o dizer sobrevivente feminino: uma leitura das · irrepresentáveis entre o sofrimento e o horror....

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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXIX Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande - MS, 23 a 25 de junho de 2020 1 www.compos.org.br www.compos.org.br/anais_encontros.php O DIZER SOBREVIVENTE FEMININO: uma leitura das obras de Ceija Stojka e Scholastique Mukasonga 1 THE FEMALE SURVIVOR SAYING: a reading of the works of Ceija Stojka and Scholastique Mukasonga Frederico Vieira 2 Ângela Cristina Salgueiro Marques 3 Resumo: As experiências vividas por duas sobreviventes de genocídios, em diferentes momentos históricos do século XX, são discutidas neste artigo a partir de suas produções estéticas: telas de Ceija Stojka (1933-2013), artista pertencente à minoria cigana romani, nascida na Áustria e sobrevivente dos campos de concentração nazistas da Segunda Guerra; os textos de Scholastique Mukasonga, escritora franco-ruandesa nascida em 1959 e que sobreviveu às perseguições e ao genocídio tutsi perpetrado pela maioria de hutus, em Ruanda, entre as décadas de 70 e 90. A partir do pensamento de Emmanuel Levinas a respeito da ética do sobrevivente e dos rostos do Feminino, procuramos “escutar” os clamores manifestos (dizeres) nas obras dessas mulheres (ditos). E pelo olhar de Jacques Rancière, buscamos refletir também sobre como as imagens por elas criadas possibilitam um “fazer face a” situações de extrema violência, intoleráveis, irrepresentáveis entre o sofrimento e o horror. Palavras-Chave: Rostos do Feminino. Ética do Sobrevivente. Dizer e Dito. Abstract: The experiences lived by two survivors of genocides, in different historical moments of the 20th century, are discussed in this paper about their aesthetic productions: paintings by Ceija Stojka (1933-2013), Romani activist painter, was born in Austria and survivor of nazi concentration camps during World War II; the texts of Scholastique Mukasonga, a Franco-Rwandan writer, was born in 1959 and who survived the persecution and tutsi genocide perpetrated by the majority of hutus in Rwanda, between the 70s and 90s. Based on Emmanuel Lévinas' thinking about ethics of the survivor and the faces of the Feminine, we try to “listen” the claims (the to say) in the works of these women (the sayings). And through the eyes of Jacques Rancière, we reflect on how such images can enable a “to face off” situations of extreme violence, intolerable, unrepresentable between suffering and horror. Keywords: Faces of Feminine. Survivor´s ethics. The To Say and The Sayings. Introdução Quando Primo Levi (1988) escreve, no prefácio de É isto um homem? que pessoas ou povos pensam de forma consciente ou não, que cada estrangeiro é um inimigo, “em geral, 1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação e Experiência Estética do XXIX Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande - MS, 23 a 25 de junho de 2020 2 Professor Doutor da Escola de Comunicação e Artes da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais ([email protected]) 3 Professora Doutora do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais ([email protected])

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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXIX Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande - MS, 23 a 25 de junho de 2020

1 www.compos.org.br

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O DIZER SOBREVIVENTE FEMININO: uma leitura das obras de Ceija Stojka e Scholastique Mukasonga

1

THE FEMALE SURVIVOR SAYING: a reading of the works of Ceija Stojka and Scholastique Mukasonga

Frederico Vieira2

Ângela Cristina Salgueiro Marques3

Resumo: As experiências vividas por duas sobreviventes de genocídios, em diferentes

momentos históricos do século XX, são discutidas neste artigo a partir de suas

produções estéticas: telas de Ceija Stojka (1933-2013), artista pertencente à

minoria cigana romani, nascida na Áustria e sobrevivente dos campos de

concentração nazistas da Segunda Guerra; os textos de Scholastique Mukasonga,

escritora franco-ruandesa nascida em 1959 e que sobreviveu às perseguições e ao

genocídio tutsi perpetrado pela maioria de hutus, em Ruanda, entre as décadas de

70 e 90. A partir do pensamento de Emmanuel Levinas a respeito da ética do

sobrevivente e dos rostos do Feminino, procuramos “escutar” os clamores

manifestos (dizeres) nas obras dessas mulheres (ditos). E pelo olhar de Jacques

Rancière, buscamos refletir também sobre como as imagens por elas criadas

possibilitam um “fazer face a” situações de extrema violência, intoleráveis,

irrepresentáveis entre o sofrimento e o horror.

Palavras-Chave: Rostos do Feminino. Ética do Sobrevivente. Dizer e Dito.

Abstract: The experiences lived by two survivors of genocides, in different historical moments

of the 20th century, are discussed in this paper about their aesthetic productions:

paintings by Ceija Stojka (1933-2013), Romani activist painter, was born in Austria

and survivor of nazi concentration camps during World War II; the texts of

Scholastique Mukasonga, a Franco-Rwandan writer, was born in 1959 and who

survived the persecution and tutsi genocide perpetrated by the majority of hutus in

Rwanda, between the 70s and 90s. Based on Emmanuel Lévinas' thinking about

ethics of the survivor and the faces of the Feminine, we try to “listen” the claims

(the to say) in the works of these women (the sayings). And through the eyes of

Jacques Rancière, we reflect on how such images can enable a “to face off”

situations of extreme violence, intolerable, unrepresentable between suffering and

horror.

Keywords: Faces of Feminine. Survivor´s ethics. The To Say and The Sayings.

Introdução

Quando Primo Levi (1988) escreve, no prefácio de É isto um homem? que pessoas ou

povos pensam de forma consciente ou não, que cada estrangeiro é um inimigo, “em geral,

1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação e Experiência Estética do XXIX Encontro Anual da

Compós, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande - MS, 23 a 25 de junho de 2020 2

Professor Doutor da Escola de Comunicação e Artes da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

([email protected]) 3

Professora Doutora do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais

([email protected])

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essa convicção jaz fundo nas almas como uma infecção latente; manifesta-se apenas em

ações esporádicas e não coordenadas; não fica na origem de um sistema de pensamento” (p.

7). Não podemos passar incólumes a essas vozes sobreviventes dos campos de extermínio

nazistas que ecoam no tempo presente por meio de relatos vestigiais. Como afirma Walter

Benjamin (1940), em sua segunda tese em Sobre o conceito de história, “não existem, nas

vozes que escutamos, ecos das vozes que emudeceram?” (p. 223)

A experiência vivida por duas sobreviventes de genocídios, em diferentes momentos

históricos do século XX, são discutidas neste artigo a partir de suas produções estéticas: telas

de Ceija Stojka (Kraubath, Áustria, 1933 - Viena, Áustria, 2013), pintora, escritora, ativista,

pertencente à minoria cigana romani, da comunidade Lovara, nascida na Áustria e

sobrevivente dos campos de concentração e extermínio nazistas da Segunda Guerra; os textos

de Scholastique Mukasonga, escritora franco-ruandesa nascida em 1959 e que sobreviveu às

perseguições e ao genocídio tutsi perpetrado pela maioria de hutus, em Ruanda, entre as

décadas de 70 e 90. A partir do pensamento de Emmanuel Lévinas a respeito da ética do

sobrevivente e dos rostos do Feminino, procuramos “escutar” os clamores manifestos

(dizeres) nas obras dessas mulheres (ditos). E pelo olhar de Jacques Rancière, buscamos

refletir também sobre como imagens presentes na literatura e na pintura possibilitam um

“fazer face a” situações de extrema violência, intoreláveis, irrepresentáveis entre o sofrimento

e o horror.

A aproximação entre o nazismo da Segunda Guerra, seus campos de extermínio e o

genocídio de Ruanda poderia nos oferecer pistas de como, diante da impossibilidade de

nomear o horror, os sobreviventes podem fazê-lo de outro modo. Ao aproximar ambas as

experiências, identificamos relevantes aspectos que nos auxiliam a melhor compreender

como a condição humana, tão banalizada pelo horror, também pode sobrevir e sobreviver nas

produções estético-expressivas. Responder à demanda ética dos rostos daqueles que foram

violentamente eliminados, mas que permanecem a dizer nos testemunhos de quem relata, seja

nas telas, em que o verter das tintas da memória ganham formas; seja nos textos, em que o

escrever das penas palavreiam (entre)linhas.

Conforme Mukasonga (2017), em épocas diferentes, em contextos diferentes, mas,

infelizmente o fundamento é o mesmo: “a recusa do outro, a diabolização do ser humano.

Uma animalização para transformá-lo em algo, para exterminá-lo mais facilmente, sem

remorso (...) É aí que existem semelhanças. É realmente uma ideologia de extermínio e

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erradicação.” Em suma, os genocídios tutsi, judeu, cigano, indígena, das vidas escravizadas,

dos homossexuais, das minorias, e tantos outros, são dramas extremos e irmãos.

Perante outrem: rostos em proximidade

O primeiro rosto feminino sobrevivente que nos interpela é o de Ceija Stojka que fora

deportada aos 10 anos de idade para os campos de concentração e extermínio, sobrevivendo a

Auschwitz, Ravensbrück e Bergen-Belsen, juntamente com apenas cinco membros de uma

família de 200 membros. Ceija cresceu acostumada a amplos espaços abertos, a longas

viagens e trabalho no campo. Com a anexação da Áustria pela Alemanha em 1938, teve

início a perseguição aos ciganos: primeiro, os pais da artista foram obrigados a converter a

carroça em uma casa de madeira e tiveram que aprender a cozinhar no forno, em vez de em

fogo aberto; depois, os romani foram forçados a se registrarem como membros de outra

“raça”; em seguida seu pai é levado, assasinado e sua mãe recebe as cinzas do marido; sua

irmã é presa e deportada e, após algum tempo, os demais membros da família. Libertada em

1945, Ceija sobreviveu no pós-guerra vendendo tecidos de porta em porta, além de tapetes

nos mercados. Nos anos 80 mudou-se para Viena, dedicando-se à escrita, à pintura, ao canto

e ao ensino público. Somente a partir de 1986, a artista decide sair do silêncio e fazer imagem

do que sofreu, individual e coletivamente, o que derivou também em ações de fortalecimento

da comunidade romani e de reivindicação de políticas de reparação em seu país.

Sabe-se que as diversas etnias ciganas são historicamente discriminadas e perseguidas

desde o século XV no continente europeu. Durante a Segunda Guerra, o extermínio de povos

ciganos se intensificou nos campos de concentração nazistas, sendo o povo romani o mais

afetado. Tal genocídio, conhecido pela palavra porrajmos na língua de Ceija, ceifou entre 255

a 500 mil vidas naquele período. De algum modo, outras tragédias ocorridas na mesma

época, como o Shoah judaica, ofuscaram a lembrança social e política do porrajmos; além do

que, há outras questões de fundo que contribuem para certa invisibilização dos ciganos da

comunidade europeia: exclusão dos registros oficiais e seu passado transnacional e nômade; a

estereotipia e o preconceito presente no imaginário europeu que apontam os ciganos como

sujeitos não-confiáveis.

A escrita pessoal (diários), as produções visuais (desenhos e pinturas) e performáticas

de Ceija Stojka formam o conjunto de uma obra autodidata que traz até nós os clamores das

vítimas silenciadas cujas vozes expressam o profundo significado do porrajmos que se revela

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no rosto de Stojka. Nas palavras da autora, "peguei uma caneta porque tinha que me abrir,

gritar.4"

Já o segundo rosto feminino é o da escritora Scholastique Mukasonga, que nasceu no

sudoeste de Ruanda, em 1959, quando surgiram as primeiras estratégias de eliminação da

etnia tutsi. Em 1960, sua família foi deportada, juntamente com muitos outros tutsis, para

Nyamata, em Bugesera, região de mata do país, extremamente inóspita à época. Mukasonga

conseguiu sobreviver apesar das repetidas perseguições e massacres. Enfrentando inúmeras

dificuldades, a autora estudou no Lycée N-D de Citeaux em Kigali e depois cursou

assistência social em Butare. Em 1973, estudantes tutsis foram expulsos de escolas e

funcionários de seus postos, forçando a autora a se exilar no Burundi para escapar da morte.

Completou seus estudos naquele país e depois passou a trabalhar para o Fundo das Nações

Unidas para a Infância (Unicef). Chegou à França em 1992; dois anos depois, 37 membros de

sua família foram assassinados durante o genocídio dos tutsis.

Os livros de Mukasonga sempre abordam, de algum modo, questões correlatas a

Ruanda e ao genocídio tutsi de 19945. Mukasonga levou dez anos para ter coragem de

retornar ao país, em 2004. Depois da estadia em sua terra natal, escreveu seu primeiro livro,

uma autobiografia, Inyenzis ou Baratas, de 2006. A mulher dos pés descalços o sucedeu em

2008. Já o romance Nossa Senhora do Nilo ganhou o prêmio Ahmadou-Kourouma em

Genebra; o prêmio Oceans France Ô e o prêmio Renaudot, em 20126.

As três obras podem ser compreendidas com um ciclo testemunhal da autora. No

primeiro livro, Baratas, de caráter autobiográfico, encontram-se associadas memórias

individuais e coletivas dos tutsis, em que habitam as catástrofes advindas do genocídio de um

passado recente. As palavras de Mukasonga relatam as condições padecidas pela população

tutsi, vista pela maioria hutu como não humana; igualada ao lugar de animal a ser destruído.

Em Baratas a escritora sobrevive como se promessa, ao conservar a história familiar e dos

4 Epígrafe disponível em: https://www.ceijastojka.org/thefund. Acesso em: 23 fev. 2020.

5 Naquele ano, em apenas cem dias, cerca de 800 mil pessoas foram mortas no país por extremistas étnicos

hutus. Entre muitas estratégias de extermínio, os extremistas hutus tinham estações de rádio e jornais que

transmitiam propaganda de ódio, exortando as pessoas a eliminar as inyenzis (baratas), o que significava matar

os tutsis. 6 Entrevista concedida à organização da Festa Literária de Paraty (Flip) em 2017, realizada entre 26 e 30 de

julho daquele ano. O evento homenageou o escritor negro brasileiro Lima Barreto (1881-1922) e foi marcado

por forte presença de mulheres e negros. Scolastique Mukassonga participou de uma mesa “Em nome da mãe”,

com Noemi Jaffe. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=KW9Gw5g_TV. Acesso em 15/2/20, às

21h8.

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terceiros, aqueles outros dos outros, comunidade da qual fizera parte e fora testemunha. Já no

romance A mulher de pés descalços, a escritora faz ouvir a voz da dor e da perda de sua mãe

Stefania, cuja memória feminina é reverenciada. Na palavras de Mukasonga (2017) “optei

por fazer um retrato de minha mãe para falar de todas as mães que foram confrontadas com o

extermínio de seus filhos”7. Em Nossa Senhora do Nilo, encontramos a ficção de meninas

jovens, inspiradas naquelas que compartilharam dolorosas experiências vividas pela autora no

Liceu Nossa Senhora de Citeaux.

As dimensões ficcional e autobiográfica presentes nas obras dessas duas mulheres

sobreviventes, narram memórias, vidas, afetos e dramas ligados a situações inomináveis. Nas

entrelinhas dos ditos femininos de Mukassonga e na plasticidade das telas de Stojka é

possível ouvir os clamores das vítimas cujos rostos nos escapam de imediato. Palavras e

imagens que, de algum modo, tornam possível um dizer feminino que faz face ao horror. A

nosso ver, Stojka e Mukasonga abrem intervalos contemplativos em uma forma de narrar e

organizar a história dos oprimidos que tende a empurrá-los ao esquecimento. A literatura e a

pintura reafirmam a “potência da interrupção” (Rancière, 2019, p.79) que reorganiza o tecido

do qual é feito o comum, nos aproximando daqueles estrangeiros que padeceram em

massacres, ofertando a chance de nos conectarmos e, assim, de responder aos outros que

nomeiam, no aparecer de seus rostos, a injustiça do apagamento.

A conexão com a experiência estética se desenha a partir do momento em que essas

duas mulheres aceitaram o desafio de produzir imagens a partir de vestígios, não para mostrar

outra face da guerra, mas para revelar o que a guerra fez às imagens, ao imaginário coletivo,

transformando, pela arte, a destruição em uma questão de destituição, mas, ao mesmo tempo,

em um intervalo pelo qual escapa, aparece e vibra o testemunho dos sobreviventes que, no

lusco-fusco de sua evidência, “transformam a paisagem do sensível, modificando o território

do pensável e do possível” (RANCIÈRE, 2019, p.86).

Femininos (sobre)viventes e a escuta levinasiana

Emmanuel Levinas também experimentou, como Ceija e Scholastique, a face anônima

do horror. O filósofo (2004) relata que, durante o período em que se encontrava prisioneiro

no campo nazista para judeus da Guarda Francesa, não se tinha nada além de uma “quase-

7 Idem item 5.

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humanidade”, posto que os condenados sem julgamento sofriam, entre tantas torturas, a pena

da denegação do rosto perpetrada pelos nazistas. A experiência influenciou sua obra,

sobretudo ao conferir à Ética o lugar da Filosofia primeira; um pensar outramente a

alteridade, ocupando-se da evasão de si em direção ao outro.

Um dos conceitos caros à filosofia de Levinas é o de testemunho que é, para ele,

revelado na subjetividade que sofre a perseguição e o martírio que não permitem que esconda

sua face. O testemunho ético levinasiano é uma revelação que não é conhecimento, não nos

dá nada em si. Há uma exposição do sujeito aquém da indiferença a si, aquilo que o filósofo

apresenta como a substituição a outrem. Não há a “unidade do um”, do eu; o um absolvido

está nu, despido de qualquer relação, de qualquer jogo.

Ao dizer “eis-me”, o rosto, que significa o Infinito, profere testemunho, vocaliza o

Infinito. E na substituição, o eu-comunicante de Levinas está literalmente sem situação, sem

morada, expulso de toda parte e de si mesmo, mas o “eu” segue dizendo:

“Eis-me” como testemunho do Infinito, mas como testemunho que não tematiza

aquilo sobre o qual ele dá testemunho, e cuja verdade não é a verdade da

representação, não é evidência. O testemunho – estrutura única, exceção à regra do

ser, irredutível à representação – só pode ser testemunho do Infinito. O Infinito não

aparece a quem dele dá testemunho. Pelo contrário, o que pertence à glória do

Infinito é o testemunho. É pela voz do testemunho que a glória do Infinito se

glorifica. (LEVINAS, 2011, p.161)

Ao dizer “glória do Infinito”, Levinas refere-se à identidade an-árquica do sujeito

desalojado; momento em que o eu, em sinceridade e doação faz sinal a outrem – por quem

sou responsável e diante de quem sou responsável. Como Levinas muito bem lembra de

Dostoievsky em Os Irmãos Karamazov: “Somos todos culpados de todos perante todos, e eu

mais que todos os outros”. Essa citação é evocada pelo filósofo justamente para introduzir a

ideia de testemunho que se dá como voz dirigida ao Infinito, palavra-conceito que acolhe a

multiplicidade dos rostos singulares.

Em De outro modo que ser, o tardio e sobrevivente Levinas (2011) também pensará o

Dizer e o Dito, e os discursos neles e entre eles forjados; a noção de Linguagem a partir da

proximidade sensível, destacada da sensibilidade subordinada ao entendimento e à intuição; a

questão da vulnerabilidade como uma condição an-áquica dos seres, situando-os a priori fora

da representação. Assim, além do conceito de Rosto, há esses outros dois conceitos-chave

para a compreensão dessa noção de testemunho. O Dito, pertencente à ordem do enunciado,

da tematização, do que se faz forma e que se apresenta, não diz o Dizer. Esse é, por sua vez,

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da ordem do impossível, do incomunicável, daquilo que o Dito não pode, na forma e

contexto, conter. O Dito trai o dizer, mas o Dizer não se trai no Dito, o atravessa. Um remete

ao outro, todavia o Dizer não se esgota no Dito. Assim, ao mesmo tempo em que o Dito

pertence à ontologia e ao conhecer, também significa pelo Dizer que lhe escapa, mas que nele

imprime vestígio, rastro, passagem.

Lê-se além das entrelinhas o que se diz; isso significa dizer, redizer e (des)dizer o que é

dito. O Dito é habitado por uma tensão que é capaz de subvertê-lo, interpondo ao tempo

linear e redutível uma diacronia que nasce perante outrem, uma vez que o tempo, para

Lévinas, é inaugurado no encontro com o outro. Daí advém que a escuta do Rosto prediz o

dito, concede por substituição voz ao dizer que segue entrelaçado e entrelaçando-se ao dito,

posto que a noção de testemunho está presente na subjetividade manifesta pelo que é

absolutamente outro, em suas infinitas formas de vida.

Na produção estética, ficcional (ou não) do sobrevivente, por exemplo, o que se diz vai

a abrir-se diante da impossibilidade do dizer tamanha dor; e nesses impossíveis rostos das

vítimas, que já não podem se fazer ouvir, e que tampouco se fazerem capturar, é a palavra, a

imagem, a forma expressiva que permite àquele que escreve, modela, pinta, tece, enfim,

aqueles que falam revelam-se nos rostos que vem testemunhar e sobreviver, ainda que os seus

ditos sejam reconhecidamente lacunares, um tanto precários perante o horror inominável.

Ao comentar o pensamento de Levinas, Sebbah (2018) afirma que, graças às

experiências de derrocada, hoje sabemos que a reconciliação com a vida que segue não pode

ser escamoteada; o sentido vem cedo ou tarde, vem desde além, e a verdade do ser humano

não pode escapar à lucidez de tal experiência destrutiva. Ainda de acordo com o autor, a

sobrevivência, todavia, não se refere ao oposto desse sujeito cativo, nem da vida à morte;

tampouco aquela sobrevida que se manifesta como gozo de quem, a despeito dos outros, será

o último a morrer. A ética do sobrevivente, em Levinas, não é piedosa: trata-se da morte do

outro e do padecer perante ela. O outro vai agonizar, vai morrer e eu não posso salvá-lo; mas

posso, no exercício do desinteressamento mais radical, sobreviver e dar testemunho de sua

morte por meio do gesto, no qual me exponho refém de seu sofrimento, perante sua dor. Ética

compassiva, mas impiedosa, posto que não posso “ajudar” o outro a (não) morrer, não há

como se evitar o padecimento.

Em uma passagem de seus escritos, Stojka nos mostra a (in)exata dimensão dessa

compaixão em que o rosto fraco do moribundo torna-se abrigo para a desolação do outro que

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por sua vez, diante do horror inominável decai da condição de salvador para a de refém da

dor de outrem:

Durante a libertação, há de se imaginar o horror dos soldados aliados quando

avistaram o campo. Um amontoado de cadáveres! Os soldados nos tocaram para

saber se éramos de verdade, se vivíamos! Não entrava em suas cabeças que

vivíamos ali, rodeados de cadáveres e que entre os mortos ainda havia gente viva.

Choraram e gritaram tanto! E coube-nos lhes dar consolo! Na verdade, sentimos

falta dos mortos após a libertação. Eles foram nossa proteção e eram pessoas.

Pessoas que conhecíamos. Nem estávamos sozinhos, porque ao nosso redor muitas

almas tremulavam. Sempre que vou a Bergen-Belsen é como uma festa. Os mortos

tremulam por toda parte. Eles saem, eles se movem, eu os percebo, eles cantam e o

céu se enche de pássaros. (STOJKA, 2019, p. 140)

Ao dar consolo aos soldados, a pequena sobrevivente também ressignifica seus mortos,

lhes dá vida por meio das asas e preenche com pássaros os céus da memória. A passagem nos

faz refletir sobre como é complexo compreender a hospitalidade ao estranho num contexto de

violência extrema, em que o assassinato e banalização do mal estão na ordem do dia. Eis aqui

um feminino palavreado que nos remete antes àquela força fraca messiânica sobre a qual nos

fala Benjamin (1994): “Se assim é, um encontro secreto está então marcado entre gerações

passadas e a nossa (...) nos foi dada, assim como a cada geração que nos precedeu, uma força

fraca messiânica, à qual o passado tem pretensão. ” (p.223)

O feminino também é pensado em Levinas, a partir da proximidade e da substituição na

relação hospitaleira com o outro, o que fundamentaria o que se entende como a

responsabilidade ética, a qual emerge inclusive nos contextos em que a hospitalidade está

fortemente ameaçada. Assim, a proximidade não se confunde somente com uma vizinhança

espacial, mas como responsabilidade que nos antecede, como outrem. O feminino levinasiano

ganha forma como gesto ético de sair de si, ou seja, representa a ação de um sujeito que sai

da segurança em de sua morada e inicia, no encontro com a alteridade radical, uma

expatriação de si mesmo; um tipo de expulsão que o conduz do Dito ao Dizer. Feminino não

como a mulher empírica - embora não possa absolutamente apartado-lo dela. Trata-se, em

suma, do gesto de acolhimento e de hospitalidade que atinge uma radicalidade essencial

profunda e “meta-empírica que leva em conta a diferença sexual numa ética emancipada da

ontologia” (LEVINAS, 1995, p. 60).

O pensador afirma, em Totalidade e Infinito (1980, p.140), que a “ausência empírica do

ser humano de sexo feminino em uma morada em nada altera a dimensão de feminidade que

nela permanece aberta, como o próprio acolhimento da morada”. O feminino, nessa

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perspectiva, se associa ao processo de avizinhamento e proximidade do outro, de acolhimento

de sua demanda e de construção de uma responsabilidade ética que desenha não só uma

possibilidade de relação com outrem, mas de individuação de si.

Segundo Menezes (2008), “o encontro com o feminino provoca um desfalecimento do

eu heróico e viril que busca incessantemente se impor diante do mundo e dos outros, para

desse modo se manter o mesmo” (p.32). Diz-se pois, da ruptura do isolamento do eu para, em

uma relação erótica com o outro, tornar possível a emergência da vulnerabilidade que

desestabiliza, desorganiza e abre espaços de contato hospitaleiro. É nesse movimento que um

sujeito, mulher ou não, pode ter a chance de ser fecundo, de sair de sua solidão para, no

encontro com o outro, não voltar a ser si mesmo e nem se confundir com a alteridade que o

expulsa de si.

Mas como ser fecundo, acolher, dar consolo ao inimigo? Ao nazista ou o hutu que

carrega consigo o ódio e que planeja estuprar e matar?

O gesto da escrita feminina de Mukasonga percorre essa difícil via de mão dupla em

que, as condições de cativa e de vítima sobrevivente se embrenham visceralmente ao útero

materno de Stefania, sua mãe que fora morta durante o genocídio ruandês, juntamente com

outros familiares da autora. Em A mulher dos pés descalços nos deparamos com essa

personagem que constitui no dia a dia como “contexto seguro” de florescimento da abertura

ao outro e aos outros de outrem. Um feminino violado, mas que (re)surge no contato com o

texto que o faz (re)viver; feminino cujo sofrimento pode se traduzir no cuidar, na manutenção

do fio do cotidiano, de tudo o que permite à vida manter sua trama e de encontrar um ritmo

viável, habitável. Feminino sem heroísmos, todavia como se sustentação e resistência para a

vida na vulnerabilidade humana, atento à dor e ao desastre.

Stefania expressa em si e na relação com as demais personagens as tensões que

acompanham o trabalho de permanência e continuidade do e no mundo, permitindo uma

(in)certa reparação dos traumas e dramas vividos nos lugares de desterro, em que as

alteridades se esgarçam, fraturam até se romperem no paroxismo da violência.

A esse respeito, nas últimas páginas da obra, a Mukasonga nos lembra que o estupro

também foi uma das armas utilizadas no genocídio, salientando que quase todos os

estupradores eram soropositivos e transmitiram o vírus do HIV às mulheres tutsis:

Nem toda a água de Rwakibirizi e de todas as nascentes de Ruanda teriam bastado

para “lavar” as vítimas da vergonha pelas perversidades que sofreram. Nem toda a

água seria suficiente para limpar os nomes que corriam dizendo que essas mulheres

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eram portadoras da morte e fazendo com que todos as rejeitassem. Contudo, foi

nelas, nelas próprias e nos filhos nascidos do estupro que essas mulheres

encontraram uma fonte viva de coragem e a força para sobreviver e desafiar o

projeto de seus assassinos. A Ruanda de hoje é o país das Mães-coragem

(MUKASONGA, 2017, p.153-4)

A escrita feminina e do feminino em Mukasonga parece-nos também inscrever aquém e

além do testemunho, o acolhimento em substituição das infinitas vozes das mulheres

emudecidas de seu tempo; e, mais amplamente, escrever como se dizer das alteridades que as

palavras são capazes de albergar, incluindo-se aí dor e morte. Palavrear que torna possível a

dignidade de uma outra (sobre)vida.

Scholastique relata, por exemplo, que ao voltar de um dia duro de trabalho do campo,

sua mãe pedia às filhas: “quando vocês me virem morta, cubram o meu corpo com um pano.

Ninguém deve ver o corpo de uma mãe”. O pedido de sua mãe tornou-se impossível, uma vez

que, das cinco filhas, a autora foi a única que sobreviveu, pois já vivia na França em 1994.

Refém na tarefa irrealizável de acolher e envolver o corpo de outrem – uma mulher de quem

o próprio corpo se originou – mas que agonizou à distância, que morreu e que não se pôde

salvar.

Não cobri o corpo da minha mãe com o seu pano. Não havia ninguém lá para cobri-

lo. Os assassinos puderam ficar um bom tempo diante do cadáver mutilado por

facões. As hienas e os cachorros, embriagados de sangue humano, alimentaram-se

com a carne dela. Os pobres restos de minha mãe se perderam na pestilência da vala

comum do genocídio, e talvez hoje, mas isso não saberia dizer, eles sejam, na

confusão de um ossuário, apenas osso sobre osso e crânio sobre crânio. (p. 7)

As palavras de uma escrita sobrevivente teria permitiriam como se uma reparação para

a despedida irrealizada; cumprir em certa medida, mas não na medida certa, o dever que todo

ser humano deve e pode: viver o luto de outrem. Segundo Butler (2004),

O luto não é uma situação solitária, privatizada, mas fornece um senso de

comunidade política de uma ordem complexa, traz à tona os vínculos relacionais

que possuem implicações para teorizarmos a dependência fundamental e a

responsabilidade ética.(2004, p.22).

Numa relação de extrema delicadeza e força, a mortalha da mãe Stefania é também a da

filha Scholastique, rostos em substituição. Mortalha, palavra que se encarna no corpo

presente, o qual hospeda a maternidade e que vela filialmente pelo eloquente silêncio da

vítima fatal, silêncio a ser escutado.

Assim, o (im)possível gesto de cobrir o corpo, faz fazer os ditos do luto, corpo que

escreve. E a autora sobrevivente também dá passagem, no entrelaçar dos fios dessa mortalha,

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aos dizeres tutsis de seus antepassados, dos terceiros, das vítimas do genocídio ruandês. A

obra palavreia a voz feminina e materna.

Nas palavras de Mukasonga, revela-se o corajoso Rosto sobrevivente de Stefania,

aquele que nos hospeda diante do inominável e que prossegue nessa coragem. A Stefania de

Mukasonga corporifica como linguagem o testemunho do porvir dessas mulheres ruandeses

em que o feminino faz morada, profetiza e, na condição messiânica benjaminiana, “salva” em

grande medida a vida da comunidade.

O fazer face a nas imagens: a perspectiva de Rancière

A questão da responsabilidade ética, que se constitui pelo signo do Feminino, encontra,

contudo, seu avesso na denegação do rosto – moeda corrente presente das duas experiências

de genocídio sobre as quais refletimos. Primo Levi apud Sebbah (2009) lembra que os

carrascos nazistas se referiam aos prisioneiros como “sem-rostos” (sans visage) ou que “não

eram suceptíveis de serem levados em consideração” (inenvisageables). De forma

correspondente, ao tratar do totalitarismo stalinista, Levinas dirá que a nuca, as costas são um

rosto, evocando a imagem das filas de espera formadas pelos prisioneiros políticos diante da

sede do KGB em Moscou (descritas por Vassili Grossman).

Butler (2011), em seu texto Vida Precária, também retomará esse mesmo exemplo para

definir a catacrese do rosto, apresentado no choro, nos soluços e gritos das costas humanas,

do movimento do pescoço e omoplatas que esperavam na fila. Assim “o rosto parece ser uma

forma de som, o som da linguagem evacuando seu sentido, o substrato sonoro da vocalização

que precede e limita a entrega de qualquer significado semântico.” (p. 18)

Essa visão de Levinas sobre a alteridade revelada no chamado do rosto pelo seu avesso,

ainda de acordo com o comentário de Sebbah (2009), remete àquilo que Hanna Arendt chama

de “desolação” resultante do totalitarismo como “perda da ipseidade, “perda de si mesmo” na

perda de qualquer relação autêntica com Outrem: em termos levinasianos, poderíamos falar

de ameaça de um há sem rosto” (p. 194) A noção de “desolação” é aqui atravessada pelo

tremor que a violência ética promove na negativa do rosto de outrem por aquele que detém e

maneja o poder de vida e morte sobre o outro subalternizado. Talvez o sentido mais amplo de

rosto e da responsabilidade que me concerne – a mim, que o outro evoca em sua exposição –

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possa também ser acolhido em uma outra humanidade, apesar de todo horror, da exposição da

vida nua do extermínio dos povos subjugados.

Ceija Stojka (2019, p. 100) anotou no verso (nuca) de uma de suas obras que “em

Birkenau não havia igreja. Sim, eu e todos nós sabíamos que somente os SS tinham todo o

poder sobre nós. Sim, claro, os SS também eram pessoas”. Apesar de tudo, a artista

reconhece que a violência padecida pelos ciganos fora praticada por militares tão humanos

quanto qualquer um de nós, o que nos faz de saída, eticamente responsivos, mesmo por

aquilo que não podemos ver, representar. Na catacrese dos rostos das vítimas que atravessam

o campo visível da obra de Stojka, a banalidade do mal se anuncia não como algo

monstruoso, mas decorrente de nossa demasiada humanidade. Por isso a necessidade de fazer

face à violência e responder, tornar visível aquilo que o horror tenta paradoxalmente

camuflar: os nazistas são humanos como nós. Qualquer um de nós poderia chegar a cometer

tais crimes? Estamos, de saída, implicados nessa questão.

Quando olhamos para uma tela ou um desenho de Ceija Stojka somos provocados, de

forma inescapável, a restituir outramente a dignidade a esses “sem-rostos”, a considerá-los, a

trazê-los para o visível. A partir de Stojka, de seus olhares e de suas obras, as imagens

pintadas, visíveis, constituem algo que está dentro-fora do regime da representação do

humano. Pois é na disjunção entre o que se representa visualmente e o que me fala quando

faz ressoar a pele do tímpano e da retina, que a significação do rosto que me visita transcende

o mostrado, para-além do jogo da representação.

O reconhecimento dessa dimensão do rosto em sofrimento, manifesto na imagem, ou

mais propriamente, dos vestígios de sua passagem pelas expressões de sofrimento narradas

entre formas e cores, é possível quando quem vê é implicado na/pela imagem.

Isso se aplica, inclusive, à forma como Ceija concebeu e produziu suas obras: tintas

foram guiadas não somente por pincéis, mas também diretamente com os dedos, ou por

instrumentos não convencionais, como palitos de dente. Trabalhando com “tudo o que fica

entre os dedos", Stojka também experimentou potes de vidro, cartões postais e massa de sal

em suas produções. São quadros de cores vivas, em que os traços intensos conformam a

energia que reverbera, oriunda das alteridades romani. Se alguns críticos identificam

influências do expressionismo alemão e da arte folclórica em seus trabalhos (dimensão

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representativa), interessa-nos ainda mais a dimensão testemunhal, das relações que se

(re)inventam a partir do feminino que fala nas imagens, ultrapassando “classificações” de

estilo.

Nesse sentido, Rancière traz importantes contribuições sobre o pensar a imagem

naquilo que aqui chamamos de fazer face ao clamor, às demandas éticas que o dizer faz ecoar

no campo do sensível, daquilo que se imagina, do que se torna imagem.

Massacres se transformam em alguma coisa quando se tornam uma imagem –

assumindo o lugar em que um dado visível era esperado – e, a partir desse

momento, podemos afirmar que toda a cena de visibilidade e de invisibilidade de

um massacre torna-se completamente transformada (RANCIÈRE, 2019, p.72)

De outro modo e perante às ideias de Levinas, Rancière (2007) nos diz que a imagem

pode ser percebida também como trabalho, como construção de relações e articulações novas

que inventam possibilidades outras de aparecimento e transformação das formas, das vidas e

do comum. Para Rancière (2012), tais “relações novas” derivam da reconstituição da rede

conceitual que torna um enunciado pensável e que modifica as condições de seu

aparecimento. O trabalho da imagem consiste em produzir um arranjo, um reenquadre, uma

reorganização de formas perceptivas dadas, uma recomposição da ordem que sustenta uma

dada narrativa, uma ficção.

Por conseguinte, o que interessa a Rancière (2009, p.283) não é a oposição entre real e

ficcional, mas entender como o trabalho da ficção busca um modo de enquadrar e pensar

enunciados, objetos e acontecimentos “em termos de multitemporalidade, de plots

entrelaçados”. O que ele propõe é olhar para as formas tradicionais de escritura da história –

as formas de apresentação das situações, de construção das relações entre causa e efeito ou

entre antecedente e consequente, questionando os formatos tradicionais e hierárquicos de

visibilidade e inteligibilidade.

Partindo desta definição, as imagens não se reduzem a uma realidade visual, mas a

um modo de construir um mundo, de produzir aparências antes interditadas, formas

que rejeitam a ordem dominante e que tecem um outro “em comum”: não aquele

que existe em si mesmo e por meio de si, mas um comum que se cria no movimento

a partir do qual é posto em questão (CALDERÓN, 2018, p.136).

Não se trata de, via imagens, escavar o real para que verdades apareçam, mas mover

imagens já existentes para que outras figuras se componham e decomponham com elas.

Ao afirmar a imagem como o resultado de operações, de relações e de alterações sobre o

sensível, Rancière (2019, p.35) localiza o início desse trabalho por ela realizado antes mesmo

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que exista algo de concreto a ser visto. Entendemos que há uma espécie de gestação fecunda,

de algo que cresce na imagem uterinamente, e anteriormente ao visível, construção em que

um duplo agenciamento é revelado:

De um lado, a imagem é uma maneira de ligar uma forma visível a outra, de ligá-la

a um enunciado dizível, a uma certa estruturação do tempo, um certo lugar no

espaço, a modos de percepção e de interpretação. De outro lado, tentei mostrar os

limites da operatividade da imagem, pois a imagem não é simplesmente o produto

de uma operação ou algo fabricado: é também algo que resiste justamente à vontade

daquele que produziu a imagem e que deseja que ela produza tal modo de recepção,

tal olhar, tais afetos e tal forma de interpretação (RANCIÈRE, 2019, p.36).

FIGURA 1 – Ceija Stojka. Gefangennahme und Abtransport [Detenção e Deportação], 1995. Acrílico sobre papelão, 70 x 100 cm. Museu de Viena, Viena.

FIGURA 2 - Ceija Stojka. Sem título, s. f. Acrílico sobre papel cartão, 50 x 70 cm. Coleção Hojda y Nuna Stojka, Ceija Stojka International Fund, Viena.

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FIGURA 3 – Ceija Stojka. Z 6399, 1994. Acrílico sobre papelão, 70 x 100 cm. Coleção particular, Paris.

FIGURA 4 – Hinter Stacheldraht [Atrás do arame farpado]. Óleo sobre cartão 70 x 100 cm. Wien Museum, Viena.

FIGURA 5 – Die Ravensbrückerinnen, 1944 [As mulheres de Revensbrück, 1944]. Acrílica sobre tela 60 x 59,5cm.

Coleção Particular, Paris.

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Essa dimensão performativa da imagem alcança terreno propício para emergir quando

tematizada sob a forma da cena dissensual. Assim, a imagem produz arranjos que se

articulam como “cena que captura conceitos em operação, em sua relação com os novos

objetos que buscam apropriar, velhos objetos que tentam reconsiderar e os padrões que

constróem ou transformam para este fim” (RANCIÈRE, 2013, p.11). Elas fabulam, “um

visível no campo da experiência que modifica o regime de visibilidade” (CALDERÓN, 2018,

p.148).

Enquanto cena, a imagem articularia uma forma polêmica de reenquadrar o comum,

subvertendo uma dada distribuição do sensível a partir da criação de um lugar polêmico. A

ficção presente na arte e na literatura fabulam, assim, outras maneiras de identificar os

acontecimentos e os atores e outras formas de articulá-los para construir mundos comuns e

histórias comuns em cenas dissensuais. Como Rancière explica, a cena de dissenso é a

escolha e a ordenação ficcional de uma singularidade a partir da qual se pode “fazer aparecer

o que não aparecia, ou de fazer aparecer de forma diferente o que aparecia sob um certo

modo de visibilidade e inteligibilidade.” (2018b, p.14)

Especialmente no trabalho de Stojka, habitam cenas de dissenso cujas narrativas visuais

fazem contrastar a paisagem bucólica de um prado verdejante em cores vivas, à mortífera

chegada de militares nazistas (fig. 1). Também vemos nessa imagem a detenção de uma

família que será levada aos campos de concentração em vagões de transporte de gado (fig.2).

O relato das telas está carregado de tintas, saturado pelas pinceladas que subvertem uma

pretensa alegria que uma cena colorida e cotidiana poderia dar a ver. Ao contar outramente

momentos críticos de sua trajetória, nos quais elementos simbólicos como pássaros e arames

farpados evocam o horror diante da dor vivenciada por seu povo nos campos, a artista fabula

o irrepresentável e desacomoda o olhar eventualmente distraído, permitindo que nós façamos

outras leituras improváveis do acontecido, que ela nos (re)apresenta mais de quarenta anos

depois, a partir da condição feminina e sobrevivente.

Stojka também nos mostra a típica marca inscrita sob a pele (fig.3), signo da

contabilidade do extermínio, demarcada no contraste sanguíneo entre as massas de cor preta,

branca e vermelha, assinalando o traço da não-humanidade e da condição “matável” em que

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os nazistas impuseram aos corpos esvaziados de sentido, ao mesmo tempo postos a nu e

silenciados.

Finalmente os rostos das mulheres vítimas dos campos são albergados em outras duas

telas. Na primeira (fig.4), a mãe de joelhos, com uma criança no colo, nos olha suplicante,

clamor silencioso por compaixão; a paisagem está coberta por nuvens cor de chumbo, talvez

enfumaçadas pelas chaminés chaminés dos crematórios dos campos de extermínio. A

imobilidade cinzenta está interditada por uma cerca de arame farpado que atravessa o olhar;

ao fundo a lembrança dos pássaros que, como se almas, testemunham o genocídio. Eis a

coloração e os ditos de uma maternidade cigana que diz exatamente pelas bordas da imagem,

trespassando o visível no dizer das infinitas mães e crianças mortas nos campos.

Na segunda imagem (fig.5), uma alusão à Les Demoiselles d'Avignon, de Picasso, de

1907. Considerada uma das obras responsáveis por revolucionar a história da arte, formando

a base para o cubismo e a pintura abstrata, o quadro foi incompreendida até mesmo pelos

amigos do pintor à época. Em Die Ravensbrückerinnen o incompreensível é a matéria-prima

para Ceija que dá forma a outras mulheres, que se deslocam do bordel de Picasso para os

campos de extermínio. Mas em ambas situações, os corpos apresentam linhas irregulares,

embora as arestas cubistas sejam substituídas pelas curvas e cores de Ceija que se embrenham

umas nas outras, enfeixando os volumes sobrepostos, um corpo coletivo do qual se elevam

indícios do Feminino, como mantos, saias, lenços, faces, braços contorcidos e entrelaçados.

Poderíamos dizer que as imagens ficcionais criadas pela literatura de Mukasonga e

pelas telas de Stojka reintroduzem em um dado “mundo comum”, pessoas que estão à

margem e que são sobreviventes de múltiplas perdas e violências. A escritura e a pintura não

fazem isso sob uma forma de “imposição” do ficcional sobre o real, mas ficcionalizando e

fabulando “o que estava indexado sob o registro do único real possível, apresentando a esse

real ordinário e já consensual uma desieraquização e uma possibilidade outra de aparecer”

(RANCIÈRE, 2019, p.55). Os ardis de Stefania para escapar ao “único real possível” são

fartamente revividos nos episódios narrados por Mukasonga:

Mamãe nunca estava satisfeita com seus planos de sobrevivência. Sempre ficava

pensando em como melhorar a camuflagem, em como construir outros refúgios. (...)

Todos os dias, ela dava um jeito de trapacear o destino implacável a que, por

sermos tutsis, estávamos condenados. Seus filhos continuavam vivos, estavam ali

ao seu lado. Ela tinha conseguido evitar a morte. Ela olhava para nós três, Julienne,

Jeanne, Scholastique. Naquela noite estávamos vivas. Talvez não houvesse outras

noites (MUKASONGA, 2017, p.15 e 20).

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O testemunho elaborado por essas duas mulheres sobreviventes cria um tecido sensível

novo, no qual elas tomam parte e aparecem registradas em uma história comum, exercendo o

trabalho direto no próprio gesto de contar uma história que também é delas. Ambas afirmam,

assim, sua igual capacidade de narrar e de deslocar os enunciados hegemônicos, contrariando

uma hierarquia e afirmando cenas ficcionais e polêmicas que remontam o real consensuado

construindo momentos nos quais a indecisão para julgar suplanta a certeza das verdades

controladas. A imagem como cena produz momentos de rêverie:

Momentos que explodem, dinamitam o tempo continuo, o tempo dos vencedores:

permitindo a abertura de um outro tempo, um tempo comum, nascido nas brechas

operadas no primeiro: não um tempo do sonho que faria cair no esquecimento o

tempo sofrido ou projetaria um paraíso em devir, mas um tempo que se apresenta

outramente, confere um peso diferente a tal instante, o conecta a um tal outro

articulando outros instantes (RANCIÈRE, 2018c, p.36).

O tempo da rêverie é proporcionado pelas obras de Mukasonga e Stojka quando nos

ofertam um momento de contemplação no qual se pode descobrir um modo tecido temporal

cujos ritmos não são definidos por objetivos preexistentes, mas permitem a fabulação errante,

tentativa acionada pelo como se das narrativas que se abrem à experimentação.

A cena de dissenso promove, assim, outras possibilidades de arranjos e articulações

entre temporalidades e espacialidades de modo a alterar a dinâmica do aparecer dos sujeitos e

dos acontecimentos, reorganizando o campo do visível e retirando-o de uma ordem

hierárquica. A situação presentificada pela cena revela uma construção de pensamento que

aparece como um tipo de corte instantâneo na partilha do sensível. É como se disséssemos:

em um dado contexto, eis o que é visível e, como consequência, o que é pensável.

A noção de cena comporta duas ideias: aquela de um corte e aquela de uma certa

arquitetura do que é dado. Um corte ou uma divisão primeiro: o método da cena é

um princípio de emancipação intelectual que se opõe ao princípio embrutecedor da

explicação que remete cada fato singular a um processo global do qual não podemos

jamais apanhar em sua totalidade. A cena constitui um todo por ela mesma. Depois,

a cena dá a ver uma certa estruturação do perceptível e do pensável. A questão é: o

que é dado a perceber? Que lugar possuem os indivíduos que são dados a ver nessa

arquitetura? (RANCIÈRE, 2019, p.49)

De alguma maneira, a construção da cena dissensual se apoia na montagem de um

dispositivo que “regula o estatuto dos corpos representados e o tipo de atenção que merecem”

(RANCIÈRE, 2012, p.96). Trata-se de uma aproximação marcada pela correlação de uma

subjetividade que se manifesta a partir do olhar de uma pessoa “real” – no caso aqui em

análise, do testemunho de duas mulheres sobreviventes. Trata-se também de uma vocalização

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que evidencia a fenda aberta pelo brilho do “momento qualquer”, do “desmedido momento”

na organização da narrativa histórica que apaga e silencia as vidas precárias.

Argumentamos que uma das dimensões da política das imagens estaria na

possibilidade de produzir “sequências verbais, qualificações, um teatro de denominações ou

um teatro de palavras que, ao mesmo tempo, cria uma certa cena do visível e do pensável”

(RANCIÈRE, 2019, p.83). A questão que se apresenta diante de nós agora é “qual tipo de

operação vai mudar essa distribuição do visível e do pensável? Qual operação pode mostrar

às pessoas sobre uma cena que é aquela de sua própria capacidade de viver em um

determinado mundo? (RANCIÈRE, 2019, p.50).

Acreditamos que as imagens criadas por Mukasonga e por Stojka podem oferecer a

chance de perceber os intervalos necessários a uma despossessão que nos distingue e conecta

com a alteridade radical dos rostos que conosco fabulam um comum possível, justamente

porque poroso às vulnerabilidades e experiências que, ao mesmo tempo nos individuam e nos

avizinham.

Considerações finais

Ao nos aproximarmos dos rostos femininos sobreviventes presentes nas obras de Ceija

Stojka e Scholastique Mukasonga, buscamos refletir sobre como seus textos e telas, sejam

(im)possíveis ou (im)prováveis, revelam-se como comunicação que faz das palavras e

imagens (ditos) albergue para as vozes (dizeres) das vítimas silenciadas no extermínio,

sobretudo das mulheres. Obras que se avizinham em desinteressamento de si-para-outrem

como se testemunho próximo da alteridade alcançada pelo Terceiro; comunicação do

palavrear e imagear sensíveis que inauguram o tempo da relação face a face entre os ditos que

dela derivam e que, finalmente, gestam uterinamente a exposição, a excuta do que está aquém

e além do que se mostra no visível, mas que se in(e)screve rumo ao terceiro.

Como vimos, a ética do sobrevivente, em Levinas, não é piedosa: trata-se da morte do

outro e do padecer perante ela. O outro vai agonizar, vai morrer e eu não posso salvá-lo; mas

posso, no exercício do desinteressamento mais radical, sobreviver e dar testemunho de sua

morte por meio do gesto, no qual me exponho refém de seu sofrimento, perante sua dor. Ética

compassiva, mas impiedosa, posto que não posso “ajudar” o outro a (não) morrer, não há

como se evitar o padecimento.

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Rancière (2012), por sua vez, ao desenvolver o conceito de imagem intolerável, afirma

que a elaboração do testemunho resulta de uma batalha travada com a dimensão da

impossibilidade de representação do trauma. Como traduzir um trauma em palavras, em

imagens? A partir desse olhar, um testemunho seria menos o relato dos acontecimentos

traumáticos e mais as maneiras de evidenciar as dificuldades de produzir esse relato, uma vez

que os acontecimentos resistem à apreensão e os espectadores também resistem à sua

compreensão. A necessidade das imagens apesar de tudo, para retomar o título do livro de

Didi-Huberman sobre as imagens fotográficas feitas por judeus que resistiram ao Holocausto,

é salientada por Rancière ao considerar que “quando a voz cessa, é a imagem do rosto sofrido

que passa a ser a evidência visível daquilo que os olhos da testemunha viram, a imagem

visível do horror do extermínio” (2012, p.91).

Para Rancière, o intolerável da imagem relaciona-se à montagem de um dispositivo de

visibilidade capaz de localizar e de enquadrar a vítima dentro de uma dimensão do visível e

do sensível que lhe confere esta ou aquela possibilidade de ser apreendida, esta ou aquela

legibilidade e inteligibilidade. No caso dos trabalhos das duas artistas aqui analisados, é como

se elas redefinissem a ordem do sensível habitual na qual costumam emergir os corpos

devastados pelos horrores da guerra e nos apresentassem um exercício de fabulação que

contraria o encadeamento de causas e efeitos, a previsibilidade, a relação entre o que estaria

previsto e o que de fato acontece, criando uma fábula experimental e dissensual, ou uma

rêverie desdobrada pela cena polêmica e seus arranjos destabilizantes.

Ceija e Scholastique nos revelam não apenas suas “pequenas vidas”, mas também a

delicada tarefa de construção dessa linguagem-mortalha que não só cobre femininamente,

com palavras desconhecidas, os corpos das mães amadas, mas também que assumem as cenas

de dissenso como abrigo e espera por tantos outros romanis, tustis expostos às violências do

mundo.

Scholastique, em particular, substitui Stefania numa espécie parto às avessas em que,

mais uma vez a escrita, as palavras, a permitiram tecer outramente uma mortalha para cobrir

o corpo de sua mãe. Linha a linha, o texto tece o (im)possível manto que, a seu modo,

devolve outramente um rosto ao corpo anônimo, da vida nua, matável, não passível de luto

de sua mãe. E de tantas outras e infinitas mães e filhas que também, na glória ao Infinito,

carregam nos ditos femininos que atravessam an-aquicamente a escritura.

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O trabalho de Ceija, a seu turno, atua na produção de imagens dissensuais em que a

cena exposta destaca o gesto de “jogar com a ambiguidade das semelhanças e a instabilidade

das dessemelhanças, operar uma redisposição local, um rearranjo singular das imagens

circulantes” (Rancière, 2012, p.34). Ao anotar no verso das telas, “nucas” das obras, textos

que remontam às experiências padecidas nos campos, Stojka opera uma espécie de catacrese

dos rostos ciganos vitimizados pelos nazistas, subverte os modos de aparição, as coordenadas

do representável. Suas formas de sua enunciação alteram quadros, ritmos e escalas,

proporcionando novos modos de apreender o visível e suas significações. As imagens de

Stojka perseguem o “desmedido momento”, transformam e reenquadram, mesmo que

precariamente, as fórmulas estéticas que nomeiam “os universos de experiência a partir dos

quais se definem o consenso policial ou o dissenso político.” (Rancière, 2006, p.163).

Assim, para que textos e imagens façam face à violência, que usualmente remetem

alteridades femininas à subalternidade e revitimização, são necessários lampejos e curto-

circuitos que interrompam a linearidade de uma possível história sobrevivente que também

pode ser sob narrava, no audível e no visível, pelo viés da superação das adversidades, dando

força a uma ideologia meritocrática. Em lugar de discursos de causalidade, de silenciamento

ou de apagamento das sutilezas e texturas das experiências das mulheres, é preciso encontrar

os relatos que permitem uma aproximação, um avizinhamento mais demorado entre quem

ouve e vê e a alteridade presente na imagem e na escritura. Imagens de avizinhamento

despertam no espectador novos modos de percepção da imagem, do texto, dos corpos e das

múltiplas espacialidades e temporalidades da cena a partir da qual figuram e se erguem os

rostos que nos interpelam.

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