o discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da...

146
i UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da revista A Defesa Nacional (1990-2004) Adelaide Cristina Brandão Baroni 2010

Upload: nguyenkiet

Post on 10-Nov-2018

217 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

i

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da

revista A Defesa Nacional (1990-2004)

Adelaide Cristina Brandão Baroni

2010

Page 2: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

Livros Grátis

http://www.livrosgratis.com.br

Milhares de livros grátis para download.

Page 3: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

ii

O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da

revista A Defesa Nacional (1990-2004)

Adelaide Cristina Brandão Baroni

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em História.

Orientador: Prof. Dr. Renato Luis do Couto Neto e Lemos.

Rio de Janeiro Junho de 2010

Page 4: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

iii

O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da revista A Defesa

Nacional (1990-2004)

Adelaide Cristina Brandão Baroni

Orientador: Renato Luis do Couto Neto e Lemos

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em

História Social, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos

necessários à obtenção do título de Mestre em História.

Aprovada por:

______________________________ Professor (orientador) Dr. Renato Luis do Couto Neto e Lemos ______________________________ Professor Dr. Celso Corrêa Pinto de Castro ______________________________ Professor Dr. Manuel Domingos Neto

Page 5: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

iv

Baroni, Adelaide Cristina Brandão

O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da revista A

Defesa Nacional (1990-2004) / Adelaide Cristina Brandão Baroni. -- Rio de Janeiro: UFRJ / IFCS, 2010.

xiii, 129 f.: il.; 31 cm.

Orientador: Renato Luis do Couto Neto e Lemos

Dissertação (mestrado) – UFRJ / IFCS / PPGHIS – Programa de Pós-Graduação em História Social, 2010.

Referências bibliográficas: f. 120-129

1. Regime Militar. 2. Discurso. 3. Revista A Defesa Nacional - Tese. I. Lemos, Renato Luis do Couto Neto e. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em História Social III. Título.

Page 6: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

v

Agradecimentos

Agradeço a todos aqueles que direta ou

indiretamente contribuíram para a

realização deste trabalho. Em especial à

minha família, aos meus amigos, ao

Igor, companheiro de todos os

momentos, e aos professores que

enriqueceram e viabilizaram esta

dissertação.

Page 7: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

vi

Certamente precisamos da história, mas não como o passeante mimado no jardim do saber [...] Isto significa:

precisamos dela para a vida e para a ação, não para o abandono confortável

da vida ou da ação ou mesmo para o embelezamento da vida egoísta e da

ação covarde e ruim

Nietzsche, F. W. Segunda consideração intempestiva: da utilidade e desvantagem da história para a vida. Rio de Janeiro: Relume

Dumará, 2003, p. 5.

Page 8: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

vii

RESUMO

O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da revista A Defesa

Nacional (1990-2004)

Adelaide Cristina Brandão Baroni

Orientador: Renato Luis do Couto Neto e Lemos

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação

em História Social, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos

requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em História.

Esta dissertação busca realizar uma análise do discurso sobre o golpe de 1964 e

o regime militar, elaborado pela revista A Defesa Nacional (1990-2004), editada pela

Biblioteca do Exército Editora (BIBLIEx). A relevância deste trabalho está no fato de

evidenciar a presença de canais institucionais do Exército que expressam a legitimidade

do golpe/regime militar e seus benefícios para a sociedade atual.

Através desta análise, concluímos que o discurso contido na revista A Defesa

Nacional, representante de um segmento social de elevado grau de instrução e/ou de

comando no Exército, atua como instrumento de formação e informação no Exército e

expõe uma herança do golpe e do regime militar baseado na sua necessidade e na

função militar de salvaguarda da nação. Além de afirmar a responsabilidade militar

acerca das instituições democráticas ao longo de 1990-2004, o discurso contido na

revista A Defesa Nacional elogia o regime militar e os alicerces que foram arquitetados

para o retorno da democracia, pretendendo manter um passado honroso para a

instituição e o poder de veto sobre o espólio da ditadura que ainda não sofreu alteração.

Palavras-chave: Discurso, Revista A Defesa Nacional, Regime Militar.

Page 9: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

viii

ABSTRACT

O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da revista A Defesa

Nacional (1990-2004)

Adelaide Cristina Brandão Baroni

Orientador: Renato Luis do Couto Neto e Lemos

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação

em História Social, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos

requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em História.

This dissertation purpose is to present an analysis of the 1964 Brazilian Military

Coup and Military Regime discourse elaborated by the magazine A Defesa Nacional,

(1990-2004), edited by Biblioteca do Exército Editora (BIBLIEx).

Its importance is to consolidate the existence of army magazine archives phrasing the

Military Coup and Military Regime legitimacy and its benefits

to modern society.

Through this study, we conclude that the argument published in the magazine A

Defesa Nacional, established of a social segment of high level graduate and/or of high

level Army personnel, play as an implement of establishment and information at the

Army and expose a Coup and Military Regime heritage supported in its need and in the

military function to safeguard nation.

Otherwise to claim military duty about democratic institutions from 1990

through 2004, the discourse printed in the magazine A Defesa Nacional praises the

Military Regime and the principles established to democracy's return, intend to keep an

honorable past to the institution and veto authority over dictatorship remains that didn’t

suffer change yet.

Keywords: Discourse, Magazine A Defesa Nacional, Military Regime

Page 10: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

ix

SUMÁRIO

LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS ...........................................................................xi

LISTA DE ILUSTRAÇÕES ................................................................................................xiii

INTRODUÇÃO .......................................................................................................................1

CAPÍTULO 1

Pesquisando os militares

1.1. Os estudos sobre os militares no Brasil: um balanço historiográfico .................................6

1.2. Entrevistas, discursos e literatura institucional: possibilidades para os estudos sobre

as Forças Armadas....................................................................................................................12

1.3. Organização cultural e intelectual do Exército: uma breve apresentação ........................17

CAPÍTULO 2

A revista A Defesa Nacional: uma trajetória

2.1. Revista A Defesa Nacional: uma visão geral ....................................................................26

2.2. O contexto de formulação de ideias .................................................................................27

2.2.1. O contexto Ocidental e os militares ................................................................28

2.2.2. O contexto brasileiro e os militares .................................................................31

2.3. A fundação da revista A Defesa Nacional, 1913 ...............................................................34

2.4. Os primeiros anos da revista A Defesa Nacional, 1913-1930 ..........................................41

2.5. A inserção institucional da revista A Defesa Nacional ....................................................50

2.5.1. A revista A Defesa Nacional, 1930-1960 ........................................................50

2.5.2. A revista A Defesa Nacional, 1960-1980 ........................................................58

2.5.3. A revista A Defesa Nacional, 1981-2004 ........................................................62

2.6. Considerações finais .........................................................................................................66

CAPÍTULO 3

A revista A Defesa Nacional pensa as Forças Armadas na Nova República (1990-2004)

3.1. Militares e política na Nova República: perspectivas para uma análise ...........................68

3.2. A revista A Defesa Nacional: Forças Armadas, sociedade e Estado (1990-2004) ...........72

3.2.1. O governo de Fernando Collor de Mello, 1990-1992 .....................................73

3.2.2. O governo de Itamar Franco, 1992-1994 ........................................................78

3.2.3. Os governos de Fernando Henrique Cardoso, 1995-2002 ..............................81

3.2.4. O governo de Luis Inácio da Silva, 2003-2004 ...............................................85

Page 11: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

x

3.3. A revista A Defesa Nacional e o regime militar: um discurso para a posteridade

(1990-2004) .............................................................................................................................91

3.3.1. O Desafeto: a posse de João Goulart ...............................................................91

3.3.2. O golpe militar é justificado ............................................................................94

3.3.2.1. A desordem .........................................................................................94

3.3.2.2. O apoio civil e a união dos militares em favor do golpe de 1964......101

3.3.2.3. O golpe em defesa da democracia ....................................................104

3.3.3. O propósito do golpe justifica sua denominação: “Revolução” ....................105

3.3.4. O desenvolvimento econômico e social durante o regime militar (1964-

1985) ......................................................................................................................................107

3.3.5. A prolongada vigência do regime militar é justificada .................................107

3.3.6. A repressão ....................................................................................................109

3.3.7. A abertura política .........................................................................................110

3.3.8. A revista A Defesa Nacional e o revanchismo ..............................................112

3.4. Implicações atuais do discurso da revista A Defesa Nacional ........................................115

CONCLUSÃO ......................................................................................................................118

BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................121

Page 12: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

xi

LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS:

ADN: revista A Defesa Nacional

ADP: Ação Democrática Parlamentar

AHEx: Arquivo Histórico do Exército

AHMTB: Academia de História Militar Terrestre do Brasil

AMAN: Academia Militar das Agulhas Negras

BIBLIEx: Biblioteca do Exército Editora

CCOMSEx: Centro de Comunicação Social do Exército

CGG: Comando Geral de Greve

CGT: Comando Geral dos Trabalhadores

CM: Comandos Militares de Área

Contag: Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura

CPDOC: Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil

CPI: Comissão Parlamentar de Inquérito

CPORs: Centros de Preparação de Oficiais da Reserva

DAC: Diretoria de Assuntos culturais

DECEx: Departamento de Educação e Cultura do Exército

DEE: Diretoria de Especialização e Extensão

DFA: Diretoria de Formação e Aperfeiçoamento

DEMU: Departamento de Museus

DEPA: Diretoria de Ensino Preparatório e Assistencial

DOI-CODI: Destacamento de Operações e Informações – Centro de Operações e

Defesa Interna

DPEP: Diretoria de Pesquisa e Estudo de Pessoal

DPHCEx: Diretoria do Patrimônio Histórico e Cultural do Exército

ECEME: Escola de Comando e Estado-Maior do Exército

EMR: Escola Militar do Realengo

EsAO: Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais

EsPCEx: Escola Preparatória de Cadetes do Exército

FA: Forças Armadas

IGHMB: Instituto de Geografia e História Militar do Brasil

IME: Instituto de Engenharia Militar

IPHAN: Histórico, Cultural e Artístico Nacional (IPHAN)

Page 13: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

xii

MD: Ministério da Defesa

MHEx-FC: Museu Histórico do Exército/Forte de Copacabana

MNMSGM: Monumento Nacional aos Mortos da Segunda Guerra Mundial

OM: Organização Militar

PADECEME: Programa de Atualização dos Diplomados pela ECEME

PDN: Política de Defesa Nacional

RM: Regiões Militares

SisCEx: Sistema Cultural do Exército

Page 14: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

xiii

LISTA DE ILUSTRAÇÕES:

Figura 1– Organograma institucional da Diretoria do Patrimônio Histórico e Cultural

do Exército (DPHCEx) ............................................................................................................20

Figura 2 – Proporção de assuntos da revista A Defesa Nacional (1990-2004) ......................64

Figura 3 – Proporção de autores da revista A Defesa Nacional (1990-2004) ........................65

Figura 4 – Proporção de patentes dos autores da revista A Defesa Nacional

(1990-2004) .............................................................................................................................65

Page 15: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

1

Introdução

Ao longo da presente pesquisa analisamos, através de um periódico militar, a

produção discursiva marcada pela percepção de que o golpe de 1964 e o regime militar

foram necessários e geraram diversos benefícios para o Brasil de hoje. O contato com as

publicações militares começou em 20031 e neste contexto foi possível descobrir que as

Forças Armadas possuem um grande número de veículos de comunicação interna, e que

eles fornecem ao pesquisador importante material sobre a percepção dos militares a

respeito dos mais variados assuntos.

Diante do grande número de publicações do Exército, selecionamos a revista A

Defesa Nacional (ADN). Atualmente a revista ADN faz parte do grupo de publicações

do Exército brasileiro editada pela Biblioteca do Exército Editora (BIBLIEx). A escolha

do periódico está relacionada ao grupo que ele se propõe representar, os oficiais; e aos

temas que a revista pretende abordar – “revista de assuntos militares e estudo de

problemas brasileiros”. O vínculo do periódico com os oficiais está presente na

administração da revista; na autoria dos artigos publicados; e no declarado

posicionamento do periódico em expor material de interesse profissional e nacional

referentes a tal grupo.

Vale lembrar que os oficiais são os responsáveis pelo comando da corporação,

o que nos impele a pensar que o periódico possui um sentido multiplicador bastante

amplo, visto que, ao comandarem seus subordinados, os oficiais transmitem as regras da

instituição e a percepção que possuem sobre diversos assuntos.

Ao se propor explorar temas militares e nacionais, a revista ADN se distancia

dos demais periódicos publicados pela BIBLIEx: a Revista do Exército Brasileiro,

dedicada a questões técnico-profissionais; e a Revista Militar de Ciência e Tecnologia,

especializada na divulgação dos assuntos pesquisados no Instituto de Engenharia Militar

(IME), que têm, portanto, caráter mais técnico.

No campo dos estudos sobre militares, principalmente quando se propõe a

analisar a concepção de determinados grupos, cabe lembrar que: “[...] é sempre útil e

necessário relembrar que os militares não são detentores de um pensamento homogêneo

1 Realização de levantamento e coleta de fontes para auxiliar o doutorando Alexandre de Sá Avelar. A

modernização brasileira no pensamento do general Edmundo de Macedo Soares (1937-1987). Tese de doutorado em História, UFF, Niterói, 2006.

Page 16: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

2

nem de um projeto político igualmente acatado por todos” (D`ARAUJO, CASTRO e

SOARES,1997). Desta forma, a preocupação da pesquisa aproxima-se de parcela da

literatura mais recente sobre o golpe de 1964 e o regime militar, pois se propõe a incluir

no debate acadêmico a percepção dos próprios militares2.

De maneira geral, utilizamos a análise do discurso da revista ADN como eixo

para a compreensão da percepção de segmentos militares sobre o golpe de 1964 e a

ditadura; e a problemática inicial é a veiculação, durante o período democrático, de um

discurso favorável ao golpe/regime militar. Sustentaremos a hipótese de que a

construção do discurso sobre o golpe de 1964 e regime militar através da revista ADN

pretende garantir não só um passado honroso, ou mesmo, defender a instituição dos

ataques sofridos após a ditadura, mas também a manutenção do Exército como uma

instância de poder que garante o veto sobre parte do espólio da ditadura (anistia,

documentos secretos, indenização sem incorporação, desaparecidos políticos).

Se, a definição temática de nossa pesquisa pôde ser claramente descrita, a

delimitação temporal nos impele ao impasse, visto que a definição do período

democrático, ou melhor, de um período democrático, evidencia um conhecido debate da

historiografia: quando foi estabelecida a democracia? De maneira geral, o assunto

coloca em jogo a mudança de um regime autoritário para um regime político

democrático, e, em grande medida, favoreceu o surgimento de análises que pretendem

compreender e avaliar graus de continuidade e de ruptura.

Diante da avaliação sobre a proximidade e/ou distanciamento do regime

autoritário, a literatura sobre a redemocratização – período também chamado de “Nova

República” – preocupou-se também com a proeminência da atuação militar no processo

de mudança das estruturas do regime anterior e a participação da sociedade apressando

o ritmo pretendido pela tão conhecida determinação do presidente general Ernesto

Geisel (1974-1979): lenta, gradual e segura.

O Brasil viveu um dos mais longos processos de transição do regime

autoritário para a ordem institucional democrática. Iniciado por Geisel, o movimento de

liberalização do regime prometeu, antes de tudo, conter o ritmo das mudanças dentro

dos limites tolerados pelo sistema. Porém, a historiografia nos leva a uma compreensão

de marchas e contramarchas no longo processo de reorganização democrática, marcado

pela iniciativa/controle estatal e pela pressão social.

2 Comentaremos a historiografia sobre o assunto no Capítulo 1.

Page 17: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

3

A distensão anunciada por Geisel em 1974 deixou de fazer parte apenas das

promessas presentes nos discursos presidenciais e introduziu alterações no regime.

Porém, para manter o controle da mudança, tanto Geisel como seu sucessor, general

João Figueiredo (1979-1985), buscaram anular a ação de militares contrários à

redemocratização e, também, de grupos que pressionavam para acelerar o processo de

retorno à democracia.

Em 1974 ocorreu a revogação parcial da censura à imprensa; ainda em 1974 foi

permitido certo clima de liberdade para as eleições legislativas, com acesso dos partidos

ao rádio e à televisão, o que permitiu a frente partidária oposicionista Movimento

Democrático Brasileiro (MDB) surpreender o governo com considerável avanço

eleitoral, obstado nas eleições municipais de 1976 – pela Lei Falcão3. Neste ano, após as

mortes de Vladimir Herzog e Manoel Fiel Filho, nas dependências do DOI-CODI de

São Paulo, o presidente demitiu o comandante do Exército no Estado; em 1978 ocorreu

a revogação dos atos Institucionais; e em 1979 a aprovação da anistia e o fim do

bipartidarismo. A manutenção do calendário eleitoral por Figueiredo garantiu a

realização de eleições diretas para vereadores e governadores em 1982 que, mesmo com

a manutenção da Lei Falcão causou bastante euforia, pois seria a primeira eleição direta

para postos executivos desde 1965.

Diante do ambiente de relativa liberalização política, desencadeou-se a

mobilização da população na luta pela eleição direta para presidente, prevista para

ocorrer em 1985. Após várias manifestações de grandes proporções, tornava-se nítido

que a campanha pelas “Diretas Já”4 havia se tornado unanimidade nacional para a

oposição, mas seria necessário aprová-la em outra instância: o Congresso. Na

contramão da demanda de grande parte da população, o Congresso não aprovou a

emenda que garantiria a alteração constitucional5. Este resultado pode ser compreendido

através de mecanismo empregado pelo governo no controle da mudança política:

alteração na escolha dos representantes com a criação dos senadores indiretos (1977) e o

3 A Lei Falcão vigorou de 1976 até o final do regime militar (1985), e proibia o acesso dos candidatos a cargos políticos à TV, apenas permitindo a apresentação de seus currículos e de suas fotos. (D`ARAÚJO e CASTRO, 2002). 4 Sugerimos consultar como referência introdutória o verbete “Diretas Já” de Maria Ester Lopes Moreira no Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro, coord. por Alzira Alves de Abreu e outros. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 2001, designado ao longo do texto pelas iniciais DHBB. 5 Emenda Dante de Oliveira.

Page 18: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

4

aumento da representação dos Estados em que o partido situacionista a Aliança

Renovadora Nacional (Arena) possuía melhor resultado eleitoral.6

De maneira geral, é possível observar a importância dos dois movimentos: o

iniciado/controlado pelo governo, com objetivo de reformular a estrutura legal

eliminando gradualmente a legislação de exceção7; e as pressões exercidas pelo

conjunto da sociedade que buscava a aceleração do processo. “[...] a estratégia

distensionista foi sendo gradualmente elaborada e redefinida em função das pressões e

resistências enfrentadas pelos governos encarregados de implementá-la” (DINIZ,1995,

p. 334).

Diante desse processo de desmonte do regime autoritário, o marco simbólico

da redemocratização brasileira foi a ascensão de um civil – José Sarney – à presidência

da República em 1985. Porém, as condições que garantiram a posse de Sarney,

reconhecidamente baseada no suporte dado pelas FA e em uma arquitetura política

precária, tornou o governo extremamente vulnerável. Assim, o processo de

desmilitarização ao longo da presidência de Sarney (1985-1990) sofreu uma limitação

de origem, acentuada pelas características do mandatário8; e pela visível interferência

militar, incoerente com a democracia, mas personificada nas ações do então ministro do

Exército, general Leônidas Pires Gonçalves.

Porém, o que nos chama a atenção é a dificuldade de incluir o governo Sarney

como pertencente ao período democrático, pois a ocorrência de muitas transformações

não pode deixar no escuro o fato de que a sua eleição foi realizada sob regras ditatoriais,

sem a participação direta da população, e que até 1988 inexistia uma constituição

democraticamente elaborada. Desta forma, o desenvolvimento da pesquisa, baseado no

recorte estabelecido por Adriano Nervo Codato (2005, p. 25), considerará que a

consolidação democrática tem seu início em 1989. Ao optarmos por uma compreensão

de democracia minimalista, caracterizada pela ocorrência de eleições livres e diretas e

pela existência de uma Constituição democrática, determinamos nossa análise a partir

do governo de Fernando Collor de Mello, iniciado em 1990, e finalizamos com o marco

dos 40 anos do regime militar, em 2004.

6 Ver Pacote de Abril de 1977 (MENDONÇA e FONTES, 2004, p. 75). 7 Utilizando, sempre que necessário, de instrumentos coercitivos para manter a liberalização sob controle. 8 Sarney fez sua vida política pelo PDS, antiga ARENA, partido pró-regime militar. Após ter ficado insatisfeito com a indicação de Paulo Maluf como candidato do PDS, Sarney buscou aproximação com o PMDB que se concretizou com sua candidatura a vice-presidente de Tancredo Neves.

Page 19: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

5

O propósito da pesquisa ao analisar a existência de um discurso favorável ao

golpe de 1964 e ao regime militar, produzido nas fileiras do próprio Exército, está

fundamentado: (1) na demonstração de que os militares possuem uma significativa

produção de conhecimento dentro de seus próprios muros, e que não se limita a debater

temas profissionais; (2) na compreensão de que a produção interna, com significativa

presença de militares da reserva, implica na transferência de conhecimento para as

novas gerações; e (3) na constatação da relevância do discurso favorável ao

golpe/regime militar para o posicionamento de segmentos militares na atualidade. O

último fundamento relaciona-se com a construção de um passado honroso para a

corporação, com a defesa das Forças Armadas como protetora da nação e com o veto de

segmentos da corporação à proposições que visam mudanças no modelo de transição

ocorrido no Brasil (revisão da lei de anistia, reparação, divulgação de documentos

secretos).

Page 20: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

6

CAPÍTULO 1 – Pesquisando os militares

1.1. Os estudos sobre os militares no Brasil: um balanço historiográfico

Os estudos sobre a história do Brasil durante o período republicano

dificilmente podem ignorar a presença militar, no contexto de suas pesquisas, sem

correrem o risco de suas análises se tornarem debilitadas. Tal afirmação encontra seu

fundamento na presença constante no curso da formação do Estado nacional e no peso

determinante dos militares durante os momentos políticos mais tensos da história

republicana brasileira.

Salta aos olhos a proeminência militar em diversos momentos da história

nacional. Partindo da Proclamação da República, tivemos sua primordial importância não

somente na derrubada do Império, mas também nos dois governos posteriores. Os

militares voltariam a se destacar no cenário nacional com os movimentos contestatórios

de 1922 e 1924 (tenentismo); com o reforço a Getúlio Vargas em 30, e também em 37,

durante a implantação da ditadura do Estado Novo; e, em seguida, com a destituição de

Vargas, em 1945. Em continuidade podemos citar ainda a resolução da problemática

acerca da posse de Juscelino Kubitschek; o conturbado período durante a renúncia de

Jânio Quadros; até João Goulart e a emergência de uma das crises mais profundas já

vividas pela sociedade brasileira. Sem dúvida, a mais significativa atuação dos militares

no Brasil foi a presença no poder durante as décadas de ditadura. Além de, ao seu fim,

conseguirem garantir o controle sobre a transição do regime autoritário para a

democracia.

Diversos autores propuseram estudos sobre as instituições militares, que, sem

dúvida, alteraram qualitativamente as pesquisas e os debates acerca do alcance das

análises sobre o tema. De certa forma, as propostas apresentadas a seguir, em maior ou

menor escala, auxiliaram a trilhar o caminho da presente pesquisa.

Dentre os autores que se dedicaram a propor concepções para o estudo dos

militares brasileiros, encontra-se Edmundo Campos Coelho. Na obra Em Busca de

Identidade (1976), o autor: (1) expõe introdutoriamente um balanço da literatura na

década de 1970; (2) afirma a existência de duas correntes de estudos sobre militares, a

Page 21: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

7

instrumental e a organizacional; e (3) demonstra sua opção de abordagem pela estrutura

organizacional das FA.

De maneira geral, Campos Coelho identificou na concepção instrumental duas

premissas básicas. A primeira seria a suposição de um elevado grau de abertura do

Exército aos influxos da sociedade civil. Porém, tal postura, levada a extremos, nega a

especificidade da organização militar. A segunda, como conseqüência da premissa

anterior, seria a ausência de autonomia das Forças Armadas para formular propostas

próprias, uma demonstração de falta de interesses e objetivos distintos dos grupos e

classes. Desta forma, para Campos Coelho, a concepção instrumental associa as ações

militares aos estímulos encontrados fora dos limites da corporação:

O que as análises correntes simplesmente ignoram é todo um processo evolutivo, de transformações quantitativas e qualitativas, com o que se abstrai o Exército do seu tempo histórico particular. E estas transformações têm a ver de perto com as diferentes posições do Exército ao longo das escalas de ‘abertura’ e ‘autonomia’ em épocas distintas (COELHO,1976, p. 26).

Campos Coelho, ao questionar o valor explicativo defendido pelas premissas

da concepção instrumental, sugere três processos conexos, que marcam historicamente a

evolução do Exército e que não estariam sendo contemplados: (1) o peso crescente dos

interesses e necessidades próprias da organização como fatores de seu comportamento

político; (2) a aquisição de graus elevados de autonomia em relação ao sistema societal;

e (3) um fechamento progressivo aos influxos da sociedade civil.

Desta forma, o autor defende o enfoque organizacional, que, apesar da

variedade de orientações teóricas e metodológicas cobertas, consiste em utilizar a

organização militar como unidade de análise. O autor se propõe a considerar a

perspectiva histórica como forma de viabilizar a compreensão dos diferentes momentos

pelos quais passam as organizações militares. No entanto, sua opção pela concepção

organizacional implica, na obra mencionada, uma visão que se aproxima da

autossuficiência funcional da instituição estudada, expressa na ideia de que os militares

podem ser analisados como parte de uma totalidade.

A obra Os militares na política (1975), do brasilianista Alfred Stepan,

dedicou-se a observar a presença dos militares na política brasileira durante o período

de 1945-1968. O enfoque de análise mais abrangente do autor é considerar os militares

como um subsistema do sistema político global (STEPAN, 1975, p. 9). Diante da

delimitação feita por Stepan, a obra possui como objetivo pesquisar as condições

Page 22: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

8

políticas e econômicas que sustentaram e/ou corroeram diferentes padrões de

relacionamento entre civis e militares no Brasil.

A pesquisa de Stepan tornou-se referência para inúmeros trabalhos ao propor

esclarecer a relação existente entre civis e militares no Brasil até 1964 e as mudanças

ocorridas no país e nas instituições militares que fizeram de 1964 uma intervenção

militar sui generis na história nacional.

Em conclusão, Stepan propõe um novo modelo para compreender o padrão das

relações entre civis e militares no Brasil: o “poder moderador”9. O autor afirma que o

padrão moderador foi mantido pelas FA brasileiras até 1964, quando os militares se

dispunham a interferir na vida política, muitas vezes acima do Executivo, sem, contudo,

assumir o poder de fato (STEPAN, 1875, p. 50). Porém, o golpe de 1964, segundo

Stepan, representou uma mudança no padrão tradicional de relacionamento entre civis e

militares no Brasil. A ruptura mais nítida com o “poder moderador” em 1964 realizou-

se na própria ocupação do poder político por militares e sua posterior continuidade.

Entretanto, Stepan relaciona a mudança no papel dos militares a alterações de ordem

nacional: a descrença de grupos políticos no regime; a crise econômica; a crescente

mobilização social; e a emergência e politização de grupos anteriormente

marginalizados (STEPAN, 1975, p. 9 e 103).

Desta forma, durante um contexto histórico extremado, os militares se

dispunham a ser não mais os moderadores, mas os dirigentes da política: “A crença

generalizada na crise iminente desempenhou um papel decisivo na erosão dos limites do

ativismo militar que até agora haviam impedido que os militares assumissem o controle

do governo” (STEPAN, 1975, p. 101).

A obra Os partidos militares no Brasil (1980), organizada por Alain Rouquié,

traz uma compilação de artigos, escritos por diferentes especialistas que, associados ao

Centro de Estudos e de Pesquisas Internacionais, se propunham a refletir sobre o tema

das FA como forças políticas.

O título da obra – Os partidos militares no Brasil – vislumbra, inicialmente,

uma incoerência com a própria determinação constitucional das FA brasileiras10. Mas,

9 O termo “poder moderador” possui um sentido específico para o caso brasileiro, visto que, durante a vigência da Monarquia, o imperador possuía a faculdade constitucional de intervir nos conflitos. Desta forma, o modelo descrito ao longo da obra de Stepan indica o poder militar de moderar o sistema político em momentos de crise (STEPAN, 1975, p. 52). 10 Ao militar é proibida a filiação a partidos políticos e a sindicalização. Ver Constituição de 1988, art. 142.

Page 23: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

9

segundo Rouquié, trata-se apenas de uma metáfora na qual pretende assinalar a

perspectiva escolhida:

[...] as Forças Armadas podem ser forças políticas que desempenham, por

outros meios, as mesmas funções elementares que os partidos, e sobretudo que conhecem em seu seio – tanto quanto os partidos, mas segundo outra lógica – processos de deliberação, de tomada de decisão, e até mesmo de união e articulação sociais (ROUQUIÉ, 1980, p. 13. Grifos no original).

Além de destacar o trânsito das FA no terreno das articulações e pressões

políticas, a obra de Rouquié (1980) se propõe a se distanciar da concepção de análise

instrumental e afirma que as segmentações entre militares – “os partidos” – fazem parte

do cotidiano das FA. “Se o Exército Brasileiro mantém elevado nível de coesão

institucional, nem por isso é menos disputado nas lutas civis e, como tal, penetrado e

politicamente fracionado pelos interesses em jogo” (ROUQUIÉ, 1980, p. 17).

Os artigos que compõem a obra de Rouquié cobrem um recorte cronológico

que se estende do primeiro ano da República até o governo Geisel. Os temas também se

apresentam de forma variada, como, por exemplo, as disputas pela modernização do

Exército através da influência estrangeira e os conflitos militares desencadeados pelas

decisões políticas durante a presidência de Geisel. De maneira geral, além de

considerarem as FA como forças políticas, todos os artigos fomentam a interação da

instituição militar com as instâncias civis e os conflitos gestados dentro da própria

corporação, que, mesmo se processando no meio militar, não são necessariamente

originários dele ou estão restritos a ele.

O contexto de produção das obras comentadas acima é marcado historicamente

pelo regime militar, que acumula a censura e os limites de acesso a fontes como

principais problemáticas para a produção dos estudos históricos. Neste contexto, uma

boa parte da literatura produzida sobre os militares brasileiros estava sendo organizada

no exterior, seja por brasileiros ou estrangeiros.

Em contraposição, as obras a seguir datam dos anos posteriores à década de

1990. Neste sentido, a literatura esteve marcada pela consolidação da democracia, que

nos estudos sobre militares facilitou o acesso a fontes e a divulgação do material. Outro

fator que contribuiu para o aprofundamento dos estudos sobre as instituições militares

foi a consolidação de programas de pós-graduação e de setores de pesquisa e produção

acadêmica a partir dos anos 198011.

11 Por exemplo, o Núcleo de Estudos Estratégicos (NEE) da UNICAMP criado em 1985.

Page 24: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

10

Ao selecionar o livro de José Murilo de Carvalho, Forças Armadas e política

no Brasil (2005), nos deparamos com algumas dificuldades. A primeira associa-se a

variedade dos momentos de produção dos artigos compilados na obra, estes datam

desde a década de 1970 até o ano de 2004. A segunda é a multiplicidade presente na

obra referente à: temática, concepção de análise e/ou recorte cronológico. Todavia, não

optamos por destacar a variedade dos artigos compilados na obra, mas sim a relevância

que o autor aponta para os estudos sobre os militares, uma de suas maiores

contribuições.

Diante da importância e da atualidade dos estudos sobre os militares, Carvalho

indica que duas paredes precisam ser transpostas: (1) a resistência ao estudo dos

militares, seja de caráter político, social ou acadêmico; e (2) a falta de conhecimento

acerca dos militares e suas instituições. Desta forma, segundo o autor, o caminho a ser

traçado após o regime militar depende, em grande medida, de tornar a discussão militar

parte do debate democrático geral.

Atento à produção acadêmica, Carvalho comenta o crescimento dos estudos

sobre os militares e a diferença entre as primeiras pesquisas, que possuíam viés quase

exclusivamente político, para as tendências mais atuais, onde predominam abordagens

de história social e cultural. Embora o autor demonstre aceitação em relação às novas

propostas sobre os estudos dos militares brasileiros, ele afirma que a dimensão política

ainda se justifica. Pois, mesmo diante de uma nova geração de militares e de uma nova

conjuntura nacional e internacional, “[...] ainda há feridas abertas resultantes do período

dos governos militares” (CARVALHO, 2005, p. 196).

Por fim, analisaremos a obra Nova História Militar Brasileira (2004),

organizada por Celso Castro, Vitor Izecksohn e Hendrik Kraay. Sua formulação cumpre

principalmente duas propostas: (1) enfatizar o amplo papel desempenhado pelas

instituições militares na sociedade brasileira; e (2) apresentar o que se convencionou

chamar de “nova história militar”. Para garantir o alcance de suas principais propostas,

os organizadores da obra compilaram diversas pesquisas recentes sobre as Forças

Armadas.

Segundo os autores de Nova História Militar Brasileira, somente a partir da

década de 1890 emergiu um gênero identificável de história militar brasileira. Entre as

características deste gênero inicial estavam o predomínio de escritores militares, o apoio

institucional do Exército e a ênfase em aspectos românticos e patrióticos.

Page 25: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

11

A chamada “nova história militar” se propõe a considerar a história militar

como parte da história nacional e compreende que os militares brasileiros não se

encontram isolados da sociedade, embora possuam suas especificidades e uma relativa

autonomia. “Não se pretende reduzir a compreensão da instituição militar a fenômenos

sociais de outra ordem, que a determinariam, e sim prestar grande atenção à interação

entre Forças Armadas e sociedade” (CASTRO, IZECKSOHN, KRAAY, 2004, p. 12).

A obra de Castro, Izecksohn e Kraay se propõe a expor novos campos de

reflexão acerca da história militar, principalmente novos temas, com destaque para o

cultural, o social e o cotidiano. Os artigos apresentados na obra são pesquisas destinadas

a origem social; vínculos de sociabilidade; sistemas de progressão e punição; guerras;

atuação no processo de unificação territorial; revoltas; e questões de gênero. Desta

forma, o estudo da relação entre Forças Armadas e os processos políticos não se

destaca, com exceção do artigo de Renato Lemos acerca do poder Judiciário e poder

militar entre 1964-69.

Se, a princípio, a obra Nova História Militar Brasileira destoa das obras

anteriores, veremos que não tanto quanto imaginávamos. A obra nos remete à afirmação

de Jacques Le Goff (1988) sobre a renovação histórica. Segundo Le Goff, esta

renovação se realiza através da ampliação no campo das análises históricas, seja ela de

forma temática, teórica e/ou metodológica. A obra Nova História Militar Brasileira,

no âmbito dos estudos militares, reafirma a necessidade de observação acerca da

interação das Forças Armadas com a sociedade. Embora não priorize a expressão das

Forças Armadas na dinâmica política nacional, expõe, de variados ângulos, as

possibilidades de se compreender a história militar em associação contínua com a

história nacional.

As obras comentadas acima não esgotam a temática dos estudos sobre os

militares brasileiros, nem mesmo constroem um caminho linear a ser seguido. Mas, vale

lembrar que, o estudo da expressão e da interação sócio-política do setor de organização

e difusão de conhecimento e cultura das Forças Armadas não possui uma literatura

específica. Desta forma, para o desenvolvimento de nossa pesquisa, nos reportamos ao

auxílio das obras comentadas e buscamos traçar ao longo de nossa análise algumas

concepções gerais: (1) os militares não formam um grupo homogêneo; (2) os militares

se associam ou se distanciam entre si e com civis para defenderem determinados

interesses; e (3) a instituição militar pode ser foco de análise sem que sua interação com

o nacional seja descartada.

Page 26: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

12

Desta forma, concluímos que os militares, por sua composição e pela natureza

de sua função, estão em constante interação com as chamadas questões civis. Porém, no

caso militar, a compreensão das tensões nacionais é “refratada pelo prisma institucional

militar” (ROUQUIÉ, 1980, p. 20).

Neste sentido, os estudos dos militares devem estar em plena consonância com

a realidade do regime político vigente e com o grau de controle e/ou autonomia das

Forças Armadas. Porém, é preciso compreender que o controle civil, que atualmente

possui como seu principal veículo o Ministério da Defesa, não se resume apenas à

subordinação militar às instâncias governamentais. Portanto, algumas das tarefas acerca

das relações civis-militares hoje, em consonância com um contexto de consolidação do

regime democrático, devem ser endereçadas à forma, à função e ao desempenho dos

mecanismos da própria corporação.

A proposta desenvolvida ao longo da pesquisa está baseada na análise da

expressão política de uma parcela do Exército através do estudo de um representante do

setor editorial. O setor editorial do Exército se organiza segundo preceitos da hierarquia

militar; dos setores educacionais da força; das necessidades profissionais; e de

conhecimentos gerais. Porém, este referencial institucional, que também se propõe a

pensar a sociedade e o papel a ser desempenhado pelo Exército, possui limites

orçamentários, constitucionais e de estratégias governamentais.

1.2. Entrevistas, discursos e literatura institucional: possibilidades para os estudos

sobre as Forças Armadas

De forma complementar ao debate historiográfico anterior, analisaremos a

seguir obras que se destacaram no campo acadêmico por buscarem na própria fala ou na

escrita de militares sua fonte histórica ou seu objeto de pesquisa. Tais obras

desencadearam o surgimento de novas perspectivas analíticas para a compreensão dos

militares. Embora não exista uma unidade teórica e/ou metodológica entre elas, todas

partem de uma mesma premissa, a de que é relevante a análise da percepção dos

próprios militares sobre os mais diversos assuntos.

Na década de 1990, os trabalhos realizados no Centro de Pesquisa e

Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) por Maria Celina

Page 27: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

13

D`Araújo, Gláucio Ary Dillon Soares e Celso Castro (1994a, 1994b, 1994c, 1995 e

1997)12 estabeleceram novos parâmetros de análise sobre o golpe de 1964 e o regime

militar ao utilizarem um novo recurso: a entrevista. As obras publicadas pelos

pesquisadores do CPDOC são baseadas ou compostas por parte do amplo material

obtido através de uma série de depoimentos concedidos por militares. Os depoentes, em

sua grande maioria, não desempenharam papel de liderança nos preparativos do golpe,

mas foram fundamentais na implementação e manutenção do regime.

Analisando a publicação de uma trilogia (1994a, 1994b e 1995) sobre o golpe

de 1964 e a ditadura, observamos a preocupação dos pesquisadores do CPDOC com o

desafio de compor um projeto de memória militar, dando ênfase na percepção dos

militares sobre a atuação política de sua corporação no Brasil de 1964-1985. Desta

forma, a pesquisa destaca de maneira intencional os depoimentos dos próprios militares

como parte da explicação da ascensão e queda do poder militar.

Se isso acarreta problemas metodológicos que não podem ser desconsiderados, por outro lado tem ficado evidente, pelas publicações anteriores, que o procedimento tem tido resultados positivos e tem contribuído para novas reflexões (D`ARAUJO, CASTRO e SOARES, 1995, p.8).

A proposta inovadora de D`Araujo, Castro e Soares de entrevistar oficiais que

atuaram no período de ditadura militar produziu um enorme corpo documental acerca da

“visão militar” sobre o regime autoritário, o que possibilitou a exposição da avaliação

dos militares entrevistados sobre sua experiência na política e os principais problemas

enfrentados pela instituição nesse período. Além das já citadas contribuições, as

pesquisas desenvolvidas por D`Araujo, Castro e Soares conseguiram, pela primeira vez,

elucidar parte importante das estruturas de comando, decisão e repressão, formuladas

pelos militares durante o regime de exceção.

A preocupação com o posicionamento dos militares após o regime autoritário

também foi tema da obra do jornalista Hélio Contreiras (1998). A proposta de

entrevistar militares sobre o período em que estiveram à frente do poder político já

estava consolidada pelas pesquisas desenvolvidas no CPDOC. Porém, a obra de

Contreiras nos serve mais como demonstração de que os militares, diferentemente do

que muitos imaginavam, estão dispostos a falar. Muitos militares veem a necessidade de

se pronunciarem para que possam angariar a compreensão da sociedade, visto que as

12 A última obra citada, Ernesto Geisel (1997), é apenas de autoria de Celso Castro e Maria Celina D`Araújo.

Page 28: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

14

Forças Armadas, e especialmente o Exército, ficaram como vilãs do período histórico de

1964-1985.

Embora o livro de Contreiras não evidencie novidades para os estudiosos do

assunto, ele expões o balanço histórico que alguns militares fizeram sobre o regime

autoritário. A organização do livro demonstra algumas deficiências, entre elas a falta de

esclarecimentos sobre a escolha dos militares e sobre a edição do material, além da

ausência das perguntas realizadas durante as entrevistas. Mesmo assim, os depoimentos

coletados por Contreiras nos indicam que os militares entrevistados possuíam críticas ao

regime militar, apontando a existência de “desvios” e “excessos” cometidos durante a

ditadura, embora não admitam participação nos mesmos, e apresentem a opinião de que

o movimento de 1964 sofreu “distorções” e se prolongou no poder.

Ainda segundo a perspectiva de construção da memória dos militares, Aline

Prado Atassio desenvolve a dissertação A batalha pela memória: os militares e o golpe

de 1964 (2007). A pesquisa de Atassio analisa a memória dos militares sobre o golpe de

1964 através da publicação Coleção História Oral do Exército. 1964: 31 de março –

O Movimento Revolucionário e sua História (2003), editada pela BIBLIEx.

Atassio afirma que esta obra tenta recompor a relação passado-presente através

da memória e é utilizada como tática de sobrevivência emocional do grupo, desgastado

com os inúmeros ataques sofridos, dado que a versão vencedora da “batalha pela

memória” seria a daquele grupo que perdeu o combate político em 1964. Outra

importante função da obra publicada pela BIBLIEx é estabelecer “homogeneidade” e

“virtudes” do movimento de 1964 para a atual geração de militares.

Em conclusão, Atassio afirma que os militares, enquanto grupo social,

procuraram, através das entrevistas, legitimar a intervenção da qual fizeram parte, além

de garantir o lugar da memória institucional sobre o evento, em resposta às versões

predominantes na literatura sobre o tema.

Saindo do campo das pesquisas sobre memória, a tese de Amanda Pinheiro

Mancuso Entre terra e mar: história e política na narrativa oficial das forças armadas

brasileiras – os casos do Exército e da Marinha (2007) se destina à análise da narrativa

histórica oficial da Marinha e do Exército. Além disso, a tese se dedica a pesquisar as

construções históricas destas corporações, expressas em suas publicações oficiais

História do Exército Brasileiro e História Naval Brasileira.

Embasada no princípio de que o discurso histórico permite compreender

aspectos da auto-imagem militar, Mancuso propõe aproximar-se de questões

Page 29: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

15

concernentes à identidade militar. A tese de Mancuso compreende, através da

abordagem discursiva, a imagem que as instituições – Exército e Marinha – produzem

ao longo do tempo sobre si mesmas e que apresentam aos outros, tendo em vista a

forma como querem ser percebida por eles.

Desta forma, Mancuso demonstra que o estudo da história oficial constitui um

aspecto importante para a compreensão dos militares, pois permite compreender a

maneira como esses atores concebem sua inserção no contexto nacional: “[....] a

compreensão militar dos problemas nacionais está diretamente relacionada à sua forma

de pensar a história do Brasil e, através dela, sua inserção” (MANCUSO, 2007, p. 262).

A leitura da obra de Mancuso nos faz observar uma nítida aproximação com a

abordagem realizada no decorrer desta pesquisa sobre a revista A Defesa Nacional.

Propomos, através do discurso veiculado pelo periódico, compreender a concepção dos

militares sobre sua existência e sua inserção na sociedade, visto que demarcam posições

e disputam espaço com os demais grupos sociais. Desta forma, para analisar o discurso

como prática social nos reportamos, assim como Mancuso, ao instrumental analítico do

campo de conhecimento da análise de discurso.

No Brasil, o início das pesquisas sobre a análise de discurso tem sua origem no

conjunto de postulados teóricos e metodológicos desenvolvidos pelo filósofo francês

Michel Pêcheux e por seu grupo de pesquisa13. A partir de sua introdução no Brasil, a

análise de discurso foi se consolidando e se tornou progressivamente uma disciplina

bastante respeitada no universo acadêmico, com destaque para o cenário lingüístico.

Entretanto, com o aprofundamento dos estudos, a análise de discurso brasileira ficou

cada vez mais distante das inflexões epistemológicas de sua origem francesa. Assim

sendo, a partir dos anos 1980 o que se observa no cenário francês da análise de discurso

é sua progressiva gramaticalização e um significativo distanciamento em relação à

dimensão histórica do discurso. Enquanto, no Brasil, em contrapartida, existe uma

tendência a conservar a concepção histórica, especialmente política dos discursos.

Nesse contexto, a análise de discurso envolve a reflexão acerca das condições

de produção dos textos analisados, as quais se situam em um contexto histórico, no qual

a linguagem deve ser apreendida como uma atividade de prática social. Esse exercício

analítico, o discurso como prática social, só é possível devido às características que

formam este tipo de fonte, na medida em que é um meio de ação sobre o mundo, sobre

13 Para alguns estudiosos do assunto, a fundação da disciplina Análise de Discurso está associada à obra que Michel Pêcheux lança em 1969: Análise Automática do Discurso.

Page 30: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

16

os outros, e é também um meio de representação (ORLANDI, 1996 e 2001; e

PIOVEZANI, 2008)

Portanto, o discurso é em si uma rica fonte de análise sobre a vida social e

política, mas sua importância cresce ainda mais se observarmos os efeitos e funções que

são construídos a partir dele. Neste sentido, a produção de maior relevância acerca do

discurso militar realizada no Brasil pertence a José Luiz Fiorin (1988) e a Freda

Indursky (1997).

A obra O regime de 1964: discurso e ideologia (1988), de José Luiz Fiorin,

está circunscrita à análise do discurso do marechal Castello Branco, que o autor elegeu

como representante dos que ocuparam o núcleo do poder em 1964. A proposta do

estudo é demonstrar as lacunas e os fundamentos de legitimação durante a organização

do discurso “revolucionário”, especialmente ao apontar que o discurso tenta fazer crer

que formas aparentes/parciais do real constituíam a realidade total.

Segundo Fiorin, os discursos de Castello Branco estruturam uma interpretação

dos fatos que estabelece funções sociais para os grupos envolvidos no episódio de 1964.

Entre as determinações contidas nos discursos de Castello Branco encontramos: (1) as

Forças Armadas como sujeito da ação e instrumento para alcance dos objetivos de

ordem/controle do caos; (2) o povo como destinador do poder das FA; e (3) Goulart, o

sujeito a ser combatido. Desta forma, o discurso busca fundar um “saber-verdadeiro”

(FIORIN, 1988, p. 104), a fim de que ele possa ser comunicado e aceito. O argumento

do autor é que o discurso legitimador de 1964 é construído em torno de uma imposição

discursiva, que determina papéis para os atores sociais e organiza as prioridades

nacionais baseadas nos objetivos dos que produzem o discurso.

O reforço às pesquisas sobre os militares através da análise de discurso deu-se

com a publicação da obra A fala dos quartéis e as outras vozes (1997), de Freda

Indursky. O livro de Indursky, resultado de sua tese de doutorado, detém-se na

compreensão dos discursos presidenciais de 1964-1984 e das relações que se

estabelecem em sua produção.

De maneira geral, Indursky estrutura a compreensão dos discursos dos

presidentes militares com base na conjuntura autoritária e nos objetivos a serem

alcançados através deles. Desta forma, sua análise problematiza: (1) a delimitação sobre

o que pode/não pode ser dito; (2) a naturalização das propostas em curso; e (3) a

homogeneidade imaginária do discurso autoritário.

Page 31: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

17

Diante dos trabalhos produzidos sobre os militares a partir da análise de

discurso, podemos concluir que a mais evidente das contribuições está na percepção

desse novo objeto – o discurso – como um processo, indagando sobre as condições de

sua produção, a partir do pressuposto de que o discurso é determinado pelo tecido

histórico-social que o constitui. No sentido de procurar compreender a língua “fazendo

sentido” como trabalho social (ORLANDI, 1996).

As obras apresentadas acima, seja no campo da construção da memória seja no

campo da análise de discurso, fizeram emergir novas possibilidades para a compreensão

dos militares na história nacional. Entre seus principais avanços, os estudos comentados

trabalham fundamentalmente na consolidação da concepção dos militares diante da

realidade social e política.

Neste sentido, nos deparamos com um campo de pesquisa fundamental para a

formação militar e que se encontra estranho à maior parte dos estudos sobre as FA.

Estamos nos referindo aos instrumentos que administram, produzem e divulgam

conhecimento e cultura dentro das FA, partindo do pressuposto de que as instituições

militares não atuam apenas na direção da guerra, mas, também de maneira sistemática,

através de processos de formação militar e, principalmente, pela produção e consumo de

conhecimento a partir desses espaços de formação.

1.3. Organização cultural e intelectual do Exército: uma breve apresentação

Os pressupostos das pesquisas sobre a análise da concepção militar

estabeleceram novos paradigmas para os estudos sobre as Forças Armadas,

principalmente a compreensão de que os militares mantêm em constante atividade a

produção de conhecimento sobre si e sobre os outros. Desta forma, iniciaremos a análise

de nosso objeto de estudo – o discurso contido na revista A Defesa Nacional – através

da inserção do periódico no contexto mais amplo de produção e difusão de

conhecimento e cultura do Exército brasileiro.

Primeiramente nos detemos na exposição dos organismos que centralizam e

coordenam a administração do sistema de ensino e cultura do Exército. Em seguida,

nosso foco de análise será voltado para a Biblioteca do Exército Editora (BIBLIEx),

principal responsável pela difusão de material impresso produzido pelo Exército.

Page 32: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

18

Os estabelecimentos do Exército destinados a questões culturais e intelectuais

possuem uma organização centralizada bastante recente. Embora o Exército, desde

1792, já contasse com uma escola formalmente organizada, a Real Academia de

Artilharia Fortificação e Desenho, somente em 1915 surge o primeiro órgão específico

para sistematizar o ensino e a produção de conhecimento na instituição. Surge então a

Inspetoria do Ensino Militar (1915), órgão que foi substituído sucessivamente pela

Inspetoria Geral de Ensino do Exército (1937), pela Diretoria de Ensino do Exército

(1943), pela Diretoria Geral de Ensino (1952) e pelo Departamento de Ensino e

Pesquisa (1970).

Criado em 2008, o Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx),

é herdeiro dos órgãos citados anteriormente. A proposta do DECEx é organizar e

administrar de maneira centralizada as atividades de ensino, pesquisa e cultura no

âmbito do Exército. Entre os encargos sob responsabilidade do DECEx14 podemos citar:

- administrar a execução das políticas de ensino e pesquisa e promover a evolução e o

aperfeiçoamento dessas;

- cooperar na formulação e no desenvolvimento da doutrina militar terrestre;

- distribuir os recursos necessários ao ensino e à pesquisa;

- homologar métodos, processos, estudos e manuais referentes à sua área de atuação;

- estabelecer e manter contatos com a comunidade nacional de ensino e pesquisa; e

- participar das ações gerais da Força Terrestre do Exército Brasileiro.

As inúmeras atribuições e a preocupação com os assuntos culturais e

intelectuais no Exército geraram outros órgãos subordinados ao DECEx, porém com

funções mais específicas. Entre eles encontramos: a Diretoria de Ensino Preparatório e

Assistencial (DEPA); a Diretoria de Especialização e Extensão (DEE); a Diretoria de

Formação e Aperfeiçoamento (DFA); a Diretoria de Pesquisa e Estudo de Pessoal

(DPEP); e a Diretoria do Patrimônio Histórico e Cultural do Exército (DPHCEx).

A DEPA, criada em 1973, atualmente é responsável pelos Colégios Militares

espalhados pelo país e pela Escola Preparatória de Cadetes do Exército (EsPCEx). Os

Colégios Militares oferecem educação básica, nos níveis do ensino fundamental e

médio, e possuem caráter preparatório para a profissão militar ou assistencial para os

que, aprovados em processo seletivo, não quiserem seguir carreira na profissão das

armas.

14 Informações retiradas de http://www.decex.ensino.eb.br/ - Consultado em 10 de março de 2010.

Page 33: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

19

A criação da DEE, em 1970, pretendia acompanhar a evolução/modernização

das questões militares. Mantendo sua missão originária, hoje a DEE é responsável pelos

cursos de especialização e extensão para oficiais e praças e, também, pelos cursos de

formação de oficiais do quadro complementar, de aperfeiçoamento de sargentos e de

saúde15.

A DFA é o órgão responsável, principalmente, pelas escolas de formação e

aperfeiçoamento dos oficiais superiores do Exército. Encontramos sob sua

responsabilidade os Centros de Preparação de Oficiais da Reserva (CPORs); a Escola de

Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME); a Escola de Aperfeiçoamento de

Oficiais (EsAO); e a Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN)16. A DFA também

está encarregada do aperfeiçoamento da doutrina de emprego das FA através do

desenvolvimento e/ou da participação em pesquisas.

Mais recentemente, foi criada a DPEP (2002); com a destinação de servir de

centro referencial em treinamento físico militar, medicina esportiva e desporto. Esta

diretoria também atua na seleção, avaliação e capacitação de pessoal.

A última das diretorias subordinadas ao DECEx é a DPHCEx. Criada em 2008,

a DPHCEX substituiu a antiga Diretoria de Assuntos Culturais (DAC), criada em 1990.

Sem grandes mudanças, a DPHCEx atua de forma técnico-normativa, sendo

responsável pelo planejamento, coordenação e fiscalização das atividades culturais e

intelectuais do Exército Brasileiro; pela preservação do patrimônio histórico e artístico

do Exército; e pela divulgação da história militar. Desta forma, a DPHCEx deve servir

como fonte de estímulo ao estudo e à pesquisa de assuntos nacionais. Abaixo,

observamos os encargos da DPHCEx e, em seguida, na Figura 1, o organograma

referente a sua estrutura institucional.

- supervisionar as atividades e eventos do Sistema Cultural do Exército (SisCEx);

- propor normas para a preservação, utilização e difusão do patrimônio histórico e

artístico cultural de interesse do Exército;

- controlar e coordenar as atividades referentes à catalogação e à difusão dos bens

materiais que compõem o acervo cultural do Exército;

15Estão sob responsabilidade da DEE as seguintes escolas: Escola de Saúde do Exército/EsSE, Escola de Material Bélico/EsMB, Escola de Instrução Especializada/ EsIE, Escola de Comunicações/ EsCOM, Escola de Artilharia de Costa e Antiaérea/ EsACosAAe, Escola de Administração do Exército/EsAEx. 16Também estão sob responsabilidade da DFA a Escola de Sargentos das Armas e a Escola de Aperfeiçoamento de Sargentos.

Page 34: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

20

- cooperar com o sistema de ensino, na busca da elevação do nível técnico, profissional

e cultural dos quadros;

- elaborar e supervisionar o plano de atividades culturais;

- propor convênios e parcerias com a finalidade de melhor aproveitamento, conservação

e funcionamento dos museus, bibliotecas e sítios históricos sob jurisdição do Exército;

- ligar-se ao Instituto de Geografia e História Militar do Brasil (IGHMB) e à Academia

de História Militar Terrestre do Brasil (AHMTB);

- ligar-se com o Ministério da Cultura, por intermédio do Instituto do Patrimônio

Histórico, Cultural e Artístico Nacional (IPHAN) e do Departamento de Museus

(DEMU), e com outros órgãos públicos para tratar de assuntos culturais;

- planejar a distribuição dos recursos financeiros destinados a projetos e atividades de

interesse cultural do Exército; e

- controlar e executar simpósios ou seminários sobre assuntos culturais, com vistas ao

fortalecimento do sistema cultural do Exército.

Figura 1. Organograma institucional da DPHCEx

Conforme descrito, figura entre as atribuições da DPHCEx a supervisão do

Sistema Cultural do Exército (SisCEx). De acordo com a Diretriz Estratégica do

Sistema Cultural do Exército, Portaria nº 615, de 29 de outubro de 2002, o SisCEx se

enquadra como um subsistema do Sistema de Ensino. Esta diretriz estabelece como

Page 35: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

21

orientação geral, atuação do SisCEx em três estágios complementares: (1) a valorização

da cultura e da história militar; (2) a preservação e a divulgação do patrimônio histórico

e educacional militar, coexistindo com um processo contínuo de desenvolvimento e

aperfeiçoamento da mentalidade coerente com a realidade social do país e com a

evolução da humanidade; e (3) a busca pela harmonia entre entidades militares e civis,

favorecendo os anseios do povo brasileiro (Diretriz Estratégica do Sistema Cultural do

Exército, 2002).

A Diretriz Estratégica do Sistema Cultural do Exército, ao criar o SisCEx

estabeleceu a sua estrutura básica, reiterando e ajustando, na verdade, um sistema que

há anos vinha funcionando de forma menos integrada. O SisCEx hoje é constituído pela

DPHCEx e suas organizações diretamente subordinadas; pelo Centro de Documentação

do Exército; pelos Comandos Militares de Área (CM)17; pelas Grandes Unidades; e

pelas Regiões Militares (RM)18. O objetivo desta nova e ampla estrutura é alcançar

melhor capacidade de difusão da cultura e do conhecimento militar em todo o país,

conforme os objetivos da Política Cultural do Exército.

Desta forma, observamos que o SisCEx possui uma dupla função no Exército.

Além de ser o depositário do patrimônio material e imaterial da Força, também tem

como função oferecer condições para a conservação e difusão deste material. O

patrimônio histórico material é caracterizado pelos objetos, construções, sítios

históricos, monumentos e bens artísticos preservados ao longo da história da Força,

enquanto o patrimônio histórico imaterial é traduzido pelos costumes e tradições, pelas

crenças e valores e pelas ações históricas e cotidianas do Exército.

Todos os comandos, em todos os níveis, integram o SisCEx, o que lhe garante

função capital para o fortalecimento da coesão dos integrantes do Exército através da

cultura e de conhecimentos gerais sobre a Força e o país. Além da reconhecida função

interna, o SisCEx também interage com órgãos civis, como o Ministério da Cultura e o

Ministério da Justiça. O principal objetivo da interação entre militares e civis através do

SisCEx é estimular o interesse da sociedade pela corporação e fazer com que a própria

sociedade valorize e reconheça que o patrimônio que o Exército possui pertence a

própria sociedade.

17 No Brasil, a atuação do Exército é organizada em Comandos Militares, conforme suas áreas de atuação. Os comandos atualmente são divididos em: Comando Militar da Amazônia; Comando Militar do Oeste; Comando Militar do Planalto; Comando Militar do Nordeste; Comando Militar do Leste; Comando Militar do Sudeste e Comando Militar do Sul. 18 As Regiões Militares (RM) fazem parte da estrutura organizacional do Exército e são subdivisões dos Comandos Militares. Subordinadas aos CM, o Brasil conta hoje com doze RM.

Page 36: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

22

A DPHCEx, que faz parte do SisCEx, executa suas atividades através das

Organizações Militares a ela diretamente subordinadas: o Arquivo Histórico do Exército

(AHEx); o Museu Histórico do Exército/Forte de Copacabana (MHEx/FC); o Museu

Militar Conde de Linhares; o Monumento Nacional aos Mortos da Segunda Guerra

Mundial (MNMSGM); e a BIBLIEx.

O Arquivo Histórico do Exército tem sua origem marcada pela criação do Real

Archivo Militar, em 1808, por D. João. O órgão criado por D. João tinha a incumbência

de conservar cartas gerais, particulares, geográficas, topográficas e marítimas do Brasil

e dos Domínios Ultramarinos. Em 8 de março de 1934, transformado em Organização

Militar, recebeu o nome de Arquivo do Exército; e, em 5 de setembro de 1986, passou

a ser Arquivo Histórico do Exército, sua atual denominação.

Ao longo do tempo, o AHEx foi incorporando riquíssimo acervo19 de

documentos oriundos das ações desenvolvidas pelo Exército, de antigos Ministérios e

de extintas OM, contando inclusive com material iconográfico. O AHEx tem sob sua

responsabilidade preservar todo o patrimônio que acumulou e, principalmente,

conservar e manter a memória institucional do Exército Brasileiro20.

A criação do Museu Histórico do Exército (MHEx-FC) nas dependências do

Forte de Copacabana, em 1987, também faz parte da proposta de preservação,

salvaguarda e disseminação da memória histórica do Exército Brasileiro, além da

atuação como um espaço cultural. O MHEx-FC atualmente é responsável pelo Museu

Militar Conde de Linhares, pelo Pantheon de Caxias e pela Casa Histórica de

Deodoro21.

Já o Monumento Nacional aos Mortos da Segunda Guerra Mundial, inaugurado

em 1957, associa, em homenagem aos brasileiros mortos na Segunda Guerra Mundial,

um monumento, um mausoléu e um museu. Todos destinados não só à homenagem aos

mortos, mas também à memória da participação do Brasil na guerra.

A BIBLIEx, último órgão subordinado ao DPHCEx que analisaremos, se

diferencia substancialmente dos demais. A BIBLIEx foi fundada em 1881 pelo

advogado e político Franklin Dória, também conhecido como Barão de Loreto, e então

Ministro da Guerra. O intuito de investir na formação dos militares não garantiu à

19 Podemos como parte do acervo: os Boletins do Exército; diversos periódicos, os Almanaques de Oficiais, documentos sobre a FEB, sobre a Missão Militar Francesa, sobre a Missão de Paz em Angola.... 20Informações retiradas do site do AHEx. 21 Informações retiradas de http://www.fortedecopacabana.com – Consultado em 10 de março de 2010.

Page 37: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

23

BIBLIEx uma vida muito longa, sendo fechada 44 anos após sua fundação22. Entretanto,

em 1937, durante a gestão do ministro da Guerra General Eurico Gaspar Dutra, a

BIBLIEx foi reaberta. Seu modelo original foi alterado, já que inicialmente a sua

organização se destinava à formação de uma biblioteca de consulta e, em 1937, foi

transformada por decreto também em editora. Atualmente acumula, além dessas

ocupações23, a organização de atividades culturais ligadas a premiações, exposições,

cursos, conferências e intercâmbios.

A BIBLIEx edita hoje livros e periódicos. Suas publicações são organizadas

internamente de acordo com o objetivo de consolidar um setor de produção voltado para

o modo de pensar militar, embora não limite o acesso de civis – pelo contrário, a

BIBLIEx afirma incessantemente a pretensão de atender a este público, enfatizando que

suas publicações despertam o interesse de diversos pesquisadores. Sem dúvida, a

função central do setor editorial da BIBLIEx é consolidar valores educacionais e

utilitários, além de aprimorar a competência e o nível acadêmico de seus componentes

nos mais diferentes assuntos profissionais e de conhecimentos gerais.

A BIBLIEx publica, atualmente, três revistas quadrimestrais: a Revista do

Exército Brasileiro, fundada em 1882 (MOTTA, 2001, p. 148); a revista A Defesa

Nacional, fundada em 1913; e a Revista Militar de Ciência e Tecnologia, fundada nos

anos 1980.

O Exército Brasileiro possui uma longa tradição de publicação de periódicos.

Hoje, além das revistas publicadas pela BIBLIEx, circulam na corporação outras

publicações. Entre elas a revista Verde Oliva e o Noticiário do Exército, ambas ligadas

diretamente ao Comandante do Exército e ao Centro de Comunicação Social do

Exército (CCOMSEx).

Através das obras de Umberto Peregrino (1967) e de Francisco de Paula

Cidade (1959) é possível recuperar uma parcela da história das publicações militares.

Ambos declaram a importância dos periódicos para a formação profissional do militar.

Assim como Peregrino (1967, p. 118), constatamos a presença de abundante material de

interesse geral nas publicações militares. A referência às obras de Peregrino e Paula

Cidade nos fez atentar para uma tradição que se fortaleceu nos primeiros anos da

22 A BIBLIEx foi fechada pelo General Setembrino de Carvalho, quando ministro da Guerra (1922-1926). 23 A BIBLIEx dispõe hoje de quatro salas de consultas com um acervo de cerca de sessenta e cinco mil volumes. Distribuídos entre as bibliotecas: Franklin Dória; Neomil Portella; Lobo Vianna e Valentim Benício. O setor editorial já publicou mais de setecentas obras.

Page 38: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

24

República e, ainda hoje, se mantêm: a existência de publicações dos centros de estudos

e das escolas militares (CIDADE, 1959, p. 276 e PEREGRINO, 1967, p. 118).

Por exemplo, em 1904 Paula Cidade cita que no Rio de Janeiro eram

publicadas a Revista Acadêmica Militar, na Escola Militar do Brasil (Praia Vermelha); a

revista Sentinela e a revista Via Lucis, ambas na Escola Preparatória e de Tática do

Realengo, e a revista Aspiração do Colégio Militar (CIDADE, 1959, p. 276-277)24.

Ainda hoje, é possível confirmar a manutenção desta tradição25, diretamente associada à

necessidade de difusão de conhecimento no Exército, através da existência de diversas

revistas. Podemos citar a revista Sangue Novo e o informativo O Alambari, ambos da

Academia Militar das Agulhas Negras; a Revista das Ciências Militares, da Escola de

Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME), que faz parte daquilo que a instituição

denomina Programa de Atualização dos Diplomados pela ECEME (PADECEME); e a

revista Giro do Horizonte, que pertence à Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais do

Exército Brasileiro (EsAO). Percebe-se, desta forma, que a publicação de periódicos no

Exército não está restrita à BIBLIEx26.

Embora nossa pesquisa se destine apenas à análise da revista A Defesa

Nacional, os periódicos militares, independentemente de sua vinculação originária,

centros de estudos militares, BIBLIEx ou Centro de Comunicação Social do Exército,

possuem um propósito, um grupo responsável por sua administração e podem ser

considerados mecanismos de difusão de conhecimento e projetos em potencial. Neste

momento, o que nos interessa é, justamente, essa inserção ampliada dos periódicos e sua

importância para os estudos sobre os militares, especialmente sobre a concepção

apresentada por segmentos militares acerca da corporação, do Estado e da sociedade.

Os periódicos militares servem também como instrumento de intercâmbio do

Exército brasileiro com os exércitos de outras nações e com algumas entidades civis,

inclusive universidades. Podem ser facilmente encontrados nas bibliotecas militares ou

através da rede de livrarias do Exército em todo o país, inclusive divulgadas e

disponibilizadas para a compra através da Internet (ADN, jan/abr de 2003, pp. 167-

170). 24 Paula Cidade faz uma síntese dos periódicos militares brasileiros nas duas primeiras décadas do século XX (1910-1920). 25 A grande diferença entre os periódicos existentes nas escolas militares hoje e os que foram comentados por CIDADE e PEREGRINO está calcada na organização incipiente dos periódicos, visto que, em grande medida, antigamente eles eram organizados, administrados, sustentados e distribuídas pelos próprios estudantes. Hoje, as revistas que citamos da ECEME, EsAO e da AMAN são de responsabilidade da própria instituição de ensino. 26 Citamos apenas algumas das instituições militares que possuem publicações próprias.

Page 39: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

25

As possibilidades de análise através da utilização de periódicos são muitas;

pois os periódicos possuem objetivos e um conteúdo rico em concepções doutrinárias,

estratégicas e interpretativas do plano nacional. Entre estas possibilidades podemos

citar: (1) os regulamentos e normas ao qual o periódico está subordinado; (2) o público

alvo e/ou setores de coleta de artigos; (3) as prioridades a serem exploradas; e (4) as

propostas e concepções existentes em seus artigos.

Os esclarecimentos sobre a composição e organização do Exército acerca da

produção, conservação e difusão de conhecimento e cultura, apontam para uma já

conhecida realidade, a de que a profissão militar pressupõe, antes de tudo,

conhecimento e compreensão sobre sua função, sobre a história, sobre a geografia, mas,

especialmente, sobre a realidade brasileira. “Estamos longe de nos darmos conta de que

o aparelho militar, ao contrário da sociedade civil que pouco sabe e pouco se ocupa das

questões militares, produz com constância um conhecimento renovado sobre a

sociedade” (OLIVEIRA, In: AGUIAR, 1986, p. XI).

Neste ponto, vale registrar que os estudos sobre os militares, especialmente os

que analisam as intervenções no cenário nacional, muitas vezes deixam de fora os

processos atuantes no campo onde, por excelência, se define a cultura e o pensamento

militar dominante. Vale dizer as diversas instituições de ensino, aperfeiçoamento e

pesquisa, onde efetivamente se desenvolvem as idéias que perpassam toda a

instituição27.

Nossa proposta é analisar através do material publicado pela revista ADN no

período de 1990-2004, passando pela identificação dos segmentos envolvidos, a

concepção que alguns grupos possuem da relação entre FA, sociedade e Estado, e em

especial sobre a trajetória e o legado do golpe de 1964 e da ditadura militar.

27 O artigo de João Roberto Martins Filho – “A educação dos golpistas: cultura militar, influência francesa e golpe de 1964” – é um exemplo de pesquisa que considerou os centros de formação militares. O autor propôs enfocar o processo que levou ao golpe de 1964 por um ângulo diferente, a partir da evolução da cultura militar e sua influência na unificação do campo golpista nas Forças Armadas. O autor baseou sua pesquisa na análise do conhecimento presente nas escolas de comando e estado-maior e em material de circulação interna (Mensário de Cultura Militar, Boletim de Cultura Militar, Cultura Militar

e Boletim de Informações).

Page 40: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

26

CAPÍTULO 2 – A revista A Defesa Nacional: uma trajetória

2.1. Revista A Defesa Nacional: uma visão geral

Ao longo deste capítulo, buscamos apresentar a trajetória da revista A Defesa

Nacional, abordando sua inserção histórica em associação ao seu arcabouço

organizacional. De maneira geral, fundamentamos a construção desta trajetória na

análise de parte de suas edições (1913-2004) e de obras que abordam o assunto

(CARVALHO, 2005; MCCANN, 2009; CAPELLA, 1985; NETO, 1980, 2001 e 2004).

Por se tratar de um longo recorte cronológico, pretendemos ser breves em

esclarecimentos sobre o contexto histórico, privilegiando questões burocráticas e

temáticas recorrentes na revista.

As características burocráticas do periódico serão de grande importância para a

compreensão dos mecanismos que organizam e regulam a publicação, além de

possibilitarem a obtenção de informações quantitativas e nominais acerca dos

indivíduos envolvidos. Tais informações podem servir para análises sobre origem

social, formação profissional, patente predominante, e, desta forma, para melhor

caracterização dos atores sociais28.

A análise será baseada em uma seleção de temas nacionais e recorrentes e, em

grande medida, na exposição do posicionamento apresentado nos artigos publicados. As

restrições definidas – temática e posicionamento – tornaram-se essenciais para a

continuidade da pesquisa, visto que encontramos nas páginas de A Defesa Nacional um

número exorbitante de assuntos.

Durante a construção da trajetória, tendo em vista o longo período analisado

(1913 - 2004), utilizamos como mecanismo facilitador da compreensão histórica do

periódico a segmentação de sua análise: (1) o contexto de formulação de idéias; (2) a

fundação da revista ADN, 1913; (3) os primeiros anos da revista ADN, 1913-1930; e

(4) a inserção institucional da revista ADN, este último subdividido em três recortes

temporais (1930-1960; 1960-1980; e 1981-2004). A composição da trajetória da revista

ADN segue prioritariamente os marcos do próprio periódico, porém sua interação com a

28 Esta proposta será melhor desenvolvida durante o recorte cronológico ao qual a pesquisa se destina prioritariamente, 1990-2004.

Page 41: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

27

realidade nacional demonstra que os acontecimentos políticos atuam significativamente

sobre a organização e dinamismo da revista29.

2.2. O contexto de formulação de ideias

A fundação da revista A Defesa Nacional está registrada em ata e ocorreu em

20 de setembro de 1913, sendo sua primeira edição datada de 10 de outubro do mesmo

ano. O grupo fundador da revista, composto principalmente por jovens tenentes do

Exército Brasileiro, revelou uma grande aproximação com os debates da época: a

existência de “sociedades avançadas”30; a subordinada e ameaçada inserção brasileira

no contexto internacional; e as expectativas promissoras de modernização. As

afirmações contidas no primeiro editorial da revista ADN demonstram alguns dos

fundamentos da publicação.

Se nos grandes povos, inteiramente construídos, a missão do Exército não sai geralmente do quadro de suas funções puramente militares, nas nacionalidades nascentes como a nossa, em que os elementos mais variados se fundem apressadamente para a formação de um povo, – o Exército – única força verdadeiramente organizada no seio de uma tumultuosa massa efervescente – vai às vezes um pouco além dos seus deveres profissionais para tornar-se, em dados momentos um fator decisivo de transformação política ou de estabilização social [...] Nós estamos profundamente convencidos que só se corrige o que se critica; de que criticar é um dever; e de que o progresso é obra de dissidentes. Esta revista foi fundada, por conseguinte, para exercer o direito, que todos temos, de julgar as coisas que nos afetam, segundo o nosso modo de ver, e de darmos a nossa opinião a respeito. Não queremos ser absolutamente, no seio de nossa classe, uma horda de insurrectos dispostos a endireitar o mundo a ferro e fogo – mas um bando de Cavaleiros da Idéia, que saiu a campo, armado, não de uma clava, mas de um argumento; não para cruzar ferros, mas para raciocinar; não para confundir, mas para convencer. Foi com estas idéias que resolvemos fundar esta revista. Nela exerceremos necessariamente o direito da crítica: – às idéias, não aos indivíduos (ADN, outubro de 1913. Editorial).

O texto acima confirma a preocupação dos fundadores do periódico em

elaborar críticas e propor modelos de organização e comportamento do Exército

Brasileiro e da própria sociedade. As propostas expostas através da revista ADN

29 Trataremos do assunto ao longo da exposição, mas para esclarecimentos prévios é possível apontar que a escolha dos ministros militares interfere na dinâmica do periódico, visto que a ação dos ministros militares pode ser de maior ou menor apoio ao periódico (financeiro, humano e propagandístico). 30 Utilizaremos tal denominação baseada na caracterização que Eric Hobsbawm (2009) desenvolve para apontar os países imperialistas e tecnologicamente desenvolvidos como: EUA, França, Inglaterra e Alemanha.

Page 42: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

28

traduziam não só a realidade profissional desses indivíduos, mas a própria realidade

nacional e internacional existente no período.

2.2.1. O contexto Ocidental e os militares

A Europa do final do século XIX foi marcada por importantes transformações

nos métodos e objetivos da economia e da política, visíveis também através de seus

desdobramentos mundiais. Eric Hobsbawm indica que no campo tecnológico e, em sua

consequência mais direta, no crescimento da produção material, as mudanças seriam

mais evidentes. Porém, o autor ressalta a ampla e difusa aplicação que os conceitos

“avanço” e “progresso” encontraram neste período:

A maioria dos observadores dos anos 1870 teria ficado muitíssimo mais impressionada por sua linearidade. Em termos materiais, em termos de conhecimento e de capacidade de transformar a natureza, parecia tão patente que a mudança significava avanço, que a história – de todo modo a história moderna – parecia sinônimo de progresso (HOBSBAWM, 2009, p. 50).

Em fins do século XIX e início do XX o mundo descobria a indústria

siderúrgica, o motor a combustão e a eletricidade. Neste contexto, os “países de

economia mais avançada”31 demonstravam o dinâmico crescimento de suas empresas,

associado ao avanço de seu controle diante de setores inteiros do mercado mundial.

Hannah Arendt (1989) indica, em obra sobre o período de 1884-1914, a ocorrência

nacional da emancipação política da burguesia, que pressionará as instâncias do Estado

para colocarem seus mecanismos de violência a serviço de suas ambições.

Nada caracteriza melhor a política de poder da era imperialista do que a transformação de objetivos de interesse nacional, localizados, limitados e, portanto, previsíveis, em busca ilimitada de poder, que ameaça devastar e varrer o mundo inteiro sem qualquer finalidade definida, sem alvo nacional e territorialmente delimitado e, portanto, sem nenhuma direção previsível (ARENDT, 1989, p. 148).

A dinâmica da economia capitalista, apresentada nos moldes acima, demonstra

a incompatibilidade das fronteiras nacionais com o desenvolvimento econômico e

industrial alcançado. Desta forma, os objetivos nacionais tornaram-se sinônimo de

expansão imperial e, conseqüentemente, catalisadores de disputas e conflitos. Segundo

Hobsbawm (2009), o período do final do século XIX e início do XX colocou em

31 Denominação novamente utilizada por Eric Hobsbawm (2009) para apontar os países imperialistas e tecnologicamente desenvolvido.

Page 43: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

29

evidência no cenário internacional a rivalidade entre Estados e a inserção de variadas e

complexas relações entre o “mundo desenvolvido” e o “subdesenvolvido”

(HOBSBAWM, 2009, p. 81).

Em fins do século XIX a supremacia econômica e militar das “sociedades

avançadas” se refletia na divisão de amplas regiões do globo em territórios sob governo

direto ou sob dominação política indireta de um pequeno grupo de Estados,

principalmente: Grã-Bretanha, França, Alemanha, Itália, Holanda, Bélgica, EUA e

Japão. “Esta repartição do mundo entre um pequeno número de Estados, que dá título

ao presente volume, foi a expressão mais espetacular da crescente divisão do planeta em

fortes e fracos, em ‘avançados’ e ‘atrasados’ que já observamos” (HOBSBAWM, 2009,

p. 101).

Para os países de “sociedade avançada” os exércitos se tornavam força

primordial para enfrentarem os conflitos e rivalidades que o futuro incerto de suas

atividades políticas e econômicas poderia oferecer. Especialistas no assunto, Samuel

Huntington (1996) e Manuel Domingos Neto (2004), destacam a origem da

modernização dos exércitos justamente na Europa ocidental do século XIX.

Huntington ao comentar os exércitos do século XVIII oferece um excelente

panorama das instituições militares do período:

O corpo de oficiais do século XVIII atendia mais às necessidades da aristocracia do que ao desempenho eficiente da função militar. A riqueza, as origens familiares e a influência pessoal e política é que ditavam a indicação e a promoção de oficiais. Crianças e incompetentes detinham, não raro, altos postos militares. Não existia um conjunto de conhecimentos profissionais. Consequentemente, não se dispunha de instituição alguma, com exceção de umas poucas escolas técnicas, para ministrar conhecimentos militares, não havendo tão pouco sistema algum para aplicar na prática esses conhecimentos. Os oficiais se comportavam como aristocratas e aristocratas acreditavam ser mais do que qualquer outra coisa [...] Em resumo, a profissão militar simplesmente inexistia (HUNTINGTON, 1996, p. 46).

Huntington defende que o início da modernização dos exércitos nacionais foi primazia

prussiana. O autor, em reforço a sua hipótese, aponta o decreto prussiano de 1808, que

garantiu igualdade de condições aos indivíduos no acesso ao oficialato, como gênese

das transformações militares ocorridas no século XIX:

O único título a dar direito a um posto de oficial será, em tempo de paz, o da educação e conhecimentos profissionais; em tempo de guerra, bravura e percepção exímias. De qualquer parte da nação, portanto, todos os indivíduos que possuam essas qualidades estão habilitados aos mais altos postos militares. Fica abolida toda a distinção de classe anteriormente existente e todo homem, independentemente de suas origens, tem iguais deveres e iguais direitos (HUNTINGTON, 1996, p. 49).

Page 44: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

30

Nos esclarecimentos de Manuel Domingos Neto, os exércitos modernos

atuaram originalmente na Europa como “instrumento indispensável à crescente disputa

por mercados” (NETO, 2004, p. 24). A definição do caráter funcional desses exércitos –

“instrumento indispensável à crescente disputa por mercados” – está associada à

conjuntura de avanços tecnológicos, que colocou em evidência o surgimento de novas

armas, novos meios de locomoção e comunicação, que encaminharam ao Estado a

necessidade de mudanças na organização de suas forças armadas.

É importante salientar que os debates no campo teórico também foram de

fundamental importância para as transformações realizadas a partir do século XIX nas

instituições militares. As construções teóricas sobre a necessidade das forças militares

nacionais consolidaram a organização racional de um pensamento sobre a guerra e suas

funções. Entre os teóricos de maior destaque para o processo de reorganização militar

está o escritor e militar prussiano Karl von Clausewitz. Em sua mais importante obra,

denominada Da Guerra (CLAUSEWITZ, 2005), o autor afirma que a guerra é parte

integrante da existência humana, constituindo-se, portanto, em um dos instrumentos

necessários da política. A referência à política eternizou-se, tornando-se o ponto central

do pensamento clausewitziano: “guerra nada mais é que a continuação das relações

políticas mesclada com outros meios” (CLAUSEWITZ, 2005, p. 290).

Em síntese, a guerra, segundo Clausewitz, seria um instrumento racional de

política nacional: instrumento, pois deve ter em vista alcançar um objetivo; racional,

porque a deflagração deve ser sempre precedida de uma avaliação dos custos e

benefícios; e nacional, para que o objetivo seja a satisfação dos interesses de um estado

nacional.

Diante do contexto político e econômico apresentado, as nações ocidentais

iniciaram a modernização de suas Forças Armadas. Embora seguissem peculiaridades

nacionais e se realizassem em tempos distintos, os países adotaram parâmetros gerais,

tais como: exigências para o ingresso; organização de instituições de ensino superior;

adoção da promoção por merecimento e desempenho; organização de um sistema

eficiente de estado-maior; consolidação de laços de identidade profissional e senso

corporativo.

Page 45: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

31

2.2.2. O contexto brasileiro e os militares

A conjuntura de modernização dos exércitos europeus e a deflagração da

Primeira Guerra Mundial foram apresentadas na dissertação de Leila Capella (1985),

uma das mais interessantes análises da presença e importância histórica da revista A

Defesa Nacional, como principais norteadores da organização do periódico.

Concordando com as conclusões de Capella, gostaríamos de acrescentar, com maior

veemência que a autora, as aspirações referentes à conjuntura política nacional e a

importância alcançada pelo Exército Brasileiro ao longo da República, como fatores de

grande importância para a fundação da revista ADN.

A historiografia referente à Proclamação da República no Brasil oferece uma

série de eventos relacionados à implantação do novo regime. Em grande medida, o

material produzido valoriza dois conjuntos de fatores: o primeiro, referente ao campo

das ideias, destaca o abolicionismo, o positivismo e o republicanismo; e o segundo

valoriza a seleção dos conflitos mais latentes do período, como a Questão Militar, a

Questão Religiosa e a Questão Abolicionista.

A obra de Emilia Viotti da Costa (1987) se propõe a repensar a historiografia

sobre a Proclamação da República. A autora destaca que grande parcela do material

produzido inicialmente sofreu forte influência dos posicionamentos pessoais de seus

autores; e que a produção mais atual sofre da necessidade constante de encontrar o fator

mais importante e/ou busca rotular ideias e grupos. Segundo Viotti da Costa, ambas as

tendências favorecem o risco de ocultar aspirações distintas, assim como o de

inviabilizar a compreensão dos diferentes grupos sociais que se associaram aos

movimentos em prol da República.

A preocupação com a temática da proclamação da República e os modelos

desenvolvidos pela historiografia também foram assuntos das obras de José Murilo de

Carvalho (1990) e Celso Castro (1995). A obra de José Murilo valoriza a elaboração do

imaginário como parte integrante da legitimação de qualquer regime político. Desta

forma, o autor busca compreender a batalha pelo imaginário popular republicano. No

contexto de renovação dos debates historiográficos sobre a Proclamação da República,

Carvalho elabora interessante esclarecimento sobre a ambiguidade e a diversidade do

conceito de república presente no cenário brasileiro.

Page 46: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

32

A obra de Castro alerta que compactar os fatores que demonstram a

insatisfação com o regime derrubado simplifica o acontecimento e marca a

historiografia sobre o período, com três características. A primeira consiste na crença da

inevitabilidade histórica da mudança, desvalorizando os riscos e as incertezas do

processo. A segunda relaciona-se com a unidade presente nos setores militares. Neste

caso, a falta de reação dos militares legalistas – pró Monarquia – é apresentada, muitas

vezes, como sinal de unidade do grupo que liderou a mudança política. A última

característica insere a República como o resultado final de um longo processo histórico.

Assim, é possível perceber a nítida associação desta última característica às duas

anteriores: a inevitabilidade do golpe e a presença de uma significativa unidade militar.

As análises de Viotti da Costa, de Carvalho e de Castro se distanciam das

análises historiográficas tradicionais determinadas por estruturas generalizantes e

automáticas da sociedade, modelos que, durante muito tempo, acomodaram os

pesquisadores e dificultaram a compreensão da crise política da monarquia. Porém, no

campo dos estudos sobre militares, deixando claro não fazer parte de nosso objetivo

aprofundar o debate sobre a Proclamação da República32, é importante compreender que

esse contexto histórico, por maiores dissensões que possa apresentar, marcou a

emergência dos militares como importantes atores políticos no cenário nacional

brasileiro.

Embora seja possível encontrar críticas ao sistema político oriundas das fileiras

militares já durante o Período Regencial33, dois momentos se tornariam referência na

historiografia acerca da insatisfação militar com a política e na elaboração de um

posicionamento nacional: a Guerra do Paraguai (1864-70) e a queda da Monarquia

(1889).

A Guerra do Paraguai solicitou os esforços do Exército e da Marinha em

grandes proporções. Considerada a primeira mobilização militar significativa das Forças

Armadas brasileiras contra um inimigo externo, proporcionou maior notoriedade ao

Exército e aproximou seus integrantes da responsabilidade de sua profissão e do

sentimento de identidade com a instituição. Porém, o Exército possuía péssimas

condições de logística, de armamentos e de nível técnico, o que resultou em um número

significativo de baixas e insatisfações. O importante significado da guerra para a

32 Sugerimos consultar para melhores esclarecimentos sobre o assunto as obras de Celso Castro (1995) e José Murilo de Carvalho (1990). 33 Direcionadas principalmente à criação da Guarda Nacional, em 1831.

Page 47: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

33

mudança na inserção do Exército no cenário nacional levou Manuel Domingos Neto a

afirmar que: “Após a guerra, os militares passaram a reclamar a condição de ‘defensores

da Pátria’ e a ocupar significativo espaço na cena política” (NETO, In: ROUQUIÉ,

1980, p. 45).

Já o fim do Império foi marcado por crises entre setores políticos e militares.

Ao comentar o que se convencionou denominar de Questão Militar, Viotti da Costa

(1987) identifica nos últimos anos do Império uma série de crises com profunda

repercussão no plano institucional militar, sendo a Proclamação da República o

resultado de uma delas.

Embora a historiografia sobre o assunto aponte a diversidade de

posicionamentos existente entre os militares na véspera da implantação do regime

republicano – influenciados por ideias positivistas, abolicionistas e republicanas –, de

uma maneira geral, eles apresentavam uma maior identidade ao sentirem-se mal

recompensados e desprestigiados pelo governo. Desta forma, as mudanças e

insatisfações supracitadas foram decisivas para a inserção do Exército Brasileiro no

jogo político nacional.

A queda do Império veio com um golpe de Estado, e não com uma revolução popular; a República foi produto de um corpo de oficiais que defendeu seus interesses particulares e se aliou a uma minoria política. Na verdade, apenas uma parcela da oficialidade envolveu-se diretamente. A motivação, para alguns oficiais, foi o temor por sua instituição e por seu bem-estar pessoal, enquanto para outros foi a ideologia republicana ou o desejo de estar atualizado com as tendências internacionais; nenhum oficial, porém, mostrou-se disposto a morrer pelo Império (MCCANN, 2009, p. 44).

A insatisfação de setores civis e militares durante o Império foi fator

fundamental para que diferentes grupos passassem a confiar seus projetos particulares,

baseados nos males e necessidades que detectavam, ao novo regime. A necessidade de

substituir um regime e implantar outro foi enfrentada de maneira diversificada, sendo a

organização do país, da nação e do próprio Exército perseguida e formulada pela

geração da Primeira República 1889-1930 (CARVALHO, 1990, p. 32).

Assim, as expectativas com o modelo político republicano passaram a ser

associadas à aproximação do Brasil com as nações avançadas e à primazia do

mérito/merecimento, suplantando os desígnios aristocráticos e o privilégio do

nascimento. Todavia, a mudança do regime e a ascensão política dos militares não

garantiram a estabilidade nacional e nem a unidade da corporação para prosseguirem

proeminentes no poder. A ausência de um projeto político que angariasse apoio entre os

Page 48: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

34

próprios militares impediu a continuidade da administração militar, sendo o governo

posteriormente entregue aos representantes dos setores econômicos do país.

De maneira geral, os estudos acerca do Exército nos primeiros anos da

República enfatizam as deficiências e as tentativas de modernização pelas quais passou

a instituição. Vale lembrar que eram encontradas dificuldades nas mais diversas áreas:

na alimentação, nas instalações, no armamento e, principalmente, na formação da tropa.

O Exército não oferecia formação especializada para a guerra; não realizava exercícios

de manobra ou de mobilização de tropas; aplicava castigos corporais; privilegiava a

ascensão hierárquica baseada no apadrinhamento; e mantinha suas unidades dispersas

pelo território, sem uma integração eficaz entre elas.

Outro problema enfrentado era a constante presença no corpo de oficiais de

indivíduos interessados em ascensão social, através da conclusão de cursos superiores

oferecidos pelas escolas militares, e não na profissão das armas34. Em contrapartida, o

recrutamento de praças sofria com a indiferença das camadas populares e com o

alistamento de indivíduos desnutridos, analfabetos e criminosos, sem interesse ou

capacidade física para a profissão militar (NETO, In: ROUQUIÉ, 1980, p. 46).

Os esclarecimentos supracitados indicam que o advento da República não

modificou significativamente as condições profissionais do Exército. Ao observar as

instituições militares brasileiras nos primórdios do século XX, encontramos o notório

distanciamento em relação aos exércitos de nações ocidentais “avançadas”. Nestas

nações, as Guerras Napoleônicas; a Guerra Franco-Prussiana; as alterações

científicas/tecnológicas; e as ambições econômicas estabeleceram a necessidade da

valorização e da modernização de suas organizações militares.

2.3. A fundação da revista A Defesa Nacional, 1913

A fundação da revista ADN realizou-se em setembro de 1913. Entretanto, o

momento fundamental de sua concepção aconteceu em 1906, quando o Exército

brasileiro, buscando adequar-se aos novos padrões militares, resolveu selecionar grupos

de oficiais para estagiarem por dois anos no exército alemão. O último grupo de

34 Reforma Benjamin Constant de 1890.

Page 49: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

35

estagiários, enviado em 1910, retornou em 1912 e, como plataforma para a divulgação

de seu aprendizado na Alemanha, resolveu fundar uma revista de assuntos militares.

Surge, assim, a revista A Defesa Nacional.

O grupo fundador ficou conhecido no meio militar como “jovens turcos”35 ou

“germanófilos”36. Vale ressaltar que a denominação “jovens turcos” em sua origem era

utilizada de forma pejorativa, mas com o fortalecimento do grupo o ultraje se tornou

positivo, passando a simbolizar até hoje aqueles que lutaram pela modernização do

Exército.

Em síntese, os “jovens turcos” formularam suas propostas alicerçadas pela

existência de “sociedades avançadas”; pelo conhecimento da realidade nacional; pela

crescente importância da ação dos militares no cenário político brasileiro; e pelo contato

direto com a moderna força militar alemã.

A origem dos “jovens turcos” foi marcada indelevelmente pela presença do

general Hermes da Fonseca (1906-1908) como ministro da Guerra do presidente Afonso

Pena. Apesar de o envio de oficiais para o exterior, em missão de aperfeiçoamento ou

para a aquisição de material bélico, ser constatado nos relatórios da pasta da Guerra

desde 1890, as turmas enviadas por Hermes desempenharam papel fundamental na

difusão das ideias de modernização das Forças Armadas brasileiras, destacando-se dos

demais grupos.

Além desta estratégia de aperfeiçoamento profissional, Hermes da Fonseca

buscou oferecer ao Exército nova organização e comando37. Por isso, logo foram

alteradas: as divisões regionais; a seleção de membros; a administração; as instalações;

o ensino; a aquisição de armamento; e o reaparelhamento das fábricas de destinação

bélica38.

35 A origem do nome faz referência à Turquia, ainda pertencente ao Império Otomano, que também havia enviado jovens militares para estagiarem na Alemanha. Estes, ao retornarem ao país participaram de lutas em favor da modernização e reconstrução da Turquia apoiando Mustafá Kemal (soldado e estadista). Criaram inclusive uma revista denominada A Defesa Nacional. 36 A denominação depreciativa faz referência à admiração que o grupo apresentava pela Alemanha. 37 Algumas iniciativas modernizadoras das Forças Armadas brasileiras podem ser encontradas desde o período Imperial, mas com pouca ou nula efetividade. Podemos citar: (1) a lei nº 585, de 06/09/1850 que torna condicionante para a ascensão aos postos de oficial da corporação cursar a Escola Militar (SCHULZ,1994, p. 24); (2) em 1853 a criação do Ministério da Guerra (MAGALHÃES, 2001, p. 284); (3) a legislação de 1874 que institui o alistamento obrigatório e o sorteio para preenchimento das fileiras do Exército, sem desprezar o voluntariado (MAGALHÃES, 2001, p. 300); e (4) a organização da Biblioteca do Exército em 1881 (MAGALHÃES, 2001, p. 299) e em. 38 Sugerimos consultar sobre as reformas do Marechal Hermes da Fonseca: (1) o relatório do Ministro da Guerra de 1907; (2) a Lei 1860, de 4 de janeiro de 1908; e (3) o decreto 6971, de 4 de junho do mesmo ano.

Page 50: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

36

O envio de oficiais ao exterior durante a gestão de Hermes da Fonseca obteve o

apoio do ministro das Relações Exteriores, Barão do Rio Branco. As turmas foram

enviadas a partir de 1906 para estágio arregimentado de dois anos no exército alemão,

reconhecido como o mais bem preparado da época. Além das três turmas enviadas,

Hermes chegou a iniciar conversações sobre a possível vinda de uma missão militar

alemã ao Brasil, projeto que não se concretizou.

Ao completarem o estágio na Alemanha e retornarem ao Brasil em 1912, Parga

Rodrigues, Bertholdo Klinger e Leitão de Carvalho, integrantes da última turma de

estagiários enviada por Hermes, debateram sobre a possibilidade de adotarem

procedimentos para a transmissão dos conhecimentos adquiridos. O contato com o

melhor exército do mundo os fez pensar as condições da nação brasileira e sua defesa,

formulando propostas de combate aos males que identificavam na sociedade e,

principalmente, no Exército. Por sugestão de Leitão de Carvalho nasceria a ideia de

criar uma revista e, a partir do apoio de Klinger e Rodrigues, iniciaram-se as

articulações para tornar o projeto viável. O grupo ganhou força ao receber o apoio do

capitão Mário Clementino de Carvalho, então secretário do Clube Militar, local onde

seriam realizadas as primeiras reuniões para a criação da revista A Defesa Nacional.

Embora a literatura sobre a modernização do Exército tenha consagrado

Hermes da Fonseca e os militares que, após o estágio na Alemanha, fundaram a revista

ADN, é preciso compreender que este projeto modernizador não se restringia a eles.

Sem pretender desenvolver os elementos que indicam o envolvimento de outros

indivíduos neste projeto de mudança, gostaríamos de mencionar que, diante de uma

instituição fundamentada na hierarquia e na disciplina, seria insustentável que os

tenentes pudessem liderar sozinhos as mudanças na corporação. Desta forma,

apontamos que o projeto de modernização do Exército, encampado pelos jovens turcos,

estava alicerçado por categorias superiores, o que não diminui sua importância, mas

abre espaço para a compreensão ampliada de sua inserção histórica.

Desde os primeiros passos da Revista [A Defesa Nacional], seus diretores procuraram obter a colaboração dos oficiais superiores e generais, capazes, por seu preparo e espírito progressista, de tomar parte no movimento renovador que íamos empreender. Nesse sentido fui um dos mais ativos. Consegui levar para as páginas da Revista [A Defesa Nacional] trabalhos de autoria das figuras mais destacadas do Exército, inclusive o Chefe de Estado-Maior, General José Caetano de Faria (CARVALHO, 1961, p. 177).

O apoio, muitas vezes declarado publicamente, de altos chefes militares que a

revista ADN acumulou evidencia que a proposta modernizadora dos “jovens turcos” se

Page 51: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

37

confirmava como anseio latente em parcela significativa da oficialidade. Em uma

análise superficial dos relatórios dos ministros da Guerra (1890-1913) é visível a

aproximação das declarações dos ministros com o programa de reformas almejado pela

revista. O bom relacionamento com os altos chefes militares rendeu inclusive indicações

para que integrantes dos “jovens turcos” ocupassem cargos de elevado prestígio na

corporação39.

A revista ADN, fundada em 20 de setembro de 1913 nas dependências do

Clube Militar, não possuía apoio oficial do Exército e instalou sua redação em espaço

cedido gratuitamente na região central do Rio de Janeiro40. A revista iniciou sua

atividade sob a direção de Bertholdo Klinger (primeiro-tenente), Leitão de Carvalho

(primeiro-tenente) e Joaquim de Souza Reis Neto (primeiro-tenente), sendo indicado

para secretário Francisco de Paula Cidade (segundo-tenente). Além dos integrantes já

citados, o grupo fundador era formado por: Mário Clementino de Carvalho (capitão),

Brasílio Taborda (primeiro-tenente), Epaminondas de Lima e Silva (capitão), César

Augusto Parga Rodrigues (capitão), Euclides de Oliveira Figueiredo (primeiro-tenente),

José Pompeu de Albuquerque Cavalcanti (primeiro-tenente), Francisco Jorge Pinheiro

(capitão) e Amaro Azambuja Villanova (primeiro-tenente). Entre os doze fundadores,

oito haviam realizado estágio no exército alemão41.

A revista A Defesa Nacional foi inspirada na então muito prestigiada revista

alemã Militaer Wochenblatt. A congênere brasileira possuía inicialmente uma média de

32 páginas42; circulação nacional; periodicidade mensal; ausência de anúncios

publicitários; e, em seus primeiros anos, a tiragem de mil a dois mil exemplares. A

proposta de difusão do pensamento dos “jovens turcos” contaria, além da publicação da

revista ADN, com a importante presença de seus representantes como instrutores da

Escola Militar do Realengo (EMR), no Rio de Janeiro, no período de 1919-1923.

A reforma no ensino militar, realizada através de mudanças nos regulamentos

da Escola Militar do Realengo em 191843 e 191944, buscou implantar o predomínio da

39 Leitão de Carvalho trabalhou no Estado-Maior e no gabinete do ministro da Guerra; e Bertholdo Klinger além de trabalhar no Estado-Maior, foi convocado para ser oficial de gabinete do chefe do Estado-Maior do Exército (CARVALHO, 1961 e KLINGER, 1946). 40 Instalada em uma sala-depósito da Papelaria Macedo, situada na Rua da Quitanda 72. 41 Os integrantes do grupo fundador que não participaram do estágio na Alemanha são: Francisco de Paula Cidade, Mario Clementino de Carvalho, Brasílio Taborda e José Pompeu Cavalcanti de Albuquerque. 42 Ao longo de sua trajetória a revista apresenta um número de páginas bastante variável: de 32 páginas até exemplares de 270 páginas. 43 Decreto n. 12.977, de 24 de abril de 1918, Acervo do Arquivo Histórico do Exército. 44 Decreto n. 13.574, de 30 de abril de 1919, Acervo do Arquivo Histórico do Exército.

Page 52: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

38

prática de treinamentos; dos estudos militares modernos; e da obrigação e necessidade

do constante aperfeiçoamento profissional. A determinação de alterar as práticas

escolares seria evidenciada também na nova forma de seleção de instrutores e auxiliares

instituída em 191945 na EMR. A exigência imprescindível do conhecimento prático e

teórico da profissão militar aproximou os requisitos do processo seletivo ao modelo

defendido pelos “jovens turcos” há anos.

O resultado do concurso de admissão na EMR foi a ocupação, nos postos

oferecidos, de defensores do projeto dos “jovens turcos” e até mesmo de alguns

representantes originais do grupo46. A denominação “Missão Indígena” passou a fazer

referência à atuação deste grupo na EMR. Tal denominação surgiu pela composição

nacional de seus instrutores e pelo evidente debate nacional acerca da contratação de

uma missão estrangeira para instruir o Exército. A atuação da “Missão Indígena” seria

breve47, sua presença na EMR esteve condicionada ao recorte cronológico da aprovação

dos regulamentos de 1919, tendo fim progressivamente com os conflitos militares de

192248, e sua completa extinção foi observada com a chegada da Missão Militar

Francesa na EMR, em 1924.

Embora a fundação da revista A Defesa Nacional, associada à proposta de

transformar o Exército por iniciativa de alguns de seus integrantes tenha sido reforçada

por adquirir o apoio de personalidades como Hermes da Fonseca, Rio Branco e os

generais Tito Escobar e Caetano de Faria49, sua aceitação não foi unânime na

corporação. O projeto sustentado pelos “jovens turcos” e seus assemelhados se deparou

com a presença de integrantes da Força não favoráveis à implantação de suas propostas.

A percepção de divergências do grupo fundador com outros integrantes da corporação é

visível em algumas circunstâncias.

Podemos apontar como primeira demonstração da existência de opositores ao

projeto dos “jovens turcos” a própria forma escolhida para a fundação da revista A

45 Lei 3.719, de 15 de janeiro de 1919, Acervo do Arquivo Histórico do Exército. 46 Na primeira turma de instrutores nomeados figurou os nomes dos capitães Euclides de Oliveira Figueiredo e Epaminondas de Lima e Silva. 47 Acreditamos que a historiografia pouco se dedicou a atuação dos “jovens turcos” na EMR e sua influência na formação dos oficiais que agitaram o cenário nacional a partir dos movimentos da década de 1922. 48 Sugerimos consultar o artigo de Fernando da Silva Rodrigues, “Renovação e revoltas: a Escola Militar do Realengo de 1918 a 1922”. Neste artigo o autor descreve o inquérito decorrente dos acontecimentos na EMR após seu envolvimento em levantes em 5 de julho de 1922, onde além dos alunos punidos, o comandante da escola foi afastado e todos os instrutores que tivessem vínculo com a Missão Indígena também. 49 O General Caetano de Faria foi ministro da Guerra no período de 1914-18, durante o governo de Wenceslau Braz.

Page 53: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

39

Defesa Nacional. A revista, registrada como pessoa jurídica e de direito privado,

“Cooperativa Militar Editora e de Cultura Intelectual ‘A Defesa Nacional’”, não

figurava entre as publicações oficiais do Exército. Outros dois importantes conflitos que

demonstram as dificuldades do projeto de atuação dos “jovens turcos” dentro do próprio

Exército são: o histórico enfrentamento entre “bacharéis” e “tarimbeiros”; e os limites

impostos aos redatores diante das regras de respeito à hierarquia e do teor exaltado de

suas críticas.

Presentes desde o período Imperial, os grupos denominados “tarimbeiros” e

“bacharéis” serão foco de duras críticas realizadas nas páginas de A Defesa Nacional. O

primeiro termo, de origem depreciativa, faz referência à tarimba, estrado de madeira

onde dormiam os soldados nos quartéis, e passou a designar oficiais que não haviam

frequentado a Escola Militar, alcançando postos elevados por sua trajetória de comando

de tropa. A presença deste primeiro grupo, muito numeroso durante a Monarquia, se

tornou cada vez mais escassa durante a República, período de crescimento do prestígio

da Escola Militar. O segundo termo possui como determinante uma trajetória marcada

pelo ensino superior na Escola Militar e o domínio do estudo da matemática, filosofia e

letras. Em síntese, os enfrentamentos se fizeram presentes no período republicano e se

organizavam no campo profissional pelas disputas entre os possuidores e defensores de

uma formação empírica e os de formação baseada em métodos científicos (CASTRO,

1995, p. 18).

Os artigos inflamados da revista A Defesa Nacional buscavam uma

equidistância crítica entre ambos os grupos. Os “tarimbeiros” temiam que o projeto dos

“jovens turcos”, onde a formação do oficial militar deveria passar pelo constante

aprendizado sobre tecnologia, métodos e função das guerras, colocasse em risco a

carreira e o reconhecimento de suas realizações. Já os “bacharéis”, segundo os artigos

de A Defesa Nacional, deveriam ser duramente combatidos pelo descompasso entre a

realidade de sua profissão e o teor de sua formação. Em artigo publicado na revista

lamenta-se que “o militar se embebesse de filosofias e se esquecesse de que acima de

tudo lhe cumpre o sagrado dever de cultivar as qualidades guerreiras necessárias à

segurança e tranqüilidade da Pátria e da família” (ADN, outubro de 1916, p. 2). Neste

sentido, o projeto dos “jovens turcos” se distanciava das clivagens entre “tarimbeiros” e

Page 54: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

40

“bacharéis”50, determinando uma terceira forma de profissionalismo, baseado nos

estudos mais modernos sobre teoria e prática da profissão militar.

Durante as comemorações de 40 anos da revista A Defesa Nacional, ao tentar

demonstrar o empreendimento de grandes proporções a ser enfrentado pelos “jovens

turcos”, Brasílio Taborda, um dos fundadores da revista, afirma que naquela época “não

seria possível construir edifícios sólidos sobre alicerces carcomidos [...] Os que se

dispunham a construir tinham necessariamente que ser demolidores” (ADN, outubro de

1953, p. 15).

Originalmente, o grupo fundador do periódico, composto por doze oficiais, era

denominado “grupo mantenedor”. Tal denominação atende ao compromisso existente

entre o grupo de contribuir, quando necessário, com suas rendas particulares para o

sustento da publicação, caso as vendas de assinaturas não cobrissem os custos de

impressão e expedição. Para viabilizar a edição do primeiro número foi utilizada tal

regra e, de acordo com os dados de Capella (1985), o valor despendido por cada filiado

chegou ao equivalente de 1/8 de seu soldo.

Segundo o estatuto da revista A Defesa Nacional, além de cobrir os possíveis

gastos da publicação, o grupo mantenedor comprometia-se a utilizar 2/3 do lucro do

periódico na publicação e distribuição, gratuita aos assinantes, de suplementos

editoriais. Seus fundadores não estavam autorizados ao recebimento de qualquer quantia

referente aos lucros da revista, por isso o terço restante dos valores acumulados deveria

formar um fundo de reserva. O estatuto também determinava que a organização da

revista fosse dividida entre três diretores, que acumulariam as funções de redator,

secretário e tesoureiro. Esta forma de organização apenas deveria ser aplicada a partir da

segunda formação da diretoria51 (ADN, novembro de 1914).

Os assuntos relacionados à prestação de contas, organização e/ou a quaisquer

outros deveriam ser debatidos em sessões trimestrais ou a qualquer período através de

convocação extraordinária do grupo mantenedor. As resoluções das reuniões eram, em

grande maioria, divulgadas no corpo do periódico como informativo aos assinantes. O

grupo mantenedor da revista A Defesa Nacional fez em sua primeira edição uma

demonstração dos interesses que pautavam os envolvidos no projeto:

50 Torna-se importante ressaltar a participação de indivíduos que marcam a trajetória do bacharelismo de farda como favorecedores da modernização, como por exemplo: Hermes da Fonseca, Caetano de Faria, Cardoso de Aguiar e Tasso Fragoso (NETO, In: ROQUIÉ, 1980, p. 55). 51 A primeira diretoria, como descrito anteriormente, contou com três diretores e um secretário.

Page 55: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

41

Como é fácil de ver, o escopo dos seus fundadores, não é outro senão colaborar, na medida de suas forças, para o soerguimento das nossas instituições militares, sobre as quais repousa a defesa do vasto patrimônio territorial que os nossos antepassados nos legaram, e da enorme soma de interesses que sobre ele se acumulam (ADN, outubro de 1913. Editorial)

O propósito de publicar um veículo de atuação exclusivamente militar

profissional, embora valorizado, não se concretizou. Os “jovens turcos” apresentaram

um amplo conhecimento e envolvimento com os aspectos políticos das questões que

desejavam, ou mesmo, supusessem apenas militares52.

De maneira geral, o envolvimento dos “jovens turcos” com questões ditas civis

pode ser compreendido através dos esclarecimentos de Manuel Domingos Neto (2004).

Atendo-se a questões referentes à modernização dos exércitos, Domingos Neto explica

que a própria natureza da atividade militar faz com que seus integrantes se preocupem

com aspectos tidos como da alçada civil. O autor utiliza a preocupação com a

composição da tropa e a formação do reservista para exemplificar o interesse e os

motivos do envolvimento militar com questões de: ensino, disciplina, condições

sanitárias e de saúde. Outro exemplo bastante significativo é o envolvimento das Forças

Armadas com o desenvolvimento científico e tecnológico, fator primordial para a

delimitação da capacidade militar, além da constante disputa referente ao orçamento,

pois este garante o sustento da tropa; as melhorias nos quartéis; e a aquisição de

armamentos.

2.4. Os primeiros anos da revista A Defesa Nacional, 1913-1930

Os primeiros anos da revista A Defesa Nacional foram marcados pela constante

propaganda de sua importância para a transformação profissional dos oficiais militares.

A atuação do grupo mantenedor, devido às responsabilidades de impressão e

distribuição, deveria ser centralizada na cidade do Rio de Janeiro, e em caso de

transferência de algum integrante do grupo, o cargo seria automaticamente ocupado por

outro indivíduo. O que não impedia a aproximação com representantes que serviam de

divulgadores do periódico, principalmente no interior do país. Em 1914 o periódico

52 Sugerimos consultar para melhores esclarecimentos sobre o teor político do projeto dos “jovens turcos” as obras de Edmundo Campos Coelho (1976), Leila Capella (1985) e José Murilo de Carvalho (2005).

Page 56: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

42

publica os nomes de 55 divulgadores para que fossem procurados em caso de

esclarecimentos sobre assinaturas.

Outro grupo de apoio importante para o funcionamento do periódico foi o de

colaboradores que ofereciam artigos para publicação. Embora existissem três redatores

fixos, era permitida aos indivíduos que não faziam parte do grupo mantenedor a

publicação de artigos, desde que aprovados pela redação do periódico. Ainda

relacionado ao material publicado, a revista ADN também colocou em prática o projeto

de distribuição de suplementos editoriais sobre técnica profissional moderna, presente

em seu Estatuto, já nos primeiros anos de existência. Autores consagrados nos exércitos

europeus foram traduzidos e posteriormente publicados no corpo da revista ou em

fascículos gratuitos para assinantes. Em complemento a tal projeto, em abril de 1918, a

revista apresenta a iniciativa de constituir a “Biblioteca A Defesa Nacional”, no intuito

de publicar e vender obras de importante valor profissional. As iniciativas de agregar

material editorial foram favorecidas pelo aumento progressivo do número de vendas do

periódico. Em abril de 1919 a revista salda o número de 2000 exemplares, porém, não

sem lembrar os atrasos nos pagamentos das assinaturas e as dificuldades com que

atravessou esses primeiros anos:

Com o número 64 a nossa edição passou a ser de 2000 exemplares. Para aumentá-la precisamos de assinantes [...] O grupo mantenedor resolveu em sua sessão de setembro último a abertura de um ‘livro de ouro’ para seus assinantes, representantes e mais colaboradores beneméritos e de um ‘livro negro’ para os assinantes e representantes que tenham dado prejuízo a revista (ADN, abril de 1919, 261. Grifos no original).

Embora possamos identificar um amplo conjunto de assuntos enfatizados

durante este primeiro momento (1913-1930), selecionaremos os que majoritariamente

são debatidos pelo periódico: as questões materiais e as questões humanas.

Os problemas materiais encontrados no Exército, tais como precariedade dos

alojamentos, do fardamento e da aquisição de mobiliário, serão acompanhados pela

constante deficiência de equipamento bélico, essencial na formação e manutenção do

militar. Segundo os “jovens turcos”, as precárias condições materiais encontradas no

Exército refletem uma deficiência nacional mais ampla: o abastecimento de produtos

industrializados baseado na importação manteria o país dependente da disponibilidade

dos comerciantes estrangeiros e do bom relacionamento com o país fornecedor.

Os “jovens turcos” denunciavam a fragilidade de nações dependentes e

ressaltavam a importância da siderurgia e da existência e eficiência de fábricas de

armamentos, ambas de cunho nacional. “A segurança nacional reclama que se

Page 57: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

43

desenvolva a nossa fábrica ao ponto de nos emanciparmos do estrangeiro” (ADN, maio

de 1914, p. 8). Embora o discurso dos “jovens turcos” tenha sido favorecido pelo início

da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), observava-se o descompasso entre

necessidade e realidade nacional.

Que os nossos chefes naturais tracem o verdadeiro caminho a seguir, enquanto ainda não nos envolve a tormenta, sem atenção a massa oficiosa que inconsciente a gravidade da situação criada ia numa trama de cegueira e má fé, fazendo calar nos ânimos desprevenidos ou timoratos a petulante e impatriótica opinião de que ‘Não precisamos de Exército!’. Que faríamos nós então, na hipótese cabível de uma complicação internacional? Pediríamos confusos, humilhados ao estrangeiro que viesse defender nossa honra, os nossos lares? (ADN, junho de 1917, p. 282. Grifos no original).

Segundo o apresentado na revista A Defesa Nacional a situação poderia ser

considerada alarmante. Os artigos ressaltavam que a falta de investimento nacional no

campo industrial, associada ao corte dos fornecedores europeus, poderia agravar-se para

a impossibilidade de uso do equipamento que já possuíam, devido à falta de peças de

reposição e de munição. Desta forma, o conteúdo do periódico acerca dos problemas

materiais não se limitou a descrever situações recorrentes, mas evidenciava a origem

dos problemas e apontava para possíveis soluções: a dependência de material europeu

poderia ser sanada com investimentos em eficientes empresas nacionais.

No âmbito dos recursos humanos, o debate se concentrava na problemática do

serviço militar e da instrução. Durante o Império, a seleção dos oficiais realizou-se

através da tradição européia do privilégio social, no caso brasileiro, privilégio de grupos

dominantes pela riqueza e pelo poder53. Já a memória popular referente à seleção de

membros para as Forças Armadas, herdeira das leis repletas de exceções/privilégios e da

prática violenta54, facilitou a generalizada repugnância da população em relação à

carreira das armas.

A adoção do alistamento militar obrigatório no Brasil foi iniciada legalmente

em 1874. Embora não fosse cumprida, o regime republicano não revogou a legislação,

ou mesmo buscou torná-la eficaz. Na prática, tal legislação favorecia o preenchimento

da base militar por voluntários.

Destinado a romper com o constante alistamento de analfabetos,

desempregados e criminosos, Hermes da Fonseca, então Ministro da Guerra, consegue

aprovar em 1908 uma nova lei de sorteio militar55. A Legislação de 1908 deveria

53 Sugerimos consultar para melhores esclarecimentos a obra de José Murilo de Carvalho (2005, p.16) 54 O decreto de 1835 ordenou e regulou o recrutamento forçado. (CARVALHO, 2005, p. 19). 55 Lei n. 1860, de 4 de janeiro de 1908.

Page 58: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

44

garantir grande transformação na composição das tropas ao tornar a seleção por sorteio

obrigatória. Porém, tal legislação, mesmo durante a presidência de Hermes (1910-1914),

não se concretizou. Em 1913, Estevão Leitão de Carvalho, ao fazer referência às

principais fontes de recrutamento do Exército, afirma ser a seleção baseada em: (1)

nordestinos afugentados pelas secas; (2) desocupados das grandes cidades que

procuravam o serviço militar como emprego; (3) criminosos mandados pela polícia; e

(4) inaptos para o trabalho (ADN, novembro de 1913, p. 40-43).

Segundo os “jovens turcos”, a aplicação eficaz da legislação do serviço militar

obrigatório deveria se realizar: (1) para afastar o predomínio de voluntários

“desafortunados”56 e não aptos para a função das armas; (2) para reforçar a tropa por

temor a uma invasão estrangeira; e (3) pela crença no serviço militar como benéfico à

formação da nação brasileira.

O primeiro fator, destinado a afastar toda a espécie de “desafortunados” das

fileiras da corporação, seguia ao encontro da modernização pretendida, pois, segundo os

“jovens turcos”, com o sorteio, aleatoriamente ingressariam homens de diferentes

grupos sociais e com habilidades educacionais e culturais que se aproximavam do

modelo elitista proposto. Buscava-se diminuir o número de voluntários que ingressavam

no Exército por desemprego ou por falta de opção e/ou perspectiva, pois:

Se até certo tempo o voluntariado era mau, não se deve incriminá-lo por nos encher as fileiras; é que o Exército o aceitava, que os bons elementos não vinham, a Nação a eles abandonava a sua defesa. A má qualidade do nosso antigo voluntariado é, pois, uma velha culpa, antes que tudo, nacional (ADN, junho de 1917, p. 283).

O segundo fator, relacionado ao temor de uma possível invasão estrangeira, se

tornou mais visível com o desencadeamento da Primeira Guerra Mundial e com a

política iniciada por Argentina, Chile e Peru de modernização de suas Forças Armadas.

A obra de Leila Capella (1985), em grande parte, se detém na explicação do

papel desempenhado pelo projeto dos “jovens turcos” em relação aos benefícios do

serviço militar para a nação e para a organização social. A análise dos artigos do

periódico demonstra uma visão ampliada do Exército, por estes ditarem padrões para a

recuperação não só da instituição, como, principalmente, da nação: “sob um ponto de

vista social mais elevado, [o Exército] é uma instituição por onde deve passar a parte

masculina da população que aí aprimora a noção do dever, da disciplina e do

patriotismo” (ADN, agosto de 1915, p. 334). 56 A revista faz inúmeras críticas ao recrutamento de voluntários, considerando-os: analfabetos, indisciplinados e/ou desnutridos.

Page 59: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

45

A campanha para colocar em prática a lei do sorteio militar obrigatório ganhou

um importante impulso com a deflagração da Primeira Guerra Mundial e,

nacionalmente, com a criação da Liga de Defesa Nacional. A guerra colocou em pauta a

preocupação emergencial com as questões militares: técnica e pessoal. Criada em

setembro de 1916 no Salão Nobre da Biblioteca Nacional, a Liga de Defesa Nacional

era uma organização composta por civis e militares que buscava reforçar a atenção para

as questões de defesa nacional, com destaque para a campanha pela implantação do

recrutamento através do sorteio obrigatório. Idealizada por Pedro Lessa e Miguel

Calmon, a Liga contou com a ilustre contribuição de Olavo Bilac. O poeta foi o

responsável pelo discurso oficial durante a cerimônia de criação da Liga. Neste

discurso, Bilac afirmou que o intuito de todos que estavam reunidos era “a fundação de

um centro de iniciativa e de encorajamento, de resistência e de conselho, de

perseverança e de continuidades para a ação dos dirigentes e para o labor tranqüilo e

assegurado dos dirigidos” (BILAC, 1965, p. 108-9).

Em síntese, os defensores do serviço militar obrigatório, em especial os

“jovens turcos”, compreendiam sua necessidade para a melhor composição da tropa e

para a organização da nação brasileira.

Se, nos grandes povos, inteiramente constituídos a missão do Exército não sai geralmente dos quadros das suas funções puramente militares, nas nacionalidades nascentes como a nossa em que os elementos mais variados se fundem apressadamente para a formação de um povo, o Exército, única força verdadeiramente organizada no seio de uma tumultuosa massa efervescente – vai às vezes um pouco além dos seus deveres profissionais para tornar-se, em dados momentos, um fator decisivo de transformação política ou estabilização social (ADN, outubro de 1913. Editorial).

Entre as principais motivações da revista A Defesa Nacional, a iniciativa de

cunho transformador/questionador, muitas vezes fazendo uso de discursos inflamados,

tornou-se sua principal característica. Porém, dois assuntos deixariam seus redatores

mais cautelosos: o posicionamento brasileiro na Primeira Guerra Mundial contra a

Alemanha e a posterior contratação de uma missão militar francesa para a modernização

do Exército brasileiro. A cautela acerca de tais assuntos foi gerada nitidamente pela

dificuldade que os “jovens turcos” encontravam para fazerem: (1) oposição a uma

decisão nacional de participação na guerra, justificada por ataques da Alemanha contra

o Brasil; (2) críticas à Alemanha e seu exército, pois estes eram a fonte inspiradora do

grupo fundador do periódico; e (3) críticas à iniciativa de contratação de uma missão de

modernização.

Page 60: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

46

Após a deflagração da Guerra, a concepção difundida pela revista acerca da

modernização do Exército Brasileiro ganhou destaque. A revista publicou um artigo do

primeiro-tenente Amaro de Azambuja Villanova em que se considerava que, tendo em

vista os recentes acontecimentos europeus, ficara comprovado, mais uma vez, que só a

capacidade militar garantiria a integridade de uma nação (ADN, agosto de 1915, p.

334).

Embora tenha contribuído efetivamente para valorizar as Forças Armadas e

colocar em evidência a importância de seu profissionalismo, no caso do Brasil, a guerra

expôs suas deficiências. De certa forma, o conflito revelou as fraquezas nacionais e as

contrastou com a existência de exércitos organizados e bem equipados. Sergio Murilo

observa:

Assim, criou-se aqui um exacerbado clima belicista, mobilizando apaixonadamente as opiniões. As informações e análises sobre a guerra expunham as deficiências do exército, reforçando os argumentos dos militares no sentido de que o governo precisava dedicar mais atenção as Forças Armadas (PINTO, 2005).

Embora a revista A Defesa Nacional tenha explorado constantemente o conflito

europeu para legitimar seus objetivos mais importantes – modernização das Forças

Armadas, recrutamento militar e industrialização – os enfrentamentos do Brasil com a

Alemanha foram lamentados. Os artigos subsequentes à entrada do Brasil na Guerra

serão calcados na necessidade de fortalecer o Exército brasileiro, no fomento do perigo

iminente e na crítica a todos aqueles que impediam as mudanças modernizadoras. No

entanto, o discurso da revista não desqualifica nem publica críticas à nação inimiga, a

Alemanha.

A contratação de uma missão militar europeia fazia parte dos planos de Hermes

da Fonseca quando ministro da Guerra. A missão militar, constando entre as exigências

dos “jovens turcos” para a organização do Exército Brasileiro em moldes modernos,

apresentava-se para as potências europeias como fator de influência política, militar e de

abertura para acordos comerciais. De grande importância para a modernização do

Exército, a Missão Militar Francesa foi abordada em diversas obras57. Gostaríamos de

realçar, a princípio, o posicionamento apresentado pela revista A Defesa Nacional

acerca da contratação da missão militar, visto que sua preferência era a vinda de uma

missão alemã.

57 Sugerimos consultar para melhores esclarecimentos as obras de Francisco de Paula Cidade (1959), Jayme de Araujo Bastos Filho (1994), Manuel Domingos Neto (2001) e Frank McCann (2009).

Page 61: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

47

A especial situação com o fim da Primeira Guerra Mundial estreitou os laços

entre Brasil e França, vitoriosa. Durante a Conferência de Paz de Paris, em 1919, o

recém-indicado ministro da Guerra Padiá Calógeras estabeleceu contato com militares

franceses para a contratação de uma missão militar modernizadora, já aprovada pela

Câmara dos Deputados58. Em grande medida, os artigos da revista A Defesa Nacional

declaram a esperança e a ansiedade em relação à chegada da missão militar, mas é

possível observar que sua chegada não foi enaltecida como as demais solicitações dos

“jovens turcos”:

Hoje, apesar dos nossos incontestáveis progressos, é tamanho o desejo de completar a nossa defesa, está tão arraigada a convicção de que precisamos de um auxílio estrangeiro para sairmos de vez das dificuldades que nos entravam, que todos confiam e se satisfazem com qualquer solução. Precisamos quem nos ensine ou nos permita realizar os meios de aprender; precisamos qualquer coisa que nos leve para a frente na estrada em que palmilhamos até agora com tantos sacrifícios. Formulemos um plano geral para a organização de nossa defesa militar e nele persistamos até sua completa execução; respeitem-no os poderes constituídos e respeitemo-lo nós, cheios de confiança nos seus resultados, pois mesmo imperfeito será melhor completamente executado do que as partes diversas dos mais perfeitos planos abandonados em meio de sua execução. Desde que a missão nos venha auxiliar nesse sentido, extirpando os erros que não podemos evitar e melhorando com a imparcialidade de técnicos, tudo o que já conseguimos produzir. Bem vinda seja! (ADN, abril de 1919. Grifos no original).

O discurso moderado em relação à missão francesa é reflexo da preferência e

admiração que os “jovens turcos” tinham pelo Exército Alemão, visíveis em um grande

número de artigos apresentados pela revista A Defesa Nacional. O trecho abaixo,

publicado durante a guerra, mas antecedendo à entrada do Brasil no conflito, foi retirado

do artigo “A Alemanha Militar”, e denota uma crença quase sobre-humana na

capacidade da nação e do Exército Alemão:

Ficaremos desde então habilitados a dizer que o povo alemão não desaparecerá, depois dessa luta de gigantes que ensanguenta o solo da velha Europa, como superficialmente se afirma. Poderá ser vencido, porém abrigando em seu peito qualidades tão invejáveis, herança de seus antepassados, surgirá de novo, forte e cheio de experiência, mais bem aparelhado ainda, para descrever a trajetória brilhante que o destino reservou-lhe a percorrer na senda do progresso humano (ADN, maio de1916, p. 286).

A contratação de militares estrangeiros para instrução não era uma novidade no

mundo e nem mesmo no Brasil. Países como Argentina e Chile já haviam realizado tal

experiência e, no caso brasileiro, em 1906 foi realizada a contratação de uma missão

58 O projeto para a contratação de uma missão militar foi provado em 23 de dezembro de 1918 (FILHO, 1994, p. 5).

Page 62: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

48

francesa para a Força Pública de São Paulo59. As declarações acerca da necessidade de

uma missão militar estrangeira estiveram em pauta nos artigos publicados pela revista A

Defesa Nacional desde sua fundação, porém, somente foi efetivada em 1920.

A problemática que envolveu a contratação da missão militar estrangeira para o

Exército Brasileiro extrapolou os muros dos quartéis. Se para os defensores do projeto

representado pelos “jovens turcos” a vinda de uma missão estrangeira seria aproximar o

Exército Brasileiro com os exércitos mais modernos do mundo, para outros poderia ser

sinônimo de desconfiança e fragilização de nossa defesa, pois tornaria uma nação

estrangeira extremamente conhecedora de nossa força militar. Desta forma, os anos de

1917 e 1918 foram de debates intensos sobre a possibilidade de contratação de uma

missão militar e suas responsabilidades.

Embora tenha se generalizado pela historiografia que a conjuntura adversa

impediu a aproximação brasileira com a Alemanha, Francisco de Paula Cidade (1959, p.

364) afirma que além de pertencer ao lado vitorioso da guerra, a França possuía nos

meios militares brasileiros muitos admiradores. A questão comentada por Cidade será

esclarecida em artigo publicado por Manuel Domingos Neto (2001), onde se aponta que

a disputa acerca da contratação da missão militar ultrapassou o debate entre brasileiros

favoráveis e contrários a sua vinda. O autor apresenta um cenário mais amplo dos

interesses que envolveriam a contratação da missão estrangeira. Utilizando fontes de

influentes personalidades estrangeiras, o artigo de Domingos Neto apresenta o empenho

de franceses, norte-americanos, ingleses e alemães em influenciar a contração de seus

militares para instrução e/ou a efetivação de contratos comerciais para venda de material

bélico. As fontes apresentadas pelo autor também demonstram a aproximação de

estrangeiros e brasileiros para pressionar as instâncias responsáveis pela definição dos

contratos.

Acertada a vinda da Missão Francesa para 1920, criou-se um novo ambiente de

difusão das propostas reformistas, o que retirou parcela da autoridade e da originalidade

da revista ADN ao tornar as escolas de aperfeiçoamento de oficiais e a de comando e

estado-maior centros dinâmicos do modelo modernizador francês.

Os primeiros anos de publicação do periódico também foram marcados por

algumas mudanças na sua organização e edição. A partir dos anos 1920, a própria

aparência da revista seria alterada com o aparecimento de anúncios publicitários.

59 Sugerimos consultar para melhores esclarecimentos sobre o assunto a obra de Antônio Barreto do Amaral (1966).

Page 63: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

49

Acreditamos que, em decorrência das constantes crises financeiras anunciadas pelo

periódico, a mais grave das quais ocorreu em 1926, quando a publicação foi suspensa

por quatro meses. Nesta época, os anúncios surgiam como solução para os problemas

financeiros. Para os envolvidos com a publicação, as dificuldades financeiras estavam

associadas aos atrasos nos pagamentos das assinaturas; à falta de interesse da maior

parte dos oficiais; e à baixa remuneração militar, que inibia os gastos com material de

instrução.

Se por um lado havia dificuldades inegáveis para a continuidade do projeto de

difusão de conhecimento encampado pela revista ADN, destaca-se ao longo de suas

publicações o bom relacionamento do periódico com o Clube Militar e com o Estado-

Maior do Exército. O periódico disponibilizou espaços para a divulgação de palestras e

de artigos publicados por essas instituições.

Durante o período relatado, a mudança organizacional de maior relevância no

periódico ocorreu em outubro de 1928, com a revisão dos estatutos de fundação da

revista. As alterações se realizaram majoritariamente no campo da organização de

pessoal: (1) abolição do posto de redator, tendo como motivo a ampliação do alcance

social do periódico; e (2) a reorganização do grupo mantenedor, que entre os seus 12

membros leitos poderiam ser incluídos membros da Marinha e/ou civis.

Ao longo dessa primeira abordagem da organização e da ação da revista ADN

observamos que o projeto dos “jovens turcos”, baseado, a princípio, na modernização

militar, possuía inevitavelmente como arcabouço a própria reorganização do Estado e da

sociedade. Para a revista ADN, a reorganização nacional necessariamente deveria passar

por transformações: (1) no campo material, para as questões de desenvolvimento

econômico; (2) no campo moral, para o estabelecimento de um padrão comportamental;

e (3) no campo político, para que as estruturas governamentais se dedicassem a tais

prioridades.

Page 64: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

50

2.5. A inserção institucional da revista A Defesa Nacional

2.5.1. A revista A Defesa Nacional, 1930-1960

O turbulento contexto nacional inaugurado com a Revolução de 1930 fez

emergirem no Brasil novos grupos políticos e militares, que se mantiveram nos mais

altos cargos ao longo do período em que Getúlio Vargas esteve na presidência (1930-

1945).

Durante os meses de outubro e novembro de 1930, período mais agudo da crise

política, a publicação da revista ADN ficou suspensa. Porém, já nas edições de

dezembro de 1930 e março de 1931, é possível observar a aproximação do grupo

mantenedor do periódico com os vitoriosos da Revolução. Em dezembro de 1930, o

tenente-coronel Pedro Aurélio de Góes Monteiro, comandante militar do movimento,

passou a integrar o grupo de diretores do periódico; e em março de 1931 a revista

recebeu uma nova sede para sua redação localizada no salão do antigo arquivo do

Estado-Maior do Exército, em uma ala do Ministério da Guerra, no Rio de Janeiro.

Após a experiência federalista da Primeira República, marcada pela dispersão

do poder entre oligarquias regionais, a Revolução de 1930 marcou o início do processo

de nacionalização da política brasileira. No campo militar, a herança que as instituições

traziam do período anterior era a falta de uma política destinada às Forças Armadas que

realmente as tornasse profissional e nacional. Na análise de McCann (2007, p. 385),

após a Revolução de 1930, a crise na instituição militar agravou-se, inclusive na sua

estrutura de comando, dada a quantidade de novos oficiais na direção do Exército. O

período seria marcado por um projeto de reconstrução, que buscou estabelecer a coesão

e a importância nacional da instituição.

O apoio militar em 1930 para a deposição de Washington Luís esteve sob a

liderança do tenente-coronel Góes Monteiro, que com o sucesso da Revolução alcançou

notoriedade no meio militar e político. Ao assumir o comando militar em 1930, Góes

Monteiro investiu na reorganização militar, herdeira de inúmeros problemas, desde

orçamento e administração, até questões de coesão e instrução. Góes arquitetou a

reorganização e a implantação de uma concepção específica da corporação ao dinamizar

Page 65: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

51

o pensamento militar em favor da operacionalização da intervenção na política de forma

coesa, disciplinada e com visão estratégica e profissional.

Embora Góes Monteiro tenha participado com distinção nos cursos oferecidos

pela Missão Francesa – missão apoiada pelos “jovens turcos” – não é possível apontar

categoricamente a interação existente entre os “jovens turcos” e o então líder militar

antes de 1930, quando Góes Monteiro figura entre os diretores da revista. Desta forma,

partimos da compreensão de que a experiência compartilhada na instituição militar e o

inconformismo com a situação de desordem do Exército, fizeram surgir entre os “jovens

turcos” e Góes um pensamento sobre as Forças Armadas muito parecido. Vale assinalar

que o modelo de reorganização militar iniciado por Góes Monteiro e empreendido ao

longo do governo de Getúlio Vargas foi baseado: (1) na intensa preparação técnica; (2)

no processo de constante aprendizado; (3) no respeito à hierarquia e a disciplina; e (4)

na consolidação da coesão na Força. O alcance da proposta também atingiu instâncias

políticas e sociais, visto que Góes valorizou a ação da instituição militar nos assuntos

nacionais de maior importância.

Em grande medida, os “jovens turcos” declararam através da revista ADN seu

apoio aos movimentos políticos e militares de 193060 e 1937 (golpe do Estado Novo).

Encontramos nos artigos sobre o contexto nacional muita expectativa em relação ao

governo e aos programas elaborados, o que denota grau de alinhamento com a ordem

política estabelecida.

Deflagrada a chama que incendiaria os sentimentos cívicos das populações desamparadas do sertão, e as massas conscientes mais desanimadas do litoral e dos pampas, - vimos desenhar-se a cooperação militar do grande movimento em linhas perfeitamente simétricas com a imagem do levante popular, gravitando a ação das forças do Exército em torno dos núcleos centrais de direção, a cuja frente se encontravam os leaders revolucionários dos diferentes setores, atraídas as tropas regulares pelo ima poderoso da unidade nacional. [...] O governo provisório reverte-se de todas as características de estabilidade e exercita suas funções segundo um estatuto

que dá a seus atos o cunho de perfeita legalidade, apoiados, de resto, moral e materialmente, por toda a nação (ADN, janeiro de 1931. Editorial. Grifos no original).

Vai para seis anos da instituição do Estado Novo. O Exército, que em nenhum momento falhou à sua missão histórica de assegurar o equilíbrio nacional, foi responsável direto pela transformação política operada em 10 de novembro de 1937, e sente-se hoje verdadeiramente orgulhoso quando pode constatar a oportunidade e magnitude da obra realizada (ADN, novembro de 1942. Editorial).

60 A figura mais proeminente do grupo dos jovens turcos, Bertholdo Klinger, apoiou a princípio a Revolução de 1930, chegando inclusive ao generalato em 1931. Porém, em 1932 reuniu-se com dirigentes paulistas e exerceu a chefia militar do Movimento Constitucionalista de São Paulo para depor Getúlio Vargas.

Page 66: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

52

Outra importante liderança militar no período da presidência de Getúlio Vargas

foi o general Eurico Gaspar Dutra. Durante o período em que Dutra esteve à frente do

Ministério da Guerra61 também atuou na reorganização militar profissional e no projeto

de coesão nacional. Diante da tumultuada conjuntura militar a partir de 1930 –

expurgos de militares, rebelião em São Paulo em 1932, rebelião da Aliança Nacional

Libertadora 1935 – observamos as investidas dos chefes militares em direção ao reforço

das regras de hierarquia e disciplina, associadas à coesão da corporação. Se, por um

lado, a repressão e os expurgos garantiram o afastamento de indivíduos indesejados,

também se tornou necessário reforçar os laços daqueles que se mantinham fiéis ao

projeto defendido pelas lideranças militares que apoiaram Vargas. Desta forma,

incluímos a iniciativa de Eurico Dutra, ao reorganizar o setor intelectual do Exército –

reabertura da BIBLIEx, incentivo ao setor de produção editorial e a aproximação

sempre elogiosa com a revista ADN –, no grupo de ações que pretendiam reforçar os

pilares profissionais e de coesão militar.

O modelo de biblioteca inaugurado por Eurico Dutra incluía não só a

responsabilidade sobre o acervo e a consulta, mas também, a função de editora do

Exército. Assim, Dutra, redator da revista ADN durante o ano de 1922, organizou a

Biblioteca do Exército Editora (BIBLIEx) e valorizou a revista ADN no intuito de

estabelecer canais oficiais de divulgação de conhecimento técnico e de interesse militar.

Durante o período do Estado Novo (1937-1945) até 1950, a revista ADN

também passou por transformações em seu arcabouço organizacional, tornando mais

visível o enquadramento institucional do periódico no Exército Brasileiro. A ideia de

que a revista ADN a partir de 1930 progressivamente se institucionalizou e atuou

alinhada aos chefes militares pode ser constatada no padrão que a publicação adotou

neste período, mas não consta oficialmente nas reformulações de seu estatuto.

De 1930 até 1960 a revista reformulou seu estatuto por quatro vezes, sem que

fossem realizadas alterações em seu modelo jurídico original de sociedade civil de

direito privado. O estatuto de 1931 alterou apenas o número de diretores, passando de

um para quatro; e formalizou o convite aos oficias da Marinha para que participassem

da revista (ADN, maio de 1931). Na alteração seguinte, o estatuto criou um corpo de

redatores responsável por escrever e selecionar os artigos; e estabeleceu que os sócios

ficassem encarregados de contribuírem com valores acima das assinaturas para que as

61 Dezembro de 1936 a agosto de 1945.

Page 67: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

53

despesas não se concentrassem no grupo mantenedor (ADN, junho de 1933). Já a

reformulação dos estatutos realizada em 1943 transformou a sociedade, organizada

originalmente sob a denominação “Cooperativa Militar Editora e de Cultura Intelectual

‘A Defesa Nacional’”, em uma espécie de sociedade limitada (Ltda). Desta forma, a

partir de 1943, para ser sócio tornou-se necessário comprar um número mínimo de

cotas, e ao final de cada ano 50% do lucro adquirido com a venda das revistas deveria

ser dividido entre seus associados. O restante do lucro seria utilizado para o pagamento

de funcionários e colaboradores; para a manutenção material; e para a formação de um

fundo de reserva. (ADN, setembro de 1943). No estatuto de 1945 a transformação em

sociedade limitada se consolida e a denominação da revista modifica-se para

“Cooperativa Militar Editora e de Cultura Intelectual ‘A Defesa Nacional’ Limitada”

(ADN, julho de 1945, p.151. Grifos nossos).

A COOPERATIVA MILITAR EDITORA E DE CULTURA INTELECTUAL ‘A DEFESA NACIONAL’ Ldta, é uma associação de classe, destinada a ‘pugnar por todas as questões que interessam aos problemas de defesa nacional, incentivar o gosto pelo estudo e debate de questões pertinentes à eficiência das Forças Armadas e à difusão de cultura geral e profissional de seus associados’. Com essa finalidade propõe-se: a) Manter a revista mensal de assuntos militares ‘A Defesa Nacional’; b) formar bibliotecas fixas ou circulantes; c) editar, por conta própria regulamentos militares ou outros trabalhos de reconhecida utilidade profissional [...] (ADN, abril de 1946, p. 8. Estatuto de 1945. Grifos no original).

Embora tenham sido realizadas diversas alterações, a cooperativa manteve as

eleições para a administração da revista – diretores, redatores e secretários – e não

incluiu em nenhum de seus estatutos o vínculo de subordinação a qualquer instituição

militar. Todavia, uma análise mais atenta demonstra que a revista recebeu em março de

1931 uma nova sede, estabelecida no Ministério da Guerra, no Rio de Janeiro; recebeu

esporadicamente auxílio financeiro do Ministério da Guerra; e publicou constantemente

discursos dos ministros da guerra e dos presidentes - além dos atos oficiais do

Ministério da Guerra. O periódico também apresentou: (1) a partir dos anos de 1940 a

expressão “Redação e administração: Quartel General do Exército”; (2) nas edições dos

anos 1950 a responsabilidade da Imprensa do Exército na impressão do periódico

(ADN, março de 1957); (3) os valores referentes aos subsídios recebidos do Ministério

da Guerra e da BIBLIEx; e (4) aproximação com importantes chefes militares. Este

último pôde ser observado através das declarações elogiosas de chefes militares sobre a

existência do periódico e que foram publicadas na revista ADN:

Page 68: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

54

À diretoria de ‘A Defesa Nacional’. Na data em que a ‘A Defesa Nacional’ comemora seu 30o aniversário, é com prazer que assinalo o quanto tem sido proveitosa sua atuação no sentido de propagar para o Brasil, até as mais longínquas guarnições o conhecimento de assuntos técnico-militares, além de informações de interesse geral, igualmente úteis a todos quantos cooperam em prol do engrandecimento nacional. É-me grato felicitar-vos nesta data, recordando-me do tempo em que fiz parte da diretoria dessa Emérita Revista. (ADN, janeiro de 1944, p. 12. Carta do General Eurico Gaspar Dutra, ministro da Guerra, enviada a diretoria da revista ADN em virtude de seu aniversário em outubro de 1943). Tendo em vista que ‘A Defesa Nacional’ vem cooperando, ininterruptamente, há 34 anos, na obra de aperfeiçoamento, ampliação e divulgação de conhecimento técnico-profissionais e de cultura geral, úteis a formação intelectual dos militares, e que suas colunas abertas à colaboração de todos devem refletir o amor ao estudo e o grau de capacidade profissional dos quadros do Exército, apraz-me recomendá-la à atenção e interesse de todos os oficias, quer intelectualmente nela colaborando, quer materialmente, fazendo-se seus assinantes. Esta sugestão deve ser transcrita nos boletins internos de todos os escalões do comando e da administração do Exército (ADN, fevereiro de 1947, p. 8. Carta do General Canrobert P. da Costa, ministro da Guerra, enviada a diretoria da revista ADN). Em consequência, este comando concita os oficiais, subtenentes e sargentos a prestigiarem a revista ‘A Defesa Nacional’, fazendo suas assinaturas, a fim de, com estas, evitarem o desaparecimento de tão importante órgão, porta-voz da cultura profissional do Exército (ADN, novembro de 1951. Trecho do boletim interno do Regimento Tiradentes, sediado em São João Del-Rei, escrito por seu comandante o coronel Olympio Mourão Filho).

Em decorrência das alterações supracitadas, a revista ADN distancia-se de

diversas temáticas anteriormente tradicionais – críticas, propostas de mudanças,

discurso de ação social e política – para a quase exclusividade de assuntos técnicos e de

alinhamento ao poder militar e político estabelecido. Os assuntos tratados pela revista

de 1930 até 1960 podem ser distribuídos da seguinte maneira: (1) técnicas de guerra e

os ensinamentos da Segunda Guerra Mundial (1939-1945); (2) indústria nacional; (3)

história militar; e (4) divulgação de discursos e atos oficiais do presidente e/ou dos

ministros da Guerra.

Na revista ADN, de 1930 até 1950, predominaram os artigos relacionados às

questões de técnica, estratégia e tecnologia empregadas na guerra. Assim, o contexto da

Segunda Guerra Mundial impulsionou a preocupação com as novidades no campo de

batalha, como por exemplo, a preocupação do periódico com a necessidade do Brasil

criar uma força aérea diante da tática de combate alemã denominada blitzkrieg62.

62 Termo alemão para guerra-relâmpago. A operação consistia no ataque rápido e de surpresa, sem que as forças inimigas pudessem organizar suas defesas. O efeito desejado pela guerra-relâmpago só pode ser obtido pela utilização coordenada da infantaria, dos blindados e da aviação.

Page 69: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

55

Em consequência dos estudos sobre a guerra, a revista ADN demonstra seu

incentivo e admiração pelas iniciativas governamentais para o aperfeiçoamento do

sistema de comunicações, para o incentivo às pesquisas sobre o petróleo nacional; e,

especialmente, para o desenvolvimento da siderurgia. A revista considerava que parte

significativa dos problemas do parque industrial brasileiro dependia da solução da

questão siderúrgica:

O desenrolar da presente conflagração européia veio pôr à prova, ainda uma vez, a poderosa influência que a organização industrial exerce sobre o curso das operações, em consequência da importância crescente do elemento material. De vez que o conceito moderno de guerra total se apóia no aproveitamento de todas as forças vivas da sociedade, a mobilização da indústria civil se apresenta como um problema elementar da organização da defesa nacional (ADN, agosto de 1940, p. 21). O ambiente que se criou em todo o país de franco e decisivo apoio à Companhia siderúrgica Nacional, deixa bem assinalado o propósito dos brasileiros de cooperar com o governo nos seus patrióticos esforços tendentes a solucionar no mais breve espaço de tempo possível, o mais importante e, sem dúvida, o maior de nossos problemas (ADN, maio de 1941, p. 240).

Nos artigos destinados a assuntos de história militar predominavam duas

tendências: retratar cenários de guerra para análise e aprendizado e divulgar o heroísmo

e a participação das Forças Armadas nacionais em diversos momentos de crise. Neste

caso, a primeira tendência se associa diretamente ao modelo predominante da revista

ADN, com a publicação de artigos sobre questões da guerra.

Já a publicação de discursos presidenciais e de atos oficiais dos ministros da

Guerra, associados a declarações elogiosas da revista sobre tais personalidades, reforça

o alinhamento do periódico com a ordem política vigente e, principalmente, com os

chefes militares a partir da década de 1930.

Por coincidência as duas figuras principais da direção do Exército foram diretores da ‘A Defesa Nacional’ – Generais EURICO GASPAR DUTRA e PEDRO AURÉLIO DE GOÍS MONTEIRO – os quais trabalharam por ela, contribuindo com seu saber e inteligência para orientar os mais jovens que viam na nossa revista um guia seguro e um auxiliar prestimoso. Contando com o integral apoio de todo o Exército, ‘A Defesa Nacional’, por intermédio de seus diretores, tudo fará para ser útil, afim de preencher in-totum, a sua finalidade – idealizada por um grupo de oficias que, no início da carreira, sonhavam com uma força de terra respeitável pela sua técnica perfeita e pela sua aparelhagem eficiente, e que, hoje, nos altos postos da hierarquia, tudo fazem para verem materializado seus sonhos da mocidade (ADN, janeiro de 1940. Grifos no original). O General Eurico Dutra é o construtor do novo Exército do Brasil. Não o construiu apenas no sentido material da palavra, equipando-o modernamente e armando-o com suficiência: construiu-o pela disciplina e modelou-o com o exemplo. Deu-lhe a sua alma, que é a de um bravo e a sua vida, que é a de um apóstolo soldado, sabe plasmar o espírito dos soldados [...] Reorganizando o Exército à margem das agitações partidárias ou dos

Page 70: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

56

problemas políticos, Eurico Dutra prestou ao Brasil um serviço histórico: fê-lo confiar em si mesmo e repousar, na hora sombria que o mundo atravessa, à sombra de seus quartéis e à luz de suas armas (ADN, junho de 1942, p. 8).

A análise do contexto pós 1930 nos encaminha para a compreensão de que a

progressiva institucionalização da revista ADN foi estruturada através da longa jornada

dos “jovens turcos” e seus signatários, associada à ascensão nacional de chefes militares

comprometidos com projetos de transformação das FA, sendo que estes últimos

angariaram poder também nas instâncias políticas. A coincidência de interesses e, em

alguns casos, a coparticipação na revista, estabeleceu o elo fundamental entre os chefes

militares e o grupo responsável pelo periódico em reforço à reorientação e à

reestruturação do Exército, o que garantiu a institucionalização da revista de forma

oficiosa. “ ‘A DEFESA NACIONAL’ é do Exército. Trabalhar para ela é trabalhar pelo

Exército. Mandem suas colaborações”63.

Ao analisarmos a revista ADN durante a década de 1950 percebemos que, em

decorrência da conjuntura nacional e internacional, o material publicado sofreu algumas

alterações. No quadro das relações internacionais a década de 1950 foi marcada pela

reorganização do mundo nos moldes da Guerra Fria, o que pressionou os países a uma

definição por um dos campos em luta. No caso brasileiro, a conjuntura de Guerra Fria

coincidiu com o momento de grandes disputas que se materializavam nos programas de

modernização nacional. Esquematicamente, no debate sobre a modernização, o Brasil

vivenciou nos anos 1950 a divisão da sociedade em duas perspectivas conflitantes:

nacionalistas e “entreguistas” (FAUSTO, 2007).

Os nacionalistas defendiam o desenvolvimento baseado na industrialização,

enfatizando a necessidade de se criar um sistema econômico com significativa

autonomia. Isso significava dar ao Estado um papel importante como regulador

econômico e investidor em áreas estratégicas – petróleo, siderurgia, transportes,

comunicações. Sem recusar o capital estrangeiro, os nacionalistas o encaravam com

restrições, seja por razões econômicas, seja por acreditarem que o capital estrangeiro em

algumas áreas poria em risco a soberania nacional. Os – assim chamados pelos

nacionalistas – “entreguistas” defendiam uma menor intervenção do Estado na

economia; não priorizavam a industrialização e sustentavam que o desenvolvimento do

país dependia de uma abertura ao capital estrangeiro. Sustentavam também uma postura

63 ADN, fevereiro de 1937. Grifos no original. Propaganda veiculada em quase todos os exemplares nas décadas de 1930 a 1960.

Page 71: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

57

de rígido combate à inflação, através do controle da emissão de moeda e do equilíbrio

dos gastos do governo.

Em uma dimensão institucional, os militares também participaram dos debates

e reproduziam na corporação o enfrentamento entre nacionalistas e “entreguistas”

(PEIXOTO, In: ROUQUIÉ, 1980). Acompanhando a conjuntura dos anos 1950, embora

ainda predominasse no periódico os artigos sobre técnica/tecnologia militar,

observamos na revista ADN o aumento notório da quantidade de artigos sobre

economia, sobre o papel nacional das FA e o início da divulgação de material sobre a

conjuntura de ameaça comunista.

A revista ADN demonstra preocupação com questões de política social – saúde

e educação –, mas o que nos chama a atenção é o seu envolvimento com os assuntos

econômicos, chegando a constar, nos anos 1950, uma seção exclusiva de economia e

finanças64.

A revista produzia uma avaliação crítica dos investimentos estrangeiros

encaminhando o discurso para a valorização das ações governamentais no campo do

petróleo, da siderurgia, dos transportes, das comunicações, e da mecanização da

agricultura. Porém, o periódico não menosprezou os benefícios que poderiam ser

obtidos através de negociações com o capital estrangeiro, desde que não estivesse em

risco a soberania nacional.

Os recursos naturais, a capacidade de trabalho (saúde e educação), as facilidades de fabricação (ferro e carvão para a siderurgia), e a eficiência dos transportes (petróleo e eletricidade) são os principais fatores do progresso (ADN, julho de 1951, p. 101. Grifos no original). Partimos do Postulado do Professor Quiny Wright da Universidade de Chicago: não pode haver política exterior independente sem independência econômica, e não pode haver independência econômica sem industrialização. Todas as riquezas básicas da América Latina estão dominadas pelo capital estrangeiro, que não apenas controla sua exploração mas a sua exportação (ADN, fevereiro de 1959, p. 109).

A atenção do periódico com a ameaça comunista, veiculada diante da

conjuntura de Guerra Fria, demonstrou a construção diametralmente oposta entre as

concepções de democracia e comunismo. A revista ADN produziu na década de 1950

uma interpretação bastante combativa do comunismo, considerando-o um elemento

estranho e ameaçador à natureza democrática e livre do mundo ocidental e do Brasil.

64 Durante o período de 1930 a 1950 os artigos sobre economia eram em quantidade pequena e se restringiam, em grande medida, à siderurgia. No decorrer da década de 1950 a quantidade de artigos sobre economia e industrialização aumentou e a de temas também.

Page 72: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

58

A conclusão a tirar, portanto, das considerações apresentadas e que se baseiam em fatos e documentos incontestáveis só poderá ser a seguinte: – gerador e provocador de desordem social, o comunismo russo – ‘peste mortal’ no dizer do grande Papa Pio XI enxovalha as consciências, aniquila e destrói as manifestações do espírito livre com a instituição legalizada do servilismo no domínio das idéias; asfixia a cultura com a escravização do pensamento; e rebaixa moralmente o ser humano, constituindo um ‘sistema cheio de erros e de sofismas’, absolutamente incompatível com a dignidade natural da espécie e que merece, por tudo isso, a mais enérgica repulsa dos cidadãos conscientes de qualquer país verdadeiramente democrático (ADN, maio de 1952, p. 131).

Em complemento às características comentadas da revista ADN durante as

décadas de 1930-1950, podemos citar que o periódico: (1) apresenta um grande número

de propagandas; (2) divulga a atividade editorial da cooperativa; (3) registra uma média

de dez mil assinantes; e (4) apresenta a participação de oficiais do Exército de diversas

patentes. Através da publicação das listas de sócios, colaboradores e representantes,

observamos o predomínio de tenentes e capitães. Porém, esse predomínio não se aplica

aos cargos administrativos da revista, setores em que a maioria dos integrantes possui a

patente de coronel e/ou general. A composição profissional dos indivíduos envolvidos

na administração indica que os oficiais superiores e/ou oficiais generais dirigem os

rumos do periódico, o que altera sua formação profissional original65.

2.5.2. A revista A Defesa Nacional, 1960-1980

Durante a década de 1960 a revista ADN novamente modificou o padrão de

artigos publicados. Se, no período que antecedeu ao golpe de 1964 – contexto marcado

pelas disputas nacionais em favor da modernização brasileira, e internacionais,

consubstanciadas no enfrentamento entre capitalismo e comunismo – as temáticas

publicadas foram basicamente uma continuidade do modelo apresentado nos anos 1950

– profissionalismo, economia e nacionalismo – após o episódio de 1964, a revista, que

manteve a divulgação majoritária de artigos técnicos e profissionais, publicou

constantemente artigos sobre a intervenção militar, o comunismo, e a defesa nacional.

65 Importante ressaltar que a mudança também está associada à mobilidade profissional dos fundadores da revista. Se na década de 1910 os fundadores do periódico possuíam patentes de tenentes e/ou capitães, nas décadas seguintes alcançaram os postos de oficias generais, como por exemplo: Bertholdo Klinger, Estevão Leitão de Carvalho, Francisco de Paula Cidade e Euclides de Oliveira Figueiredo.

Page 73: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

59

Ao longo da crise de 1964 a revista não sofreu interrupções em sua publicação,

e a primeira declaração do periódico em favor da intervenção militar ocorreu em agosto

daquele ano, através do artigo intitulado O espírito da revolução e sua contribuição

para uma renovação da mentalidade nacional:

Os acontecimentos, não é necessário que eu [major Washington Bermudez] vos descreva. Aí estão recentes. Foram suas características a idéia de agir com energia no momento preciso, com rapidez, para evitar a efusão de sangue, com a alma e o coração nas ações, tendo por testemunha Deus, Supremo Guia dos homens, e com os objetivos alevantados de conduzir este Povo, a que também pertencemos, para os caminhos da libertação, libertação do medo e da destruição. Era a última oportunidade. Provou ser a certa (ADN, jul/ago de 1964, p. 15).

Assim, observamos que ao longo de todo o regime militar a revista ADN foi

utilizada como mecanismo de propaganda da intervenção e das ações dos governos. No

contexto dos assuntos veiculados pelo periódico, encontramos de maneira recorrente

artigos sobre os benefícios e necessidades do golpe de 1964:

A Revolução não se deterá. O Brasil precisa que assim seja, para poder trabalhar, viver e progredir em paz. Os setores negativos, que investem contra a Revolução – não terão forças para neutralizar a sua obra. O Brasil verdadeiro está ao lado dela, apoiando-a, compreendendo-a. ela prosseguirá. A Revolução é irreversível! (ADN, mar/abr de 1966, p. 5)

De maneira mais específica o periódico veiculou ações de combate à desordem e ao

comunismo, como foi o caso do desmantelamento da Guerrilha do Caparaó. A guerrilha

fora organizada pelo Movimento Nacional Revolucionário (MNR) em 1966, composto

por intelectuais e militares que pretendiam, através da luta armada, derrubar o regime

militar instalado no Brasil em 1964:

Com essas quatro últimas prisões, e com os resultados das investigações já realizadas, pôde ser considerada praticamente terminada a operação e desnecessária uma ação de vasculhamento em força em toda a área, para a qual estava previsto o emprego de unidades do Exército. [...] As investigações procedidas pelas autoridades militares proporcionaram um completo levantamento da estrutura de comando e organização, no Brasil, dos elementos subversivos que tentaram criar a frustrada “Frente de Caparaó” (ADN, set/out de 1967, p. 76)

Já o comunismo que, assim como a “revolução”, foi assunto presente em

grande parte das edições da revista ADN a partir de agosto de 1964 até os anos 1980, foi

noticiado no periódico com extensos artigos. O material publicado tinha a preocupação

de transmitir a idéia de que, além de ser uma ameaça internacional, o comunismo

também estava presente no Brasil:

Face aos aspectos analisados, verificamos que há uma estratégia comunista para a conquista ideológica e política do mundo, que vem sendo rigorosamente executada. Pelas facilidades e oportunidades oferecidas, o Brasil tornou-se objeto compensador e imediato, transformando-se em palco

Page 74: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

60

de intensas e calculadas atividades comunistas, na busca do poder, que se desenvolveram em todos os campos da atividade humana. (ADN, jul/ago de 1965, p. 57). Há anos, o nosso país e o nosso povo vêm sendo submetidos a uma guerra fria avassaladora, que procura abalar as nossas estruturas e afetar o nosso homem em suas mais puras convicções sobre civismo, fé, patriotismo, dedicação ao trabalho, respeito a toda e qualquer espécie de autoridade, etc, predispondo-o a agir como um autômato, como marionete manejada pelos cordões dos comunistas (ADN, jan/fev de 1969, p. 23).

Durante o regime militar, também encontramos na revista ADN diversos

artigos que demonstram uma grande preocupação com as mais diferentes instâncias

nacionais. Baseados em questões sociais, econômicas e políticas, os artigos indicavam a

perfeita coerência de seus debates com os propósitos da Doutrina de Segurança

Nacional. Segundo Comblin (1978, p. 17) e Borges (In: FERREIRA e DELGADO,

2003, pp. 13-42), a Doutrina de Segurança Nacional fornece intrinsecamente a estrutura

necessária à instalação e a manutenção de um governo forte, visto que sua estrutura está

baseada na concepção de guerra total. Portanto, ocorre a ampliação do campo de

perseguição ao inimigo, pois a agressão pode vir tanto do exterior quanto do interior

(inimigo interno), e consequentemente a ampliação do campo de ação militar.

Dentro do aspecto ideológico dos militares brasileiro, a Doutrina de Segurança Nacional serviu para abolir dois dos princípios fundamentais do regime democrático liberal: a subordinação dos militares ao poder civil e a não-intervenção no processo político. (BORGES, In: FERREIRA e DELGADO, 2003, p. 33).

Assim, o material publicado encaminhava, dentro de uma concepção natural e

necessária, a resolução das adversidades nacionais para a instância das Forças Armadas,

ocupante do poder político e da tarefa de vigilante nacional:

Por se constituírem no elemento-força de uma Nação, é natural que, enquanto perdurarem os movimentos internos, próprios da busca de uma evoluída estabilidade política e social, as forças armadas venham a participar ativamente desses movimentos (ADN, set/out de 1964, p. 75). A destinação constitucional das Forças Armadas do Brasil, como na generalidade das nações democráticas, é a de assegurar a defesa da Pátria e garantir os poderes constitucionais a lei e a ordem. [...] Tais relevantes missões não excluem, porém, a participação decisiva das Forças Armadas em atividades e empreendimentos de ordem econômica e social, reclamados, tanto pelo progresso, como pela segurança da nação, em cujo quadro de vida e em cujos destinos, pelo seu espírito democrático e pela sua contribuição construtiva, elas exercem especial influência realizadora (ADN, mar/abr de 1969, p. 12).

Outra característica do periódico ao longo do regime militar foi a divulgação de

resumos de monografias da ECEME; de elogios ao chefes militares; e de declarações

oficias do governo.

Page 75: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

61

Como que pressentindo o meu [A. de Lyra Tavares] propósito de homenagear, publicamente, a memória do grande Presidente Costa e Silva, o ilustre camarada General Humberto de Mello, decidido a que também o fizesse ‘A Defesa Nacional’, sob a sua esclarecida e dinâmica direção, deferiu-me a honra de escrever o presente editorial (ADN, jan/fev de 1970. Editorial)

Assim como Costa e Silva, todos os presidentes militares tiveram suas promessas e as

realizações de seus mandatos publicados no periódico, além de receberem elogios da

revista: “Dois anos de Governo Médici mudaram o país, material e espiritualmente. A

Revolução consolidou-se, na linha de permanência e renovação” (ADN, jan/fev de

1972, p. 127).

Na conjuntura do regime militar, observamos que o periódico enfrentou uma de

suas maiores crises: a publicação de resumos de monografias da ECEME, sem

desvalorizar a importância da escola no ambiente militar, associa-se principalmente às

constantes reclamações publicadas sobre a falta de colaboração no envio de artigos para

serem publicados no periódico; e durante um balanço quantitativo no final dos anos

1960 a revista apresentou cerca de três mil assinaturas, menos de 1/3 do que se

observava no período de 1930-1940.

Neste contexto, década de 1960 e 1970, diferentemente do período do governo

Vargas, quando o periódico se tornou um pólo de investimento dos próprios ministros

da Guerra, a expansão da rede de telecomunicações ofereceu um instrumento mais

poderoso: a TV. Boris Fausto (2007, p. 484) comenta que as facilidades de crédito

pessoal permitiram a expansão do número de residências que possuíam televisão: em

1960, apenas 9,5% das residências urbanas tinham televisão; em 1970, a porcentagem

chegava a 40%. Por essa época, beneficiada pelo apoio do governo, de quem se

transformou em porta-voz, a TV Globo expandiu-se até se tornar rede nacional e

alcançar praticamente o controle do setor. A propaganda em favor do regime militar

passou a ter um canal de expressão como nunca existira na história do país. Desta

forma, a televisão tornou-se um instrumento de propaganda mais eficaz, pois estava nas

residências de civis e militares, e os esforços voltados para a telecomunicação

consequentemente fizeram diminuir o dinamismo dos investimentos editoriais e do

interesse em consumir material impresso.

O agravamento da crise enfrentada pela revista ADN – em janeiro de 1974 o

periódico divulga um total de 1263 assinaturas – tornou-se ainda mais visível com a

ocorrência de mais três alterações no padrão de manutenção do periódico. A primeira

alteração ocorreu em 1968, quando Ernesto Geisel garantiu a manutenção da revista

Page 76: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

62

ADN através de recursos econômicos e humanos de seu gabinete66: “O Ministro Geisel

não forneceu apenas recursos econômicos; emprestou o prestígio e a eficiência de seu

próprio Gabinete Ministerial, responsável pela direção deste periódico [de 1968] até 18

Jun de 73” (ADN, nov/dez de 1973, p. 3. Grifos do original). A segunda alteração

ocorreu em 1976, quando a revista ADN esteve sob direção da ECEME (ADN, jan/mar

de 1992. Editorial). Já a terceira alteração, ocorreu em dezembro de 1981, quando a

revista deixou de ser responsabilidade da ECEME para ser transferida a outro órgão do

Exército:

A partir do dia 22 de dezembro de 1981, os destinos de A Defesa Nacional passaram a ser dirigidos por nova Diretoria, cujos membros integram a área da Diretoria de Assuntos Culturais, Educação Física e Desportos, que consubstancia a reestruturação recentemente realizada no exército e que visa a coordenar as atividades ligadas ao Desporto, à Educação Física, à Cultura e Tradições da Força Terrestre, dinamizando-as e constituindo-se em um instrumento auxiliar capaz de manter em tempo de paz, o espírito de corpo do Exército em permanente estado de motivação. (ADN, jan/fev de 1982. Editorial. Grifos no original).

2.5.3. A revista A Defesa Nacional, 1981-2004

A reorganização da revista ADN realizada em 1981 estabeleceu o modelo pelo

qual o periódico se configura ainda hoje. Ao ser criada a Diretoria de Assuntos

Culturais, Educação Física e Desportos (DACED)67, foi estabelecido que a edição da

revista se tornaria seu encargo, com redação e gerência entregues à BIBLIEx. Desta

forma, consideramos que em 1981, ao integrar a DACED, ocorreu a mais significativa

inserção da revista ADN à burocracia do Exército. Além da inserção burocrática, o

pertencimento à DACED afastou a iminência de seu desaparecimento devido ao

recrudescimento da crise financeira, pois se tornou responsabilidade do Exército prover

todas as necessidades da revista, mesmo quando as vendas não alcançassem os custos

do periódico.

Em diversas ocasiões foram anunciados os motivos que pretendiam justificar

os esforços para a manutenção da publicação da revista ADN, fosse de maneira

66 Ernesto Geisel ocupou o cargo de ministro do Superior Tribunal Militar entre 1967 e 1969. 67 Hoje Diretoria do Patrimônio Histórico e Cultural do Exército (DPHCEx), órgão ao qual a BIBLIEx e a revista A Defesa Nacional se subordinam.

Page 77: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

63

individual – declarações de chefes militares – ou através do convencimento veiculado

pela própria revista:

Na verdade, a oportunidade de veicular bimestralmente colaborações da lavra de eminentes autores – colaborações que se desdobram desde áreas abrangentes como Ciências Políticas e Sociais até áreas mais especializadas como Estratégia, Organização, Táticas e Técnicas Militares – significa para a DEFESA NACIONAL poder contribuir para o aprimoramento intelectual de seus leitores, notadamente nos seios das Forças armadas, e para o estudo e a solução de problemas da realidade nacional que se oferecem à reflexão de todos os brasileiros imbuídos de amor ao passado, confiança no presente e fé inquebrantável no futuro de nossa pátria (ADN, set/out de 1981, p. 5. Grifos no original).

No período de 1981-2004 a única alteração sofrida no modelo organizacional

ocorreu de 1992 a 1996, quando a redação da revista ADN foi novamente entregue à

responsabilidade da ECEME, porém, a editoração e a distribuição foram mantidas como

atribuição da BIBLIEx. Em 1997 a redação retornou à BIBLIEx, na qual, hoje, redação,

editoração e distribuição estão novamente concentrados.

Nos anos 1980 foram mantidas, em menor quantidade, as propagandas68; e a

revista ADN contratou, em meados da década, uma empresa particular para cuidar da

produção gráfica e da publicidade (ADN, mar/abr de 1986). Neste período os assuntos

mais abordados se concentravam nas áreas de: técnica/tecnologia militar, história

militar, economia, comunismo, “revolução”/abertura. Sem dúvida, a novidade nos

temas abordados relacionava-se com as exposições sobre as determinações e

expectativas para a mudança no regime político. Diante da iniciativa de Ernesto Geisel,

general presidente da república (1974-1979), em realizar seu projeto político em favor

da distensão, o Brasil vivenciou um período de abertura política com freqüentes

reafirmações de autoridade e controle sobre o processo em curso. Em defesa do projeto

de Geisel, a revista ADN declarou:

À guisa de conclusão, digamos apenas que, a esta altura do tempo – e ainda mais com quatro anos pela frente, o Governo Figueiredo pode, sem falso otimismo, almejar o cumprimento satisfatório de suas metas proclamadas: – aperfeiçoamento do sistema democrático [...]; descentralização adequada da sistemática de Governo [...]; saneamento e fortalecimento do setor econômico [...] (ADN, mar/abr de 1981, p. 63), A transição institucional se marca pelos conflitos de aspirações, cujos excessos carecem de administração sensata e competente. Felizmente, ao longo da história nacional, ela se tem processado regida pela lucidez dos homens que a conduzem. Nada mais que isso é o que a Nação deseja, dos condutores da atual transição (ADN, jan/fev de 1988, p. 5)

68 As propagandas foram retiradas em definitivo em meados dos anos 1990.

Page 78: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

64

Durante o regime ditatorial, foi possível observar a manutenção do

alinhamento da revista ADN aos chefes militares e, em contrapartida, a ocorrência

constante de auxílio financeiro e humano destes líderes para garantir a existência do

periódico. Constatamos também que durante o regime militar a revista ADN enfrentou

suas maiores crises, e para evitar o seu completo desaparecimento foi transferida para a

administração de organismos oficiais do Exército.

No período que propomos abordar mais especificamente (1990-2004), os

principais assuntos veiculados pela revista ADN foram: Amazônia, economia, educação

e cultura militar, reflexões sobre o Exército, política, profissional, e temas de história e

atualidade. Segue abaixo, na Figura 2, a proporção dos temas abordados na revista ADN

ao longo de 1990-2004, cabe ressaltar que neste período foram publicadas 53 revistas

que formam um total de 653 artigos. Gostaríamos de esclarecer que: (1) uma parcela

dos artigos da revista foi retirada de outros veículos de comunicação – militares e/ou

civis, nacionais e/ou estrangeiros –; (2) existe a participação de autores militares da

reserva, em minoria; e (3) que os artigos do campo majoritário denominado “diversos”,

apresentam uma variedade muito grande de assuntos (informativos, saúde, habitação).

Proporção de assuntos da revista "A Defesa Nacional"

(1990-2004)

3%

23%

4%

2%

12%19%

22%

15%

Amazônia

Diversos

Economia

Educação e Cultura Militar

Reflexões sobre o Exército

Política

Profissional

Temas de História e atualizadadeshistóricas

Figura 2: Proporção de assuntos da revista A Defesa Nacional (1990-2004).

Outra importante informação sobre o periódico faz referência à caracterização

dos atores sociais responsáveis pela autoria dos artigos. A seguir, na Figura 3,

demonstramos a proporção relativa aos autores militares e civis; e em seguida, na

Page 79: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

65

Figura 4 a proporção das patentes dos militares que publicaram artigos na revista ADN

no período de 1990-2004.

Proporção de autores da revista "A Defesa Nacional"

(1990-2004)

70%

27%

3%

Militares

Civis

Não informado

Figura 3: Proporção de autores da revista A Defesa Nacional (1990-2004).

Proporção de patentes dos autores da revista "A Defesa

Nacional" (1990-2004)

3%

40%

16%

14%

11%

15%

1%

Capitão

Coronel

General

Major

Militares da Marinha,

Aeronáutica e FA estrangeiras

Tenente

Tenente-Coronel

Figura 4: Proporção de patentes dos autores da revista A Defesa Nacional (1990-2004).

Diante da já esperada maioria de autores militares, observamos, na Figura 3, a

significativa participação de civis, cerca de um terço dos autores, entre os quais

Page 80: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

66

encontramos professores, políticos, advogados e engenheiros69. Todavia, se o grupo de

civis encontra-se bastante segmentado profissionalmente, a representação institucional

dos militares pode ser melhor delimitada, visto que, majoritariamente, os militares

envolvidos com a revista ADN, como demonstra a Figura 4, fazem parte dos dois

grupos de oficiais que congregam as mais elevadas patentes do Exército Brasileiro:

oficiais superiores (major, tenente-coronel e coronel) e oficiais generais (general de

brigada, general de divisão e general de exército).

De maneira geral comentamos acima, prioritariamente as questões

organizacionais e as características dos envolvidos com a revista no período de 1990-

2004, visto que os artigos e suas temáticas serão aprofundados no próximo capítulo, e

compõem o núcleo da pesquisa. Diante da variedade de temas publicados pelo

periódico, circunscrevemos a análise a seguir (Capítulo 3) apenas às propostas da

revista ADN sobre: a relação das FA com o Estado e a sociedade; e o discurso sobre o

golpe de 1964 e seu legado para a sociedade de hoje.

2.6. Considerações finais

A análise realizada ao longo deste capítulo demonstra que o periódico

apresenta uma trajetória sui generis no campo editorial do Exército Brasileiro. Tendo

sua origem marcada por iniciativa de particulares, conviveu com crises econômicas

desde sua gênese até alcançar seu momento áureo nos anos 1930-1940. Neste período

de apogeu, o periódico contabilizou mais de dez mil assinaturas; estabeleceu-se, de

maneira oficiosa, como instrumento de comunicação e instrução dos/para os altos

oficiais do Exército; e demonstrou pleno alinhamento com o governo vigente e com os

chefes militares.

Hoje, devido ao crescente número de periódicos especializados e a própria falta

de interesse por material de cultura geral no Exército70, a revista ADN atravessa um

69 Muitos desses profissionais civis são palestrantes das escolas militares. 70 Entre os motivos que interferem no consumo de material editorial no Exército, também podemos citar: o custo – hoje a revista A Defesa Nacional custa R$ 14,00; e os mecanismos internos de progressão que estruturam uma bibliografia que não inclui os periódicos. Vale lembrar que durante muito tempo a ECEME inseria na bibliografia de seus exames de admissão o conteúdo da revista ADN.

Page 81: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

67

ciclo estável, iniciado, após grave crise financeira, na década de 1970, quando se tornou

responsabilidade direta de órgãos oficiais do Exército.

O estudo da revista A Defesa Nacional, alicerçado pela busca constante de sua

inserção histórica, principalmente de seu posicionamento em debates nacionais,

possibilitou a percepção de que os responsáveis pelo periódico demonstram uma

orientação muito bem definida nos mais diversos assuntos. Desta forma, foi possível

avaliar que os responsáveis desfrutaram de um profundo domínio sobre assuntos

nacionais e internacionais, alicerçados pela realidade de interesses da corporação.

Em síntese, compreendemos que a revista A Defesa Nacional sofreu

significativas transformações71 ao longo de sua existência, mas conservou seu status de

instrumento de divulgação; representante de uma parcela do Exército; e destinada a

veicular artigos sobre a corporação, o Estado, a sociedade, e, especialmente, uma

proposta de interação entre eles.

71 A principal mudança ocorreu quando a revista deixou de ser instrumento de mudança, e se tornou instrumento de divulgação do status quo, ressaltando que esta transformação ocorreu devido ao alcance adquirido no Exército pelas propostas dos responsáveis pelo periódico e pela apropriação da revista por gerações subsequentes de altos oficiais do Exército.

Page 82: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

68

CAPÍTULO 3 – A revista A Defesa Nacional pensa as Forças Armadas na Nova

República (1990-2004)

3.1. Militares e política na Nova República: perspectivas para uma análise

Ao inaugurar a Nova República, deu-se continuidade a um processo de

normalização dos procedimentos institucionais democráticos, já iniciados nos dois

últimos governos do regime militar (presidentes Ernesto Geisel e João Figueiredo). Em

decorrência do prolongado período de desmonte da estrutura autoritária vigente durante

o regime, os pesquisadores do assunto se depararam com um opulento e tenso campo de

estudos.

Analisaremos, a seguir, parcela da produção acadêmica que busca,

principalmente, examinar e compreender a recomposição das relações civis-militares e a

inserção das Forças Armadas na dinâmica da nova ordem democrática. Embora

algumas obras cheguem a conclusões contrárias sobre o mesmo assunto, sem dúvida

elas fornecem informações que proporcionam um interessante debate.

Entre as obras selecionadas prevalece o debate sobre: (1) a

manutenção/supressão de prerrogativas militares, privilégios, espaço de pressão na cena

nacional, poder de veto; e (2) o questionamento dos níveis de competência de

organismos civis para administrarem democraticamente as questões militares. Serão

comentadas as obras de: Jorge Zaverucha (1994 e 2000), Wendy Hunter (1997), Eliézer

Rizzo e Samuel Soares (2000) e Celso Castro e Maria Celina D’Araujo (CASTRO e

D`ARAUJO, In: ABREU, 2006).

A produção de Jorge Zaverucha sustenta que no Brasil ocorre a permanência de

estruturas militares fora do controle civil desde o governo de José Sarney até o governo

de Fernando Henrique Cardoso e, segundo o autor, sem grandes perspectivas de

mudança. Em sua obra Rumor de Sabres (1994) são analisados, de maneira

comparativa, os processos de transição do regime autoritário para o democrático na

Espanha, na Argentina e no Brasil. Em obra destinada somente ao caso brasileiro,

Zaverucha (2000) amplia seu recorte cronológico e aprofunda seus questionamentos.

Page 83: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

69

De maneira geral, Zaverucha apresenta três possibilidades de relacionamento

entre civis e militares em processos de transição: (1) a democracia, situação em que os

militares obedecem repetidamente aos comandos civis; (2) à volta ao autoritarismo e;

(3) a tutela, situação na qual os militares continuam a se comportar autonomamente72.

Esta última, considerada pelo autor, a característica do caso brasileiro73.

É preciso bastante atenção ao rebater as conclusões de Zaverucha,

principalmente, pela riqueza de detalhes oferecida pelo autor. Entre os casos

comentados para a comprovação de sua hipótese – manutenção de prerrogativas

militares diante da conivência civil no caso brasileiro – encontramos: a continuidade da

configuração militar do governo de Figueiredo no período Sarney (1985); a não

reabertura do caso Riocentro após o aparecimento de novas provas (1985); o veto à

Emenda Uequed74 (1985); a ação do SNI e do órgão que o substituiu; o uso das Forças

Armadas em questões sociais; o enquadramento militar adquirido através da

Constituição e, mais recentemente, a atrofia do Ministério da Defesa. Todos os casos

citados acima são detalhadamente explicados e projetam, segundo Zaverucha, a

confirmação de sua conclusão acerca da autonomia militar em diferentes instâncias

nacionais.

Desta forma, o autor considera que as esferas deixadas intactas e os

enfrentamentos/resoluções ocorridos durante o período da presidência de Sarney até

Fernando Henrique Cardoso, impediram a administração civil democrática sobre os

assuntos militares (ZAVERUCHA, 2000, p. 27).

Em posição oposta a de Zaverucha encontra-se Wendy Hunter. O livro de

Hunter (1997) – baseado em sua tese de doutorado – coloca em xeque a interpretação de

Zaverucha. Para a autora o que ocorre no Brasil pós-1985 é a “erosão do poder de

influência militar na política”, principalmente a partir do governo de Fernando Collor de

Mello75.

72 A situação de tutela pode ser encontrada nos casos em que os civis não procuraram estabelecer o controle sobre os militares ou porque, embora tentem, os civis se revelam incapazes de impedir a autonomia dos militares. (ZAVERUCHA, 200, p. 10). 73 A definição do autor para “democracia tutelada” é de um híbrido de componentes democráticos e autoritários. 74 A Emenda propôs uma lei de anistia que beneficiaria militares punidos pelo regime militar, que poderiam ser promovidos ou reintegrados à ativa. 75 Sugerimos consultar como referência introdutória o verbete “Fernando Collor de Mello” de Renato Lemos no DHBB (2001).

Page 84: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

70

De acordo com Hunter, o principal motivo para o enfraquecimento do poder

militar foi a garantia e a legitimidade conferida aos civis através do voto76, ou seja, do

restabelecimento das disputas eleitorais democráticas e as vantagens que este

mecanismo garante aos civis. Em destaque, Hunter também apresenta o relativo

sucesso na ampliação dos espaços civis de decisão,77 com a participação do Legislativo

e do Executivo.

Porém, o excesso de confiança nas regras democráticas impediu que a autora

considerasse, em sua análise, outras circunstâncias do contexto histórico (FERRAZ,

1999). Assim, seria fundamental complementar sua obra com a percepção sobre: as

motivações militares para a não interferência; a influência da opinião pública; a questão

profissional e a ascensão de uma nova geração de oficiais (D’ARAUJO, SOARES e

CASTRO, 1995; D’ARAUJO e CASTRO, 1997; e CONTREIRAS, 1998).

Principalmente, porque a vigência da democracia não é impedimento de golpe militar.

Além disso, é preciso ter cuidado com o excesso de otimismo apresentado por Hunter e

constatado em sua conhecida afirmação: “correndo o risco de exagero, as condições dos

anos 80 e 90 tornaram as Forças Armadas brasileiras algo como um tigre de papel”

(HUNTER, 1997, p. 23).

Outra possibilidade de compreensão das relações civis-militares após 1985

pode ser encontrada em artigo produzido por Eliézer Rizzo de Oliveira e Samuel Alves

Soares (OLIVEIRA E SOARES, In: D`ARAUJO e CASTRO, 2000, pp. 98-124). De

acordo com os autores, a mudança do regime militar autoritário para o da Nova

República é caracterizada como um processo de democratização “pelo alto” e por um

padrão bastante peculiar nas relações civis-militares. Este último, marcado

principalmente pela lenta e cautelosa adequação ao novo contexto político, que ainda se

encontra em fase de maturação78.

76 Esta explicação é aplicada pela autora para especificar e diferenciar o governo Sarney dos subsequentes, pois tal governo não havia emergido de condições democráticas – voto – logo não gozava de legitimidade suficiente para garantir o controle dos militares. 77 A autora enfatiza a importância das resoluções civis acerca dos direitos trabalhistas; da política orçamentária; e da definição de políticas para a Amazônia. 78 No sentido aplicado pelos autores ainda estaria em maturação à consolidação do controle civil objetivo na relação civis-militares. Sendo o controle civil objetivo decorre da intensificação do profissionalismo militar e do sentimento arraigado de lealdade e obediência ao poder civil. (OLIVEIRA E SOARES, In: D`ARAÚJO e CASTRO, 2000, pp. 98-124)

Page 85: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

71

Os autores, mesmo diante das peculiaridades do governo Sarney79, defendem a

existência de importantes avanços na administração política dos civis no tratamento das

questões militares ao longo da Nova República, entre eles: a abolição do SNI; as

eleições diretas (1989); o impeachment do presidente Fernando Collor (1992); a lei dos

Desaparecidos (1995), o Plano de Defesa Nacional (1996); e a criação do Ministério da

Defesa (1999). No entanto, afirmam que, no momento de produção de suas obras, a

institucionalização do poder civil sobre as questões militares ainda está em construção,

sendo necessária a existência de uma efetiva responsabilidade civil sobre tais assuntos.

A conclusão apresentada por Oliveira e Soares expressa, na prática, um caminho para a

condução mais eficiente e democrática dos temas militares. Pois, se ainda são mantidas

prerrogativas militares80, os autores as relacionam, diretamente, à inércia e/ou

desqualificação dos civis em administrá-las.

Desta forma, os autores afirmam a necessidade da emergência de debates e da

corresponsabilidade na condução civil da política referente às Forças Armadas no

Brasil. O que deve implicar na presença dos temas de defesa/segurança em campos

diversificados como: na imprensa, que hoje evidencia assuntos pontuais e escandalosos

sobre as Forças Armadas; na sociedade, pois esta não encontra em sua realidade

importância nos assuntos de defesa, visto que não há uma ameaça iminente; no

Legislativo, que apresenta uma visível apatia em questões militares e; nos partidos

políticos. Esses últimos tendem a não valorizar a questão da defesa/segurança por não

estar na ordem de prioridades da maior parte da população, ou mesmo para não

despertarem sentimentos negativos em seus eleitores, visto que, a recente experiência do

regime militar ainda causa polêmica.

Diante dos esclarecimentos acima, foi possível observar que os autores

convergem, em maior ou menor grau, para a importância da eficácia e da competência

do regime civil democrático nos assuntos militares. No entanto, as Forças Armadas não

aguardam tal qualificação e ocupam a cena com propostas e projetos produzidos

internamente para a resolução de suas aspirações no cenário nacional e, também, do que

acreditam ser de interesse da nação. O que propomos analisar é a existência de um 79 Os autores fazem uma diferenciação entre o governo Sarney e os seguintes, principalmente pela visível proeminência militar no campo político: ministérios; manutenção do SNI; atuação do ministro Leônidas Pires; e o lobby militar durante a Constituinte. Desta forma, os autores consideram que o governo Sarney seria de incerteza acerca da democracia, por isso considerado um governo de “transição”. 80 Os autores incluem: a proeminência em aspectos da política de desenvolvimento da Amazônia; a autonomia para o ensino militar; as decisões sobre a dimensão das forças; controle de recursos; definição de locais de unidades militares; decisões sobre a política de pessoal militar; foros especiais de justiça para militares e produção de informações de inteligência de cada força sem órgãos de controle e fiscalização.

Page 86: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

72

desses espaços de difusão de conhecimento no Exército – a revista ADN – e uma

parcela de sua produção.

De acordo com nossa proposição inicial – existência de projetos militares para

as mais variadas questões nacionais – identificamos a visão que a revista ADN

construiu dos governos de 1990 a 2004, com ênfase na temática das relações entre

Forças Armadas, sociedade e Estado. Em seguida, analisamos o tema central da

pesquisa: o discurso da revista ADN sobre o golpe de 1964 e o regime militar.

De maneira geral, ao examinar o discurso do periódico referente ao golpe de

1964 e ao regime militar, foi possível identificar a manutenção do teor salvacionista e

da fixação das Forças Armadas como fiadoras das instituições políticas. A pesquisa não

se propõe a apontar a presença iminente de um golpe militar, mas sim, a herança/legado

do regime militar que tem sido divulgada para as gerações atuais do Exército e a

implicação deste discurso para a salvaguarda de prerrogativas e vetos militares.

3.2. A revista A Defesa Nacional: Forças Armadas, sociedade e Estado (1990-2004)

Ao longo de toda a análise da revista ADN encontramos áreas em que o

periódico não abre mão de uma definição própria e áreas em que solicita a intervenção

da administração civil. De maneira geral, o periódico aponta constantemente para: (1) a

consolidação da interpretação que faz acerca da função militar, das prioridades das FA,

da administração das FA e da importância nacional das instituições militares e, (2) o

atendimento das necessidades das FA acerca de orçamentos e resoluções políticas81.

Qualquer que seja a evolução da arte da guerra, decorrente do novo quadro político delineado no limiar do século XXI, o papel universal e perene das Forças Armadas continua imutável – dissuadir agressões, defender a Pátria e garantir a lei e a ordem, interna e externamente (ADN, jul/set de 1995, p. 63).

Como o Exército pensa o seu preparo e emprego para responder à sua destinação Constitucional? Ressente-se da inexistência de uma Política de Defesa e de um Conceito Estratégico Nacional formais, detonadores de desdobramentos na área militar e capazes de proporcionar o embasamento para o planejamento estratégico da Força Terrestre (ADN, abr/jun de 1993, p. 13).

81 Solicita resoluções nacionais que possam guiar de maneira organizada a defesa e a segurança nacionais.

Page 87: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

73

3.2.1. O governo de Fernando Collor de Mello, 1990-1992

Passados quase trinta anos da intervenção militar, os brasileiros retornavam às

urnas para escolherem o novo presidente da República. O cenário político de 1989

acompanhou a disputa final entre Luis Inácio da Silva (Lula)82 e Fernando Collor de

Mello. O primeiro identificado com o movimento de esquerda, contrário a ditadura e, o

segundo, projetado politicamente em associação com regime autoritário83. Embora

Collor não possuísse total aceitação nos meios políticos e militares84, ele surgia como

salvação nacional à ameaça esquerdista.

Com uma candidatura favorecida pela mídia e pelo medo/desconfiança de

parcela da população em relação à esquerda petista, Collor garantiu sua vitória. O

presidente eleito prometeu austeridade. Dentro de um quadro de inflação descontrolada,

anunciou o combate ao desperdício e à corrupção e, seu grande slogan de campanha, a

caça aos marajás85. Empossado em 1990, Collor colocaria em curso um projeto

neoliberal. Durante seu governo combateu leis nacionalistas e iniciou o programa de

venda de empresas estatais. Também foram alteradas tarifas alfandegárias, o que

permitiu a invasão do país por produtos estrangeiros.

Na área militar, o novo presidente apresentou um perfil diferente do governo

Sarney86. A relação entre Collor e seus ministérios militares seguia uma dinâmica de

altos e baixos, marcada por visitas e passeios nos quartéis e pela ampliação do espaço

civil de decisão. Collor aboliu o SNI87, o que alterou a atividade de informações no

Brasil e o monopólio militar da atividade ao criar a Secretaria de Assuntos Estratégicos

(SAE), chefiada por um civil88. O presidente também atuou na modificação da

82 Sugerimos consultar como referência introdutória o verbete “Luis Inácio da Silva” de Marcelo Badaró no DHBB (2001). 83 Collor foi indicado durante a ditadura militar como prefeito de Maceió. 84Por solicitação de Sarney, o SNI produziu um relatório ácido que definiu Collor como: “Um Al Capone moderno e discípulo aplicado de Goebbels” (ZAVERUCHA. 200, p. 59). 85Funcionários públicos privilegiados com altos salários. 86Governo que manteve a proeminência militar em assuntos políticos. 87Embora Zaverucha acredite que se tratava mais de uma vingança – em decorrência do relatório produzido sobre Collor – do que reflexo de uma iniciativa institucional de estabelecer controle democrático sobre as atividades de inteligência (ZAVERUCHA, 2000, p. 60). 88 O que não impedia a presença militar, sendo chefiado pelo almirante Mário César Flores durante o governo Itamar.

Page 88: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

74

configuração militar nas instâncias políticas ao retirar do chefe da Casa Militar e do

Estado-Maior das Forças Armadas o status de ministro de Estado; regulamentou a ação

interna das FA89 e interferiu diretamente nos planos da Aeronáutica ao fechar a base da

Serra do Cachimbo90.

Todavia, ainda no campo militar, o que figura como principal inquietação na

revista ADN é o debate sobre a própria existência e função das FA. Salta aos olhos a

preocupação do periódico em consolidar um padrão interpretativo da função das

instituições militares e de garantir melhorias orçamentárias. A atenção se justifica,

principalmente, pelas novas condições nacionais e internacionais: (1) a obsolescência do

cenário tradicional de conflito, com o fim da Guerra Fria; (2) seu desdobramento

interno, o fim da luta contra o comunismo e; (3) a consolidação do regime democrático

brasileiro.

Os anos que vão do lançamento das bombas atômicas até o fim da União

Soviética não formam um período homogêneo, mas, apesar disso, a história desse

período foi reunida sob um padrão único: “o constante confronto das duas

superpotências que emergiram da Segunda Guerra Mundial na chamada ‘Guerra Fria’”

(Hobsbawm, 2007). Com o fim da Guerra Fria tornou-se indispensável à necessidade

mundial de reorganização e de reavaliação funcional das Forças Armadas. Pois, diante

da conjuntura de ausência do inimigo tradicional surgiram propostas que preocupavam a

revista ADN, entre elas as contidas na Carta de Paris91 e nas declarações de Robert

McNamara, ex-ministro da Defesa dos Estados Unidos. Segundo o periódico, a proposta

de diminuição dos gastos militares, presente na Carta de Paris, não condiz com a

realidade militar de diversos países e, menos ainda, com a das Forças Armadas

brasileiras:

Pode-se ignorar que a ação militar brasileira em defesa dos interesses nacionais não se fez apenas através de ações armadas? O que dizer da atuação das Forças Armadas como fator de integração nacional e de assistência sempre que isso se faz necessário? São essas algumas das razões que impõem a necessidade de Forças Armadas convenientemente organizadas, equipadas, instruídas e adestradas, possuidoras de elevado espírito profissional, prontas para cumprirem as tarefas decorrentes da Missão Constitucional (ADN, out/dez de 1991, p. 25).

89Lei Complementar no 69/91, de 23 de julho de 1991. A lei determina que a atuação das FA ocorra de acordo com as diretrizes do presidente da República depois de esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio. 90 Para uma cronologia detalhada sobre o assunto ver a obra Jorge Zaverucha (2000, pp. 59-109). 91 No dia 19 de novembro de 1990, a Conferência sobre Segurança e Cooperação na Europa (CSCE) reuniu-se em Paris para declarar o fim da Guerra Fria e da Europa dividida. Ao final, a Conferência divulgou a chamada "Carta para a Nova Europa", também conhecida como Carta de Paris. Entre suas propostas, consta a diminuição dos gastos militares dos países signatários.

Page 89: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

75

Já as declarações de McNamara em encontros internacionais causaram maior

impacto, pois, segundo os artigos, ultrapassavam a proposta de diminuição dos gastos

militares e poderiam comprometer o princípio de soberania dos Estados:

O presente artigo tem por finalidade analisar duas grandes polêmicas levantadas em torno das forças armadas brasileiras. A primeira é a idéia que vem sendo trabalhada no cenário político nacional de que não existem hipóteses de guerras admissíveis para o Brasil. A segunda, frequentemente amparada em depoimentos de analistas estrangeiros, via de regra pouco familiarizados com as realidades nacionais, levanta a questão da redução dos efetivos e do redirecionamento das atividades das forças armadas (ADN, jul/set de 1992, p. 19).

[...] objetivando aparentemente um estudo de redução de orçamentos militares dos países em desenvolvimento, o Sr. McNamara desenvolveu a tese de que a paz e a segurança do mundo, após o fim da guerra fria, devem ser asseguradas pelos EUA, juntamente com os ‘grandes’ (Inglaterra, França, Alemanha, Itália, Japão e Canadá). (ADN, out/dez de 1992, p. 30).

De maneira geral, ADN afirma que as teorias internacionais de redução dos

gastos militares e de reorientação das FA, em decorrência do fim da Guerra Fria, não se

aplicam ao caso brasileiro. Além das funções interna/externa e dos perigos ainda

existentes – narcotráfico, contrabando, vigilância das fronteiras, comunismo – a

justificativa se baseia no histórico dos conflitos internacionais no Brasil, que não se

delinearam devido divergências ideológicas, mas sim territoriais: “Em conclusão, a não

ser que se aceite a tese de que soberania e autodeterminação nacional não são mais

valores importantes, parece difícil se arguir sobre a inutilidade e redução de nossas

Forças Armadas” (ADN, out/dez de 1992, p. 36).

No plano nacional, o periódico interpreta e exemplifica as funções

constitucionais das Forças Armadas: ações complementares de assistência e ações de

garantia da lei e a ordem. Em ambas constatamos a presença de significativa autonomia

no discurso da revista ADN em relação à determinação de projetos profissionais e

sociais, e, indicamos como sustentáculo de tal autonomia não somente a satisfação em

guiar um destino para si92, mas também a ausência e/ou ineficiência de um projeto

nacional referente ao assunto e a diversidade de interpretações proporcionada pelo texto

constitucional acerca da função das FA.

As atividades de assistência reforçam a importância do auxílio das Forças

Armadas em circunstâncias emergenciais e/ou longínquas. O que delega as instituições

92 A revista apresenta uma circulação praticamente restrita ao meio militares, assim como os artigos que são escritos majoritariamente por militares.

Page 90: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

76

militares, segundo ADN, participação ativa no processo de desenvolvimento e

integração nacionais:

Desbravamento de regiões inóspitas, apoio em calamidades, trabalhos de infra-estrutura, educação, saúde e profissionalização de jovens, mapeamento de nosso território, demarcação de terras indígenas, pesquisa técnico-científica e ensino em diferentes níveis, são algumas das participações protagonizadas pelos homens de farda [...] (ADN, jan/mar de 1991, p. 10).

A atenção com a ordem interna, no caso de ADN, torna-se mais tensa visto que

o fim da Guerra Fria não desencadeou, nos artigos da revista, a euforia da eliminação do

inimigo comunista. São constantes os comentários sobre a manutenção, mesmo que em

menor escala, da ideologia comunista no cenário nacional. Tal conclusão se baseia,

especialmente, nas incertezas sobre o futuro da ex-URSS e na presença legalizada de

grupos nacionais identificados com o projeto comunista93. Esse último ponto, associado

à constatação de que a conjuntura brasileira apresentava graves dificuldades a serem

superadas – os anseios por justiça social e desenvolvimento – potencializou a

preocupação militar com a ocorrência de distúrbios sociais. O risco, segundo o

periódico, evidenciava-se na ingerência de grupos, apontados como “de esquerda”, que

planejavam burlar o processo democrático em favor da implantação de uma ditadura.

Nesse desafiante momento da vida nacional, as Forças Armadas devem ser vistas pelas elites e pela sociedade como uma garantia de que a lei e a ordem serão obedecidas e de que não se dará nenhuma aventura que possa retardar por gerações o nosso desenvolvimento (ADN, jul/set de 1992, p. 35).

Em artigo que comentou a realização de constantes reuniões e congressos de lideranças

de esquerda, ADN publicou:

São fatos como esse, aliados à violência das invasões de terras, as agitações urbanas, que mostram a necessidade de preparo de nossas Forças Armadas para uma eventualidade de emprego na manutenção da lei e da ordem e dos poderes constitucionais (ADN, out/dez de 1991, p. 26).

Sem dúvida, figura entre os assuntos mais debatidos nesse período não só a

expressão mais prática da função das FA, mas também, o objetivo de manter a

destinação constitucional das FA brasileiras. Os artigos da ADN, conscientes das

críticas da população94 e defensores de um modelo de inserção legal das FA, expressam

receio quanto à possível mudança constitucional/funcional das instituições militares.

Essa ameaça, segundo os artigos, é crescente, e encontra seus pilares nos grupos

93 A partir de 1985 os partidos políticos defensores de ideologias de esquerda, que atuavam na clandestinidade durante o regime militar, puderam se legalizar, tais como o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e o Partido Comunista do Brasil (PC do B), entre outros. 94 As críticas relatadas tendem a minimizar a necessidade de gastos militares devido aos graves problemas sociais e à falta de perigo externo iminente.

Page 91: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

77

pacifistas, nos países desenvolvidos e nos que, ressentidos com o regime militar, tentam

alijar o Exército de sua posição fundamental de defensor da lei e da ordem.

As elites responsáveis e sinceramente devotadas à Nação devem ter em mente os riscos que determinadas propostas de modificação na missão e estruturação das Forças Armadas podem representar numa conjuntura difícil como a que o país atravessa, bem como analisar a importância das Forças Armadas para a estabilidade e evolução política da Nação (ADN, jul/set de 1992, p. 38). Na atual Missão Constitucional das Forças Armadas, os aspectos fundamentais e essenciais foram mantidos, o que se constitui em grande vitória contra o ‘sentimento revanchista’ por parte de alguns constituintes. Mas as forças de esquerda ainda não consideram a batalha como inteiramente perdida, tendo em vista a possibilidade da reforma constitucional decorrente do plebiscito previsto para 1993. É necessário manter-se vigilante a este respeito (ADN, out/dez de 1991, p. 22).

A conjuntura do governo Fernando Collor foi de muita expectativa – o retorno

às eleições diretas, a mobilização popular, a crença na democracia e na solução dos

problemas nacionais –, mas em pouco tempo substituída por um sentimento de

perplexidade. Além da proximidade com o regime autoritário, o que para muitos se

tornava preocupante, em 1992, em meio a adversidades econômicas, o presidente sofreu

denúncias de corrupção anunciadas por seu próprio irmão. Em seguida, com o

aparecimento de novos indícios de corrupção, Collor enfrentou a opinião pública; a

investigação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) e os protestos da

população nas ruas. Nesse período, desencadeou-se no Brasil uma das mais graves

crises políticas já vividas, agravada pelas incertezas da recém instaurada democracia.

Diante de uma crise de grandes proporções, a surpresa não estava só nas

acusações, nas investigações ou na liberdade de protesto que o povo brasileiro

apresentava. Mas, no campo das relações entre civis e militares, finalmente, a crise foi

contornada sem a intervenção direta das Forças Armadas. Segundo Celso Castro e

Maria Celina D`Araújo esse episódio foi o “batismo de fogo” dos militares na nova

democracia (In: ABREU, 2006, p. 28). Em dezembro de 1992, Collor encerrava

oficialmente seu mandato com a aprovação do processo de impeachment.

O episódio de impedimento do presidente foi tema principal de dois artigos da

revista ADN (ADN jul/set de 1992, p. 50 e ADN, jan/mar 1993, p. 5). Em ambos os

casos o periódico valorizava o distanciamento dos militares das questões políticas.

Entretanto, neste contexto, diversos artigos da ADN expressaram incômodo com os

comentários publicados por outros meios de comunicação que resgatavam

negativamente o histórico de interferências militares na política brasileira. Diante das

Page 92: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

78

acusações sobre o passado e das especulações acerca de uma possível ação das FA na

conjuntura política, o periódico deslocou o foco da crise do impeachment para a

publicação de artigos em defesa da legitimidade das intervenções que foram efetuadas

pelas FA na vida nacional:

A partir da Proclamação da República, na qual o Exército teve papel decisivo, por diversas vezes as Forças Armadas foram levadas a interferir no processo político do País. Foram interferências de intensidade variável, feitas em defesa dos poderes constituídos ou contra o que julgavam seus excessos, e sempre em conjugação com lideranças políticas, com ponderável apoio popular e com a consciência de transitoriedade de sua ação (ADN, jan/mar de 1993, p. 5).

3.2.2. O governo de Itamar Franco, 1992-1994

O desfecho da crise que assolou o país levou Itamar Franco95 à presidência.

Político de menor projeção na mídia, Itamar teve seu mandato marcado pela aplicação

do Plano Real e pela realização de uma revisão constitucional, essa última, prevista na

legislação vigente96. Outra característica de seu governo foi a recomposição da

burocracia federal, através da indicação de um número considerável de militares em

posições ministeriais e nos primeiros escalões da administração pública.

Na área econômica, o Plano Real previa o controle inflacionário e a

estabilização econômica. Para sua concretização e eficiência, o governo adotou medidas

visando conter os gastos públicos. Também foram privatizadas empresas estatais,

elevadas as taxas de juros e a baixa nos preços dos produtos foi garantida por meio da

abertura da economia a competição internacional. A mudança econômica realizada por

Itamar Franco aprofundou a política neoliberal iniciada por Collor e, em curto prazo,

ocasionou a queda da inflação e o aumento do poder aquisitivo da população97.

Durante o governo de Itamar Franco, a revista ADN manteve os principais

debates dos anos de seu antecessor. Entre eles destacamos a preocupação em manter a

95 Sugerimos consultar como referência introdutória o verbete “Itamar Augusto Cautiero Franco” de Renato Lemos no DHBB (2001). 96 O Artigo 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), de 5 de outubro de 1988, previa a realização do processo de revisão constitucional após decorridos cinco anos da promulgação da Constituição Federal. A cláusula para rever a Constituição baseava-se na possível instabilidade do processo de mudança do regime ditatorial para o democrático e nos impactos que a promulgação da Constituição poderia causar na ordem social do país. 97Para mais detalhes sobre o Plano Real consultar a obra de Luiz Filgueiras (2003).

Page 93: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

79

ordem constitucional referente ao uso interno/externo das Forças Armadas, assunto

incitado ainda mais em decorrência da proximidade da revisão constitucional.

[...] a Assembléia Constituinte legislou com descortino e senso de realidade ao fixar como destinação constitucional das Forças Armadas: a defesa da Pátria, a garantia dos poderes constitucionais e, nos limites do ordenamento jurídico, da lei e da ordem (ADN, abr/jun de 1993, p. 16-17).

A conclusão dos trabalhos da revisão constitucional iniciada em 1993 não

alterou a condição legal das FA. A revisão foi completamente malograda por não ter

amparo político, visto que ocorrera relativa segurança constitucional nos últimos cinco

anos e, por ter coincidido com o escândalo da Comissão de Orçamento98. Na prática,

seu resultado foi somente de seis emendas que não promoveram alterações extensas na

Constituição de 1988.

Todavia, se, por um lado, a alteração constitucional foi contida, ao longo de

toda a década 1990 a revista ADN apresentou insatisfação sobre o comportamento da

opinião pública em relação às FA. Em seus artigos, tornou-se visível a percepção de que

a população não se identificava com as Forças Armadas, e que os militares eram não só

alijados da política, mas também vistos como um grupo estranho à sociedade. O

sentimento de desvalorização era frequentemente comentado:

De qualquer maneira o texto em epígrafe assinala o que, de uma maneira ou de outra, nós militares sentimos. Uma deliberada incompreensão pela sociedade civil da Instituição Militar, o que tantos males já causou no passado e que pode continuar a causar no futuro (ADN, jan/mar 1991, p. 13).

A evolução profissional da mídia brasileira, em particular a televisão, não tem um equivalente do ponto de vista de amadurecimento político. Em sua quase totalidade, quando se trata de Forças Armadas, ela continua explorando o filão ideológico aparentemente inesgotável da interpretação marxista da história recente da vida nacional. No entanto, não é apenas a interpretação marxista do nosso passado recente a única causa de desgastes na imagem das Forças Armadas. Existe também o oportunismo pseudoliberal, que se apressa em taxar os militares de retrógrados, nacionalistas e estatizantes (ADN, jan/mar de 1993, p. 40).

Os artigos reivindicam que a importância das funções militares seja compatível

com as condições materiais, humanas e constitucionais das FA; e também por sua

valorização pela sociedade. Porém, existe um verdadeiro consenso na revista ADN

sobre os ataques sofridos pelas instituições militares, seja por incompreensão,

desinformação ou por algum tipo de interesse. A revista ADN indica entre os

responsáveis pelos ataques: a ação da mídia; o revanchismo que a sociedade acumula

em decorrência do regime militar e o descaso de alguns grupos políticos.

98Investigação sobre a atuação de parlamentares envolvidos em fraudes na Comissão de Orçamento, também conhecida como “CPI dos anões do orçamento”.

Page 94: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

80

Muito se tem questionado a existência das Forças Armadas brasileiras ou, como querem alguns, a presença dos militares no contexto social. Entretanto, o que se observa são contestações, na sua grande maioria levianas e totalmente destituídas de argumentação consistente, não resistindo a mais elementar das análises. Generalizações são encontradas a cada página de jornal, levando, fatalmente, a conclusões enganosas (ADN, abr/jun de 1995, p. 97-98).

O jargão sempre disponível para criticar os militares brasileiros é a ‘ditadura militar’, aí incluídos ‘golpe de 1964’, ‘repressão’ e ‘tortura’. Essa retórica tem uma enorme gama de aplicações, desde plataforma eleitoral de novas carreiras políticas, até desfibrilador de enfartadas campanhas eleitorais. É dessa fonte que aquela combinação elite-intelectual-interesse se vale para ocupar espaço na imprensa e atingir seus objetivos, sejam eles políticos, econômicos ou psicossociais e, porque não, até pessoais (ADN, jan/mar de 1993, p. 42).

Diante da insatisfação com as críticas da sociedade e com o objetivo de

inverter tal condição, a revista ADN se esforça por conciliar e enaltecer a

interdependência existente entre civis e militares. Em seus artigos encontramos um

discurso que resgata a constante e heróica presença militar na história da nação e a

existência de uma estrutura indissociável entre as Forças Armadas, o Estado e a

sociedade.

A partir daí, acreditamos que se torna mais fácil chamamos de ‘poder militar’ nada mais é do que uma pequena parcela, uma área de projeção ou, se quisermos, uma das formas de expressão de um poder utilitário e maior, denominado poder nacional (ADN, abr/jun de 1995, p. 103).

Porém, o periódico, de restrita, ou mesmo, nula circulação no meio civil,

direcionou o debate para o engrandecimento do militar e de suas instituições, em

detrimento da associação civil/militar. Sendo observado que o encaminhamento final

sempre aponta para a especificidade do profissional militar e para a sua função de

assegurar as instâncias políticas e a própria sociedade. “Em nenhuma outra é exigido o

sacrifício supremo de conduzir homens ao limite de suas resistências físicas e

psicológicas ou ao encontro da própria morte” (ADN abr/jun de 1991, p. 102-103).

Page 95: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

81

3.2.3. Os governos de Fernando Henrique Cardoso, 1995-2002

O sucesso do Plano Real projetou nacionalmente uma imagem favorável de

Fernando Henrique Cardoso (FHC)99, então ministro da Fazenda e responsável pelo

Plano. Durante a disputa eleitoral, que trouxe novamente a candidatura de Luis Inácio

da Silva, os candidatos sucumbiram à aprovação de que FHC gozava em todos os

grupos sociais após as melhorias econômicas. Com FHC o Brasil experimentaria pela

primeira vez em sua história a experiência de dois mandatos presidenciais seguidos pela

vontade popular100.

Tendo alicerçado seu governo em uma ampla coalizão política, FHC garantiu

maioria no Congresso e, respaldou a continuidade do plano econômico e a aprovação de

inúmeras emendas constitucionais101. Outra característica de seu mandato foi a

manutenção de medidas de caráter neoliberal: privatizações, facilidades para

importações e redução dos gastos sociais.

Durante os mandatos de FHC também foram estabelecidos dois marcos nas

relações civis-militares: (1) em 1996 foi elaborada a Política de Defesa Nacional102

(PDN) e (2) em 1999 foi criado o Ministério da Defesa103 (MD). A revista ADN

manteve-se atenta aos projetos em andamento e, desde antes de sua implantação, se

empenharia na divulgação e nos debates acerca da PDN e do MD.

Através dos artigos da revista ADN, desde o governo Itamar Franco, são

encontradas solicitações acerca do necessário envolvimento das instituições políticas

com a elaboração de uma definição nacional de projeto/estratégia de defesa: “Em nosso

país, o planejamento do preparo das Forças Armadas é seriamente prejudicado pela

inexistência de uma política de defesa definida [...]” (ADN, abr/jun de 1993, p. 175).

Ainda assim, a visível anuência sobre a necessidade de serem estabelecidas orientações

estratégicas nacionais para a questão militar, não garantiu uma unidade acerca do

99 Sugerimos consultar como referência introdutória o verbete “Fernando Henrique Cardoso” de Renato Lemos no DHBB (2001). 100 A Emenda Constitucional nº 16, de 4 de junho de 1997, acrescentou o § 5º ao art. 14 da Constituição da República que institui a possibilidade da reeleição no sistema eleitoral brasileiro. 101 Embora possuísse maioria no Congresso, a obtenção dos votos necessários para a aprovação de seus projetos estava condicionada a concessão de cargos, obras públicas e outros benefícios políticos. 102 A PDN marca a ação governamental na área de Defesa e de planejamento militar. Sugerimos consultar sobre o assunto a obra de Eugênio Diniz e Domício Proença(1998). 103 Sugerimos consultar sobre o assunto o livro de Eliezer Rizzo de Oliveira (2004) e a dissertação de Luís Alexandre Fuccille (2006).

Page 96: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

82

modelo a ser colocado em prática. Pelo contrário, o governo de FHC, por atuar

significativamente na determinação de diretrizes nacionais e na organização das Forças

Armadas, suscitou os mais profundos debates da revista. Não por acaso, seria o projeto

de criação do Ministério da Defesa um dos assuntos mais comentados durante os

governos FHC nas páginas de ADN.

O Ministério da Defesa, proposto no início do primeiro mandato do presidente

FHC, foi criado por iniciativa presidencial em 1999. Ao Ministério da Defesa caberia

abrigar e coordenar os ramos diversos das Forças Armadas no plano governamental. Na

prática, a idéia era aperfeiçoar o sistema de defesa nacional, formalizar uma política de

defesa sustentável e integrar as três Forças, racionalizando as suas atividades.

No contexto mundial, eram raros os países que não reuniam suas FA sob um

único órgão de Defesa, subordinado ao chefe do Executivo: o Ministério da Defesa. Os

acontecimentos da Segunda Guerra Mundial evidenciaram a necessidade de uma efetiva

integração das Forças Armadas através das operações conjuntas e combinadas e da

racionalização dos investimentos (FUCCILLE, 2006).

O prolongado processo de maturação pelo qual passou o Ministério da

Defesa104, até sua criação, favoreceu a publicação de um número significativo de artigos

na revista ADN sobre o tema105. Os artigos relatam que a possível criação de um

Ministério da Defesa, ou mesmo, de integração das FA é antiga e, historicamente são

encontrados nos debates que antecederam a criação da(o): Constituição de 1946;

Estado-Maior das Forças Armadas (1948), antigo Estado-Maior Geral (1946);

Constituição de 1967 e Constituição de 1988 (ADN, out/dez de 1998, p. 151).

Para a melhor compreensão dos questionamentos contidos na revista ADN

acerca da criação do Ministério da Defesa, criamos três grupos que concentram os mais

importantes apontamentos do periódico sobre o tema: (1) a proposta de criação do

Ministério da Defesa atenta para a importância alcançada pelo tema da defesa no

contexto nacional; (2) a integração das FA é visivelmente um desdobramento mundial

de modernização dos sistemas de defesa, mas sua garantia somente se estabelece com

equipe adequada e capacitada e; (3) a desconfiança em relação à criação do Ministério

104 Proposto por Fernando Henrique Cardoso em 1995, só foi criado em 1999. 105 Depois de sua criação, em 1999, o número de artigos diminui e a perspectiva se concentrou na necessidade de fazê-lo capaz de executar beneficamente suas funções.

Page 97: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

83

da Defesa expressar uma excessiva concentração de poderes nas mãos de um civil e/ou

possibilitar a implantação dos interesses revanchistas106.

O primeiro apontamento, a solicitação do presidente da República para que

fossem realizados estudos vislumbrando a criação do Ministério da Defesa107, de acordo

com a ADN, indica para a valorização tão esperada pelas FA sobre as questões de

estratégia de defesa. O periódico pressupõe que o debate sobre o MD demonstra a

consciência dos setores políticos de que é de interesse nacional solucionar os problemas

relacionados à administração, planejamento e emprego das Forças Armadas.

A revista ADN não deixou de comentar suas expectativas com a possível

ampliação dos debates sobre a defesa nos mais variados setores sociais: “No Brasil, a

sociedade civil não costuma demonstrar interesse pelos assuntos ligados à defesa

nacional. Entretanto, a criação do Ministério da Defesa poderá resultar na transformação

das relações civis-militares no País” (ADN, jan/abr de 1999).

O segundo apontamento indica que a iniciativa de FHC alçou não somente a

importância dos assuntos relativos à defesa, mas, também, a questão da modernização

almejada e da necessária eficiência daqueles que desempenham papel proeminente na

atividade.

A revista aponta que o processo de modernização das forças de defesa dos

países mais avançados coincide com programas de integração e ação combinada entre

Exército, Marinha e Aeronáutica: “[A iniciativa de integração das Forças Armadas]

Resultou, ao término da Segunda Guerra Mundial, da necessidade sentida de um órgão

militar de cúpula para coordenar e integrar as ações das Forças Armadas,

particularmente em casos de operações bélicas” (ADN, out/dez de 1998, p. 151).

Todavia, o seu desdobramento modernizador, segundo a revista, somente se realiza com

prudência para o estabelecimento de uma equipe capacitada para efetuar a missão

aglutinadora.

Os artigos sobre a criação do MD ressaltavam diversas preocupações –

promoção da conciliação entre as Forças, o necessário conhecimento das carências das

FA, o respeito às particularidades funcionais e até culturais – mas a inquietação acerca

da capacidade civil tornou-se referência constante, e causou até mesmo discordância

sobre a criação do MD:

106 Grupos hostis às instituições militares em decorrência de ressentimentos acumulados durante o regime militar. 107 Inicialmente os estudos foram coordenados pelo EMFA e em seguida por um Grupo de Trabalho Interministerial.

Page 98: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

84

Nessas duas oportunidades [ministérios militares sob comando civil: (1) de 1919-22, Padiá Calógeras assume como ministro da Guerra e (2) de 1941-45, o senador Joaquim Pedro Salgado Filho assume como ministro da Aeronáutica,], esses civis se desincumbiram muito bem dos cargos. Cabe, porém, desde já destacar que, dada a falta generalizada de espírito público e o rasteiro nível ético de grande número dos civis contemporaneamente envolvidos na política, no nosso país, será arriscado, na minha opinião [Herick Marques Caminha], admitir, no futuro à vista, uma solução desse tipo para administrar as nossas Forças Armadas (ADN, abr/jun de 1995, p. 7).

O cargo requer autoridade, competência e equilíbrio para enfrentar desafios administrativos, diplomáticos, econômicos, estratégicos, políticos, de relações humanas e técnicos. Ademais, exige espírito de trabalho em equipe e decisão, profundo domínio do funcionamento da burocracia estatal, agravadas pelas naturais rivalidades intramuros e exteriores, para não aludir às pressões internacionais (ADN, out/dez de 1998, p. 152).

As avaliações sobre o MD se concentraram no terreno das expectativas, como

comentado acima, mas também no das desconfianças. A última, baseada em dois

fatores: (1) criação de um ministério com excessivos poderes políticos e econômicos e

(2) a possibilidade do ministério se tornar parte de um projeto revanchista de

desqualificação das FA.

O processo de integração das FA em um único ministério ocasiona, de acordo

com a revista ADN, a excessiva concentração de poderes diante das diversas funções

internas e externas que as FA desempenham e a problemática relativa ao elevado

orçamento a ser administrado diante de organizações em disputa.

Os que apontam questões de revanchismo colocam em dúvida o interesse

político, propalado pelos defensores da criação do MD, em modernizar e tornar as

instituições militares mais eficientes. De acordo com a perspectiva apresentada pela

revista ADN, o revanchismo caracteriza a ação de alguns políticos que propugnam a

desqualificação, a limitação orçamentária e a descaracterização funcional das FA, em

represália ao período em que os militares foram proeminentes na política nacional

(regime militar).

Criar o Ministério [da Defesa] por mero casuísmo revanchista ou, simplesmente, para honrar compromissos de palanque, a fim de afastar os militares do processo de tomada de decisões políticas, não faz sentido. Até porque, não será o fato de se ter um civil à frente dos negócios da caserna que inibirá as Forças Armadas a tomar a iniciativa para cumprir com a sua inarredável destinação constitucional (ADN, out/dez de 1998, p. 153).

Não faz muito tempo, autoridade governamental declarou que o Ministério da Defesa tinha a virtude de submeter as Forças Armadas ao poder civil. Declarações infelizes como esta jamais foram anuladas por outras claramente técnicas, contribuindo para que se forme, no espírito de muitos, a idéia de que se trata efetivamente de mal disfarçado revanchismo, mais do que de uma reconhecidamente necessária reestruturação do Estado (ADN, jan/abr de 2001, p. 148).

Page 99: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

85

De maneira geral, os artigos acerca do MD não indicam consenso sobre o tema.

Embora apontem para a necessidade do órgão, segundo um enfoque operacional e

profissional, transmitem, diante de uma pragmática corporativista, significativos

questionamentos. A criação do MD, através da revista ADN, também evidencia a falta

de credibilidade e de confiança que os militares depositam na capacidade dos civis

levarem a cargo resoluções sobre amplos setores da defesa nacional.

Todavia, em 10 de junho de 1999, FHC conseguiu submeter as vozes

discordantes e o Ministério da Defesa foi oficialmente criado. Em decorrência da nova

estrutura institucional, o Estado-Maior das Forças Armadas (EMFA) foi extinto e os

ministérios da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, transformados em comandos

subordinados ao Ministério da Defesa e, em última instância, ao presidente da

República.

Ao final dos governos de Fernando Henrique Cardoso, a conjuntura nacional

indicava que os governos civis posteriores ao regime militar não haviam conseguido

solucionar os graves problemas sociais brasileiros. Associada à insegurança econômica

com a desvalorização do Real, conseqüência da extrema dependência brasileira do

capital estrangeiro, os brasileiros desencantavam-se e, os altos índices de desemprego,

de desigualdade social e de desleixos nos serviços públicos tornavam-se cada vez mais

escandalosos. O desgaste do governo Fernando Henrique impediu que ele fizesse seu

sucessor. Nas eleições de 2002, Luis Inácio da Silva, principal adversário de Fernando

Henrique nos dois pleitos presidenciais anteriores e identificado como o crítico mais

constante das chamadas “políticas neoliberais”, foi eficiente em apresentar-se como

uma alternativa política, sendo, posteriormente eleito presidente da república ao derrotar

José Serra, que propunha dar continuidade ao modelo de governo anterior.

3.2.4. O governo de Luis Inácio da Silva, 2003-2004

A posse de Luis Inácio da Silva (Lula) pode não ter sido uma verdadeira

surpresa, mas esteve cercada de esperança – promessas de mudança social – e de um

significado adicional: o presidente não somente era um ex-perseguido político do

regime militar como também era um representante da esquerda com aproximação com

Page 100: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

86

alas radicais. No entanto, passados mais de quinze anos do regime militar, não só as FA

haviam passado por mudanças, como também o próprio Lula e seu partido político.108

A campanha de Luis Inácio da Silva pautou-se pela crítica moderada ao

governo de Fernando Henrique Cardoso, diferente das campanhas anteriores, além de

apresentar uma ampla aliança política (PC do B, PSB, parte do PMDB, PTB e PP)

representada, de maneira mais concreta, pela escolha do empresário José Alencar (PL)

como vice-presidente. O sucesso da estratégia eleitoral de composição de uma ampla

aliança garantiu a vitória de Lula, candidato presidencial pela quarta vez. Todavia, a

estratégia de coalizão incitou no Partido dos Trabalhadores (PT) dissidências que

marcariam o cenário nacional109. Naturalmente, as alianças políticas desdobravam-se na

entrega de cargos no governo e nas empresas estatais a pessoas nomeadas pela base

aliada.

Na área militar, o início do governo Lula foi marcado por discursos políticos

que combinavam com as aspirações das FA. Porém, mesmo que as propostas de Lula e

os discursos de seu ministro da Defesa, José Viegas, pactuassem com o pensamento dos

militares em alguns aspectos, bem como com as demandas da Defesa brasileira, não foi

alcançada uma solução eficaz. O fato é que somente o discurso não sanava as lacunas da

Política de Defesa, pois, na prática, o que existiu foi um abismo muito grande entre o

que diziam o Ministério da Defesa e o presidente Lula e o que, de fato, faziam.

A compreensão do distanciamento entre discurso e prática atravessa,

inevitavelmente, o campo da destinação orçamentária que impediu a realização da maior

parte do que foi anunciado pelo governo como prioridade para a Defesa. Entre os

exemplos que não passam pelo crivo da disponibilidade de orçamentos podemos citar: a

modernização; os necessários investimentos que as FA solicitavam para a proteção da

Amazônia e para a promoção internacional do Brasil em matéria de defesa. Enfim,

mantendo os obstáculos para a adequação dos meios necessários à concretização de uma

política de Defesa eficiente.

108 Para as FA o distanciamento se justifica pelo enfraquecimento do comunismo; pelo pesado fardo que o regime militar deixou para a corporação; e pela inserção progressiva das FA em um arcabouço democrático. Já para o PT a grande mudança foi sua estratégia de consolidação de alianças para a disputa das eleições, que se, por um lado, aumentou sua base de sustentação política, por outro trouxe insatisfação para as alas mais radicais do partido. 109 A criação do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) faz parte desse contexto. A insatisfação de alguns integrantes do PT começou em 2002 durante a campanha para presidente, justamente em decorrência das alianças políticas realizadas e seus possíveis desdobramentos, tais como: a entrega de cargos e o recuo em assuntos sociais.

Page 101: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

87

A revista ADN, nos dois primeiros anos do governo Lula, manteve artigos

sobre orçamento, defesa e função das Forças Armadas. No entanto, encontramos no

decorrer do seu primeiro mandato (2003-2006)110, um grande número de artigos sobre o

golpe de 1964/regime militar e sobre os desafios da defesa, sendo o primeiro analisado

de maneira específica e em recorte cronológico mais amplo posteriormente.

A conjuntura inicial do governo de Luis Inácio da Silva (2003-2004) estimulou

os debates no campo da Defesa ao propor a renovação da Política de Defesa Nacional

(PDN), aprovada em 1996 durante a presidência de Fernando Henrique Cardoso. O

ministro da Defesa do governo Lula, José Viegas, durante o biênio 2003-2004 dedicou-

se à revisão da PDN, criando inclusive um Grupo de Trabalho que se reuniu em sessões

mensais no “Ciclo de debates sobre a atualização do pensamento brasileiro em matéria

de Defesa e Segurança”, entretanto uma crise política impediu sua manutenção no

ministério (OLIVEIRA, 2005).

A revista ADN demonstra significativa inserção no debate nacional sobre a

Defesa no Brasil ao publicar diversos artigos sobre o tema, além de valorizar as

iniciativas políticas:

O atual Ministro da Defesa, um diplomata de carreira, desde a sua posse, convida a sociedade, e em particular as Forças Armadas, para discutir a atual Política de Defesa Nacional. Sabe ele que, como está, embora fiel aos postulados do texto constitucional vigente, ela não traduz aquilo que a Nação deseja. A retórica pacifista e internacionalista usada a torna vazia. A prioridade à diplomacia passiva está longe de corresponder à posição que o País deseja ter ou já tem no cenário internacional. O tratamento tímido e reticente que dá à componente militar do poder nacional, em todos os seus aspectos, torna duvidosa uma pretendida capacidade dissuasória. Não bastasse isso, nos últimos 15 anos tem sido evidente a ação política e administrativa no sentido de enfraquecer as Forças Armadas e todas as atividades afins, não só submetendo-as à insuficiência de recursos para custeio e desenvolvimento, como criando-lhes impedimentos jurídicos ou constrangimentos públicos para cumprirem sua missão (ADN, jan/abr de 2004. Editorial).

Observamos também, que durante o governo Lula, justamente no marco dos 40

anos do golpe de 1964 (2004), o Brasil viveu um polêmico embate no Executivo sobre o

legado do regime militar para a sociedade e para as FA. Embora não relatado pela

revista ADN, o acontecimento foi um importante marco nas relações entre o presidente,

o Ministério da Defesa e o Exército.

Em 17 de outubro de 2004 o Jornal Correio Braziliense, em reportagem sobre a

tortura durante o regime militar, divulgou fotos identificadas como sendo do jornalista

110 O governo de Lula, diante do recorte proposto pela dissertação, será analisado parcialmente, de 2003 a 2004.

Page 102: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

88

Vladimir Herzog, antes de seu assassinato em uma sela do DOI-CODI paulista, em fins

de 1975. Em resposta, o Centro de Comunicação Social do Exército (CCOMSEx)

publicou uma nota:

1. Desde meados da década de 60 até início dos anos 70 ocorreu no Brasil um movimento subversivo, que atuando a mando de conhecidos centros de irradiação do movimento comunista internacional, pretendia derrubar, pela força, o governo brasileiro legalmente constituído. Na época, o Exército Brasileiro, obedecendo ao clamor popular, integrou, juntamente com as demais Forças Armadas, a Polícia Federal e as polícias militares e civis estaduais, uma força de pacificação, que logrou retomar o Brasil a normalidade. As medidas tomadas pelas forças legais foram uma legítima resposta a violência dos que recusaram o diálogo, optaram pelo radicalismo e pela ilegalidade e tomaram a iniciativa de pegar em armas e desencadear ações criminosas. [...] O movimento de 1964, fruto de clamor popular, criou, sem dúvidas, condições para a construção de um novo Brasil, em ambiente de paz e segurança. Fortaleceu a economia, promoveu fantástica expansão e integração da estrutura produtiva e fomentou mecanismos de proteção e qualificação social. Nesse novo ambiente de amadurecimento político, a estrutura criada tornou-se obsoleta e desnecessária na atual ordem vigente. Dessa forma, e dentro da política de atualização doutrinária da força terrestre, no Exército brasileiro não existe nenhuma estrutura que tenha herdado as funções daqueles órgãos. 2. Quanto às mortes que teriam ocorrido durante as operações, o Ministério da Defesa tem, insistentemente, enfatizado que não há documentos históricos que as comprovem [...] 3. Coerente com seu posicionamento, e cioso de seus deveres constitucionais, o Exército brasileiro, bem como as Forças coirmãs, vão demonstrando total identidade com o espírito da Lei da Anistia, cujo objetivo foi proporcionar ao nosso país um ambiente pacífico e ordeiro, propício para a consolidação da democracia e ao nosso desenvolvimento, livre de ressentimentos e capaz de inibir a reabertura de feridas que precisam ser, definitivamente, cicatrizadas. Por esse motivo considera os fatos como parte da História do Brasil. Mesmo sem qualquer mudança de posicionamento e de convicções em relação ao que aconteceu naquele período histórico, considera ação pequena reavivar revanchismos ou estimular discussões estéreis sobre conjunturas passadas, que a nada conduzem (O Estado de São Paulo, 4 de novembro de 2004. Grifos nossos. http://www.estadao.com.br/arquivo/nacional/2004/not20041104p38111.htm).

Surpreendidos pela declaração, políticos e grupos civis manifestaram sua indignação e a

cúpula do governo foi obrigada a desembaraçar a crise política que se estabeleceu:

A nota oficial divulgada pelo Exército no final de semana, em resposta a notícia publicada pelo Correio Braziliense com fotos do jornalista Vladimir Herzog, ainda vivo e em situação humilhante, criou uma crise que envolve o Palácio do Planalto, o Ministério da Defesa e o Comando do Exército. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva não gostou do tom da nota do Exército, considerada muito dura, elogiosa ao golpe militar de 1964, e que trata o movimento como fruto de clamor popular em resposta ao movimento subversivo que se recusava ao diálogo (O Estado de São Paulo Online, 18 de outubro de 2004. http://www.estadao.com.br/arquivo/nacional/2004/not20041018p37960.htm).

A divulgação de uma nota do Exército classificando de revanchista a publicação, pelo ‘Correio Braziliense’ de domingo, de fotografias do

Page 103: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

89

jornalista Wladimir Herzog preso no DOI-CODI, provocou reações imediatas. O deputado Luiz Eduardo Greenhalgh (PT-SP), advogado de ex-presos políticos, cobrou ontem, com o apoio do Palácio do Planalto, uma manifestação pública do ministro da Defesa, José Viegas, desautorizando a posição do Exército. O deputado Greenhalgh afirma que a nota faz referência saudosista à ditadura militar e compromete o governo democrático. José Genoíno, presidente do PT, declarou: “Esta nota está fora do tempo e reproduz conceitos da época do regime militar. Essa posição não reflete o momento que vivemos, as Forças Armadas já trataram desse mesmo tema com mais profissionalismo e espírito democrático (O Globo, 19 de outubro de 2004 – p. 12).

O presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, advogado João Luiz Duboc Pinaud, ameaçou ontem deixar o cargo. Há pouco mais de três meses na presidência da Comissão, Pinaud afirmou que o governo não tem oferecido apoio às investigações sobre as mortes durante o regime militar, como a do jornalista Wladimir Herzog. Um dia após a divulgação de fotos de Wladimir Herzog na prisão e da insistência do Exército de que não há mais documentos nos arquivos oficiais sobre mortos e desaparecidos, Pinaud declarou que as imagens comprovam as atrocidades cometidas na época. Pinaud criticou a nota publicada pelo Exército no último dia 17 (O Globo, 19 de outubro de 2004 – p. 13.).

Diante da insatisfação de grupos políticos e entidades civis com a divulgação

da nota do CCOMSEx, o comandante do Exército, general Francisco Albuquerque, foi

pressionado a fazer uma retratação pública. Em sua retratação, aprovada por Lula e

Viegas em sua terceira versão, o general Albuquerque declarou:

O Exército Brasileiro é uma Instituição que prima pela consolidação do poder da democracia brasileira. O Exército lamenta a morte do jornalista WLADIMIR HERZOG. Cumpre relembrar que, a época, este fato foi um dos motivadores do afastamento do comandante militar da área, por determinação do Presidente Geisel. Portanto, para o bem da democracia e comprometido com as leis do nosso país, o Exército não quer ficar reavivando fatos de um passado trágico que ocorreram no Brasil. Entendo que a forma pela qual esse assunto foi abordado não foi apropriada, e que somente a ausência de uma discussão interna mais profunda sobre o tema pôde fazer com que uma nota do Centro de Comunicação Social do Exército não condizente com o momento histórico atual fosse publicada. Reitero ao Senhor Presidente da República e ao Senhor Ministro da Defesa a convicção de que o Exército não foge aos seus compromissos de fortalecimento da democracia brasileira (O Estado de São Paulo Online, 19 de outubro de 2004. Grifos do original. http://www.estadao.com.br/arquivo/nacional/2004/not20041019p37974.htm).

Ao declarar o respeito das Forças Armadas pela democracia o general

Albuquerque garantiu, ao menos com o presidente, a resolução do conflito. Porém, José

Viegas, ministro da Defesa, não tolerou o desgaste no cargo após ter sido desrespeitado

Page 104: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

90

na hierarquia constitucional e ter visto negada a sua solicitação para que o general

Albuquerque fosse destituído do cargo, decidindo pela apresentação de sua demissão111:

[...] Após uma reflexão prolongada a respeito das ocorrências dessa semana, julgo necessária uma atribuição mais efetiva de responsabilidades com relação à nota emitida pelo Exército no último domingo [17 de outubro]. Embora a nota não tenha sido objeto de consulta ao Ministério da Defesa, e até mesmo por isso, uma vez que o Exército Brasileiro não deve emitir qualquer nota com conteúdo político sem consultar o Ministério, assumo a responsabilidade que me cabe, como dirigente superior das Forças Armadas, e apresento a minha renúncia ao cargo de Ministro da Defesa, que tive a honra de exercer sob a liderança de Vossa Excelência. [...] Foi, portanto, com surpresa e consternação, que vi publicada no domingo, dia 17, a nota escrita em nome do Exército Brasileiro que, usando linguagem totalmente inadequada, buscava justificar lamentáveis episódios do passado e dava a impressão de que o Exército, ou, mais apropriadamente, os que redigiram a nota e autorizaram a sua publicação, vivem ainda o clima dos anos setenta, que todos queremos superar. A nota divulgada no domingo 17 representa a persistência de um pensamento autoritário, ligado aos remanescentes da velha e anacrônica doutrina da segurança nacional, incompatível com a vigência plena da democracia e com o desenvolvimento do Brasil no século 21. Já é hora de que os representantes desse pensamento ultrapassado saiam de cena. É incrível que a nota original se refira, no século 21, a 'movimento subversivo' e a 'Movimento Comunista Internacional'. É inaceitável que a nota use incorretamente o nome do Ministério da Defesa em uma tentativa de negar ou justificar mortes como a de Vladimir Herzog. É também inaceitável, a meu ver, que se apresente o Exército como uma instituição que não precise efetuar 'qualquer mudança de posicionamento e de convicções em relação ao que aconteceu naquele período histórico' [...] (Folha de São Paulo, 04 de novembro de 2004.

http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u65514.shtml)

Sem dúvida, a retratação exigida pelo presidente Lula demonstra o alcance do

poder civil em submeter o Exército à autoridade presidencial. Porém, se levarmos em

conta que a declaração do CCOMSEx não deveria ter sido emitida sem a aprovação do

Ministério da Defesa, o assunto ganha outra dimensão. Desta forma, a solicitação do

ministro Viegas para que o general Albuquerque, comandante do Exército, fosse

destituído do cargo, se baseia menos na nota de retratação do que no ato de transgressão

do CCOMSEx. Encerrada a polêmica, o general Albuquerque se manteve no cargo e o

presidente aceitou a demissão de Viegas.

O episódio não deve ser interpretado como causador de grave crise. Porém,

indica mais uma ineficiência do controle civil nas questões militares. Se em âmbito

111 Os boatos sobre a queda do ministro da Defesa circulavam desde muito antes do episódio das notas. Os motivos alegados para a sua saída do governo relacionavam-se com sua baixa capacidade de pressão junto ao governo pelo atendimento das reivindicações militares, bem como de pressões advindas das FA que não gostaram da atuação do ministro, classificada como titubeante em alguns aspectos e de confrontação em outros – como no caso da posição claramente contrária à Doutrina de Segurança Nacional, a qual o José Viegas insistia em reformar. (Observatório Cone Sul de Defesa e Forças Armadas – Informe Brasil n. 146 a 148, de 16/10/04 a 05/11/04).

Page 105: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

91

nacional o comandante Albuquerque precisou retificar a declaração, o mesmo não se

exige da revista ADN que, por mais de duas décadas, designa como verdade histórica

inconteste a legitimidade e os benefícios das ações militares durante o golpe e o regime

militar.

De maneira geral, a análise sobre o desenvolvimento das relações entre civis e

militares através da revista ADN, durante o período de 1990-2004, demonstra que as

instituições militares enfrentaram, neste período, a perda simultânea de poder político e

do inimigo de mais de quatro décadas, até alcançarem, na atualidade, uma autonomia

reduzida. Pois, embora as FA não possuam controle sobre boa parte da burocracia e nem

demonstrem aspirações em exercer o poder político direto, sempre que se vêem

ameaçadas nas suas prerrogativas elas tendem a “mostrar” que ainda possuem poder

suficiente para pressionar as instâncias políticas.

3.3. A revista A Defesa Nacional e o regime militar: um discurso para a posteridade

(1990-2004).

3.3.1. O Desafeto: a posse de João Goulart

Em janeiro de 1961, Jânio Quadros assumia a presidência do Brasil. Com uma

candidatura baseada em promessas eleitorais que propalavam o combate à corrupção e a

defesa da moral, Quadros atingiu perfeitamente as aspirações dos militares, da União

Democrática Nacional (UDN) e da classe média. Já sua figura popularesca garantiu o

apoio dos trabalhadores. Todavia, antes de completar sete meses de governo Quadros

surpreenderia a nação com sua renúncia.

A crise desencadeada pela renúncia repentina foi agravada pela contestação da

posse de seu vice, João Goulart. Naquela época, as candidaturas não eram vinculadas,

ou seja, havia o voto para o presidente e para o vice separadamente, sendo possível a

eleição de opositores, exatamente o que ocorreu em 1960. Assim, aqueles que haviam

apoiado Quadros passaram a fazer oposição à posse de Goulart, temerosos em relação às

mudanças que ele pudesse introduzir.

Page 106: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

92

Para muitos, as expectativas com a eleição de Quadros transformavam-se em

perplexidade e desconfiança com a proximidade do poder ser entregue a Goulart. Os

motivos do incômodo eram muitos e iam desde a associação de Goulart a Getúlio;

passando pela relação de parentesco com Leonel Brizola, conhecido pela ligação com a

esquerda. Podemos acrescentar também, a convulsão dos anos 50, quando Goulart,

então ministro do Trabalho, propôs aumento de 100% no salário mínimo e aproximou-

se de sindicatos. Por último, durante a renúncia de Quadros, Goulart protagonizou um

acaso excessivamente simbólico, pois se encontrava em visita à China comunista, fato

que tornou a sucessão ainda mais dramática.

Enquanto o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli, assumia

provisoriamente a presidência da República, os ministros militares de Quadros,

liderados pelo general Odílio Denys, ministro da Guerra, conspiravam tentando

encontrar uma maneira de impedir Goulart de tomar posse112. Embora a Constituição

não deixasse dúvidas quanto à legitimidade da sucessão, a posse ficou em suspenso,

diante da iniciativa de setores de oposição a Goulart – principalmente os militares e a

UDN – que viam nele a encarnação da “república sindicalista” e a ascensão do projeto

comunista ao poder.

Entretanto, do Rio Grande do Sul, o comandante do III Exército – general

Machado Lopes – declarou seu apoio a Goulart e a Brizola, este último responsável pelo

início do que se convencionou chamar de batalha da legalidade. A figura emblemática

de Leonel Brizola, o governador do Rio Grande do Sul e cunhado de Goulart, contribuiu

para a organização civil e militar em defesa da sucessão presidencial ao promover

grandes manifestações e direcionar recursos, chegando inclusive a distribuir armas à

população civil, para combater um eventual golpe (TOLEDO, 1982, p. 17).

O impasse estava instaurado. A qualquer momento tropas legalistas poderiam

enfrentar as forças contrárias à posse. Mas a resolução final ficou a cargo do Congresso

que adotou uma solução conciliatória ao transformar o sistema de governo de

presidencialista para parlamentarista, supondo neutralizar um presidente vinculado ao

movimento popular e esquerdista.

112 Em agosto de 1961 foi divulgado um manifesto, assinado pelos ministros militares que deixava clara a posição contrária à posse de Goulart: “No cumprimento de seu dever constitucional de responsáveis pela manutenção da ordem, da lei e das próprias instituições democráticas, as Forças Armadas do Brasil, através da palavra autorizada dos seus Ministros, manifestam a Sua Excelência o Sr. Presidente da República, como já foi amplamente divulgado, a absoluta inconveniência, na atual situação, do regresso ao país do Vice Presidente, Sr. João Goulart” (ANDRADE, 1985).

Page 107: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

93

Os ministros militares aceitaram o compromisso parlamentar, em grande

medida, devido à não superação das divisões internas no Exército e à percepção da

crescente oposição popular à sua tentativa de veto. Desta forma, em setembro de 1961

João Goulart tomou posse com poderes diminuídos.

Durante o curto período de vigência do parlamentarismo, de setembro de 61 a

janeiro de 63, um novo contexto político, econômico e social emergia no país. As

características mais marcantes do período foram: as constantes crises político-

institucionais113; a intensa e prolongada crise econômico-financeira114; a ampla

politização e mobilização das classes populares urbanas e rurais, assim como o maior

envolvimento de setores que não tinham ligação direta com as questões políticas, como

os estudantes e grupos católicos.

No modelo parlamentarista adotado cabia ao presidente a indicação do

primeiro ministro e a formação do Gabinete ministerial, que deveria ser aprovado por

2/3 do Congresso Nacional. A atuação inicial de Goulart foi de moderação, procurando

demonstrar sua adesão aos princípios democráticos e sua repulsa ao comunismo115.

O primeiro Gabinete foi liderado por Tancredo Neves e reuniu representantes

dos principais partidos políticos, com predomínio do Partido Social Democrático

(PSD)116. Depois desse, mais dois gabinetes foram formados em meio a uma crise

política que praticamente paralisava a administração pública (TOLEDO, 1982, pp. 22-

40).

Na verdade, o primeiro gabinete representou uma nítida derrota do movimento

popular, embora Goulart, em reiteradas oportunidades, tenha se pronunciado acerca da

necessidade de reformas estruturais para a superação dos graves problemas enfrentados

pelo país. Sem o entendimento entre o presidente e o ministério de Tancredo, em junho

1962, todos os membros do gabinete pediram demissão sob a justificativa de que

pretendiam concorrer às eleições do mesmo ano.

A formação do segundo gabinete não ficaria excluída da crise política

desencadeada pela incompatibilidade de setores mais conservadores e dos grupos

reformistas identificados com o presidente. O Congresso, de maioria conservadora, 113 Decorrentes da problemática acerca da composição dos ministérios; escolha do primeiro ministro; e submissão dos partidos a aglomerados suprapartidários (crise do sistema partidário). 114 Recessão e altas taxas de inflação, herdadas principalmente da política desenvolvimentista do governo JK; da construção de Brasília; e da reforma cambial realizada por Quadros através da Instrução 204 da SUMOC. 115 Em viagem aos EUA, falou ao Congresso americano e obteve recursos para ajudar o nordeste. (FAUSTO, 2007, p. 453). 116 PSD, quatro ministros; UDN, dois ministros; e PTB, um ministro.

Page 108: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

94

materializada na aproximação entre PSD e UDN, rejeitou o petebista Francisco San

Tiago Dantas, indicado por Goulart para presidir o novo gabinete. San Tiago, que já era

político conhecido no Congresso, foi o único petebista a compor o primeiro gabinete,

como ministro das Relações Exteriores, e causou insatisfação ao reatar relações

diplomáticas do Brasil com a URSS e ao opor-se na OEA à proposta norte-americana de

impor sanções contra Cuba socialista.

O veto do Congresso a San Tiago obrigou Goulart a outra indicação. Assim, o

presidente designou Auro Soares de Moura Andrade, senador do PSD, indicação que

desagradou os grupos comprometidos com as reformas. Logo, o Comando Geral de

Greve (CGG) decretou uma greve geral, e Moura Andrade um dia antes da data

marcada para a paralisação, desistia de sua indicação a primeiro-ministro.

Um novo gabinete, presidido por Brochado da Rocha (PSD), assumia. Em seu

curto período, apenas dois meses, prometeu um programa de emergência para conter a

inflação. Todavia, o mais significativo em seu governo foi o envio de um projeto de lei

ao Congresso que previa antecipar o plebiscito sobre a volta ao presidencialismo ou a

manutenção do parlamentarismo, previsto pela Emenda Parlamentarista de 1961. A

princípio, o Congresso negou a antecipação, porém, pressionado com a decretação de

uma nova greve geral, aprovou o projeto. A data da consulta popular ficou definida para

o dia 6 de janeiro de 1963, quando foi vitoriosa a decisão de retornar ao

presidencialismo.

3.3.2. O golpe militar é justificado

3.3.2.1. A desordem

Com o retorno ao presidencialismo e o consequente aumento da margem de

ação do poder Executivo, os grupos sociais se apressaram em garantir espaço para seus

projetos. O presidente Goulart passou a ser incisivamente cobrado na definição de uma

posição sobre as mais diferentes questões, visto que a grande justificativa do presidente

para a incapacidade de sua administração fora a ineficácia política instituída com a

adoção do sistema parlamentarista. Sendo assim, após 1963, o Brasil vivenciou a

Page 109: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

95

intensificação das reivindicações e das disputas entre os que desejavam um governo de

mudanças sociais – aumentos salariais, controle das remessas de lucro das empresas

estrangeiras, investimentos em educação e saúde, reforma agrária – e os que davam

prioridade a intensificação da política de austeridade nos gastos públicos e a

estabilização da economia.

A revista ADN identifica a conjuntura dos primeiros anos da década de 1960

como de grave ameaça às instituições democráticas e à própria nação117. A conclusão do

periódico está baseada na constatação do elevado grau de convulsões após a posse de

Goulart e, principalmente, com o retorno ao presidencialismo em 1963. Em grande

medida, os artigos apontam para três indicativos de ameaça a ordem democrática

vigente: (1) a presença de políticos que defendiam e incitavam as mobilizações sociais

de cunho esquerdista118, como Brizola119, Miguel Arraes120 e o próprio Goulart121; (2) as

ações comunistas (ligas camponesas, sindicatos, estudantes); e (3) o envolvimento de

alguns militares com grupos comunistas.

[Refere-se aos anos do governo Goulart] A crescente agitação política e social, o desgoverno e a evidência de um movimento comunista em marcha acabaram por gerar uma sensação de insegurança geral. Embora o centro de inquietação e de crescente oposição estivesse principalmente na classe média, também os trabalhadores em geral se sentiam insatisfeitos e inseguros. A desorganização geral, a inflação, o desabastecimento, a corrupção e a ameaça latente da ruptura da ordem política e social atingiam toda a sociedade (ADN, jan/abr de 2004, p. 76).

O periódico aponta com indignação a presença de Brizola e Miguel Arraes nos

quadros políticos nacionais dos anos 1960. Segundo ADN, ambos demonstravam

publicamente sua adesão ao projeto esquerdista radical e, diversas vezes, se dispuseram

a burlar a democracia e instaurar uma ditadura. Os discursos inflamados de Brizola –

critica grupos civis e militares; critica instituições políticas como o Congresso e ameaça

organizar e distribuir armas à população – associados às iniciativas de Arraes em

117 Embora seja possível encontrar artigos que relatam que a organização para o golpe data do início do governo Goulart, ainda em 1961, outros apontam que a iniciativa do golpe data de 1963 com o retorno ao presidencialismo. Todavia, não há dúvida de que o marco fundamental para a iniciativa de intervenção militar foi o governo de Goulart e a interpretação que os golpistas fizeram da conjuntura nacional, caracterizada como de desordem instituída e avanço comunista. 118 A revista ADN não apresenta diferenciação entre os grupos sociais atuantes, e, desta forma, as ligas camponesas, o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), os sindicatos, e os comunistas são todos identificados com o mesmo projeto. A revista também não define ou especifica os grupos e/ou tendências políticas, utilizando os termos marxismo, comunismo, sindicalismo, e esquerdismo indiscriminadamente. 119 Sugerimos consultar como referência introdutória o verbete “Leonel Brizola” de Vilma Keller, Sônia Dias, Marcelo Costa e Américo Freire no DHBB (2001). 120 Sugerimos consultar como referência introdutória o verbete “Miguel Arrais” de Silvia Pantoja e Renato Lemos no DHBB (2001). 121 Sugerimos consultar como referência introdutória o verbete “João Goulart” de Marieta de Morais Ferreira no DHBB (2001).

Page 110: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

96

organizar os trabalhadores da cana-de-açúcar como instrumento político de pressão,

confirmam, segundo ADN, a infiltração comunista no Estado. A projeção e o poderio

das esquerdas nas instâncias políticas ganha ainda maior dimensão quando o periódico

constata que o próprio chefe da nação não as impede, pelo contrário, se aproveita e

compactua com as perturbações esquerdistas.

Não podemos nos esquecer, como bem salienta Olavo de Carvalho (A

História Oficial de 1964, O Globo, 19.01.1999, p. 7), que, na oportunidade do desencadeamento do movimento de 1964, os comunistas se encontravam fortemente encravados em todos os setores da Administração Pública; o próprio Presidente da República apoiava ostensivamente a rebelião esquerdista em todos os setores e, particularmente, nas Forças Armadas [...] (ADN, jan/abr de 2002, p. 117. Grifos do original)122.

A segunda ameaça a instituições democráticas que a revista ADN identifica

está associada ao elevado grau de crescimento dos movimentos sociais no cenário

nacional dos anos 1960. Porém, a existência por si só de movimentos sociais não

sustenta a crítica da revista ADN relativa à instabilidade existente. Mas, sim, as novas

características dessas mobilizações: o surgimento de novos atores; a

intensificação/politização das reivindicações e a atuação não controlada desses grupos.

Desta forma, a revista define os grupos que promovem greves e mobilizações em favor

de mudanças político-sociais como subversores da lei e da democracia e adeptos da

implantação de um modelo político esquerdista e ditatorial.

Os movimentos sociais contestadores do modelo político-econômico vigente

no Brasil, na conjuntura dos anos 1960, são muitos. No campo, por exemplo, surgiam

importantes mudanças, em especial a ação das Ligas Camponesas123, sob a liderança do

advogado e político pernambucano Francisco Julião124. Os trabalhadores do campo, até

então submetidos ao domínio dos grandes proprietários e excluídos de qualquer projeto

de melhoria nas condições de vida e trabalho, passavam a se organizar em defesa do

acesso à terra125. Desta forma, a organização e politização dos trabalhadores rurais

serviram de impulso para as ações reivindicatórias que iam desde a sindicalização até

122 O autor Olavo de Carvalho pertence a um grupo de indivíduos, civis e militares, que defende a legitimidade e os benefícios do golpe de 1964 e do regime militar para a sociedade de hoje. 123 Sugerimos consultar como referência introdutória o verbete “Ligas Camponesas” de Aspásia Camargo no DHBB (2001). 124 Sugerimos consultar como referência introdutória o verbete “Francisco Julião” de Vilma Keller no DHBB (2001). 125 Em 1961 ocorre o Congresso Nacional de Camponeses, em Belo Horizonte, tendo Francisco Julião como principal figura, ainda em 1961, Julião e uma centena de líderes camponeses estiveram em Cuba para as celebrações de 1 de maio (Skidmore, 1982, p. 278-279).

Page 111: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

97

atos de invasões de propriedades na zona rural, manifestações que indicavam para ADN

a ação comunista no campo.

Outro movimento de forte atuação nos anos 1960 foi o dos estudantes, que

incutiam em seus discursos propostas de transformação política, econômica e social,

passando a intervir nacionalmente através de debates e de participação em

manifestações. O periódico apresenta preocupação em relação às universidades e as

escolas por considerá-los canais de propagação comunista.

A própria Igreja Católica demonstrava mudanças importantes em seu

comportamento. Organizaram-se grupos que se apresentavam como defensores das

camadas populares e de um modelo equitativo de distribuição de renda126, em oposição

ao tradicional conservadorismo da instituição. Até mesmo a crítica exacerbada da Igreja

ao comunismo passou a ser acompanhada pelo reconhecimento dos males que o

capitalismo ocasionava à sociedade.

O movimento operário também expressou sua força de mobilização e

reivindicação nos agitados anos 1960. Desde a revogação da exigência dos atestados

ideológicos em 1951, a natureza da liderança dos sindicatos começara a mudar. Por

intermédio e patrocínio ativo de João Goulart, ainda como vice-presidente de Juscelino

Kubitschek, os congressos e reuniões de trabalhadores aumentaram significativamente.

Tudo isso, associado a uma classe trabalhadora que havia se multiplicado e se achava

relativamente concentrada em termos regionais (Dreifuss, 1981, p. 128-129). Desta

forma, progressivamente, as exigências de mudança social se propalavam a margem dos

canais institucionais de controle que o Estado exercia sobre eles.

A criação de canais autônomos de mobilização, que remontam aos anos 50,

demonstra sua maior expressão nos anos 1960 com a ação do Comando Geral dos

Trabalhadores (CGT)127, do Pacto de Unidade e Ação (PUA)128 e da Confederação

126 A Ação Católica (AC) brasileira, que abrangia movimentos diversos, emergiu, em 1935, no Rio de Janeiro, em meio à ambiência revolucionária na América Latina, decorrente das tendências socialistas e das novas correntes de pensamento. A AC propagou a conscientização política através de associações leigas, como a Juventude Católica, que se ramificava em: Juventude Agrária Católica (JAC), Juventude Estudantil Católica (JEC), Juventude Independente Católica (JIC), Juventude Operária Católica (JOC) e a Juventude Universitária Católica (JUC). Além da Juventude Católica, outros movimentos se fizeram atuantes no período militar como os Movimentos Educacionais de Base (MEBs), as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Algumas ramificações tiveram uma ação mais radical, como a JUC, a JEC e, posteriormente, a Ação Popular. 127 Sugerimos consultar como referência introdutória o verbete “Comando Geral dos Trabalhadores” de Mônica Kornis no DHBB (2001). 128 Sugerimos consultar como referência introdutória o verbete “Pacto de Unidade e Ação” de Mônica Kornis no DHBB (2001).

Page 112: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

98

Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG)129. Tais organismos

representativos foram criados paralelamente à legislação vigente, herdada de Vargas, o

que a revista ADN identificava como ainda mais ameaçador em decorrência de sua

independência funcional/autodeterminação.

A demonstração pública mais radical dos movimentos esquerdistas e das

instâncias políticas que os apoiavam realizou-se, segundo ADN, no dia 13 de março, no

Rio de Janeiro, em frente à Central do Brasil. Conhecido como Comício da Central do

Brasil130 a manifestação reuniu lideranças dos movimentos populares, além de Brizola e

Goulart. Durante o comício o governo reforçou seu interesse na realização das reformas

de base e anunciou na ocasião dois decretos. O primeiro deles era referente à

desapropriação das refinarias de petróleo que não estivessem sob controle da Petrobrás e

o segundo fazia referência à desapropriação de terras.

Logo após o retorno ao regime presidencialista, atos do governo trouxeram agitações e greves políticas ameaçadoras visando a mostrar o poderia de certos sindicatos, além de comícios em que a exaltação de oradores mostrava que sobreestimavam o seu poder (ADN, jan/abr de 2000, p. 23).

Além da revista ADN ter identificado nas instâncias civis a difusão das idéias

comunistas, o periódico confirma que na própria instituição militar era constatada a

existência de interseções com o movimento comunista, característica que foi

resignadamente apontada como ameaça à existência das FA. A expressão desta

interseção é exemplificada pela revista através da ação da Associação de Marinheiros e

Fuzileiros Navais do Brasil e da reunião de sargentos no Automóvel Clube (ADN,

jan/abr de 2000, p. 23). Reuniões que atingiam duramente os fatores de coesão,

hierarquia e disciplina, pilares das instituições militares.

[...] [militares] alertando-os [civis e militares] para os perigos da sistemática e tendenciosa aproximação do governo João Goulart com os elementos de formação marxista, nas mais diversas representações da sociedade, nas áreas do próprio governo, da política, dos sindicatos, das associações rurais e estudantis. Na área militar, os ativistas das esquerdas tentaram criar a figura do general do povo, promover a intriga de oficiais com graduados, entre oficiais de carreira e auxiliares (ADN, jan/abr de 2004).

O incômodo acerca da indisciplina nas FA já havia deixado seu rastro no

governo de Goulart em 1963, durante a chamada Revolta dos Sargentos131. Todavia, a

129 Sugerimos consultar como referência introdutória o verbete “Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura” de Leonilde Servolo Medeiros no DHBB (2001). 130 Sugerimos consultar como referência introdutória o verbete “Comício das Reformas” de Heloísa Menandro no DHBB (2001). 131 Rebelião promovida por cabos, sargentos e suboficiais, sobretudo da Aeronáutica e da Marinha, em 12 de setembro de 1963, em Brasília, motivada pela decisão do Supremo Tribunal Federal de reafirmar a inelegibilidade dos sargentos para os órgãos do Poder Legislativo, conforme previa a Constituição de

Page 113: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

99

ADN atribui a março de 1964 a coligação dos dois elementos mais temidos pelas FA

brasileiras na conjuntura dos anos 1960: comunismo e indisciplina militar. Em março de

1964 a Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais, organismo destinado a lutar por

melhores condições para seus associados, completou dois anos. Diante do veto do

ministro da Marinha, Silvio Mota, à realização da reunião comemorativa, os associados

resistiram e realizaram o encontro na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de

Janeiro.

A despeito da proibição do ministro, dois mil marinheiros e fuzileiros navais,

liderados por José Anselmo dos Santos, o cabo Anselmo, compareceram à sede do

sindicato naquele dia. O ato contou com a presença de representantes dos sindicalistas e

líderes estudantis, além do deputado Leonel Brizola. Na abertura da solenidade, o cabo

Anselmo afirmou a disposição da associação de lutar a favor das reformas de base e de

melhorias sócio-econômicas em todas as instâncias da sociedade brasileira. Ao final, os

militares reunidos exigiram que nenhuma medida punitiva fosse tomada contra os que

ali estavam.

Entretanto, o ministro Mota emitiu ordem de prisão contra os principais

organizadores do evento e enviou um destacamento de fuzileiros navais ao local da

reunião. Apoiados pelo seu comandante, Cândido Aragão, os fuzileiros, em lugar de

prender os marinheiros, aderiram aos revoltosos, permanecendo na sede do Sindicato

dos Metalúrgicos.

A posição de Aragão, aliada à ordem emitida por Goulart proibindo as tropas

de invadirem o Sindicato dos Metalúrgicos, provocou o pedido de demissão de Mota,

imediatamente substituído pelo almirante Paulo Mário Rodrigues. No dia 26 de março,

após acordo, os marinheiros abandonaram o prédio do sindicato e foram em seguida

presos e conduzidos a um quartel. Contudo, horas depois, foram anistiados por Goulart.

Essa anistia foi duramente criticada pela alta oficialidade, agravando ainda mais a

insatisfação militar.

Já a reunião realizada no Automóvel Clube, no dia 30 de março, comemorou o

aniversário da Associação dos Suboficiais e Sargentos da Polícia Militar da Guanabara.

A participação de Goulart e seu discurso denunciando as pressões que seu governo

sofria nacional e internacionalmente, apenas reforçou o discurso da revista ADN de que

1946. Sugerimos consultar como referência introdutória o verbete “Revolta dos Sargentos” de Sérgio Lamarão no DHBB (2001).

Page 114: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

100

seu governo incitava a desordem e ameaçava a própria nação e suas instituições

democráticas:

Em março de 1964, se deu uma demonstração de indisciplina mais grave: em Assembléia no Sindicato dos Metalúrgicos no Rio de Janeiro, cerca de mil marinheiros exigiram a suspensão das punições aplicadas aos dirigentes da associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil. Presentes lá, também estavam, solidários e insufladores, dirigentes do CGT e militantes de várias organizações de esquerda. Além do mais, contaram com o apoio de dois almirantes, um dos quais, comandante do Corpo de Fuzileiros Navais. O Ministro da Marinha solicitou tropas do Exército que cercaram e evacuaram o sindicato. O presidente, para contornar a crise e cedendo às pressões das esquerdas, exonerou o Ministro da Marinha e nomeou um novo titular, almirante da reserva, nacionalista, concordando ainda em anistiar os insubordinados. O último acontecimento, demonstrando a quebra da hierarquia e disciplina, se deu na noite de 30 de março de 1964 na sede do Automóvel Clube do Brasil, no Rio de Janeiro: comemoração do aniversário da Associação de Suboficiais e Sargentos da Guanabara. Se reuniram cerca de duas mil pessoas, tendo como convidado especial o próprio presidente da república. Na assistência, dois ministros militares, o Comandante do Corpo de Fuzileiros Navais, o líder da rebelião dos marinheiros e representantes de toda a esquerda, populistas e comunistas. Os discursos foram inflamados e revolucionários, inclusive a fala do Presidente da República. Mas, naquele momento, já estava em movimento a Revolução de 31 de março de 1964 (ADN, jan/abr de 2004, p.76. Grifos do original).

Essa motivação [para iniciar o golpe de 64] foi crescendo, até chegar às agitações promovidas pelo cabo Anselmo, em que saiu ferida profundamente a disciplina militar. Isso, por si só, justificaria o movimento militar revolucionário, tal a repulsa que teve em todos os meios civis e militares. Iria dar, porém, motivação ainda maior, com o banquete do Automóvel Club do Rio, na noite de 30 para 31 de março, em que soldados, cabos e sargentos facciosos homenagearam o Presidente da República. Ficou demonstrado que a indisciplina militar estava sendo permitida e animada pelo governo (ADN, jan/abr de 2000, p. 23).

Desta forma, foi justamente na conjuntura de contestação do início dos anos

1960 que a revista ADN identifica o marco fundamental para a mobilização que

desencadeou o golpe de 1964. Segundo o periódico, as mobilizações políticas e sociais

observadas desde a posse de Goulart – Brizola, ligas camponesas, greves, CGT –

explicam a origem e o ritmo do golpe de 1964132.

Os artigos de ADN afirmam que a inconveniência de Goulart na presidência

era conhecida – aproximação com sindicalistas e incentivador de greves e manifestações

–, porém, em contrapartida, não houve capacidade suficiente dos grupos políticos para

impedirem sua posse e, consequentemente, o fortalecimento das convulsões sociais

assentadas na proposta comunista.

132 Importante destacar que algumas das obras mais atuais sobre o golpe de 1964 apontam para a hipótese de que a crise que resultou na intervenção militar decorreu: (1) da adoção da “estratégia de confronto” pela esquerda; (2) da estratégia da esquerda de impedir a negociação das reformas no Congresso; e (3) do golpismo da esquerda. Entre os representantes desta vertente historiográfica que coincide com a perspectiva da revista ADN, podemos citar: Argelina Figueiredo (1993) e Jorge Ferreira (2003 e 2004).

Page 115: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

101

Falhando os partidos políticos na compreensão do perigo comunista em direção ao qual o Brasil caminhava, primeiramente ao não dar crédito a conveniência do impedimento do Sr. João Goulart, em 1961, e depois ao repudiar o poder que tinham nas mãos, com o parlamentarismo, só restava, aos militares, passarem a agir (ADN, jan/abr de 2000, p. 21).

Assim a desordem, baseada na expansão do comunismo e na incapacidade dos

políticos em contê-lo, tornava-se prova cabal, segundo ADN, de ameaça à nação e da

necessidade de impedir a ocupação do país por comunistas133. Sendo tal percepção

compartilhada entre setores civis que apoiavam a necessidade de interferência militar,

posição que a revista afirma ter sido reforçada devido ao próprio governo ter deixado de

se comportar adequadamente, ferindo, desta forma, as instituições democráticas

nacionais.

Entre outras efemérides, 1994 registra o fim da Revolta da Armada, o batismo de fogo da FEB na Itália e o trigésimo aniversário da Revolução de 1964 [...] no terceiro avultou a defesa das instituições e do estilo de vida democráticos (ADN, jan/mar de 1994, p. 5).

O movimento cívico de 31 de março de 1964 interrompeu a marcha da desagregação institucional, do desmantelamento econômico e da ruptura do tecido social que ameaçavam lançar o país no abismo da Guerra Civil (ADN, mai/ago de 1999, p. 137).

3.3.2.2. O apoio civil e a união dos militares em favor do golpe de 1964

A segunda justificativa utilizada pela revista ADN para legitimar o golpe de

1964 está fundamentada no apoio civil que a intervenção militar obteve. Entre as

demonstrações favoráveis ao golpe ao longo do governo Goulart, ADN comenta o

posicionamento do Congresso, da imprensa e da população, esta última através das

manifestações públicas. Para reforçar a percepção de que o golpe de 1964 foi apoiado e

solicitado pela maioria da população, a revista ADN compara a participação popular

durante o Comício da Central, cerca de 150 mil, e a da Marcha da Família com Deus

pela Liberdade, cerca de 500 mil pessoas. Esta última organizada por setores da classe

média, desencadeou uma série de manifestações, “marchas”, com a finalidade de

133Achamos prudente fazer uso do termo comunista para identificar as ameaças que a revista enxerga no cenário nacional. Embora, a revista faça uso indiscriminado de outras denominações – comunista, marxista, esquerdista e sindicalista – isso se observa menos pelo conhecimento sobre as bases teóricas dos diferentes movimentos, do que pela influência do contexto histórico.

Page 116: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

102

sensibilizar e alertar a opinião pública para as medidas do governo Goulart, pois

identificavam o governo como sustentáculo de uma intensa “expansão do comunista”134.

Tudo isso [greves, manifestações sindicais, desordem social] fez aumentar as resistências no Congresso e na imprensa. Elas influíram no meio do povo, de onde saíram as marchas das famílias nas ruas. A todo o momento comparavam a atitude do Governo com os prenúncios do Manifesto dos Ministros Militares de 1961, que apontou os desmandos que ocorreram, todos iguais, nos países que foram, ou estavam sendo, conduzidos ao comunismo (ADN, jan/abr de 2000, p. 23).

Às ruas vieram as famílias brasileiras. Conclamaram seus filhos representantes armados, que pusessem termo às perspectivas sombrias de uma conjuntura de instabilidade política, de crise econômica e deteriorização de valores culturais e religiosos. Que pusessem fim às tensões sociais exacerbadas, ao ambiente de desordem e insegurança nas cidades. Que afastassem os riscos de luta armada no campo, da subversão disseminada em sindicatos e entidades estudantis. Que acabassem com as sucessivas e ameaçadoras badernas ocultas por movimentos grevistas, tentativas de doutrinação ideológica, quebra da hierarquia e da disciplina nas Forças Armadas. Extinguir a insensatez e estabelecer condições favoráveis para o desenvolvimento do Brasil motivaram a eclosão da Revolução Democrática de 31 de março de 1964. Mantivemo-nos ao lado da razão. Respondemos ao clamor predominante da sociedade brasileira (ADN, mai/ago de 2000, p. 125).

A solução da questão [anos 60 e 70] parece estar na compreensão da extensão da fragilidade das instituições políticas brasileiras naquela quadra, que aos militares não interessaria ultrapassar, se as mesmas atendessem às suas finalidades sociais básicas (ADN, jan/mar de 1993, p. 43).

O importante papel desempenhado pela imprensa para a deflagração do golpe

de 1964 (STEPAN, pp. 101-114), segundo ADN, está relacionado aos artigos que

anunciavam e informavam a população sobre o perigo iminente das manifestações

comunistas e da infiltração de tais movimentos nas instâncias políticas. Assim como a

imprensa, representantes do Congresso, através da organização da Ação Democrática

Parlamentar (ADP)135, e das classes produtoras, demonstravam suas insatisfações em

declarações públicas, apoio a manifestações contra Goulart e na busca por aproximação

com militares.

A imprensa começou a alertar a sociedade, veladamente, para o perigo da instalação prematura de uma República Sindicalista. As classes produtoras, apreensivas, com as tendências do governo, procuram grupos de oficiais em cada Unidade da Federação para lhes transmitir suas preocupações e lhes mostrar a tremenda responsabilidade que pesava sobre as Forças Armadas na garantia das instituições e da esperança que a Nação nelas depositava (ADN, jan/abr de 2004, p. 78).

134 Sugerimos consultar como referência introdutória o verbete “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” no DHBB (2001). 135 Bloco interpartidário surgido em 1961 e composto, principalmente, de parlamentares da União Democrática Nacional (UDN) e do Partido Social Democrático (PSD). O Bloco possuía como objetivo o combate a infiltração comunista na sociedade brasileira. Sugerimos consultar como referência introdutória o verbete “Ação Democrática Parlamentar” de Sérgio Lamarão no DHBB (2001).

Page 117: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

103

Em nível institucional, ADN também destaca a importância da coesão existente

nas FA em relação ao governo Goulart para o sucesso da deflagração do golpe de 1964.

O episódio de 1961 que havia dividido o Exército no cenário nacional e possibilitado,

em grande medida, a posse de Goulart, é avaliado como inexistente no momento do

golpe136. Desta forma, segundo ADN, as instituições militares, durante o movimento de

março de 1964, expressaram a superação das dificuldades e das fragilidades

anteriormente constatadas:

Em todo o País, as Forças Armadas se manifestaram a favor do movimento revolucionário, de modo admirável e impressionante [...] Com esse admirável pronunciamento da tropa do III Exército [adesão ao movimento militar de 1964], foi anulada a triste página da incompreensão de 1961 (ADN, jan/abr de 2000, p. 32-34).

A avaliação acerca da conjuntura dos anos 1960 para a revista ADN foi da sua

fundamental importância para a aproximação dos segmentos que perceberam o perigo

do Brasil se tornar uma gigantesca Cuba (ADN, mai/ago de 2000, p. 122). A expressão

mais nítida do amplo alcance desta associação é observada na própria efetivação do

golpe de 1964:

O Brasil mostrou-se, em 31 de março de 1964, mais do que nunca, uno e indivisível, apesar de todos os esforços para dividi-lo por aqueles que se deixaram impressionar pela doutrina marxista e a supunham invencíveis, tanto mais que alguns adeptos já presidiam e dominavam o governo (ADN, jan/abr de 2000, p. 34).

Desta forma, a revista ADN afirma que o fator inconteste para a decisão em

favor do desencadeamento do golpe de 1964 foi a necessidade de interrupção da marcha

comunista, que se encontrava em avançado estágio e favorecida pela adesão de

segmentos políticos ao projeto esquerdista de ocupação do país. Neste caso, colocando

um fim à desordem do governo Goulart: “Opor-se à iminente tomada de poder pelo

radicalismo ideológico foi o fator de coesão determinante do envolvimento das Forças

Armadas no processo político deflagrador da Revolução de 31 de março de 1964”

(ADN, jan/mar de 1990).

A causa fundamental do movimento, cujo imediato efeito foi a deposição do presidente João Goulart, não estava apenas na desordem política, econômica e social que a inépcia e os projetos golpistas do primeiro mandatário produziram, levando a Nação à intranqüilidade e ao temor. Havia, também, algo mais perturbador e ameaçador: a revolução comunista ressurgente, velada, mas pressentida no tumulto dos acontecimentos. A segunda tentativa

136 Embora sejam comentadas algumas divisões internas, estas fazem referência já ao período do regime militar.

Page 118: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

104

concreta de tomado do poder que os comunistas faziam no Brasil (ADN, jan/abr de 2004, p. 71).

Além da desordem nacional e da ampla margem de apoio propalada em favor

do golpe de 1964, comprovada, segundo a ADN, através das manifestações da imprensa

e das passeatas organizadas pela população, outra característica primordial do golpe de

1964, para a revista, é a defesa constante das instituições e dos valores democráticos

que, diante das perturbações comunistas, eram incessantemente atingidos.

3.3.2.3. O golpe em defesa da democracia

A última justificativa utilizada pela revista ADN acerca da necessidade e da

legitimidade do golpe militar de 1964 é a defesa que os grupos envolvidos fizeram das

instituições democráticas diante do avanço comunista. Em grande medida, tal

justificativa é utilizada no discurso do periódico como fator não só de legitimidade,

mas, em alguns momentos, até mesmo de legalidade do golpe. Embora a perspectiva

democrática não seja explicada/definida, sempre aparece associada aos valores

tradicionais do mundo Ocidental, do Brasil e dos que defendem a intervenção militar

diante do governo Goulart, sendo diametralmente oposta aos interesses dos comunistas

– Brizola, Arraes, ligas camponesas, sindicatos – e, em especial, do presidente em

exercício.

Desta forma, a avaliação do periódico sobre o golpe de 1964 indica que a ação

foi efetuada em defesa da democracia e contrária aos excessos do Executivo que havia

se conjugado com lideranças políticas e grupos de esquerda: “É, no mínimo, uma

imprudência acreditar que se não houvesse o Movimento de 31 de março de 1964 o

Brasil teria continuado, sem graves convulsões, sua evolução como sociedade livre,

pluralista e democrática” (ADN, jan/mar de 1993, p. 42).

Já a compreensão da revista acerca de uma dimensão de legalidade do golpe de

1964 ultrapassa sua associação com a população e com a defesa da democracia.

Segundo a ADN, é preciso compreender a função constitucional das Forças Armadas

durante o período, no qual são responsáveis pela defesa da pátria, pela garantia dos

Page 119: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

105

poderes constitucionais, da lei e da ordem137. Neste sentido, o periódico interpreta que a

subordinação militar ao presidente da República está condicionada aos limites da lei138,

fator que para ADN foi rompido com a desordem e o avanço comunista proporcionado

pelo próprio presidente. Diante deste discurso a ação das FA em março de 1964 está

contida na sua própria destinação constitucional de defesa nacional.

Diante da gravidade do momento, o Exército Brasileiro não se omitiu. [...] Cumprindo sua histórica vocação de sintonia com o povo que lhe deu origem – ao qual sempre serviu e nunca faltou – ajudou a deflagrar a Revolução de 31 de março, que criou as condições para relançar o processo de desenvolvimento nacional noutras bases, em ambiente de paz e segurança (ADN, mai/ago de 1999, p. 137).

Como qualificar o posicionamento das Forças Armadas em 1964? Revolta? Golpe de Estado? Revolução? Para responder a essas indagações, cabe, antes, fazer mais uma pergunta: o que desejava a sociedade naquela ocasião? Certamente ela estava muito preocupada e inquieta com os níveis de desordem, insegurança e a possibilidade iminente de um golpe comunista. Que fazer quando já não há mais um governo que mereça respeito e confiança ou quando ele mesmo é o principal agente da desordem e da ilegalidade? Naquele longínquo 31 de março de 1964, que poderiam e deveriam fazer as Forças Armadas da Nação? Elas seguiram sua destinação constitucional e agiram no contexto de movimento cívico-militar. A ação das Forças Armadas, naquelas circunstâncias, foi um ato lícito e indispensável, conduzido dentro dos quadros institucionais, com oportunidade e energia necessárias para deter à marcha acelerada do País para a desordem e a violência com o objetivo de transformá-lo em uma república sindicalista-marxista (ADN, jan/abr de 2004, p. 84).

Sobre tais pressupostos – reverter a conjuntura de desordem esquerdista,

apresentar apoio popular, defender o modelo político democrático e possuir respaldo

constitucional – o intervencionismo militar é considerado legítimo e necessário para a

preservação dos interesses da nação. Considerando que a autoridade maior – o

Executivo – transpusera, a critério das FA, os limites da legalidade.

3.3.3. O propósito do golpe justifica sua denominação: “Revolução”

Baseados nas justificativas para o desencadeamento do movimento de março

de 1964 – combate ao comunismo e defesa da democracia – os artigos da revista ADN

137 Constituição de 1946, art. 177: “Destinam-se as forças armadas a defender a Pátria e a garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem” 138 Constituição de 1946, art. 176: “As forças armadas, constituídas essencialmente pelo Exército, Marinha e Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República e dentro dos limites da lei”

Page 120: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

106

se propõem a refutar qualquer posição que coloque em dúvida a legitimidade da

intervenção. Desta forma, existe uma preocupação muito grande em relação à

nomenclatura utilizada em relação ao golpe de 1964, principalmente, porque ela deixa

transparecer o posicionamento em relação a própria intervenção.

Apesar de predominar nos artigos de ADN o termo “Revolução”, não há,

unanimidade sobre a nomenclatura. Para os que defendem que o golpe de 1964 foi uma

Revolução139, destaca-se a percepção de que o movimento inaugurou uma fase de

supressão das ameaças à sociedade e a instituições democráticas, o que impeliu a revista

ADN a refutar terminologias de teor pejorativo como “golpe”, que, de acordo com o

periódico, deslegitima o movimento.

A evidência dos fatos demonstra, portanto que não se aplica a pecha de Quartelada, Golpe de Estado ou Usurpação de Poder ao movimento cívico militar de 31 de março de 1964. [...] Deixar de reconhecer que ele surgiu, e se fortaleceu, no seio do povo, em cujo nome foi deflagrado, para impedir que a nação fosse levada ao caos, é negar a História – que não se apaga nem se reescreve (ADN, mai/ago de 2000, p. 137. Grifos do original).

É possível encontrar, em menor escala, outras denominações para o golpe de

1964, como por exemplo: “Revolução Democrática de 1964”, “Revolução cívico-militar

de 1964”, “Contrarrevolução” e “Contrarrevolução Restauradora”. As duas primeiras

denominações aparecem como desdobramentos do uso do termo Revolução, desta

forma, repetem os valores comentados acima. Já os dois últimos termos –

Contrarevolução e Contrarevolução Restauradora – não inauguram uma nova forma de

posicionamento sobre o golpe de 1964, mas sim uma nova nomenclatura e um enfoque

reforçado acerca do combate ao comunismo. Desta forma, estão fundamentados na

existência de dois movimentos em curso: o projeto comunista em avançado estágio de

tomada do poder para o estabelecimento de uma ditadura esquerdista e, posteriormente,

a formação de um movimento contrário ao primeiro. Por isso, Contrarrevolução.

139 O predomínio do termo Revolução não se detém a revista ADN, podem ser encontrados em outros periódicos militares e em livros editados pela BIBLIEx.

Page 121: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

107

3.3.4. O desenvolvimento econômico e social durante o regime militar (1964-1985)

Torna-se necessário compreender que 1964, para a ADN é um divisor de águas

no processo de desenvolvimento nacional, especialmente, por ter garantido a

pacificação e a adoção de projetos econômicos e sociais de grande benefício para o país.

O periódico, ao explicar o novo momento inaugurado com o golpe de 1964,

expõe e comenta os índices econômicos e seus desdobramentos nacionais e

internacionais ao longo do período militar. Para ADN, foi em decorrência do golpe de

1964 que o Brasil pôde ampliar seu parque industrial; universalizar o ensino público e

expandir o sistema de telecomunicações (ADN, mai/ago de 1999, p. 137). Também são

comentadas mudanças sociais como a expansão da oferta de emprego; a Previdência

Social; o Estatuto da Terra; PIS/PASEP; FGTS; Mobral e o projeto Rondon (ADN, mai/

ago de 2000, p. 121).

Todavia, os artigos não se detém em explicações aprofundadas sobre a

efetividade das mudanças introduzidas durante o regime militar ou do modelo utilizado

para sustentar os altos índices econômicos, apenas afirmam que o país foi beneficiado e

expõem dados numéricos que apontam para o crescimento econômico140.

Apesar do ambiente conflituoso, os governos da Revolução ampliaram e modernizaram o parque industrial brasileiro. Aperfeiçoaram sistemas de energia, comunicações e transportes. Interiorizaram a prosperidade desenvolvendo regiões afastadas dos grandes centros. Ampliaram e democratizaram a educação e o ensino. Reduziram com médias efetivas o analfabetismo. Conduziram o país ao respeitável grupo das grandes economias mundiais, como resultado da obtenção de altas taxas de crescimento econômico. Restauraram a normalidade democrática mediante um processo racional de engenharia política que culminou com a promulgação da lei da anistia – uma incontestável prova de reconciliação e desarmamento de espírito (ADN, mai/ago de 2000, P. 125).

3.3.5. A prolongada vigência do regime militar é justificada

A revista ADN, ao relatar a importância da trajetória das FA para a

organização político-social do Brasil, tece comentários sobre o envolvimento direto de

140 Vale lembrar que na historiografia mais atual sobre o golpe de 1964 encontramos análises que coincidem com a observada na revista ADN sobre os benefícios do regime militar fragilmente sustentado por dados quantitativos. Entre seus representantes podemos citar a obra de Daniel Aarão Reis (2000) na análise referente ao “milagre brasileiro” realizada pelo autor.

Page 122: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

108

militares durante toda a história nacional. Contudo, um elemento ganha destaque no

contexto geral das interferências militares na política brasileira: o longo período que os

militares ficaram no comando político após o golpe de 1964.

Segundo ADN, a extensa duração do regime militar é justificada por dois

importantes fatores: (1) a necessidade de restabelecimento da ordem em diferentes

instâncias sociais e (2) a radicalização dos movimentos comunistas. O periódico indica

que ao ser efetuado o golpe de 1964, foi preciso conter os indivíduos e as organizações

que colocavam em risco a sociedade brasileira e suas instituições democráticas.

Se, a princípio, muitos acreditaram no envolvimento militar eficaz e de curta

duração, ADN comenta que diante das circunstâncias da infiltração comunista e da

radicalização das esquerdas, infelizmente não foi possível evitar o prolongamento da

proeminência dos militares na vida nacional. “Os efeitos da Revolução tiveram que

estender-se no tempo como contraponto à subversão estabelecida por quem obedecia a

uma pátria fora do Brasil e adotava uma bandeira diferente da nossa” (ADN, mai/ago de

2000, P. 125).

Desta forma, ADN afirma que “As correntes de esquerda obrigaram o emprego

das FA para derrotá-las” (ADN, out/dez de 1991, p. 20). Sendo assim, a prioridade

militar esteve pautada ao longo do regime autoritário pelo intenso e constante combate

contra as intenções das forças de esquerda ocuparem o poder. Para demonstrar que o

conflito com as esquerdas se mantinha e, em alguns casos, também se agravava, a

revista ADN aponta a presença de inúmeros grupos comunistas, alguns herdados do

período dos anos 1960 e outros mais novos que se dedicavam a luta armada.

Para a infelicidade do Brasil, elementos de esquerda, apátridas ligados a movimentos alienígenas de diferentes linhas marxistas, voltaram-se para a violência armada e não permitiram que fossem experimentados o Proterra e, muito menos, a excelente Constituição de 1967. Pela atuação destes foi tentada, pela terceira vez, a tomada do poder (ADN, jan/abr de 2004, p. 83).

Desta forma, para que fossem alcançados os objetivos norteadores do

movimento de 1964 – combate ao comunismo e defesa da democracia – a revista ADN

afirma que foi necessário prolongar o regime militar. “E a renitência do perigo vermelho

foi que motivou a sucessão dos governos militares [...] Outra interpretação a respeito

carece de consistência e se torna passível de suspeição” (ADN, jan/mar de 1990).

Page 123: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

109

3.3.6. A repressão

Neste mesmo contexto – alcance dos objetivos que desencadearam o golpe de

1964 – ADN define a necessidade e a forma do combate ao comunismo. A necessidade

relatada é, sem dúvida, impedir que ele alcance as instâncias do poder. Mas, ao tecer

explicações sobre a forma de combate utilizada contra a esquerda, em grande medida, a

revista se preocupa em responder às críticas e interpretações da imprensa, dos

estudiosos e até mesmo de movimentos sociais e de organismos políticos.

O progressivo retorno às regras democráticas ao fim do regime militar garantiu

aos grupos perseguidos durante a ditadura o direito à livre interpretação dos fatos e a

sua posterior divulgação. Muitos relatos biográficos e pesquisas dos mais diversos

campos das ciências destinaram-se a comentar e a esclarecer o que havia acontecido

com alguns indivíduos: prisões arbitrárias, torturas e assassinatos. Sobre as denúncias

acerca da truculência do regime militar, a ADN também tratou de comentar

superficialmente a ação da repressão durante o período autoritário sem assumir nenhum

tipo de responsabilidade sobre os excessos da repressão.

As guerrilhas urbana e rural levadas a termo no Brasil obrigaram as nossas Forças Armadas a interferirem para eliminar a ameaça. Deve-se salientar que apenas uma pequena parcela de seu efetivo foi empregada para esse fim, e que o fizeram dentro do espírito de sua destinação constitucional de manutenção da ordem interna [...] (ADN, mai/ago de 2000, p. 117-118).

Em resposta à crescente produção biográfica, midiática e acadêmica sobre a

repressão, além dos debates sobre o assunto que incidiam na esfera política, a revista

ADN declara que a decisão acerca do enfrentamento entre FA e esquerda, assim como

sua intensificação, esteve associada à dimensão dos perigos que a sociedade brasileira

enfrentava com a exacerbação das ações comunistas. Contrariando, inclusive, o que se

convencionou na imprensa e em alguns círculos acadêmicos que atribuíam ao AI-5 o

início da luta armada, ADN afirma que ele foi aplicado para conter a radicalização

comunista.

[...] a edição do AI-5 foi essencialmente uma reação à radicalização da luta política e não, como apregoam alguns, que possuem certa dificuldade de localizar temporalmente na história os acontecimentos, uma motivação derradeira para o início da luta armada, ainda que reconhecidamente tal fator, tenha contribuído, em certa medida, para o acirramento dos ânimos [...] ( ADN, jan/abr de 2002, p. 118).

Page 124: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

110

Diante das diversas acusações sobre os meios/mecanismos de repressão

utilizados durante a ditadura, a revista ADN se restringe a afirmar incessantemente a

necessidade das ações de controle social diante da conjuntura de ameaça comunista que

o país enfrentava.

Após 1964, sucederam-se vários governos presididos por militares. Durante esse período os partidos políticos de esquerda, considerados ilegais, e várias correntes que surgiram como organizações militaristas desenvolveram intensa atividade, tanto de guerrilha urbana como rural, obrigando a que as Forças Armadas fossem empregadas para derrotá-las (ADN, out/dez de 1991, p. 20).

Médici tinha a consciência tranquila do dever a cumprir. Enfrentou com destemor os seqüestros de embaixadores, os assaltos, o terrorismo e a guerrilha urbana e rural. Ao sair-se vencedor do confronto, podemos dizer que estabeleceu as bases para o retorno do país ao regime democrático (ADN, jan/mar de 1997, p. 124).

Numa conjuntura mundial de paz morna e guerra fria, enfrentando técnicas e táticas só conhecidas por aqueles ‘defensores abnegados da democracia’ que haviam cursado escolas especializadas em Cuba e na Coréia do Norte, o governo brasileiro enfrentou, dentro das limitações que o grau de evolução das Instituições permitia, o desafio do terrorismo. Para tal empregou as Forças Armadas, como instrumento do Estado e a serviço da Nação que, por não saber que estava sendo ‘libertada’, esperava que as Forças Armadas, em particular o Exército, atendesse à sua necessidade social básica de segurança, comprometida por uma minoria que não hesitava em matar ou roubar para impor as suas verdades (ADN, jan/mar de 1993, p. 42).

3.3.7. A abertura política

De acordo com a definição da revista ADN, os mais expressivos resultados do

movimento de 1964 foram: (1) ter impedido o estabelecimento de um regime

comunista; (2) ter servido de instrumento defensor da democracia; (3) ter garantido a

pacificação nacional e (4) ter restabelecido a democracia sem propagar conflitos.

Os comentários sobre o fim do regime militar na revista não apresentam

insatisfação, pelo contrário, se o objetivo de 1964 sempre foi o de garantir a

democracia, a condução da política pelos militares está associada ao fato de que “Ele

[Regime Militar] não era um fim em si mesmo, mas um instrumento transitório para se

alcançar a democracia de estilo ocidental” (ADN, mai/ago de 2000, p. 122).

A revista compreende a necessidade da retirada dos militares das instâncias

proeminentes da esfera política, porém, sem abrir mão de relatar os benefícios advindos

Page 125: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

111

do regime militar. Em grande medida, o periódico destina seus esclarecimentos sobre os

benefícios do regime militar aos que não o vivenciaram; aos que esqueceram ou

estavam compelidos pelo comunismo. Ele felicita como um dos principais resultados do

regime militar o restabelecimento da democracia brasileira em bases sólidas e sua

efetivação através da serena transferência do “período revolucionário” para o

democrático.

Se a Revolução [1964] não tivesse acontecido, poderíamos estar vivendo hoje a situação dos satélites terceiromundistas do marxismo, para livrarem-se do equívoco que perturbou a vida das nações por quase todo um século. E a crise em que nos defrontamos teria dimensão de tragédia, diante de um País exaurido pela guerra interna, que tem sido a constante da transição para o socialismo-comunismo (ADN, jan/mar de 1990, p. 5).

Após um longo, porém seguro, processo de abertura política, iniciado durante o governo Geisel (1975-79) e consolidado no conturbado governo Figueiredo (1979-85), os militares se retiraram da vida política do País, permitindo a transformação do regime democrático dualista, misto de representativo e de referendum vigente de 1965, com a edição do AI-2, até 1978, com a recriação dos partidos, em democracia indireta representativa que, por sua vez, atingiu a sua plenitude operativa com a promulgação da nova Constituição em 1988 e o conseqüente restabelecimento do sistema de eleições diretas para presidente, governadores e prefeitos das capitais (ADN, jan/abr de 2002, P. 120).

Além das paulatinas alterações legais, a revista ADN aponta que a

demonstração mais visível da relativa tranqüilidade pela qual o Brasil passou durante o

período de transição está associada à ocorrência, apenas, de pequenos incidentes e ao

ponto final instituído com a lei da anistia.

É importante mencionar que, em grande medida, a transição do regime

revolucionário para o regime representativo transcorreu sem maiores problemas, não obstante alguns incidentes, particularmente durante o governo Figueiredo (atentados terroristas na sede da OAB/RJ e no RioCentro), terem procurado, sem êxito, tumultuar o processo, em decorrência não só da natureza liberal do regime que, em 21 anos de vigência, contabilizou um total de apenas 321 mortos ou desaparecidos, incluindo dentre estes as baixas decorrentes do conflito no Araguaia, como dos próprios termos da lei de anistia (ampla, geral e irrestrita) que perdoou incondicionalmente todos os envolvidos em atos políticos, inclusive seqüestradores, como o atual deputado Gabeira, ou guerrilheiros, como o também atual deputado José Genoíno, e propiciou generosas indenizações às famílias dos mortos e desaparecidos em dependências do Estado e, muitas vezes, escandalosas aposentadorias para os anistiados políticos que hoje, juntamente com as pensões de ex-combatentes, lideram as listas de maiores benefícios previdenciários pagos pelo Estado [...] (ADN, jan/abr de 2002, p. 120. Grifos do original).

Page 126: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

112

3.3.8. A revista A Defesa Nacional e o revanchismo

Atenta à percepção que a sociedade brasileira apresenta sobre as FA, a revista

ADN utiliza os termos “revanchismo/revanchista” para classificar diversos tipos de

ataques sofridos pelas instituições militares em referência ao regime militar, seja sobre

sua origem, ou mesmo, sobre seus resultados141. Neste caso, o revanchismo é

caracterizado como conjunto de atitudes dos indivíduos que, derrotados em 1964,

alcançaram importantes cargos políticos ao fim do regime militar e que, na atualidade,

por vingança, estariam organizando ações que denigrem e desqualificam as Forças

Armadas.

Fizemos a nossa parte... Do mesmo modo pacificamos a nação. Mais uma vez, exercitamos a conciliação e a reflexão. Missão Cumprida! Continuamos dedicados à preparação de nossos quadros para bem cumprir a missão primordial que será sempre a defesa da Pátria (ADN, mai/ago de 2000, P. 126).

Ao compor o arcabouço acerca do campo de ação revanchista, ADN insere

desde questões de impedimentos orçamentários, passando pela produção da literatura

sobre o regime militar, até as críticas sobre a exclusiva participação dos militares no

golpe de 1964 e a má aceitação da lei da anistia.

Os artigos publicados pela revista ADN afirmam que ocorre a manutenção da

disputa entre militares e a esquerda, porém, tal disputa se concentra hoje no campo da

memória142; da produção de conhecimento e da manutenção/supressão de prerrogativas

militares143. Desta forma, para a ADN, a esquerda – presente em segmentos da mídia, da

política e das universidades – se empenha em denegrir a imagem dos militares diante da

sociedade.

O fim do “regime revolucionário” e o retorno da democracia, segundo a

revista, possibilitaram a projeção política de indivíduos que utilizam os poderes

adquiridos para imputar às FA restrições financeiras e, também, todos os males

nacionais existentes, devido a sua proeminência durante o regime militar.

141 A denominação também aparece em outros periódicos; livros da BIBLIEx; e em organizações como o Clube Militar, o Grupo Terrorismo Nunca Mais (TERNUMA) e o grupo Guararapes. 142 É comum entre os militares a avaliação de que, se venceram a guerra contra as organizações de esquerda, foram derrotados na luta pela memória histórica do período. 143 Compreendemos a denominação “prerrogativas militares” como espaços de autonomia e capacidade de veto que as FA possuem em algumas instâncias.

Page 127: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

113

No âmbito político, a ADN relata que a questão do orçamento disponibilizado

para as FA se tornou foco da ação de grupos revanchistas ao longo da Nova República.

Embora a questão orçamentária possa ser considerada um assunto que perpassa todo o

período de existência das FA brasileiras, para a ADN, após 1985 o assunto passou a ser

ponto de convergência para a ação de grupos revanchistas que pretendem desqualificar

as FA através de seu sucateamento. Para a ADN a vingança realizada através dos

cortes/limitações orçamentários está de acordo com o projeto de grupos que,

ressentidos144 com o regime militar, não colocaram um ponto final nas disputas dos

anos 1960-1970.

Ao contrário, é com perplexidade que se assiste a sucessivas tentativas de alterar a sua destinação constitucional à revelia do processo constituinte, a um cerceamento orçamentário que não leva em consideração serem as forças armadas instituições nacionais e permanentes e ao agravamento da questão salarial [...] (ADN, jul/set de 1992, p. 36).

Ainda no campo político, a ADN ao comentar o projeto de anistia de 1979

confirma que seu resultado deveria ser a reconciliação e o fim das animosidades entre os

grupos que haviam se enfrentado na conjuntura do regime militar. No entanto, o

periódico afirma que, por parte dos militares os desafetos foram superados, porém os

grupos identificados com a esquerda impedem que se processe o abandono das

desavenças políticas dos anos 1960-70.

As Forças Armadas não esperavam louros triunfais ao término do ciclo revolucionário, que sempre viram como transitório – elas cumpriram o seu dever de defesa da Pátria, impedindo que ela se tornasse uma gigantesca Cuba [...] Mas tão pouco contavam com a marginalização progressiva e a hostilidade que se manifesta com espantosa frequência, alvos preferenciais que se tornaram de ataques difamatórios, revanchistas e incriminatório. A tudo eles têm suportado, numa inequívoca demonstração de respeito ao estado de direito, até mesmo provocações extremas, como o pagamento de indenizações aos herdeiros daqueles que se levantaram em armas para implantar, no país, com financiamento de potências estrangeiras, uma ditadura impiedosa e intolerante, como são as de modelo castrista, maoísta ou soviética (ADN, mai/ago de 2000, P.122).

No entanto, se o orçamento e as críticas não são satisfatórios, observamos que

a revista ADN felicita e afirma repetidamente seu sentimento de vantagem sobre a ação

dos segmentos revanchistas durante a definição do enquadramento constitucional das

Forças Armadas em 1988: “Na atual Missão Constitucional das Forças Armadas, os

aspectos fundamentais e essenciais foram mantidos, o que se constituiu em grande

144 A compreensão geral sobre o revanchismo está associada, segundo ADN, ao fato dos militares terem impedido a marcha comunista no processo de ocupação do poder.

Page 128: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

114

vitória contra o sentimento revanchista por parte de alguns constituintes.” (ADN,

out/dez de 1991, p. 22).

Diante do mesmo campo de disputa comentado anteriormente – militares e a

esquerda – a ADN observa que a difusão de interpretações negativistas sobre as FA, em

especial, em referência ao regime militar, está calcada principalmente na ação da mídia.

De acordo com a ADN, a mídia, como formadora da opinião pública, exerce um

importante papel social. Porém seu desconhecimento, ou mesmo, seus interesses

particulares, podem interferir na compreensão da própria realidade. Em relação às FA, a

ADN afirma que a mídia brasileira é responsável por grande parte da atual percepção

depreciativa que a sociedade expressa pelos militares e suas instituições.

As Forças Armadas, em particular o Exército, são vistas com reserva, desconfiança e má vontade por alguns setores da sociedade brasileira. A maioria das pessoas que forma a opinião pública não conhece o Exército, seja pela reduzida percentagem de aproveitamento dos jovens para a prestação de serviço militar, seja pela inexistência de uma tradição de participação das elites na formação de uma política de segurança nacional (ADN, jan/mar de 1993, p. 39).

Ultimamente, porém, seus detratores, que abundam na mídia tanto quanto escasseiam no seio do povo, vem procurando diminuir a importância do movimento de 1964, a começar pela negativa em atribuir-lhe caráter revolucionário, a despeito das profundas, benéficas e duradouras transformações que trouxe para o país. Preferem chamá-lo de golpe militar (ADN, mai/ago de 2000, p. 120).

Outro importante núcleo formulador de idéias encontra-se na produção

acadêmica. Crítica da maior parte da literatura acadêmica sobre o regime militar, ADN

qualifica tais setores como “refúgio da esquerda” e preocupa-se com a influência que

sua produção possa exercer sobre a relação das FA com instâncias nacionais e

internacionais, além da preocupação com a formação educacional da sociedade:

A interação entre pessoas socialmente influentes, porém pouco informadas sobre as Forças Armadas, e intelectuais nem sempre coerentes com seus anseios de liberdade, tem sido, na presente conjuntura, desastrosa para as Forças Armadas, particularmente o Exército, e, inevitavelmente, para a nação (ADN, jan/mar de 1993, p. 40).

A atual conjuntura – fim da Guerra Fria e consolidação do regime democrático

–, segundo ADN, além de desencadear o afastamento de diferentes grupos sociais que

haviam se associado/apoiado o regime militar, também favoreceu a descaracterização

do contexto histórico em que ele foi estabelecido. Assim sendo, o periódico aponta que

foram esquecidos e/ou apagados os verdadeiros motivos que pautaram o regime

Page 129: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

115

militar145 – luta contra o comunismo e defesa da democracia –, sendo ressaltado o teor

autoritário e violento dos seus governos, normalmente exacerbado pelos “revanchistas”:

“Em tempos de suposta segurança, o pensamento militar sobre problemas nacionais, em

especial após período em que foi prevalecente, passa a ser alvo de repúdio” (ADN,

jan/mar de 1991).

As ameaças, as declarações e os fatos [comunismo], amplamente documentados na época, são hoje esquecidos, comprovando a aplicação da sinistra assertiva de George Orwell, autor de 1984: Aquele que tem o controle do passado controla o futuro (ADN, jan/mar de 1993, p. 42).

Sem dúvida, o grande descontentamento que a ADN expressa em relação aos

“revanchistas” é a intensa atividade que eles exercem na depreciação das FA. Segundo a

ADN, a ação revanchista se alimenta dos conflitos passados, por interesses futuros146

e/ou pela completa falta de conhecimento sobre as instituições militares

Desta forma, os militares adquiriram o estigma de únicos culpados pelo golpe

de 1964, sendo que este passou a ser sinônimo de autoritarismo e de interferência

desmedida dos militares na vida nacional. Diante de uma plataforma nacional tão

adversa, a ADN investe na divulgação do que afirma ser o verdadeiro legado do regime

militar: pacificação nacional e consolidação da democracia.

Se a Revolução não tivesse acontecido, poderíamos estar vivendo hoje a situação dos satélites terceiromundistas do marxismo, para livrarem-se do equívoco que perturbou a vida das nações por quase todo um século [...] Ao ensejo de mais um aniversário da Revolução, essa observação se afigura oportuna (ADN, jan/mar de 1990, p. 5).

3.4. Implicações atuais do discurso da revista A Defesa Nacional

A análise da revista ADN demonstra que o periódico traça um modelo de

posicionamento diante da sociedade e do Estado. Embora possamos encontrar nos

artigos da revista relatos sobre a autoridade do presidente e as regras constitucionais, em

última instância há o predomínio do pensamento que imputa as FA o poder de

salvaguarda do Estado e da sociedade.

145 Esquecimento baseado na ação da mídia; de grupos políticos; centros de pesquisa; e da produção acadêmica. 146 Os interesses podem ser de plataforma política ou mesmo de promoção pessoal, esta última exemplificada pela homenagem nacional aos presos políticos, que são vistos como heróis e têm acesso a indenizações e pensões.

Page 130: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

116

O posicionamento estabelecido pela revista para as FA brasileiras, associado à

percepção que o periódico apresenta sobre o golpe de 1964 e o regime militar,

demonstra que os debates sobre a intervenção iniciada em 1964 estão longe de se

esgotarem. Os enfrentamentos ocorridos entre militares e acadêmicos que se propõem a

analisar o regime autoritário não se restringem ao passado, pelo contrário, suas

avaliações possuem um resultado prático e bastante atual no contexto nacional. Neste

caso, avaliamos que qualquer que seja a análise sobre o regime militar, desenvolve-se,

consequentemente, um posicionamento para a atualidade, visto que os problemas que

estavam em pauta às vésperas do golpe de 1964 não foram solucionados147; e que, além

desses problemas não terem sido solucionados, o regime militar implicou o surgimento

de outros.

Entre os problemas originários do regime militar que não foram completamente

resolvidos, podemos citar: (1) a resolução acerca dos que foram direta ou indiretamente

prejudicados pelo regime (prisão, assassinato, tortura, perda de emprego e exílio); (2) a

campanha pelo acesso a documentos da época; (3) o debate sobre a reinterpretação da

lei da anistia; e, especialmente, (4) a realização de uma justiça de transição em moldes

internacionais148.

No caso da análise realizada na revista ADN, o discurso exposto serve como

justificativa para a defesa de prerrogativas militares e para declarações de veto no atual

cenário nacional. Em relação às prerrogativas que propõe defender, a revista publica: (1)

a interpretação constitucional das FA como defensoras das instituições políticas e da

sociedade; (2) a interpretação de um modelo de democracia ordeira a ser aplicada no

país - caso contrário, estabelece que os militares estão dispostos a interferir; e (3) a

capacidade das FA interpretarem a vontade do “povo”. Já nas ações de veto a revista

ADN advoga: (1) a existência de uma única interpretação da lei da anistia, que se baseia

no total esquecimento, o que impede qualquer tipo de reparação e/ou de possibilidade de

julgamento de funcionários do governo autoritário; (2) a inexistência de documentos

secretos sobre a repressão, pois não assumem os “excessos”; e (3) a afirmação de que o

regime militar deve ser interpretado como fator primordial para o estabelecimento das

bases da democracia brasileira.

147Podemos incluir entre estes problemas a própria plataforma das “Reformas de Base”, que embora hoje se encontre desmembrada continua em debate. 148 A justiça de transição se consolidou internacionalmente a partir do relatório do Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas apresentado ao Conselho de Segurança (ANNAN, 2009).

Page 131: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

117

As declarações supracitadas demonstram que se, por um lado, o desmonte do

regime autoritário não provocou violentos conflitos sociais, ele também deixou questões

não ou mal resolvidas e, consequentemente, muitas tarefas para o processo de

consolidação do regime democrático. Se a conjuntura brasileira atual demonstra

significativa adesão ao modelo democrático, inclusive no comportamento das FA, nada

impede que em uma futura conjuntura de desordem econômica, social e política os

impulsos salvacionistas sejam novamente estimulados pelas instituições militares.

Em conclusão, defendemos que a manutenção de discursos elogiosos ao regime

militar dentro do Exército, como o apresentado pela revista ADN dificulta a

disseminação de um pensamento democrático e de respeito às instâncias políticas; e

impede a resolução de questões de ordem jurídica, social e histórica. Vale lembrar que o

controle civil sobre as FA não depende única e exclusivamente das regras

constitucionais nem da existência de agências civis para a administração de assuntos

militares, pois, estes, nos momentos de crise, demonstraram-se ineficazes. Mas, torna-se

necessária a associação de tais regulamentos à capacidade dos civis em administrarem

as instâncias militares com significativo conhecimento, especialmente sobre o

pensamento desenvolvido dentro da própria corporação.

Page 132: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

118

Conclusão

Após mais de quarenta anos, o regime militar (1964-1985) ainda ocupa espaço

significativo nos estudos acadêmicos; na produção midiática; e nos debates sociais e

políticos. Incluindo neste último o posicionamento de segmentos militares e civis em

favor da legitimidade e da necessidade da intervenção que resultou no mais longo

período ditatorial da história brasileira.

Hoje, poucos se prontificam a defender e/ou comemorar o período autoritário,

mesmo os que apoiaram e/ou se beneficiaram da ditadura, pois a população brasileira

majoritariamente se declara adepta da democracia. Todavia, ainda é possível encontrar:

(1) segmentos civis e militares que demonstram admiração pelo golpe e pela ditadura e

(2) assuntos atuais, não ou mal resolvidos, que nos remetem ao regime militar.

Neste contexto de herança do período ditatorial para a democracia, a análise da

revista ADN demonstra a existência de um discurso favorável ao golpe de 1964 e ao

regime militar, assim como favorável ao modelo de transição política adotado pelo

Brasil. Nossas conclusões se pautam pela existência e pela importante função deste

discurso em defesa da participação militar no cenário político nacional e para o veto a

projetos de alteração da ordem jurídica referente ao legado da ditadura.

Torna-se importante ressaltar que possuímos a consciência de que analisamos

segmentos do Exército e da sociedade civil que se expressam através de um

determinado periódico. Logo, mantivemos a atenção para o que Celso Castro

(CASTRO, In: FICO, FERREIRA, ARAUJO e QUADRAT, 2008, pp. 119-142)

considera fundamental para os pesquisadores que se dedicam a análise das mobilizações

que ainda hoje apoiam o golpe militar: (1) a progressiva interiorização das

comemorações e (2) o cuidado em não tomar manifestações pontuais como

representativa daquilo que atualmente pensa o conjunto dos militares.

A existência dos segmentos civis e militares supracitados e de suas propostas –

defesa do golpe de 1964 e do regime militar, assim como do modelo de transição

brasileiro – nos faz lembrar a interessante exposição de Manuel Antonio Garretón

(1987), apresentada em Documento de Trabalho para o Programa de La Facultad

Latinoamericana de Ciencias Sociales (FLACSO). O autor enfatiza a importância do

“medo” em circunstância de mudança política. Segundo Garretón, as formas de

mediação e articulação entre Estado e sociedade civil geram “miedos políticamente

Page 133: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

119

determinados”, e no caso de processos de mudança de um regime autoritário para um

regime político democrático o autor distingue alguns “medos” e seus sujeitos.

O “medo” presente em processos de restabelecimento da democracia é

apresentado em duas categorias: a da certeza e a da incerteza. Estando os sujeitos

também divididos em dois grupos: os construtores e organizadores do sistema

autoritário e os que foram alijados do sistema político durante a implantação do regime

autoritário. Desta forma, durante o restabelecimento da democracia os responsáveis pelo

regime autoritário se defrontam com o medo do retorno à situação que antecedeu o

regime por eles implantado e, principalmente, com a possibilidade de sofrerem

represálias ou a “revanche” pelos atos de repressão e perseguição cometidos. O segundo

grupo, composto pelos indivíduos que não se enquadravam no modelo autoritário, sofria

pela certeza da repressão existente – tortura, desaparecimento, prisão – e pelas

incertezas e expectativas acerca dos rumos da mudança política. Diante de tais

afirmações, compreendemos melhor os motivos pelos quais os militares se empenharam

em controlar a redemocratização brasileira e os motivos da oposição em não radicalizar

o desmonte da ditadura ao longo da transição.

Porém, a realização da transição do regime autoritário para a democracia de

forma paulatina, controlada e negociada, suprimiu diversas vozes discordantes e

assuntos que pudessem causar incômodo aos antigos inquilinos do Estado. Em

contrapartida, vê-se desde os anos 1990 a emergência, em grandes dimensões, de

assuntos antes relegados a pequenos espaços, seja por medo da certeza ou da incerteza

do processo de redemocratização (GARRETÓN, 1987). As disputas mais atuais sobre o

legado da ditadura no Brasil envolvem historiadores, arquivistas, juristas, familiares de

desaparecidos e ex-presos políticos, além de órgãos internacionais que propõem a

revisão legal de países que realizaram seus processos de redemocratização pela

influência dos antigos ditadores (SOARES e KISHI, 2009).

No caso brasileiro, as disputas mais tensas se concentram: (1) na proposta de

reinterpretação da lei da anistia; (2) no processo de reparação (presos, perseguidos,

desaparecidos, torturados, mortos); e (3) na divulgação de documentos e informações

sobre o período.

O caminho para a resolução das disputas indicadas, sejam elas jurídicas,

financeiras e/ou históricas, está atravessado por discursos construídos ao longo do

tempo e por diversos atores sociais que defendem nacionalmente seus projetos, status

que corresponde a ação da revista ADN. Neste caso, torna-se necessário levar em

Page 134: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

120

consideração que o passado aqui analisado é demasiado próximo e possui funções

políticas e sociais fortes no presente. Aqueles que discursam – individualmente ou como

representantes de algum grupo – estão inseridos na luta política contemporânea. E no

caso do Exército, que foi alvo privilegiado das acusações e da culpa pelos atos de

autoritarismo praticados durante a ditadura, esta proximidade com o passado é evidente.

A análise da revista ADN demonstra que os envolvidos com a publicação se

declaram em defesa da verdade e do Exército que, enquanto corporação, atuou

historicamente com significativa autonomia no cenário nacional brasileiro em

momentos de crise política. Desta forma, torna-se necessário um discurso legitimador,

ou melhor, apaziguador em defesa da manutenção de sua atuação política e social, além

de defender a inexistência ou a isenção de responsabilidades por atos de transgressão

durante regime militar, não tolerados nem mesmo pela legislação do período de ditadura

(tortura, assassinato, desaparecimento de documentos).

Page 135: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

121

BIBLIOGRAFIA

FONTES PRIMÁRIAS:

Revista A Defesa Nacional (1913-2004)

Diretriz Estratégica do Sistema Cultural do Exército, Portaria nº 615, de 29 de outubro

de 2002.

INFORMEX NR 011 – 25 de março de 2004. Ordem do Dia 31 de março.

Regulamento Disciplinar do Exército – R4, decreto nº 4.346, de 26 de agosto de 2002.

Relatórios do Ministério da Guerra Brasileiro (1890-1920). Consultado em fevereiro de

2010 - http://www.crl.edu/pt-br/brazil/ministerial

DECEx: Consultado em março de 2010. http://www.decex.ensino.eb.br

BIBLIEX: Consultado em março de 2008: http://www.bibliex.com.br

AHEx: Consultado em março de 2010 - http://www.ahex.ensino.eb.br

MNMSGM: Consultado em março de 2010 http://www.fortedecopacabana.com

REFERÊNCIAS

ABREU, Alzira Alves de. A Democratização no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação

Getúlio Vargas, 2006.

AGUIAR, Roberto A. R. de. Os militares e a Constituinte. São Paulo: Editora Alfa-

Omega, 1986.

ALMEIDA, Eliasar de Oliveira. “Os jovens-turcos”. Revista A Defesa Nacional, set/out

de 1988.

AMARAL, Antônio Barreto do. A Missão Francesa de Instrução da Força Pública

de São Paulo. Revista do Arquivo Municipal, São Paulo, 1966.

Page 136: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

122

ANDRADE, Auro Moura. Um Congresso contra o arbítrio: diários e memórias. Rio

de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

ANNAN, Kofi. O Estado de Direito e a justiça de transição em sociedades em

conflito ou pós-conflito. Relatório apresentado ao Conselho de Segurança da ONU em

23.08.04. Revista da Anistia política e justiça de transição, nº. 01, pp. 320-51, Brasília,

jan/jul de 2009.

Anônimo. “A Defesa Nacional – 76º aniversário”. Revista A Defesa Nacional, set/out

de 1989.

ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras,

1989.

ATASSIO, Aline Prado. A batalha pela memória: os militares e o golpe de 1964.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da

Universidade Federal de São Carlos. São Carlos 2007.

BENTO, Cláudio Moreira. “Centenário do General Bertholdo Klinger, co-fundador de

A Defesa Nacional (1884-1969)”. Revista A Defesa Nacional, jan/fev, 1984.

BILAC, Olavo. A Defesa Nacional (Discursos). Rio de Janeiro: Bibliex, 1965.

CAPELLA, As malhas de aço no tecido social: a revista A Defesa Nacional e o

serviço militar obrigatório. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação

em História da Universidade Federal Fluminense. Niterói, 1985.

________. Leila Maria Corrêa. Militares e organização nacional: os ‘jovens turcos’.

In: Ciências Sociais Hoje. São Paulo: Vértice, 1988. Vértice, Editora dos Tribunais,

ANPOCS. Anuário.

CARVALHO, Estevão Leitão de. Memórias de um soldado legalista. T. I. livros 1 e

2. Rio de Janeiro: Imprensa do Exército, 1961.

CARVALHO, José Murilo. Forças Armadas e Política no Brasil. Rio de Janeiro:

Jorge Zaar, 2005.

________. A formação das almas. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

Page 137: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

123

CARVALHO, L. P. Macedo. “Hermes – o Pai do Exército Moderno”. Revista A Defesa

Nacional, mai/ago, 1999.

CASTRO, Therezinha. “Os 67 anos de A Defesa Nacional”. Revista A Defesa

Nacional, nov/dez de 1980.

CASTRO, Celso. Os militares e a República. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.

________, IZECKSOHN, Vitor. KRAAY, Hendrik (orgs.). Nova História Militar

Brasileira. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.

CIDADE, Francisco de Paula Cidade. Síntese de três séculos de literatura militar

brasileira. Sem local e editora. Impresso no Estabelecimento General Gustavo Cordeiro

de Farias. 1959.

CLAUSEWITZ Carlos Von. Da guerra: a arte da estratégia. São Paulo: Tahyu, 2005.

CODATO, Adriano Nervo. Uma história política da transição brasileira: da

ditadura militar à democracia. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 25, pp.

83-106, nov. de 2005.

COELHO, Edmundo Campos. Em Busca da Identidade – O Exército e a política na

sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Foranse-Universitária, 1976.

COMBLIN, Joseph. A ideologia da segurança nacional. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 1978.

CONTREIRAS, Helio. Militares - confissões. Histórias secretas do Brasil. Rio de

Janeiro: Mauad,1998.

Correio Braziliense, 17 de outubro de 2004.

COSTA, Emília Viotti da. Da monarquia à república. São Paulo: Brasiliense, 1987.

COUTO, Ronaldo Costa. História indiscreta da ditadura e da abertura: Brasil,

1964-1985. Rio de Janeiro: Record, 1999(a).

________. Memória viva do regime militar: Brasil, 1964-1985. Rio de Janeiro:

Record, 1999(b).

Page 138: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

124

CPDOC. Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro, Pós 1930. Rio de Janeiro:

Fundação Getúlio Vargas, 2001.

D`ARAUJO, Maria Celina e CASTRO, Celso (orgs.). Democracia e Forças Armadas

no Cone Sul. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2000.

________. Ernesto Geisel. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997.

________. Militares e política na Nova República. Rio de Janeiro: Editora FGV,

2001.

________. Dossiê Geisel. Rio de Janeiro: FGV, 2002.

________ e SOARES, Gláucio Ary Dillon (orgs). Visões do golpe: a memória militar

sobre 1964. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994(a).

________. Os anos de chumbo: a memória militar sobre a repressão. Rio de Janeiro:

Relume-Dumará, 1994(b).

________. A volta aos quartéis: a memória militar sobre a abertura. Rio de Janeiro:

Relume-Dumará, 1995.

________. 21 anos de regime militar: balanços e perspectivas. Rio de Janeiro: FGV,

1994(c).

DENYS, Olydio. “Renovação do Exército – Missão Indígena”. Revista A Defesa

Nacional, mar/abr de 1985.

DINIZ, Eli. A transição política no Brasil: uma reavaliação da dinâmica da

abertura. Dados – Revista de Ciências Sociais/IUPERJ, v. 28, n. 3, p.334, 1995.

DINIZ, Eugênio e PROENÇA Jr., Domício. Política de Defesa do Brasil. Brasília:

Editora da UnB, 1998.

DREIFUSS, René Armand. 1964. A conquista do Estado - ação política, poder e golpe

de classe. Petrópolis: Vozes, 1981.

DUARTE, Luiz Eugênio. “As publicações militares vistas como desafio para a

construção de uma sociedade integrada e solidária”. Revista A Defesa Nacional, jan/abr

Page 139: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

125

de 2003. Matéria extraída da exposição apresentada na XV Conferência Ibero-

Americana de Editores Militares realizada em Tegucigalpa, Honduras, no ano de 2002.

ESTEVES, Diniz. Ministros da Guerra e do Exército Brasileiro, 1951-1999. Brasília:

Estado Maior do Exército, 1999.

FAUSTO, Boris. 2007.

FERREIRA, Jorge. A estratégia do confronto: a Frente de Mobilização Militar. Revista

Brasileira de História. São Paulo, v.24, n. 47, pp. 181-212, 2004.

________. O governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964. In: FERREIRA, Jorge;

DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (Orgs.). O Brasil Republicano: o tempo da

experiência democrática – da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964.

Volume: 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

________. DELGADO, Lucilia (org.). O Brasil Republicano. O tempo da ditadura:

regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 2003, vol.4.

FERREIRA, Oliveiros. Vida e morte do Partido Fardado. São Paulo: Editora Senac,

2000.

FERNANDES, Fernando Bartholomeu. As relações civil-militares durante o governo

Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade de Brasília. Brasília, 2006.

FERRAZ, Francisco César Alves. Reseña de ‘Eroding military influence in Brazil’,

de Wendy Hunter. Revista de Sociologia e Política, novembro, n. 13, pp. 179-182,

1999. Universidade Federal do Paraná, Curitiba.

FILGUEIRAS, Luiz. História do Plano Real. São Paulo: Boitempo, 2003

FILHO, Jayme de Araujo Bastos. A missão militar francesa no Brasil. Rio de Janeiro:

BIBLIEx, 1994.

Page 140: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

126

FILHO, João Roberto Martins. A educação dos golpistas: cultura militar, influência

francesa e golpe de 1964. Consultado em 29 de março de 2010:

http://www2.ufscar.br/uploads/forumgolpistas.doc.

FIORIN, José Luis. O regime de 1964: discurso e ideologia. São Paulo: Atual.

Folha de São Paulo, 04 de novembro de 2004. Consultado em maio de 2008.

http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u65514.shtml

FUCCILLE, Luís Alexandre. Democracia e questão militar: a criação do Ministério

da Defesa no Brasil. Tese apresentada ao Departamento de Ciência Política do Instituto

de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas. Campinas,

2006.

GARRETÓN, Manuel Antonio. Panorama del miedo em los regímenes militares: um

esquema general. Documento de Trabajo. Programa Flacso, Santiago de Chile, número

365, dezembro de 1987.

http://cronopio.flacso.cl/fondo/pub/publicos/1987/DT/000291.pdf - Consultado em

junho de 2009.

HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX, 1914-1991. São

Paulo:Companhia das Letras, 2007.

________. A Era dos Impérios. São Paulo: Paz e Terra, 2009.

HUNTER, Wendy. Eroding military influence in Brazil. Politicians against soldiers.

Chapel Hill: The University of North Carolina, 1997.

HUNTINGTON, Samuel P. O soldado e o Estado. Rio de Janeiro: Biblioteca do

Exército Editora, 1996.

INDURSKY, Freda. A fala dos quartéis e as outras vozes. Campinas: Edunicamp,

1997.

KLINGER, Bertoldo. Narrativas autobiográficas. V. II. Rio de Janeiro: O Cruzeiro,

1946.

LE GOFF, Jacques. A História Nova. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

Page 141: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

127

MCCANN, Frank. Soldados da Pátria – História do Exército Brasileiro, 1889-1937. Rio

de Janeiro: BIBLIEx, 2009.

MAGALHÃES, João Batista. A evolução militar do Brasil. Rio de Janeiro: Bibliex,

2001.

MANCUSO, Amanda Pinheiro. Entre terra e mar: história e política na narrativa

oficial das forças armadas brasileiras – os casos do Exército e da Marinha. Tese

apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais do Centro de

Educação e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Carlos. São Carlos,

2007.

MENDES, Ivan de Souza. “Os 69 anos de A Defesa Nacional”. Revista A Defesa

Nacional, set/out de 1982.

MENDONÇA, Sônia Regina e FONTES, Virgínia Maria. História do Brasil recente

(1964-1992). São Paulo: Ática, 2004.

MOTTA, Aricildes de Moraes (Coord.). 1964 – 31 de março: o movimento

revolucionário e a sua história. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 2003.

14 Tomos.

MOTTA, Jehovah. Formação do oficial do Exército. Rio de Janeiro: Biblioteca do

Exército Editora, 2001.

NETO, Manuel Domingos. Acerca da Modernização do Exército. Comunicação &

Política, v. 22, n. 3, set/dez de 2004.

________. A disputa pela missão que mudou o Exército. Revista Estudos de História,

UNESP, São Paulo, v 8, pp. 197-215, 2001.

O Estado de São Paulo, 4 de novembro de 2004. Consultado em maio de 2008.

http://www.estadao.com.br/arquivo/nacional/2004/not20041104p38111.htm

O Estado de São Paulo Online, 18 de outubro de 2004. Consultado em maio de 2008.

http://www.estadao.com.br/arquivo/nacional/2004/not20041018p37960.htm

Page 142: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

128

O Estado de São Paulo Online, 19 de outubro de 2004. Consultado em maio de 2008.

http://www.estadao.com.br/arquivo/nacional/2004/not20041019p37974.htm

O Globo, 19 de outubro de 2004, p. 12.

O Globo, 19 de outubro de 2004, p. 13.

OLIVEIRA, Eliézer Rizzo de. Militares: pensamento e ação política. Campinas:

Papirus, 1997.

________. Democracia e Defesa Nacional – A criação do Ministério da Defesa na

presidência de FHC. São Paulo: Manole, 2004.

________. OLIVEIRA, Eliézer Rizzo de. A Defesa Nacional no Governo Lula. Resdal,

agosto de 2005. http://www.resdal.org/atlas/atlas-brasil-paper.html - Consultado em

março de 2010.

________ e SOARES, Samuel. “Forças Armadas, direção política e formato

institucional”. In. D`ARAUJO, Maria Celina e CASTRO, Celso (orgs.). Democracia e

Forças Armadas no Cone Sul. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2000.

ORLANDI, Eni Pulcinelli. Discurso e Leitura. São Paulo: Cortez; Campinas: Editora

da Universidade Estadual de Campinas, 1996.

________. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2001.

PEIXOTO, Luiz Eugênio Duarte. “As publicações militares vistas como desafio para a

construção de uma sociedade integrada e solidária”. Revista A Defesa Nacional, jan/abr

de 2003.

________. “Biblioteca do Exército – 120 anos”. Revista DaCultura, ano I, nº 2, jul/dez

de 2001.

PEREGINO, Umberto. História e projeção das instituições culturais do Exército.

Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1967.

PINTO, Sergio Murillo Lima da Silva. Exército e Política: um século de pensamento

e ação rumo a intervenção centralizada (1831-1937). Tese apresentada ao Programa

Page 143: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

129

de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense, como requisito para

a obtenção do Grau de Doutor. Niterói, 2005.

PIOVEZANI, Carlos. Vozes do discurso político: sujeitos, sons e sentidos.

Linguagem & Ensino, Pelotas, v. 11, n. 1, pp. 15-31, jan/jun de 2008.

REIS, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar, 2000.

RODRIGUES, Fernando da Silva. Renovação e revoltas: a Escola Militar do

Realengo de 1918 a 1922. I Encontro da Associação Brasileira de Estudos da Defesa

http://www.abed-defesa.org/page4/page7/page23/files/FernandoRodrigues.pdf

Consultado em março de 2009.

ROUQUIÉ, Alain (coord). Os Partidos Militares no Brasil. Rio de Janeiro: Record,

1980.

SANTOS, Eduardo Heleno de Jesus. Memória dos militares sobre as ditaduras do

cone sul: uma perspectiva comparada acerca das iniciativas contra o

esquecimento. 33o Encontro Anual da ANPOCS. Número e título do GT: 23 Forças

Armadas, Estado e Sociedade, 2009.

SOARES, Inês Virgínia Prado e KISHI, Sandra Akemi Shimada. Memória e verdade:

a justiça de transição no Estado Democrático brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2009.

SCHULZ, John. O Exército na política: origem da intervenção militar, 1850-1894. São

Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994.

SKIDMORE, Brasil: de Getúlio a Castelo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

SOARES, Inês Virgínia Prado e KISHI, Sandra Akemi Shimada (org). Memória e

Verdade: a justiça de transição no estado democrático brasileiro. Belo Horizonte:

Fórum, 2009.

STEPAN, Alfred. Os militares: da abertura à Nova República. Rio de Janeiro: Paz e

Terra, 1986.

________. Democratizando o Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

Page 144: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

130

________. Os militares na política. Rio de Janeiro: Artenova, 1975.

TELES, Edson e SAFATLE, Vladimir (org.) O que resta da ditadura. São Paulo;

Boitempo, 2010.

TOLEDO, Caio Navarro de. O governo Goulart e o golpe de 1964. São Paulo:

Brasiliense, 1982

TREVISAN, Leonardo. O pensamento militar brasileiro. Fonte Digital

RocketEdition eBooksBrasil. Consultado em 20 de março de 2006.

VEIGA, Virgílio. “A Defesa Nacional – 86 anos”. Revista A Defesa Nacional, set/dez

de 1999.

ZAVERUCHA, Jorge. Rumor de saberes. São Paulo: Ática, 1994.

________. Frágil democracia. Collor, Itamar, FHC e os militares (1990-1998). Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 2000

________. TEIXEIRA, Helder. A Literatura sobre Relações Civis-Militares no

Brasil (1964-2002): uma síntese. In. BIB: Revista Brasileira de Informações

Bibliográficas em Ciências Sociais. SP, nº 55, 1º semestre de 2003, pp. 59-72.

Page 145: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

Livros Grátis( http://www.livrosgratis.com.br )

Milhares de Livros para Download: Baixar livros de AdministraçãoBaixar livros de AgronomiaBaixar livros de ArquiteturaBaixar livros de ArtesBaixar livros de AstronomiaBaixar livros de Biologia GeralBaixar livros de Ciência da ComputaçãoBaixar livros de Ciência da InformaçãoBaixar livros de Ciência PolíticaBaixar livros de Ciências da SaúdeBaixar livros de ComunicaçãoBaixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNEBaixar livros de Defesa civilBaixar livros de DireitoBaixar livros de Direitos humanosBaixar livros de EconomiaBaixar livros de Economia DomésticaBaixar livros de EducaçãoBaixar livros de Educação - TrânsitoBaixar livros de Educação FísicaBaixar livros de Engenharia AeroespacialBaixar livros de FarmáciaBaixar livros de FilosofiaBaixar livros de FísicaBaixar livros de GeociênciasBaixar livros de GeografiaBaixar livros de HistóriaBaixar livros de Línguas

Page 146: O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar: análise da …livros01.livrosgratis.com.br/cp133171.pdf · 2016-01-26 · O discurso sobre o golpe de 1964 e o regime militar:

Baixar livros de LiteraturaBaixar livros de Literatura de CordelBaixar livros de Literatura InfantilBaixar livros de MatemáticaBaixar livros de MedicinaBaixar livros de Medicina VeterináriaBaixar livros de Meio AmbienteBaixar livros de MeteorologiaBaixar Monografias e TCCBaixar livros MultidisciplinarBaixar livros de MúsicaBaixar livros de PsicologiaBaixar livros de QuímicaBaixar livros de Saúde ColetivaBaixar livros de Serviço SocialBaixar livros de SociologiaBaixar livros de TeologiaBaixar livros de TrabalhoBaixar livros de Turismo