o eca e o acolhimento familiar final

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    O Estatuto da Criana e do Adolescente e o Acolhimento Familiar

    Propercio Antonio de Rezende1

    A recente Lei 12.010, promulgada em 3 de agosto de 2009, j conhecidacomo a Lei da Adoo, representa a maior reviso ou atualizao que oEstatuto da Criana e do Adolescente j recebeu. Em seus quase 20 anos deexistncia, o ECA passou por diversas atualizaes e adequaes,modernizando-se e sofrendo ajustes em pontos que mostravam necessidadede reviso ou de melhoria, porm, nunca uma lei alterou ou incluiu tantocontedo ao Estatuto. A lei da adoo, apesar de ter este nome, poderiatambm ser chamada de lei da convivncia familiar, pois no aborda somente

    questes diretamente ligadas adoo, ainda que este seja o grande foco.Trata, por exemplo, de alguns pontos relacionados ao abrigamento de crianase adolescentes, que passa a ser chamado de Acolhimento Institucional, e incluiuma nova medida de proteo, no artigo 101, chamada Acolhimento Familiar.

    Pretendo, neste texto, oferecer algumas reflexes e informaes bsicassobre esta nova medida, sem a mnima pretenso de esgotar o assunto ou deapresentar uma abordagem extremamente tcnica. Ao contrrio, procurarei alinguagem coloquial e a abordagem que interesse a todos os que convivem outrabalham com crianas e adolescentes, e no somente aos profissionais da

    rea do direito ou da garantia de direitos.

    1 Ps-graduado em Comunicao Social, atua h dez anos na rea da Infncia e Juventude.Foi conselheiro tutelar e diretor da Associao de Conselheiros Tutelares do Estado de SoPaulo. Possui formao em Responsabilidade Social e Terceiro Setor pelo CEATS (FIA-USP),alm de curso especfico sobre Estatuto da Criana e do Adolescente, Violncia Domstica eDireitos Humanos e Mediao de Conflitos e-mail: [email protected]

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    O ECA e a Convivncia Familiar

    A convivncia familiar sempre foi posta em posio de destaque pelo

    Estatuto, mostrando claro e efetivo posicionamento legal contra as antigasinstituies de abrigamento, conhecidas como internatos, orfanatos oueducandrios.

    Ao ser promulgado, em 1990, o ECA inovou a forma de vermos estasquestes, ao trazer uma regulamentao bastante clara em relao aoabrigamento. Assim, podemos destacar, como exemplo, o pargrafo nico doartigo 101 que enfatizava a medida de abrigamento como provisria eexcepcional. Ou ainda o artigo 23 que nos diz que a falta ou carncia derecursos materiais no constitui motivo suficiente para a perda ou suspenso

    do poder familiar2, indicando, em seguida, no seu pargrafo nico, que nohavendo fato que motive a retirada da criana de sua famlia ela devepermanecer, sendo a famlia apoiada atravs da incluso em programas deauxlio.

    Merece destaque, tambm, a prpria incluso da convivncia familiar ecomunitria entre os direitos fundamentais descritos no livro I do ECA,mostrando que esta convivncia to essencial a uma criana ou adolescentecomo so a educao, a sade, o lazer ou os demais direitos bsicos (todo ocaptulo III do ECA vai tratar da temtica do direito convivncia familiar e

    comunitria).

    Conceito de Famlia

    Nos ltimos 19 anos a temtica do direito convivncia familiar teveuma ateno nunca vista na nossa histria, valendo citar aqui a publicao, em2006, do Plano Nacional de Convivncia Familiar e Comunitria3, peloConselho Nacional dos Direitos da Criana e do Adolescente, depois de ampladiscusso realizada em nvel nacional, com a participao de especialistas emilitantes da rea do direito e da assistncia social.

    O Plano Nacional traz o detalhamento do tema da convivncia familiar ecomunitria, complementando e aprofundando o assunto com base nasdiretrizes do ECA. Neste plano vemos, por exemplo, a retomada dos conceitos

    2 A alterao do termo ptrio poder para poder familiar mostra o entendimento da famliacomo um ncleo coeso, no qual pai e me detm os mesmos poderes e obrigaes.3 Disponvel em: http://www.direitosdacrianca.org.br/midia/publicacoes/plano-nacional-de-convivencia-familiar-e-comunitaria-pncfc/at_download/arquivo

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    de famlia trazidos no ECA e na Constituio Federal4 e, em seguida, aorientao de que:

    Estas definies colocam a nfase na existncia de vnculos defiliao legal, de origem natural ou adotiva, independentemente do tipo

    de arranjo familiar onde esta relao de parentalidade e filiao estiver

    inserida. Em outras palavras, no importa se a famlia do tipo

    nuclear, monoparental, reconstituda ou outras5.

    Ampliando a discusso, o mesmo documento vai nos alertar de que,apesar de esta definio ser suficiente do ponto de vista legal, torna-senecessrio desmistificar a idealizao de uma dada estrutura familiar comosendo a natural, ou seja, o Plano Nacional nos chama a ateno para as

    diversas possibilidades de organizao familiar que temos hoje, indo alm doslaos de sangue, para mostrar que preciso reconhecer a diversidade deorganizaes familiares, indicando que:

    Torna-se necessria uma definio mais ampla de famlia (...). Afamlia pode ser pensada como um grupo de pessoas que so unidaspor laos de consanginidade, de aliana e de afinidade. Esses laosso constitudos por representaes, prticas e relaes que implicamobrigaes mtuas6.

    Como vemos, fundamental que tenhamos clareza de que a famlia,

    numa linguagem muito coloquial, pode ser vista como o grupo de pessoas quese unem para organizar a sua subsistncia e a ajuda mtua necessria a ela.

    O conceito de famlia, assim, vai abarcar as relaes de cuidado e umnvel de parentesco que vai alm de pais e filhos, para ampliar-se na chamadafamlia extensa (avs, tios, primos etc). O Plano ainda coloca a importnciade considerarmos as redes sociais de apoio, definidas como grupos depessoas sem lao de parentesco, mas com uma funo social de auxlio, comoalguns vizinhos muito ligados criana ou adolescente, por exemplo.

    4 A Constituio Brasileira de 1988 define, no Art. 226, pargrafo 4: entende-se como entidadefamiliar a comunidade formada por qualquer um dos pais e seus descendentes. Tambm oEstatuto da Criana e do Adolescente (ECA), em seu Art. 25, define como famlia natural acomunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes.

    5 Plano Nacional de Convivncia Familiar e Comunitria: Trecho do ttulo: Famlia: definiolegal e contexto scio-cultural Marco Conceitual.6 Idem

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    No o objetivo deste texto aprofundar a temtica do conceito de

    famlia, mas apenas cit-la, chamando a ateno para a importncia de umareceptividade efetiva em relao a estas novas conformaes familiares cadavez mais comuns nas nossas comunidades. fundamental que percebamosque, apesar e independente de como avaliamos estas novas famlias, elas souma realidade e assim devem ser vistas, com suas limitaes epotencialidades, permitindo abordagens e relaes no preconceituosas porparte dos profissionais que as atendem ou que atendem as crianas eadolescentes ligados a elas.

    Processo de Mudana

    luz da reflexo sobre o conceito de famlia, e orientados pela suavalorizao no Estatuto da Criana e do Adolescente, podemos perceber como,lentamente, ao longo destes quase 20 anos, viemos caminhando para asuperao das condies institucionalizantes nas quais viviam as crianas eadolescentes nos j citados orfanatos, educandrios ou internatos.

    Independente da variao de nomenclatura e de princpios de gesto(muitas casas seguiam padres determinados, por exemplo, por concepesideolgicas ou religiosas), estas instituies se assemelhavam muito naausncia das relaes de proximidade, praticamente inexistindo qualquer tipode atendimento individualizado. As crianas ou adolescentes (ou internos,como eram chamados em muitos lugares), no possuam oportunidade deexercitar a sua individualidade como pessoas, sendo tratadas como massa quedevia obedecer a regras padronizadas e rgidas, independente de qualquersituao peculiar que a criana apresentasse. Horrios rgidos, filas, pratospadronizados e, muitas vezes, at uniformes, transformavam as crianas eadolescentes em pessoas que, apesar de abrigadas, no poderiam serconsideradas acolhidas no sentido mais puro da palavra.

    Oportunamente a nova lei altera o nome da medida de abrigo ementidade, para acolhimento institucional. Este tem sido o desafio de muitosabrigos. Transformar ou flexibilizar as exigncias prprias das instituies queso, buscando formas mais acolhedoras e individualizadas de atendimento.Apesar de grandes esforos e de avanos considerveis (e esta umatemtica que por si s j gerou inmeros estudos e publicaes), ainda no possvel afirmar que um abrigo possa ser to bom quanto uma famlia, no

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    porque os profissionais destas instituies no se esforcem para isso, masporque so duas instituies conceitual e essencialmente diferentes.

    Famlia famlia e abrigo abrigo. Ainda que estejamos falando desituaes de relaes humanas, nas quais os conceitos no so estanques ouexatos, no h a menor possibilidade de afirmar que tal abrigo to bomcomo uma famlia. uma contradio conceitual. Se ele um abrigo, nuncavai ser uma famlia, ainda que seja um timo abrigo, ou o melhor abrigo queconsigamos desenvolver. Esta a questo fundamental que nos leva excepcionalidade e potencialidade das chamadas famlias colhedoras,regularizadas como medida de proteo a partir da nova lei de adoo7.

    A medida de Acolhimento Familiar

    O acolhimento familiar tem como objetivo proteger a criana e oadolescente que esteja em situao de risco e que, por algum motivo, precisese afastar do convvio familiar. Vrias razes podem motivar o acolhimento: ospais podem estar cumprindo pena, hospitalizados ou serem autores deviolncia domstica, por exemplo. Esta ltima modalidade, no Brasil, a maiscomum. Neste caso, o objetivo interromper o processo de violncia pelo qualcrianas e adolescentes passam dentro de casa. So situaes nas quaisessas crianas e adolescentes se defrontam com diversos tipos de violnciadomstica: fsica, sexual, psicolgica ou com situaes de negligncia.

    A famlia acolhe, em sua casa, por um perodo de tempo determinado,uma criana ou adolescente que vem sofrendo algum tipo de violncia em suaprpria famlia. Isto no significa que a criana vai passar a ser filho da famliaacolhedora, mas que vai receber afeto e convivncia desta outra famlia atque possa ser reintegrado sua famlia de origem ou, em alguns casos, serencaminhado para a adoo.

    Da a importncia dessa modalidade que se insere como uma alternativaao abrigamento no Brasil. Ao invs do encaminhamento para abrigos, onde as

    crianas e adolescentes sero tratados numa abordagem coletiva, a famliaacolhedora consegue respeitar a individualidade dessas crianas eadolescentes, dedicando um olhar responsvel e cuidadoso para a resoluode cada problemtica em particular.

    7 A lei inclui no artigo 101 do ECA o item VIII - incluso em programa de acolhimento familiar;

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    Em algumas cidades, os programas oferecem auxlio financeiro para afamlia que acolhe uma criana ou adolescente. Estes valores podem ser fixos

    ou variar de acordo com a idade do acolhido. importante lembrar que oprofissionalismo da equipe que acompanha as famlias vai evitar a procura pormotivos de interesse financeiro. Alm disso, os programas tambm soeconomicamente mais positivos, pois uma criana colocada em uma famliaacolhedora custa menos do que uma criana em um abrigo, e melhoratendida.

    fundamental lembrarmos que o programa no pode prescindir doapoio famlia de origem, pois, neste caso, estar incompleto. importantssimo que medidas evitem que acontea com os programas de

    acolhimento familiar o que vem ocorrendo em muitos municpios, nos quais,aps a colocao da criana num abrigo, no h nenhuma ao efetiva paraque ela volte para a sua famlia de origem, levando a situaes, infelizmentemuito comuns, de crianas e adolescentes que ficam abrigados durante anos.Nesse sentido, a lei 12.010 tambm estabeleceu algumas medidas visando adiminuio do tempo de abrigamento de crianas e adolescentes.

    Origens

    A inteno de oferecer convvio em um modelo familiar no novidade.J em 1949, na ustria, o estudante de medicina Hermann Gmeiner criava as

    Aldeias Infantis S.O.S. nas quais, no lugar de grandes instalaes, messociais cuidam de at dez crianas em uma casa pequena, tendo maiorconforto e ateno personalizada8. Na verdade, o princpio bsico do que hojechamamos de famlia acolhedora remonta prpria organizao social dohomem, afinal, sempre houve famlias que assumiram a proteo e educaode crianas rfs ou desabrigadas, o que acontece, inclusive, em aldeiasindgenas. Enquanto programa de atendimento, somente em 1979 que oprojeto Famlia Hospedeira, da Sociedade do Bem-Estar do Menor, em SoJos dos Campos (SP) surge de forma pioneira.

    Caractersticas

    O que a medida includa no Estatuto vem colocar, e este um aspectofundamental, que deve se tratar de um programa de acolhimento familiar,ou seja, a medida no significa a simples transferncia da guarda de uma

    8 Leia mais sobre as Aldeias S.O.S. em http://www.aldeiasinfantis.org.br/sitesos/_principal.php

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    criana ou adolescente a uma famlia qualquer, como ainda acontece comfrequncia, muitas vezes como alternativa para pequenas cidades que no

    possuem abrigo, mas sim, da criao de um servio, de um programa comtodas as implicaes que isto requer. A formalizao da medida, comoprograma, ir requerer, por exemplo, o mnimo do acompanhamento porprofissionais da rea, de preferncia uma equipe multidisciplinar. Isto minimizaos possveis problemas que ainda preocupam os resistentes a este tipo deacolhimento, como, por exemplo, a dificuldade da famlia que acolhe umacriana, especialmente crianas mais novas ou bebs, no momento de seuretorno famlia de origem. Muitos juzes recorrem a este argumento paraoferecerem resistncia medida.

    Alm do fato do apoio e acompanhamento profissional, que deve ocorrerem todo o processo, desde a seleo das famlias, minimizar estas questes, preciso considerar que os traumas vividos em instituies, por nossas crianase adolescentes, so extremamente maiores. Por mais que uma criana tenhaalgum sofrimento ao ter que se distanciar da famlia que a acolheu por algumtempo, seja para voltar sua famlia de origem, seja para ir para a adoo,este sofrimento no se compara ao vivenciado nos abrigos, onde a crianachega e atendida por um grupo de estranhos, com alta rotatividadeprofissional e, na maioria das vezes, sem nenhuma ateno especial duranteeste processo de adaptao. A famlia acolhedora, ao contrrio, ter dedicaomuito mais efetiva criana que receber e, sabendo desde o treinamento peloqual dever passar, que no se trata de uma adoo, com o devido apoioprofissional, saber superar a separao desta criana, inclusive levando emconta a importncia do apoio oferecido, que inestimvel.

    Boas Experincias

    Os projetos de famlias acolhedoras vm se espalhando com maisrapidez desde o ano 2000, tanto em grandes cidades como So Paulo, Rio deJaneiro, Campinas (considerada referncia neste tipo de projeto9), Recife ou

    Belo Horizonte, quanto em cidades de mdio porte, como Ourinhos, com 104mil habitantes, ou Franca, ambas no interior de So Paulo, BalnerioCambori, em Santa Catarina, e tambm em pequenas cidades como Pin, nointerior do Paran, com apenas 10 mil habitantes. Em So Bento do Sul (SC),

    9 Projeto SAPECA, programa de Famlia Acolhedora de Campinas: (e-mail:

    [email protected]

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    municpio com 70 mil habitantes, o programa foi to bem-sucedido que o abrigoda cidade foi desativado.

    Outros aspectos

    Apesar de no ser regra, em muitos casos, a criana ou o adolescenteacolhido acaba ficando com a famlia mesmo depois de completar amaioridade, uma vez que j est adaptado sua realidade. Em outros, asfamlias acolhedoras tambm apiam a famlia de origem da criana, mantendoum forte vnculo, no qual a famlia que acolhe referncia no somente para acriana, mas para a famlia de origem, mostrando as possibilidades deorganizao familiar, auxiliando de diversas maneiras e, no raro,estabelecendo relaes duradouras de amizade, que se mostram como uma

    varivel importantssima no trabalho de apoio e reorganizao da famlia de origem.

    Consideraes finais

    Os projetos de famlias acolhedoras resgatam a solidariedade prpria doser humano e do brasileiro, sem, no entanto, dar margem para soluesamadoras. Mostra que a juno das foras da prpria sociedade, quando bemcoordenadas por programas oficiais, que envolvem os vrios atores da rede deatendimento, ou do chamado Sistema de Garantia de Direitos, permite queencontremos solues efetivas e baratas para os problemas da sociedade.

    Para saber mais sobre acolhimento familiar ou institucional:

    Na internet:

    http://arquivo.portaldovoluntario.org.br/site/pagina.php?idconteudo=92

    http://www.promenino.org.br/Ferramentas/DireitosdasCriancaseAdolescentes/tabid/77/ConteudoId/0551b6bb-826d-4ad2-8669-b6b1c55dba3f/Default.aspx

    http://www.promenino.org.br/Ferramentas/Conteudo/tabid/77/ConteudoId/156d422b-98da-4a87-a590-64d599176b05/Default.aspx

    Livros:

    Do Abrigo Famliae Acolhimento Familiar: experincias e perspectivas,ambos publicados pela Associao Terra dos Homens, do Rio de Janeiro.Fone (21) 2524-1073 E-mail: [email protected]