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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X UM CORPO SOBREVIVENTE: AS TÊNUES FRONTEIRAS DE GÊNERO NAS IMAGENS SOBRE CEÓPATRA DO FINAL DO SÉCULO XIX Gregory da Silva Balthazar 1 Resumo: Recentemente, estudiosas/os destacaram como as noções de Oriente e Ocidente estiveram imbricadas aos discursos de gênero do século XIX, realçado e valorizado em tipos femininos lendários, como a rainha Cleópatra VII do Egito. Nesse contexto, as artes visuais têm se constituído como um campo profícuo para estudos que buscam demonstrar a imagem de Cleópatra como reveladora da articulação das lógicas de dominação colonial e de gênero, cujos vetores de força atravessam inextricavelmente seu corpo, orientalizando-o. Sob esta lógica, o corpo da rainha egípcia foi concebido como um lócus do desejo de conhecimento masculino sobre o feminino e o Oriente, um conhecimento que exerce poder por meio dos objetos de saber que constrói, tornando- os verdades aparentemente naturais. Inspirado em Foucault e Didi-Huberman, objetivo, nesta comunicação, problematizar essa visão, muitas vezes, unilateral de nossa relação com as imagens oitocentistas de Cleópatra, com o intuito de propor a ideia de que as imagens do corpo da rainha egípcia são imagens anacrônicas. Diante das imagens de Cleópatra, estamos diante do encontro de tempos múltiplos, em uma historicidade anacrônica que nos coloca ante as bifurcações, as destruições, as sobrevivências das imagens. Objetivo destacar algumas rachaduras colocadas pelas pinturas sobre Cleópatra, visando demonstrar como a estabilidade dos dualismos de gênero, tão caros ao discurso político de dominação, não se mostram terrenos tão distantes como aparentam ser. Palavras-chave: Artes visuais, gênero, orientalismo, século XIX, Cleópatra. Há seis mil anos atrás, nascia, às margens do Nilo, uma civilização que desenvolveu uma cultura singular, marcada por uma arquitetura grandiosa e pela crença na vida após a morte. O Egito dos faraós, desde a antiguidade, exerceu um enorme fascínio sobre a humanidade, sentimento este capaz de resistir aos séculos, o que manteve esta sociedade, até os dias de hoje, envolta em uma aura de mistério e magia. Para o historiador da arte Gérard-Georges Lemaire (2005, p. 87), este fascínio que cativou primeiramente o imaginário europeu foi parte estruturante da emergência de um fenômeno ontológico específico, qual seja, o orientalismo. Segundo o autor, com a situação crítica da Questão Oriental 2 na política externa dos países europeus dos oitocentos, o fenômeno orientalista teve sua 1 Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Porto Alegre/Brasil). Bolsista do CNPq. 2 David Fromkin (2004, p. 65) caracterizou a Questão Oriental como um momento de controvérsia da política internacional europeia vivenciada no século XIX, causado pelo desmembramento do agonizante Império Otomano e a interrogação que se colocava sobre a quem pertenceriam seus vastos territórios.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th

Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

UM CORPO SOBREVIVENTE:

AS TÊNUES FRONTEIRAS DE GÊNERO NAS IMAGENS SOBRE

CEÓPATRA DO FINAL DO SÉCULO XIX

Gregory da Silva Balthazar1

Resumo: Recentemente, estudiosas/os destacaram como as noções de Oriente e Ocidente estiveram

imbricadas aos discursos de gênero do século XIX, realçado e valorizado em tipos femininos

lendários, como a rainha Cleópatra VII do Egito. Nesse contexto, as artes visuais têm se constituído

como um campo profícuo para estudos que buscam demonstrar a imagem de Cleópatra como

reveladora da articulação das lógicas de dominação colonial e de gênero, cujos vetores de força

atravessam inextricavelmente seu corpo, orientalizando-o. Sob esta lógica, o corpo da rainha

egípcia foi concebido como um lócus do desejo de conhecimento masculino sobre o feminino e o

Oriente, um conhecimento que exerce poder por meio dos objetos de saber que constrói, tornando-

os verdades aparentemente naturais.

Inspirado em Foucault e Didi-Huberman, objetivo, nesta comunicação, problematizar essa visão,

muitas vezes, unilateral de nossa relação com as imagens oitocentistas de Cleópatra, com o intuito

de propor a ideia de que as imagens do corpo da rainha egípcia são imagens anacrônicas. Diante das

imagens de Cleópatra, estamos diante do encontro de tempos múltiplos, em uma historicidade

anacrônica que nos coloca ante as bifurcações, as destruições, as sobrevivências das imagens.

Objetivo destacar algumas rachaduras colocadas pelas pinturas sobre Cleópatra, visando demonstrar

como a estabilidade dos dualismos de gênero, tão caros ao discurso político de dominação, não se

mostram terrenos tão distantes como aparentam ser.

Palavras-chave: Artes visuais, gênero, orientalismo, século XIX, Cleópatra.

Há seis mil anos atrás, nascia, às margens do Nilo, uma civilização que desenvolveu uma

cultura singular, marcada por uma arquitetura grandiosa e pela crença na vida após a morte. O Egito

dos faraós, desde a antiguidade, exerceu um enorme fascínio sobre a humanidade, sentimento este

capaz de resistir aos séculos, o que manteve esta sociedade, até os dias de hoje, envolta em uma

aura de mistério e magia.

Para o historiador da arte Gérard-Georges Lemaire (2005, p. 87), este fascínio que cativou

primeiramente o imaginário europeu foi parte estruturante da emergência de um fenômeno

ontológico específico, qual seja, o orientalismo. Segundo o autor, com a situação crítica da Questão

Oriental2 na política externa dos países europeus dos oitocentos, o fenômeno orientalista teve sua

1 Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Porto

Alegre/Brasil). Bolsista do CNPq. 2David Fromkin (2004, p. 65) caracterizou a Questão Oriental como um momento de controvérsia da política internacional europeia vivenciada no século XIX, causado pelo desmembramento do agonizante Império Otomano e a interrogação que se colocava sobre a quem pertenceriam seus vastos territórios.

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grande eclosão após a campanha napoleônica no Egito (1798-1801), um evento de cunho político e

militar3, que se transformou em uma expedição científica e cultural (Lemaire, 2005).

Dessa forma, a campanha napoleônica no Egito e a abertura dos países orientais, além de

influenciar na emergência de novos campos nas pesquisas científicas, suscitaram o interesse de

artistas e os possibilitaram viajar para o Egito, bem como a outros países orientais; e conforme a

expansão colonial se disseminou ao longo do século XIX, escritores e pintores puderam ir a lugares

cada vez mais distantes. A historiadora da arte Lynne Thorton (1994) evidenciou como o aumento

do número de navios a vapor e ferrovias – frutos da Revolução Industrial inglesa e de sua expansão

pelo território europeu – possibilitou cada vez mais aos pintores se juntaram a grupos de pessoas

que investigaram, exploraram, analisaram ou apenas visitaram o Oriente:

Estes artistas eram inicialmente franceses e britânicos, pois para os outros países

europeus, sem grandes Impérios, o Oriente era remoto. Os artistas franceses

estiveram principalmente atrelados às missões militares, científicas e diplomáticas

enviadas aos países entorno da bacia do Mediterrâneo e à Pérsia. (Esta era uma

área de grande importância para a França, que estava ansiosa em prevenir que a

Bretanha expandisse seus interesses a oeste do Afeganistão). Os ingleses, por outro

lado, se concentraram principalmente no Egito (um link crítico de comunicação via

terrestre ao seu Império indiano) e na Palestina (Ibidem, p. 6).

Pode-se inferir, a partir dessas afirmativas, como o crescente interesse político das nações

europeias pelo Oriente influenciou profundamente o imaginário daquelas sociedades. Nessa linha,

David Scott (1988) pontuou como pintores, poetas e romancistas se voltaram para o Oriente como

um lugar exótico e diferente do seu, materializando-se aos artistas conforme este mundo místico foi

se abrindo pela ampliação do imperialismo europeu.

Nesse contexto, o orientalismo se tornou parte significante nas produções de pinturas do

século XIX, especialmente francesas e inglesas. Contudo, apesar do colonialismo europeu ter

impulsionado uma visão de um Oriente mítico e exótico, não se deve observar o orientalismo como

um produto unicamente derivado do colonialismo. Para além dessa marca decisiva, existira,

conforme Geneviève Lacambre (2005), diferentes razões para o surgimento de uma arte orientalista

e todas estiveram imbricadas umas às outras: um meio propagandístico da política colonial; um

simples gosto estético pela arte do Oriente; uma vontade de retornar às rotas iniciais da civilização;

e um desejo de capturar o pitoresco e o belo.

3 A historiadora Karine Lima da Costa (2013) destaca a existência de duas intenções do Diretório na campanha do Egito: primeiro como uma forma de afastar Napoleão da França, devido a sua crescente popularidade e seu ávido gosto de glória; por segundo, tiveram como objetivo conter a expansão da potência comercial britânica no Mediterrâneo, obstruindo suas ligações coloniais com o Levante, expansão essa que se concentrava principalmente na aliança com o Império Otomano.

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O antigo Egito, cujo misteorioso e fascinante passado estava sendo redescoberto pelas

ciências nascentes do século XIX, teve os mais diferentes temas representados nas telas de

inúmeros pintores europeus. Entre os muitos assuntos que atraíram os artistas dos oitocentos, o que

exerceu maior fascínio foi a história de vida e morte da última rainha do antigo Egito, Cleópatra

VII. O historiador da arte Jean-Marcel Humbert pontuou, por exemplo, que em torno da figura

histórica de Cleópatra um singular e duradouro mito foi forjado:

Até o século XIX, o soberano mais famoso que governou o Egito não foi, para os

europeus, nem Sesóstris ou Amenhotep, nem mesmo Ramsés, mas Cleópatra. Sua

longa linhagem de predecessores não emergiu verdadeiramente da obscuridade

histórica até 1822, quando os hieróglifos foram decifrados. Isto soa de maneira

espantosa, mas apenas porque tendemos a esquecer que somos herdeiros da

civilização romana e Roma viu Cleópatra como a personificação do Egito em um

momento crítico, quando ela poderia ter conseguido o domínio de todo o

Mediterrâneo. Os oponentes que venceram Marco Antônio e Cleópatra passaram,

para nós, sua imagem como soberanos, uma imagem que se desdobrou em diversas

metáforas desde sua gênese (1994, p. 554).

Deste modo, a trágica história da rainha Cleópatra inspirou os pintores europeus do século

XIX. A morte da rainha Cleópatra VII do Egito ocorreu a exatos dois mil e quarenta e sete anos

atrás, quando cometeu suicídio para não ser levada em cativeiro por seu algoz, Otávio César – o

futuro Augustus, primeiro imperador romano. A vida e a morte da última rainha do Egito marcaram

profundamente o desenvolvimento econômico, político, cultural e social do mundo antigo, uma vez

que sua morte significou a um só tempo: o rompimento de uma tradição monárquica de quatro mil

anos no Egito; o apagar da última casa real a promover a cultura helenística no mundo antigo; e,

sobretudo, o estopim para a transformação de uma Roma republicana em Império.

A controversa história da rainha foi tema constante na historiografia greco-romana,

especialmente pela sua intrínseca relação com os processos políticos romanos, mas nas lacunas dos

divergentes relatos antigos se instaurou um espaço de proliferação de imaginários que perdura até

os nossos dias (Balthazar, 2014; Kleiner, 2005). As releituras culturais de Cleópatra – seja no

cinema, nas artes, na ópera, no teatro, entre tanto outros artefatos – definiram que, mesmo sendo a

sétima de seu nome a assumir o trono do Egito, pensemos nela como única e como uma das mais

renomadas mulheres da história (Hughe-Hallet, 2005; Walker & Ashton, 2006).

As incertezas sobre a aparência da última monarca egípcia, conforme apresentou Ella Shohat

(2003, p. 127, grifos nossos), permitiu “a cada geração moldar sua imagem sob a forma de seus

desejos. Cada peíodo, pode-se dizer, tem sua própria Cleópatra, a ponto de se poder estudar os

pensamentos e os discursos de uma época a partir de suas fantasias sobre Cleópatra”. Para além da

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personagem histórica da rainha, estudada pela arqueologia e pela egptologia, as diferentes

reapropriações de sua figura são percebidas, sobretudo, como sintomas dos saberes produzidos, em

diferentes sociaidades, sobre sexualidade, gênero, raça e nacionalidade.

A partir de Edward Said (2007, p. 250), houve uma ampla disseminação da proposição de

que as imagens de Cleópatra, especialmente as produzidas no século XIX, e de outras mulheres da

antiguidade oriental, como Salomé e Isis, realçaram e valorizaram um caráter feminino do Oriente.

O olhar ocidental sobre corpo de Cleópatra, para uma ampla parte da historiografia, foi um sintoma

de uma vasta produção discursiva sobre as diferenças humanas, em que os vetores de força de sexo

e raça se entrecruzam e se complementam, expandindo os limites do poder colonial.

A historiadora da arte Griselda Pollock (1999, p. 135) é um exemplo singular de como a

historiografia feminista absorveu as colocações de Said, tendo em vista sua importância para a

edificação de uma história da arte feminista: “Cleópatra foi incorporada na cultura ocidental para

executar um complexo papel fundamentalmente misógino que dramatiza tanto a oposição

Oriente/Ocidente, que Edward Said nomeou de orientalismo, como o conflito masculino/feminino

típico do legado greco-romano reclamado e celebrado no renascimento e no iluminismo”.

Imagem 1 - Der Tod der Kleopatra de Hans Makart (1875).

Óleo sobre tela, 191x254 cm.

Staatliche Kunstsammlungen Museum/NeueGalerie Kassel, Dresden - Alemanha.

Fonte: https://goo.gl/fUozKL

Ao analisar algumas pinturas sobre

Cleópatra no século XIX, como a tela A

Morte de Cleópatra de Hans Makart (vide

imagem 1), Pollock (1999, p. 137-138)

destacou, sobretudo, o caráter pedagógico

das imagens da última rainha egípcia: “O

acesso masculino à cultura oriental é representado como uma sexualidade vicária e de permitidos

prazeres visuais; as mulheres são destinadas a olhar a arte para aprender sua lição nas restritas

performances estéticas de uma feminilidade maçante e embotada”. Em outras palavras, o corpo

Cleópatra foi percebido, assim, como imagens atravessadas por linhas de força do sexismo e do

racismo, um gesto dominador do colonialismo oitocentista.

No âmbito do gênero, o corpo de Cleópatra atendia a demandas universalizantes sobre o

feminino na modernidade, frequentemente colocando em cena o poder e a supremacia dos homens

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sobre as mulheres. No entanto, pode-se dizer que, acima de tudo, os regimes visuais oitocentistas

demarcavam, retificavam, com maior vigor o lócus ocupado pelas mulheres nos discursos sobre a

diferença sexual: “feminino igual ao corpo, sexualidade igual ao corpo feminino”, interpretou

Teresa de Lauretis (1984, p. 149-150).

No âmbito de uma cultura política de gênero, o século XIX foi exemplar, conforme Linda

Nochlin (1988a, p. 137), de um processo de engendramento das imagens do corpo feminino, tendo

em vista o lugar que os “mitos sexuais” ocuparam no período. As artes, para a autora, não se

constituíram como uma espécie de “complô masculino”, mas, sim, como um reflexo dos lugares

sociais reservados aos sexos: “a imagem do homem é de poder, possessão e dominação, a da mulher

de submissão, passividade e disponibilidade”, dicotomia que era atestada, reforçada, pelo sistema

acadêmico oitocentista.

Reside, aqui, a inseparabilidade da arte ao seu período de produção, sua eucronia seria

reveladora de uma verdade sobre um período, sobre uma experiência temporal de gênero. A

exigência da eucronia, da ideia que a chave para compreender o passado está no próprio passado,

nada mais é do que um fazer história com reverberações do conceito de origem, tal como foi

colocado por Nietzsche. Para Foucault (2013, p. 275), Nietzsche apontou como a ideia de origem

foi um esforço de “captar a essência exata da coisa, sua identidade cuidadosamente guardada em si

mesma, sua forma imóvel e anterior a tudo o que é externo, acidental e sucessivo”. Mesmo com

críticas feministas a um certo fazer histórico (pautado em concepções como neutralidade e, em

termos rankianos, de escrever sobre o passado tal como ele aconteceu), as abordagens

exclusivamente eucronicas da arte são, de algum modo, uma tentativa de evocar, diante de nossos

olhos, um espectro real do passado, um verdade que somente o sujeito cognoscente, em sua

estrutura ontológica, tem acesso.

A apreensão de uma essência imaginal é, sobremaneira, um desejo de verdade sobre as

imagens, em um ato de desvelar seu cerne. O tom assumido por uma história da arte feminista –

mesmo trabalhos com abordagens pós-estruturalistas –, esforçaram-se para denunciar a intrínseca

relação entre as imagens e a racionalidade masculina, cuja articulação opera como um topos

consolidado na cultura política de gênero. Em sua essência, em sua eucronia, as imagens do corpo

de Cleópatra são reveladoras de uma vontade de saber sobre o feminino, um desejo de

conhecimento que exerce poder sobre o objeto do saber, integrando-o a uma economia discursiva

que passa a constituí-lo enquanto verdade. As imagens dos corpos femininos atendiam, neste

sentido, a demandas universalizantes sobre o feminino na modernidade, frequentemente colocando

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em cena o poder e a supremacia dos homens sobre as mulheres. Mais do que isso, o corpo de

Cleópatra, como apontamos, foi intrínseco a uma produção de saberes mais amplos do

colonialismo, em uma política do ver para dominar. As imagens de Cleópatra foi algo dado ao

olhar, um objeto exótico, estranho, de uma terra distante que reforçava a “normalidade” de seus

observadores.

Reproduzir uma verdade sobre as imagens oitocentistas dos corpos femininos está no

entrecruzamento de “fontes” daquele mesmo passado, especialmente do discurso médico e moral.

As historiadoras costuram fragmentos do passado como uma colcha de retalhos, esperando poder

delinear uma forma real daquele momento. Em outras palavras, a arte do século XIX foi

interpretada como um sintoma de uma cultura austera de gênero, em que “cientistas e homens cultos

da época [esforçavam-se] em entender a especificidade feminina, ou melhor dizendo, a natureza da

mulher, para formular seus discursos a respeito das relações entre homens e mulheres, definindo

seus lugares e estabelecendo seus papeis” (Martins, 2004, p. 36).

Construir as imagens do corpo de Cleópatra como reveladora unicamente de uma vontade de

saber sobre os corpos femininos, fez com que a crítica feminista edificasse um ideal sobre as

imagens, denuncia seus perigos, mas arriscando-se neste mesmo processo a sujeitar o seu objeto a

este ideal: “imaginando-o, vendo-o ou prevendo-o – em suma, dando-lhe forma e inventando-o por

antecipação”, ou seja, “acabou por impor a seu objeto sua própria forma específica de discurso (...)

não busca na arte senão as respostas já dadas” (Didi-Huberman,2013, p. 215-2016).

Foucault propôs, como apontou Paul Veyne (2011, p. 98), romper definitivamente com as

origens, no sentido de problematizar como as realidades se formam por descontinuidades: “por

adição e modificações (...), por graus imprevisíveis, bifurcações, acidentes, encontros com outras

séries de acasos, rumo a um termo não menos imprevisto”. Inspirado por esta proposta genealógica

foucaultiana, Didi-Huberman (2011) nos convida a pensarmos em uma arqueologia do saber sobre

as imagens, capaz de romper definitivamente com a sombra do humanismo que paira sobre a

história da arte; sobretudo, problematizar a potência do anacronismo para tentar, nem que

minimamente, expressar “a exuberância, a complexidade e a sobredeterminação das imagens”

(Ibdem, p. 39).

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Imagem 2– César et Cléopâtrede Jean-Léon Gérôme (1866).

Óleo sobre tela, 183×129.5 cm.

Coleção Privada.

Fonte: https://goo.gl/rb9c1A

Não irei explorar profundamente o caráter

anacrônico da imagem oitocentista de Cleópatra, um

estudo que demandaria muito mais folego. Atento, tão

somente, para que pensamos em como as imagens de

Cleópatra, como a do pintor orientalista Jean-Léon

Gérôme (vide imagem 2), não são unicamente sintomas

de um tempo, do entrecruzamento de discursos da

diferenças humanas emergentes no século XIX.

Como colocou Stephanie Batista (2011, p. 17),

cotejando o pensamento de Ekaterini Kepetzis, o final

do século XVIII foi marcado pela união entre a pintura histórica e a pintura de gênero, constituindo

o que podemos chamar de “gênero histórico anedótico”: “a representação da vida antiga greco-

romana de forma mais anedótica, mas baseada na pesquisa historiográfica e arqueológica feita pelos

artistas, se tornou o novo gênero hibrido e a continuação da pintura histórica chamada pintura de

gênero histórico anedótico”. Na pintura de Gérôme, Cleópatra emerge soberana de um suntuoso

tapete persa, para encarar o conquistador romano, Júlio César, que está sentado e estarrecido com a

cena. Ao fundo, encontram-se funcionários romanos em igual sentimento de surpresa. A cena que

observamos foi, provavelmente, baseada nos escritos do biógrafo grego Plutarco, que viveu sob a

égide do Império romano entre o I e II século de nossa era:

Então Cleópatra, levando dentre seu amigos apenas Apolodoro da Sicília,

embarcou em uma pequena barca e aportou no palácio quando já estava ficando

escuro; e como era impossível passar despercebida, ela estendeu-se ao comprido

dentro de um saco de colchões, enquanto Apolodoro amarrou o saco com uma

corda e carregou-a para dentro, para César. E foi por meio desse primeiro artifício

de Cleópatra, dizem, que César foi conquistado, pois revelou coragem, e, mais

tarde, sucumbiu ao charme de sua companhia, reconciliando-a com seu irmão para

um reinado conjunto (Vida de César, 49.1-2).

Em um estudo anterior sobre o relato plutarquiano sobre Cleópatra, defendi que a narrativa

plutarquiana não pode ser considerado como uma postura misógina ou sexista, algo que foi um

produto das formas como a modernidade interpretou a obra plutarquina, tanto no campo acadêmico

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como nas artes. Assim, propus pensar que a Cleópatra histórica possuiu uma experiência de gênero

que se desenvolveu a partir de processos culturais muito diversos dos vivenciados por Plutarco. A

visão de mundo plutarquiana, inserida em uma tradição de pensamento fundamentalmente

falocêntrica, ao se deparar com uma experiência feminilidade muito diversa da vivenciada pelo

autor, parte inicialmente de uma crítica, pois a atuação direta das mulheres no campo da política,

talvez, não se enquadrasse numa lógica ou num quadro admissíveis àquela cultura, naquele

momento. Isto é, a forma como Plutarco narra a história de Cleópatra possui diversos tons, mais

críticos ou mais amigáveis, é fruto de um estranhamento com um experiência de feminilidade

estrangeira.

Mesmo se Gérôme não tenha lido Plutarco (o que é improvável pela importância do relato

plutarquiano no século XIX e o lugar de destaque dos escritos antigos no currículo da Academia de

Belas Artes Francesa), o relato plutarquiano pulsa sob a inspiração shakesperiana de Gérôme,

percebida, na pintura, pela troca de saco de colchões presente na biografia antiga pelo tapete persa

descrito na peça de Shakespeare. Aqui, um encontro de tempos: Shakespeare se pautou quase que

exclusivamente, como colocou Joyce Tyldesley (2008), no relato plutarquiano para a construção de

suas peças Júlio César e Antônio e Cleópatra. Para além de adicionar o tapete à história de

Cleópatra: “O governo feminino, nos dias de Shakespeare, não era visto como não usual ou não

desejável; e a peça de Shakespeare, escrita quando a memória do reinado de Elizabeth I era ainda

vivida, reflete isso”. Nestes dois exemplos de inspirações histórica e literária de Gérôme, mas não

só (do século XIX em geral), exemplifica que diante da Cleópatra oitocentista estamos diante de um

encontro de tempos, em que visões de gênero se chocam, se entrecruzam, proliferando os sentidos

possíveis da imagem.

Outro exemplo, Jean-Marcel Humbert (1994) demonstrou como Gérôme esteve atento, para

além dos escritos modernos e antigos, para a pesquisa arqueológica em plena expansão no século

XIX. O palácio dos Ptolomeus – dinastia da qual Cleópatra fez parte – não condiz com uma

construção do Egito grego, pois os motivos do Egito faraônico tomam o lugar do que seria um

palácio do Egito helenizado: o cenário é transformado em um templo egípcio do Reino Médio ou do

Reino Novo, com suas paredes pintadas e cenas esculpidas em relevo – um ponto focal das

pesquisas arqueológicas oitocentistas. No que concerne à rainha, Gérôme se aproximou das efígies

das moedas de Cleópatra até então descobertas, em que se observa seu delicado nariz com formato

de gancho e seu penteado ao estilo grego. Seu corselete e colar foram tomados de emprestado dos

equipamentos encontrados nas múmias do Terceiro Período Intermediário. O tecido que cobre a

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cabeça do escravo núbio da governante, Apolodoru, permanece em um tênue limiar entre o nemes

dos faraós e o véu dos beduínos. Outros fatores podem ser citados, como o tapete persa que passou

a ser amplamente comercializado com a abertura dos países orientais no XIX; bem como a roupa

fina e transparente de rainha, inspirada nas odaliscas do Egito moderno, com um símbolo da volúpia

sedutora e perigosa do Oriente.

A partir desses pequenos apontamentos, podemos pensar que as imagens de Cleópatra não

nos convidam apenas a pensar no engendramente do Oriente (na intersecção entre sexo e raça

constituinte do discurso orientalista), mas, inspirado em Didi-Huberman, também ali, diante do

corpo de Cleópatra, somos constrangidos por uma complexa montagem de tempos heterogêneos e

sobreviventes que formam o anacronismo da imagem.

Na dinâmica e na complexidade dessa montagem, noções históricas tão

fundamentais quanto as de “estilo” ou de “época” se verificam, subitamente, de

uma perigosa plasticidade (perigosa apenas para quem gostaria que toda coisa

estivesse, de uma vez por todas, em seu lugar na mesma época: figura, bastante

comum, daquele que eu nomearei de “o historiador fóbico do tempo”). Colocar a

questão do anacronismo é interrogar, então, essa plasticidade fundamental e, com

ela, a mistura, tão difícil de analisar, de diferenciais de tempo operando em cada

imagem (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 38-39).

Análises de imagens, como as de Cleópatra, não podem ser somente pautadas em uma

aposta metodológica eucronica, tendo em vista a imbricada relação que esta abordagem tem com a

ideia de uma verdade essencial e universal. A epistemologia do anacronismo, como proposto por

Didi-Huberman, está, sobretudo, vinculada à concepção arqueológica de história de Foucault; ou

seja, a ideia de se permitir ser tomado pelos tempos múltiplos, tempos que se chocam, na imagem é

assumir que a história não “significa um reencontra e sobretudo não significa um reencontrarmos. A

história será efetiva à medida que reintroduz o descontínuo em nosso próprio ser” (Foucault, 2013,

p. 285-287).

Diante de Cleópatra, estamos diante do tempo. Tempos que colidem e, paradoxalmente, que

se fundem. Para além das inspirações temporalmente distintas da produção da imagem, estamos,

nós mesmos, em um jogo anacrônico diante da imagem. A imagem é anacrônica, porque

sobrevivente, elas “sequer estão no presente”, mas são tempo múltiplios que a constituem: “o

passado que delas emana encontra-se reconfigurado perante os múltiplos presentes (e suas

imanentes configurações) que a olham; perante o futuro, é provavelmente ela quem sobreviverá a

nós (já que, em relação a la, não somos mais do que mero elemento de passagem)” (Marcello, 2016,

450). A imagem possui mais passado que nós, passados plurais, e, certamente, possui mais futuro.

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Assumir o anacronismo é romper com a própria ideia da imagem como unicamente

instrumento em uma disciplinarização dos corpos, da constituição de corpos dóceis. O anacronismo,

o embate de tempos, pulsante nas imagens de Cleópatra nos aponta não apenas para uma forma de

pensar o gênero, certamente há um gênero do passado histórico (o gênero dos oitocentos e toda sua

carga sexista e racista), mas há o gênero mais-do-que-passado (experiências múltiplas,

temporalmente impuras, de gênero, que, em alguma medida, nos permitem pensar em relações

legitimas entre as mulheres e o poder político). Assim, o anacronismo permite que rompamos com

uma verdade coercitiva de gênero que atravessa o pensamento oitocentista, mas que reverbera, de

algum modo, na própria análise que as feministas empreendem das pinturas sobre figuras femininas

no século XIX. Ao permitir que as imagens se abram em sua impureza temporal, podemos pensar

em como as próprias imagens - edificadas como fruto de uma cultura política de gênero que visa o

controle dos corpos femininos – possibilitam, em alguma medida, resistências às redes de saber-

poder contemporâneas.

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A surviving body: the tenuous gender boundaries in the Cleopatra imags from late 19th

century

Abstract: Recently, scholars have highlighted how the concepts of East and West were interwoven

with nineteenth-century gender discourses, highlighted and valued in legendary female types, such

as Queen Cleopatra VII of Egypt. In this context, the visual arts have been established as an

important field for research seeking to demonstrate how Cleopatra images are revealing of the

articulation of the colonial and gender logic of domination, which force vectors inextricably cross

her body. Therefore, the Egyptian queen's body was conceived as a locus of the desire for male

knowledge about the feminine body and the East, a knowledge that exerts power through the

knowledge objects it constructs; making them seemingly natural truths.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th

Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

Inspired by Foucault and Didi-Huberman, this paper aims to question this often unilateral view of

our relationship with Cleopatra's nineteenth-century images in order to propose the idea that the

images of the Egyptian queen's body are anachronic images. In front Cleopatra images, we face an

encounter of multiple times, in an anachronic historicity that puts us before the images’

bifurcations, destructions and, survivals. The main objective of this work is to highlight how

Cleopatra paintings represent some cracks in the stability of gender dualisms, which are so

important to the political discourse of domination.

Keywords: Visual arts, gender, orientalism, nineteenth century, Cleopatra.