulher. Presidência da República, 2006

BRASIL, Senado Federal Relatório da Comissão Palarmentar de Inquérito Misto, 2013

BRASIL, Lei do feminicídio. Lei 11.304 de 09 de março de 2015

CORRÊA, Mariza. Os crimes da paixão. São Paulo. Ed. Brasiliense, 1981

FEMENÍAS, Maria Luisa. ROSSI, Paula Soza. Poder y violencia sobre el cuerpo de las mujeres. In:

Sociologias, Porto Alegre, ano 11, nº 21, jan./jun. 2009, p. 42-65.

FEIX, Virgínia Das formas de violência contra a mulher – artigo 7º In: Lei Maria da Penha

comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Carmen Hein de Campos Organizadora.

Editora Lumen Juris Rio de Janeiro 2011.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2004.

LISBOA, Teresa Kleiba. Políticas públicas com perspectiva de gênero- afirmando a igualdade e

reconhecendo as diferenças. In: Fazendo Gênero 9. Diásporas, diversidades, deslocamentos.

Florianópolis-SC, 2010.

MACHADO, Isadora Vier, GROSSI, Miriam Pillar Da dor no corpo à dor na alma: o conceito de

violências psicológicas da Lei Maria da Penha In: Estudos Feministas, Florianópolis, maio-

agosto/2015

PIMENTEL, Silvia; Pandjiarjian, Valéria; BELLOQUE, Juliana. “Legítima Defesa da Honra”.

Ilegítima impunidade de assassinos: Um estudo crítico da legislação e jurisprudência da América

Latina In: Vida em família: uma perspectiva comparativa sobre “crimes de honra”/Family

Page 13: AS MARCAS DA DOR: UMA ANÁLISE DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA … · 2018-01-17 · 1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

13

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

Life: a comparative perspective on “crimes of honour”.Organizadoras: Mariza Corrêa Érica

Renata de Souza. Campinas – SP, Pagu-Núcleo de Estudos de Gênero/Center for Gender

Studies/Universidade Estadual de Campinas/StateUniversity of Campinas, 2006. [Tradução/

Translation: Maria Luiza Lara.].

WAISELFIZ, Julio Jacob. Mapa da Violência 2015: Homicídio de mulheres no Brasil, 2015

The pain marks: an analysis of domestic violence in the city of Natal / RN

Abstract: The state of Rio Grande do Norte appears in October 2011 by the Brazilian Institute of

Geography and Statistics (IBGE). Thus, the work aims to present a law 11.340 / 06 better known as

the Maria da Penha Law, in the city of Natal / RN, which establishes as the first legal instrument to

combat gender violence against women. In this sense, the work is a Law 11.340 / 06, a priori, with

an analysis of domestic violence against the feminine and how they intertwine with the concept of

feminicide, since violence against a woman of a historical, cultural and social categories based on

the categories of gender and power relations. No more, the research tries to identify who crosses the

gender attacked in what corresponds to social class, race / color and generation, since the global

numbers put as black women, poor and the age group between 18 to 30 years as victims of violence.

Keywords: Gender. Domestic violence. Law 11.340/06. Feminicide