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UNIVERSIDADE TIRADENTES DIRETORIA DE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO MESTRADO EM DIREITOS HUMANOS O DIREITO PENAL DO INIMIGO: UMA ANÁLISE CRÍTICA DO EXPANSIONISMO PENAL NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA JÚLIO CÉSAR DO NASCIMENTO RABÊLO ARACAJU FEVEREIRO- 2016

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UNIVERSIDADE TIRADENTES

DIRETORIA DE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

MESTRADO EM DIREITOS HUMANOS

O DIREITO PENAL DO INIMIGO: UMA ANÁLISE

CRÍTICA DO EXPANSIONISMO PENAL NA SOCIEDADE

CONTEMPORÂNEA

JÚLIO CÉSAR DO NASCIMENTO RABÊLO

ARACAJU

FEVEREIRO- 2016

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UNIVERSIDADE TIRADENTES

DIRETORIA DE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

MESTRADO EM DIREITOS HUMANOS

O DIREITO PENAL DO INIMIGO: UMA ANÁLISE

CRÍTICA DO EXPANSIONISMO PENAL NA SOCIEDADE

CONTEMPORÂNEA

Dissertação final submetida

examinadora para a obtenção do título de

Mestre em Direito, na área de

concentração em Direitos Humanos.

Autor: Júlio César do Nascimento Rabêlo

Orientador: Prof. Pós-Doutor Luís Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho

ARACAJU

FEVEREIRO – 2016

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O DIREITO PENAL DO INIMIGO: UMA ANÁLISE CRÍTICA DO

EXPANSIONISMO PENAL NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA

JÚLIO CÉSAR DO NASCIMENTO RABÊLO

DISSERTAÇÃO SUBMETIDA AO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM

DIREITO DA UNIVERSIDADE TIRADENTES COMO PARTE DOS REQUISITOS

NECESSÁRIOS PARA A OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE EM DIREITOS

HUMANOS.

Aprovada em: ____/____/____

_______________________________________________________________

Prof. PhD. Luís Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho (Orientador)

________________________________________________________________

Profª. Drª. Veronica Teixeira Marques (Membro Interno da Banca)

________________________________________________________________

Profª. Drª. Karyna Batista Sposato (Membro Externo da Banca)

________________________________________________________________

Profª. PhD. Liziane Paixão Silva Oliveira (Membro Suplente)

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SUMÁRIO

1- INTRODUÇÃO.............................................................................................. .........12

2- A SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA E O DIREITO PENAL............................15

2.1 – A Sociedade Contemporânea................................................................................15

2.2 - A Sociedade Economicamente Globalizada e seus efeitos penais..........................17

2.3 - A relação entre a invisibilidade e a exclusão social com o aumento da

criminalidade................................................................................................................ 20

2.4 - A banalização das diferenças e o encarceramento como paradigma da

simplicidade....................................................................................... ..........................25

2.5 - A seletividade do sistema penal............................................. ...............................28

3 - AS POLÍTICAS CRIMINAIS NA ATUALIDADE: CARACTERÍSTICAS DE

EXPANSÃO E RECRUDESCIMENTO DO DIREITO PENAL...............................31

3.1 – O Expansionismo Penal....................................................... .................................31

3.2 – Políticas de enfrentamento do crime.....................................................................33

3.2.1 - Das teorias de Conflito......................................................................................34

3.2.1.1 - Da Teoria do Etiquetamento ou Labelling Approach.......................................34

3.2.1.2 - Da Teoria crítica ou radical.................................... .........................................35

3.2.1.3 - Do Neorretribucionismo......................................... .........................................36

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3.2.1.3.1 - Movimento Lei e Ordem, Política de tolerância zero, Teoria das janelas

quebradas e a Teoria das três faltas e está fora..................................................... .........36

3.3 – A criminalidade real, a cifra negra e a cifra dourada............................................40

3.4 - A expansão do direito penal em Jesús-Maria Silva Sanches..................................41

3.4.1 - As Velocidades do Direito Penal........................................... .............................44

3.5 – O Direito Penal Mínimo e o Direito Penal Máximo..............................................45

3.5.1 – Direito Penal Mínimo........................................................................................47

3.5.2 – Direito Penal Máximo.......................................................................................50

4 – O DIREITO PENAL DO INIMIGO.....................................................................52

4.1 – Considerações Preliminares................................................... ...............................52

4.2 – Análise da teoria do Direito Penal do Inimigo de Günther

Jakobs....................................................................................................... ....................54

4.2.1 – Suporte Filosófico........................................................................... ..................55

4.2.2 – O Inimigo em Jakobs............................................................ .............................56

4.2.3 - Características do Direito Penal do Inimigo........................ ..............................59

4.2.4 - O Direito Penal do Inimigo no ordenamento jurídico brasileiro........................61

4.2.4.1 – A edição da Lei nº 12.654/12 e o surgimento de um novo processo de escolha

inimigos no Brasil................................................ .........................................................63

4.2.4.2 – A Lei nº 12.850/13 e a Ofensa a Garantias Constitucionais............................72

4.3 – O Direito Penal do Inimigo diante do Estado de Direito................................ .......78

4.3.1 – O Estado Democrático de Direito como garantidor dos direitos

humanos................................................................................. ......................................79

4.3.2 – A (In) compatibilidade do Direito Penal do Inimigo de Jakobs com o Estado

Democrático de Direito.................................................................................... .............81

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5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................85

REFERÊNCIAS............................................................................................... ...........94

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Ficha catalográfica: Rosangela Soares de Jesus CRB/5 1701

Rabelo, Julio Cesar do Nascimento

R114d O direito penal do inimigo: uma análise crítica do expansionismo

penal na sociedade contemporânea. / Julio Cesar do Nascimento Rabelo ;

orientação [de] Prof. Dr. Luís Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho –

Aracaju: UNIT, 2016.

95 p. il.: 30cm

Inclui bibliografia.

Dissertação (Mestrado em Direitos Humanos)

1.Direito penal. 2. Teoria de Günther Jakobs. 3. Direito penal do inimigo. 4.

Argumentos contrários à sua legitimidade. 5. Estado democrático de direito.

I. Carvalho, Luís Gustavo Grandinetti Castanho de. II. Universidade

Tiradentes. III. Título.

CDU: 343.2

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Dedico este trabalho à minha esposa Simone, que durante

todo esse percurso me deu o apoio necessário em todos os

aspectos, grande exemplo de mulher, linda e guerreira, a

você um sonoro “Te amo”.

Dedico também aos presentes mais lindos que o bom Deus

me deu, meus dois filhos Anna Júlia e Lucca Gabriel,

papai ama muito vocês.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço ao meu pai Ildon e a minha mãe Ana Maria, que ao longo da minha vida

além do amor e carinho que sempre dispensaram, fizeram de mim um homem honrado e

humilde; e aos meus irmãos, em especial Ildon Júnior, por estar sempre ao meu lado nessa

grande batalha diária que é a vida.

Agradeço ao meu professor e orientador Luís Gustavo Grandinetti, por ter me tirado

da superfície e me mostrado como é profundo o tema deste trabalho, foi, sem dúvida alguma,

a experiência mais enriquecedora da minha vida acadêmica e profissional.

Aos professores do programa de pós-graduação da Universidade Tiradentes, meu

muito obrigado pelos ensinamentos, em especial Professora Liziane, agradeço a paciência e o

cuidado dispensados ao longo desse árduo período.

Agradeço também aos grandes amigos que me acompanharam durante esse

mestrado, Paulo Pacheco e Luciana, vocês, sem sombra de dúvidas, tornaram mais leve essa

caminhada, bem como aos novos amigos que o curso me trouxe, entre os quais Vilobaldo e

Martha.

Por derradeiro, além de dedicar este trabalho, tenho que agradecer à minha esposa e

filhos por terem aturado e respeitado a minha ausência quando se fez necessária, bem como

por serem fonte primária e imediata de todos os meus sonhos.

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RESUMO

A sociedade moderna vem sofrendo profunda influência da globalização econômica, em

especial no que concerne ao direito penal, vez que, com o surgimento de novas condutas

ilícitas, dá-se a criação de novos tipos penais e, ao lado disso, tipos penais já existentes

acabam recebendo um incremento com o recrudescimento das penas. Essa situação provocou

um aumento na utilização do direito penal, abandonando-se a característica de ultima ratio,

fenômeno que ficou conhecido como expansionismo penal. Como consequência, surgiu uma

vertente mais radical, representativa do direito penal máximo, tendo como principal expoente

o alemão Günther Jakobs que idealizou a Teoria do Direito Penal do Inimigo. Denominado de

Direito Penal de Terceira Velocidade, apresenta como principais características a antecipação

da tutela punitiva (caráter prospectivo), mitigação de garantias e endurecimento das penas.

Essa teoria será abordada no presente trabalho, apontando-se os principais argumentos

contrários à sua legitimidade, bem como se procurou discutir sua compatibilidade com o

Estado Democrático de Direito.

Palavras-chave: Sociedade Moderna. Expansionismo Penal. Direito Penal do Inimigo. Estado

Democrático de Direito.

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ABSTRACT

Modern society has undergone profound influence of economic globalization, in particular

with regard to criminal law, since, with the emergence of new illegal conduct, it gives the

creation of new criminal offenses and, next to that, existing criminal types they end up getting

an increase with the intensification of penalties. This situation led to an increase in the use of

criminal law, abandoning the characteristic of ultima ratio, a phenomenon that became known

as criminal expansionism. As a result, there was a more radical side, representing the

maximum criminal law, the main exponent of the German Günther Jakobs who conceived the

Theory of Criminal Law of the Enemy. Called Third Criminal Speed Law, presents the main

characteristics of anticipation of punitive protection (prospective character), mitigation and

guarantees of tougher penalties. This theory will be addressed in this paper, pointing up the

main arguments against the legitimacy, and we intend to discuss its compatibility with the

democratic rule of law.

Keywords: Modern Society. Criminal expansionism. Criminal Law of the Enemy. Democratic

state.

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1. INTRODUÇÃO

O foco principal do presente estudo é a teoria de Günther Jakobs, o Direito Penal

do Inimigo, que foi analisada sob uma ótica crítica, confrontando sua legitimidade frente

ao Estado Democrático de Direito.

Desde o século passado o mundo vem passando por transformações, em especial

no mundo jurídico, onde visualizamos a expansão da utilização do direito penal,

situação esta que resulta de uma série de fatores, entre os quais a influência da mídia, a

sensação constante de insegurança e principalmente os efeitos oriundos do fenômeno

denominado globalização econômica.

Poderá ser observado que a globalização ao passo em que proporciona vantagens,

acaba também produzindo malefícios, mormente quando se fala em criação de novos

tipos penais até então impensados.

Como consequência dessa expansão do direito penal, surgiu uma ala mais radical,

aquela que Jesus-Maria Silva Sanchez denominou de Direito Penal de Terceira

Velocidade, representada pela teoria do direito penal do inimigo de Günther Jakobs, que

se caracteriza como verdadeiro direito penal do autor.

Construída sobre clara base contratualista, a teoria de Jakobs faz uma distinção

entre pessoa e inimigo, ressaltando que é necessária a existência de duas espécies de

direito penal, uma destinada ao delinquente comum – Direito Penal do Cidadão – e outra

destinada àquele que se coloca contrário ao Pacto Social firmado – Direito Penal do

Inimigo.

Enquanto na primeira espécie as garantias constitucionais e processuais são

obedecidas, na segunda essas garantias desaparecem, dando lugar a penas desumanas.

O ordenamento jurídico de vários países está recheado de normas com

características de um direito penal do inimigo, em especial o Brasil, como se verá

adiante, como citamos a título de exemplo as Leis nºs. 12.654/12 e 12.850/13, a primeira

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que regula a utilização de dados genéticos no âmbito do processo penal, e a segunda que

regula o delito cometido por organizações criminosas.

A situação nos leva a concluir que a ideia de direito penal como ultima ratio foi

abandonada, estando hoje, o Estado, utilizando-se deste ramo do direito, em algumas

situações, como substituto de políticas públicas, dando um verdadeiro caráter simbólico

a esse ramo.

O objetivo principal deste trabalho é esmiuçar a teoria do direito penal do

inimigo, expondo seus fundamentos filosóficos, suas características e, principalmente,

verificar se há a compatibilidade desse instrumento com um Estado de Direito.

Demonstrou-se também, através de uma digressão histórica, os fatores que

conduziram a essa nefasta ascensão do direito penal, fazendo-o emergir como principal

remédio para solução dos problemas sociais, bem como de que modo normas com essas

características idealizadas por Jakobs se apresentam dentro da legislação.

Esta pesquisa é de natureza exploratória, pois como se vê, procurou-se levantar

informações a respeito da teoria de Jakobs, possibilitando a formação de convicções

acerca do assunto.

Para atingir esses objetivos foram utilizadas obras de filosofia, sociologia,

criminologia, bem como diversas obras de renomados penalistas pátrios e estrangeiros,

tudo no afã de promover uma análise crítica da teoria do direito penal do inimigo.

Na busca de dar uma maior profundidade ao trabalho, optou-se pela utilização de

pesquisas bibliográfica, documental, eletrônica, dando-se ênfase à doutrina,

jurisprudência, à própria legislação pátria, bem como artigos científicos.

Dito isto, o trabalho foi dividido em 03 (três) capítulos, a saber:

O capítulo inicial abordou as modificações introduzidas na sociedade

contemporânea, em especial no âmbito do direito penal, seja no que diz respeito aos

chamados delitos econômicos, categorizados como macrocriminalidade, seja no que

concerne ao aumento dos crimes praticados contra o patrimônio, ou seja, a

microcriminalidade.

Salientou-se também ainda no capítulo inicial, a questão atinente à seletividade

do direito penal, em que a produção das normas acaba tendo destinatários previamente

conhecidos, quais sejam, as classes menos favorecidas.

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No capítulo subsequente, foram trazidas à baila as políticas criminais surgidas

após a Segunda Guerra, quando houve um incremento dos chamados movimentos lei e

ordem, acentuando o papel do direito penal, dando um protagonismo cada vez maior a

esse ramo do direito.

Dentro desse contexto, surgiram três vertentes de políticas criminais. A primeira,

denominada abolicionista, que prega a não utilização do direito penal como instrumento

de controle social, procurando atribuir às partes envolvidas na situação, capacidade de

resolver os problemas consensualmente.

A segunda, com um viés menos radical, a corrente denominada de minimalista,

pregadora de um direito penal mínimo e mais equilibrado, ou seja, diminui -se a

interferência estatal, garantindo-se assim uma maior liberdade aos cidadãos, tendo como

principal expoente o italiano Luigi Ferrajoli.

Do outro lado temos os defensores de um direito penal máximo, com acentuada

característica de prima ratio, reveladora de um direito penal do autor, que tem na teoria

de Jakobs, o direito penal do inimigo, sua face mais sombria.

No capítulo que segue foi analisada a teoria de Jakobs, fazendo exsurgir sua base

filosófica, expondo as principais características de sua teoria, demonstrando também que

em países que se autoproclamam Estados Democráticos de Direito como o Brasil,

encontramos normas com essa característica.

Finalizando o trabalho, adentrou-se na principal problematização do tema

abordado, traremos à lume as críticas dirigidas a esse direito penal do inimigo, bem

como se observará que se trata de uma teoria com clara base totalitária que não se

coaduna com Estado de Direito.

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2 – A SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA E O DIREITO PENAL

2.1 – A Sociedade Contemporânea

Antes de iniciar a análise das principais características que circundam o direito

penal na atualidade, é necessário trazer à tona elementos da sociedade moderna que

direta ou indiretamente acabaram por influenciar esse ramo do direito.

A contemporaneidade, em especial o período pós-industrial, tem trazido para o

âmbito do direito penal novas demandas em razão do surgimento da preocupação com

novos bens jurídicos como o meio ambiente, bem como de novas espécies de condutas

delituosas, entre as quais podemos citar a criminalidade dita organizada, o terrorismo,

entre outros.

Esse fato tem gerado mudanças que acabam por vezes por influenciar a produção

de normas com características que desprezam princípios liberais, flexibilizando

garantias típicas de um direito penal pertencente a um Estado de Direito.

Nesse contexto de sociedade moderna, a globalização econômica, caracterizada

como fenômeno que influenciou não só o aspecto econômico, como também a política e

o direito, revela-se como fator preponderante para a discussão dos novos rumos do

direito penal.

Consoante se viu, a globalização produziu diretamente o aumento da

criminalidade, em especial os delitos econômicos e aqueles crimes praticados contra o

patrimônio.

A situação oriunda do aparecimento de novos riscos derivados dessa expansão de

mercados, avanços tecnológicos e consequente exclusão social, culminando com o

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aumento da criminalidade, como se verá, revelam, especialmente em países

subdesenvolvidos, a falência do Estado Social.1

O que se afigura patente também é que esse declínio do Estado Social em alguns

países, a exemplo do Brasil, paulatinamente, foi dando lugar ao que hoje se denomina

Estado Penal2, onde o ente público opta por priorizar investimentos em medidas de

caráter penal, deixando em segundo plano setores como a educação, saúde, etc.

Observa-se dentro dessa análise preliminar que a sociedade está em constante

evolução, fazendo-se necessário também que o direito evolua para atender às novas

demandas sociais que surgem, mormente àquelas que não podem, ou pelo menos não se

pretende, que sejam resolvidas por outro ramo do direito que não o penal.

Hodiernamente, observamos corriqueiramente que limites passam a ser

desrespeitados, medidas excepcionais como a ofensa a direitos fundamentais passam a

ser regra, caracterizando aquilo que Agamben (2004, p. 11-12) denominou de estado de

exceção3, ou seja, aquilo que se apresenta como a forma legal daquilo que não pode ter

forma legal.

Exemplo dessa suspensão da ordem jurídica nesta sociedade, podemos observar,

como ressalta o mesmo autor, na “military order”, promulgada pelo presidente dos

Estados Unidos no dia 13 de novembro de 2001, e que autorizou a “indefinite detention”

e o processo perante as “military commissions” dos não cidadãos suspeitos de

envolvimento em atividades terroristas. (AGAMBEN, 2004, p. 16).

1Estado Social é um tipo de organização política e econômica que coloca o Estado como agente da promoção

social e organizador da economia. Nesta orientação, o Estado é o agente regulamentador de toda a vida e saúde

social, política e econômica do país em parceria com sindicatos e empresas privadas, em níveis diferentes de

acordo com o país em questão. Cabe, ao Estado do bem-estar social, garantir serviços públicos e proteção à

população. Schumpeter (1989, 213-232) 2 O conceito de Estado penal foi cunhado por Loïc Wacquant, sociólogo francês radicado nos EUA, que estuda a

segregação racial, a pobreza, a violência urbana, a desproteção social e a criminalização na França e nos Estados

Unidos da América no contexto do neoliberalismo. Autor de obras como Do Estado Providência ao Estado

Penal (1998), As prisões da miséria (1999), As duas faces do gueto (2008), Punir os pobres: o governo

neoliberal de Insegurança Social (2009), Wacquant questiona as estratégias de esvaziamento das ações de

proteção social estatal no contexto neoliberal e a emergência do Estado penal. (BRISOLA, Elisa. In Estado

penal, criminalização da pobreza e Serviço Social /Penal State, criminalization of poverty and social work. Pags.

129/130.) 3Para Agamben (2004, p. 14) o estado de exceção tende cada vez mais a se apresentar como o paradigma de

governo dominante na política contemporânea. Esse deslocamento de medida provisória e excepcional para uma

técnica de governo ameaça transformar radicalmente a estrutura e o sentido da distinção tradicional entre os

diversos tipos de Constituição. Apresenta-se, nessa perspectiva, como um patamar de indeterminação entre

democracia e absolutismo.

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Outro aspecto importante na sociedade moderna é a existência de uma mídia

extremamente sensacionalista, despreocupada com a verdade, que acaba gerando uma

“espetacularização” do terror, bem como influencia diretamente o Legislativo a produzir

normas meramente simbólicas.

Nota-se, nesse toar, uma crescente utilização do direito penal, ferindo de morte

sua característica de intervenção mínima.

2.2 - A Sociedade Economicamente Globalizada e seus efeitos penais

O fim do século XX e o século XXI foram marcados por um fenômeno de

expansão do capitalismo e de uma pretensa derrubada de barreiras que acentuou um

processo denominado de globalização.

A globalização longe de ser um fator eminentemente econômico, como dito,

afetou diversos aspectos do cotidiano mundial, como os universos político e jurídico.

Segundo Zaffaroni (2000, p. 14-15), a globalização apresenta como

características principais a revolução tecnológica e comunicacional; redução do poder

regulador econômico, sob o argumento de favorecimento de um mercado mundial;

aceleração da concentração de capital; redução de custos por corte de pessoal;

competição entre os poderes políticos para atrair investimento; crescente desemprego e

deterioração salarial; perda da capacidade dos Estados de mediação entre capital e

trabalho; especulação financeira que adota formas que dificultam os limites entre lícito

e ilícito; institucionalização de refúgios fiscais para capitais de origem ilícita; redução

de preocupações fiscais para atrair capitais, etc.

Como salienta Bauman (1999, p. 7), a globalização é o destino irremediável do

mundo, um processo irreversível; é também um processo que nos afeta a todos na

mesma medida e da mesma maneira.

O consumo, diante do estreitamento dos mercados a nível nacional e

internacional, tomou proporções antes inimagináveis, o acesso a bens de toda natureza é

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facilitado, permitindo àqueles que possuem capital toda uma gama de vantagens em

detrimento dos menos favorecidos.

Foi observado dentro desses contornos de expansão dos mercados e avanço do

capitalismo que, aliado ao fato de derrubar barreiras com relação ao estreitamento de

laços entre os mercados consumidores, acabam por outro lado erigindo obstáculos para

aqueles que não têm acesso aos bens pela falta de poder aquisitivo.

Essa atual conjuntura gera um processo cada vez mais presente de exclusão, ou

seja, de um lado temos aqueles que, com poder aquisitivo podem compor esse mercado

consumidor e se beneficiar de tudo que lhe é oferecido e, de outro, temos os que, em

virtude da falta de condições econômico-financeiras se veem à margem das benesses

oriundas desse fenômeno.

Esse período que ficou conhecido como da sociedade pós-industrial, foi marcado

pelo alto desenvolvimento de tecnologias, comunicação entre os povos e expansão dos

mercados.

A globalização, que consiste na integração dos países principalmente sob o

aspecto dos mercados econômico e consumidor, revela-se assim, um fenômeno que visa

a atender anseios do sistema capitalista.

Esse processo que caracteriza a atual sociedade, de fato derrubou as barreiras

antes existentes entre os mercados consumidores, ou seja, para quem reúne condições,

não há mais limites para satisfação de suas necessidades, a velocidade com que se faz

circular bens de consumo em escala mundial é absurda.

Ocorre, entretanto, que outras barreiras foram erigidas, ou seja, o acesso

facilitado ao consumo proporcionado pela globalização só se dá em relação àqueles que

possuem capacidade financeira para se valer dos seus benefícios, contudo, para quem

não reúne essas condições, além de se verem incapazes de ter acesso aos mais variados

bens de consumo, sofrem um verdadeiro processo de exclusão.

Nas palavras de Bauman (1999, p. 8), “a globalização tanto divide como une;

divide enquanto une - e as causas dessa divisão são idênticas às que promovem a

uniformidade do globo”.

Assinalando o pensamento de que a ideia de universalização não coincide com a

de globalização, Bauman (1999, p. 67) assim esclarece:

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Assim como os conceitos de “civilização, “desenvolvimento”,

“convergência”, “consenso” e muitos outros termos chaves do

pensamento moderno inicial e clássico, a ideia de “universalização”

transmitia a esperança, a intenção e a determinação de se produzir a

ordem; além do que os outros termos afins assinalavam, ela indicava

uma ordem universal - a produção da ordem numa escala universal,

verdadeiramente global. Como os outros conceitos, a ideia de

universalização foi cunhada com a maré montante dos recursos das

potências modernas e as ambições intelectuais modernas. Toda a família

de conceitos anunciava em uníssono a vontade de tornar o mundo

diferente e melhor do que fora e de expandir a mudança e a melhoria em

escala global, à dimensão da espécie. Além disso, declarava a intenção

de tornar semelhantes a condições de vida para todos, em toda parte, e,

portanto, as oportunidades de vida para todo mundo; talvez mesmo

torná-las iguais. Nada disso restou no significado de globalização, tal

como formulado no discurso atual.

Observa-se assim, que a globalização longe de homogeneizar, operou uma

banalização da desigualdade, ferindo de morte direitos consagrados, em especial o da

igualdade tão festejada e consagrada na Declaração Universal dos Direitos do Homem, e

à qual se reporta Bobbio (1992, p.29), ao afirmar que a ideia de igualdade, mesmo

abandonada na hipótese do estado de natureza, ela faz eco na mencionada Declaração

quando diz que todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos, o que

seria uma maneira diferente de dizer que todos são livres e iguais por natureza.

Vê-se, portanto, que são nefastos os efeitos da globalização, seja promovendo

desigualdades e, via de consequência, exclusões, seja fomentando outros tipos de ações

igualmente desprezíveis, como bem nos fala Moraes (2011, p. 47):

A incessante busca do lucro faz com que o mercado premie ofertas a

preços especialmente baixos e, consequentemente, incite especuladores

a buscarem fronteiras do permitido e a arriscarem transgressões que se

podem esconder. Impossível coibir essas ações, sobretudo porque não

se dispõe, e dificilmente se disporá, de uma carta política global ou, ao

menos, de um sistema jurídico universal que, de alguma forma, obste o

crescimento econômico com base em uma pauta ética minimamente

necessária.

Chega-se, portanto, à conclusão, que a globalização produziu novas ameaças para

a sociedade e para o Estado, configurando-se como inimigo aquele que não pode compor

esse sistema capitalista e que acaba, assim, sendo invisibilizado.

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2.3 - A relação entre a invisibilidade e a exclusão social com o aumento da

criminalidade

A Sociedade pós-industrial, com a difusão da globalização e a derrubada de

barreiras mercadológicas e o estímulo crescente ao consumismo, fez surgir um contexto

de exclusão e imensamente dicotômico, onde de um lado temos aqueles que, com poder

aquisitivo podem compor esse mercado consumidor e se beneficiar de tudo que lhes é

oferecido e, de outro, temos os que, em virtude da falta de condições econômico-

financeiras, se veem à margem das benesses oriundas desse fenômeno.

Temos evidenciado assim, como assevera Beck (2011, p. 24), que o processo de

modernização se torna “reflexivo”, convertendo a si mesmo em tema e problema. Ainda

segundo o referido autor, a distribuição e os conflitos distributivos em torno da riqueza

socialmente produzida ocuparão o primeiro plano enquanto em países e sociedades o

pensamento e a ação das pessoas forem dominados pela evidência da carência material.

A modernidade revelou seus próprios estranhos, aqueles que não podem fazer

parte desse sistema e que, por isso, sofrem um processo excludente, ou seja, não são

reconhecidos, são “estranhos”, são invisíveis.

O que existe na atual sociedade é o desprezo e o não reconhecimento da condição

humana, como bem assevera Dussel (1987, p. 19).

Frente a frente, pessoa a pessoa, é a relação de proximidade, de

vizinhança, como pessoas. A experiência da proximidade entre pessoas

como pessoas é que constitui o outro como “próximo” (próximo,

vizinho, alguém), como outro; e não como coisa, instrumento,

mediação.

Para Young (2002, p. 41), a palavra marginalização está ligada às pessoas que a

modernidade deixou para trás, são os bolsões de pobreza e de privação. A exclusão

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social abrange uma expulsão mais dinâmica da sociedade, um declínio na motivação de

integrar os pobres nesse contexto.

Ainda para Jock Young (2002, p. 31), os processos de desintegração tanto da

esfera da comunidade, pelo aumento do individualismo, como da esfera do trabalho, em

razão das drásticas rupturas empreendidas pelo mercado globalizado, articulam uma

“dialética da exclusão”, caracterizada, segundo o autor, por [...] uma amplificação do

desvio que acentua progressivamente a marginalidade, num processo pírrico que envolve

tanto a sociedade mais ampla como, crucialmente, seu próprios atores, os quais, na

melhor hipótese, se metem na armadilha de uma série de empregos sem nenhuma

perspectiva, ou, na pior, de uma subclasse de ociosidade e desespero.

A modernidade trouxe também a ideia de beleza, limpeza e ordem, para fixar um

lugar de destaque para aqueles que se enquadrem nesses quesitos, como bem salientou

Freud (1997, p. 47) ao dizer que esses atributos ocupam uma posição especial entre as

exigências da civilização.

Freud (1997, p.46) afirma que não tem como separar a beleza e a ordem, pois,

assim como a limpeza, ela só se aplica às obras do homem. Contudo, ao passo que não

se espera encontrar asseio na natureza, na ordem, pelo contrário, foi imitada a partir

dela.

Dentro dessa linha, Bauman (1998, p. 24) afirma que a sociedade moderna só

reconhece aquele indivíduo para ela considerado “puro”, e o critério de pureza traduz -se

pela aptidão de participar do jogo consumista, os deixados fora como um “problema”,

como a “sujeira” que precisa ser removida, são consumidores falhos – pessoas incapazes

de responder aos atrativos do mercado consumidor porque lhes faltam os recursos

requeridos, pessoas incapazes de ser “indivíduos livres”, conforme o senso de

“liberdade” definido em função do poder de escolha do consumidor, são “impuros”,

“objetos fora do lugar”.

Ainda segundo Bauman (1998, p. 24), aqueles que a expansão da liberdade do

consumidor privou das habilidades e poderes do consumidor precisam ser detidos e

mantidos em xeque ao menor custo possível, ou seja, é mais barato excluir e encarcerar

os consumidores falhos, do que reestabelecer seu status de consumidor.

É nessa sociedade que a cada dia mais se despreza o outro e se banaliza o não

reconhecimento do próximo. O ser humano tem dificuldade de conviver com

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adversidades e tendem a eliminar o outro quando as mesmas surgem.

Para Salo de Carvalho (2004, p. 192/193), o surgimento de novas formas

derivadas da exclusão é caracterizado pelo fato de que esses invisibilizados perdem o

status de cidadão.

Nas palavras de Carvalho (2014, p. 66), o outro indivíduo é aquele cujos desejos

se opõem aos meus, cujos interesses se chocam com os meus, cujas ambições se erguem

contra as minhas, cujos projetos contrariam os meus, cuja liberdade ameaça a minha,

cujos direitos usurpam os meus, sendo assim, a chegada do “outro” é perigosa para mim.

Observa-se isso, por exemplo, ao se enxergar o excluído da relação de consumo

como uma ameaça, tem-se que a tendência natural é tentar eliminá-lo, expurgá-lo da

convivência, não reconhecê-lo, invisibilizá-lo, criando-se uma tendência de se

incriminar esses problemas.

Um dos grandes problemas dessa seleção pelo sistema penal nas palavras de

Foucault (1977, p. 22), é que quando se toma a criminalidade, como se fosse

manifestação dos “portadores de uma essência maligna” que devem ser eliminados,

corre-se o risco de repetir essa história, em que a punição ganha poder não mais só sobre

as infrações, mas também sobre os indivíduos.

Os excluídos sob o ponto de vista econômico, acabam sendo também dentro de

outras esferas, ou seja, do ponto de vista social, cultural, e acerca desse fato assevera

Young (2002, p. 30):

A insatisfação face à situação social, a frustração de aspirações e o

desejo podem dar lugar a uma variedade de respostas políticas,

religiosas e culturais capazes de abrir possibilidades para os

imediatamente concernidos, mas também podem, frequentemente de

propósito, fechar e restringir as possibilidades de outros. Também

podem criar respostas criminais, e estas encerram muito frequentemente

a característica de restringir terceiros.

Como se verifica, a tendência de outrora quando da concepção do Estado de

Bem-estar Social de reabilitar os temporariamente inaptos, como bem acentua Bauman

(1998, p. 51) e estimular os que estavam aptos a se empenharem mais com a utilização

de dispositivos de previdência, já não se vê mais, a própria população que auxiliava

nessa hipótese, hoje procurar excluir.

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Enxergamos dentro desse contexto que a única forma de ser reconhecido, de

voltar a ser visível, é compondo novamente ou passando a compor esse mercado

consumidor.

Ao se ver diante dessa situação, ou seja, de que para ser feliz, para se ter uma

vida digna, é necessário consumir, surge para o indivíduo um objetivo, que é o de

adquirir tudo aquilo que lhe proporcionará “felicidade” e, para isso, a saída para a

maioria se tornar um consumidor será delinquindo, praticando crimes para se obter

meios que lhe proporcionem compor esse mercado consumidor.

Observa-se assim, que na atual conjuntura, conforme menciona Carvalho (2014,

p. 81), a justificação moral da “barbárie civilizada” torna-se a pedra de toque para

pacificar as consciências, ou seja, quem não é sujeito moral não é humano.

A globalização e a intensificação do consumismo, como explica Sanchez (2013,

p.127), como fenômeno econômico, não se limita, efetivamente, a produzir ou facilitar a

atuação da macrocriminalidade. Também incide sobre a microcriminalidade enquanto

criminalidade de massas, e assim prossegue afirmando que os movimentos de capital e

de mão de obra, que derivam da globalização da economia, determinam a aparição no

ocidente de camadas de subproletariado, das quais pode proceder um incremento da

delinquência patrimonial de pequena e média gravidade.

Corroborando esse pensamento, Rúbio (2014, p.74) menciona que do ponto de

vista ético, a modernidade capitalista em seu atual estágio de desenvolvimento, fez sair

seus demônios predadores, os vínculos morais, o respeito mútuo e a solidariedade para

com os semelhantes se fragilizam.

Como explicitado por Dussel (1995, p. 78), o capitalismo reforça a criação de

inimigos para constituir a dominação, o excluído surge de uma espécie de nada para

criar uma nova fase na história, irrompe então, não apenas como o excluído da

argumentação, atingido sem ser parte, mas também excluído da vida, da produção e do

consumo, na miséria, na pobreza, na fome.

Constata-se assim, que os estranhos da sociedade moderna não são compostos

apenas por terroristas, traficantes de drogas ou integrantes de organizações criminosas,

mas também por aqueles que o fenômeno globalizador, impulsionado pelo capitalismo

famigerado criou, provocando graves consequências na esfera penal, dando ensejo à

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elaboração de novos tipos penais diante das demandas que surgem e que o ordenamento

jurídico não prevê.

Acaba sendo uma decorrência natural diante desse novo panorama, enxergar o

excluído da relação de consumo como uma ameaça, e, como todo problema, tem-se a

ideia de que é preciso eliminá-lo, expurgá-lo da convivência.

Verifica-se, portanto, que a invisibilidade como bem explicitada e compreendida

nas palavras de Carvalho (2014, p. 167) como sendo o fenômeno político e psicossocial

do “desaparecimento intersubjetivo de um homem no meio dos outros homens”,

expressão que assume caráter crônico nas sociedades capitalistas, causadora de

humilhação social e reificação4, apresenta como consequência clara e inevitável o

aumento da criminalidade.

Esse fenômeno é verificado mais claramente nos países denominados de “terceiro

mundo” onde o nível de desigualdades atinge patamares absurdos, promovendo, via de

consequência, altas taxas de criminalidade ligadas a esse processo, ocasionado pelo

famigerado capitalismo que assola este século.

Vemos então, que nesse contexto atual, fenômenos como o terrorismo e a

exclusão social, assumem caráter crônico.

Com isso, aquela política-criminal cunhada em princípios liberais, fruto de uma

conquista amealhada durante vários séculos, vem dando lugar rapidamente a um direito

penal simbólico, preocupado somente, de forma imediata, em barrar o aumento dos

crimes, tentando incutir na sociedade uma pretensa sensação de segurança.

Abandona-se, assim, a ideia de Estado de direito como pensada pela

modernidade, uma vez que, como salienta Rebouças (2012, p.122), o Estado de direito

como formação típica da modernidade, contém um valor intrínseco, qual seja, “a

eliminação da arbitrariedade no âmbito da atividade estatal que afeta os cidadãos”,

nunca tendo, porém, se afastado totalmente do arbítrio.

4A reificação como conceitua Fernando Braga da Costa em sua obra “Homens Invisíveis”, configura-se como o

processo pela qual, nas sociedades industriais, o valor (do que quer que seja: pessoas, relações inter-humanas,

objetos, instituições) vem apresentar-se à consciência dos homens como valor sobretudo econômico, valor de

troca: tudo passa a contar, primariamente, como mercadoria. (...) O trabalho reificado não aparece por suas

qualidades, trabalho concreto, mas como trabalho abstrato, trabalho para ser vendido. A sociedade que vive à

custa desse mecanismo produz e reproduz, perpetua e apresenta relações sociais como relações entre coisas. O

homem fica apagado, é mantido à sombra. Todo o tempo, fica prejudicada a consciência de que a relação entre

mercadorias (e a relação entre cargos) é, antes de tudo, uma relação que prevalece sobre a relação entre pessoas”

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Essa situação, como afirma Souza (2008, p. 80), tem se refletido no

desenvolvimento de um Estado Neoliberal Penal que combate a criminalidade, sem,

contudo, atacar suas causas.

O cárcere surge então como principal meio a ser utilizado pelo Estado,

pressionado pela sociedade privilegiada, para resolver os problemas sociais.

O encarceramento, como se observa, é o remédio utilizado pelo Estado para

conter essa crescente criminalidade na atualidade, não é à toa, como afirma Bauman

(1998, p. 49) que durante os últimos vinte e cinco anos, a população de encarcerados e

de todos os que obtêm a sua subsistência da indústria carcerária – polícia, advogados,

fornecedores de equipamento carcerário – têm crescido constantemente. O mesmo tendo

ocorrido com a população de ociosos – exonerados, abandonados, excluídos da vida

econômica e social.

Como se observa, a sociedade moderna produziu seus estranhos, indivíduos que

se tornaram o alvo da ânsia criminalizadora do Estado.

Decorrência natural de tudo isso foi esse fenômeno que provocou um

expansionismo penal, uma vez que o Estado apenas enxerga o direito penal como única

forma de combater esse avanço da criminalidade.

Verifica-se, assim, que as causas que delineiam os estranhos da atualidade são

bem notórias, como o é o fato de que o Estado não se preocupa em expurgá-las,

preocupa-se, tão somente, em frear o avanço da criminalidade com a utilização o direito

penal, transformando-o em único instrumento capaz de conter esse problema social.

2.4 - A banalização das diferenças e o encarceramento como paradigma da

simplicidade5

5Para David Sanchez Rubio (2014, p. 76), citando o sociólogo francês Edgard Morin, o paradigma da

simplicidade nada mais é que uma metodologia, uma forma característica da cultura ocidental e um modo de

construir, interpretar, organizar e hierarquizar a realidade para levar a cabo seus propósitos, uma vez que todo ser

humano faz simplificações e significa parcial e limitadamente o real, no momento em que absolutiza este

paradigma, ignora o que simplifica, acabando por amputar tudo e sacrificando muitas vidas. Porque quanto mais

mutilador é um pensamento, mais mutila seres humanos e suas vidas.

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Essa invisibilidade social, como já afirmado, mais presente em sociedades mais

periféricas, como nos fala Carvalho (2014, p. 176-177), citando as ideias de Jessé Souza,

implica a existência de redes invisíveis e objetivas, as quais desqualificam os indivíduos

e grupos sociais precarizados como subprodutores e subcidadãos, sob a forma de uma

evidência social insofismável, tanto para os privilegiados quanto para as próprias

vítimas da precariedade, é um fenômeno de massa, permitindo a percepção de que a

marca diferencial desses tipos de sociedade é a produção social de uma “ralé estrutural”.

Esse fato, como afirma Carvalho (2014, p. 179), na sociedade atual introduziu

uma perversa dinâmica de invisibilidade pública e humilhação social, à medida que

naturaliza posições de desigualdade, prevalência e privilégios, indiferenças cortantes em

relações a inúmeros sujeitos e grupos sociais, estigmatizações e desumanizações

permanentes, desfigurando tanto o sentido quanto a eficácia da noção de dignidade

humana, especialmente nas ideologias e estratégias de controle penal.

O Estado, longe de expurgar as causas que conduzem os indivíduos excluídos à

criminalidade, utiliza tão somente o direito penal através do cárcere como política

pública, recheando esse ramo do direito de uma característica cada vez mais simbólica, e

com caráter punitivo cada vez mais acentuado, como, aliás, afirma Alberto Silva Franco

(1994, p.10):

A função nitidamente instrumental do Direito Penal ingressa numa fase

crepuscular cedendo passo, na atualidade, à consideração de que o

controle penal desempenha uma função nitidamente simbólica. A

intervenção penal não objetiva mais tutelar, com eficácia, os bens

jurídicos considerados essenciais para a convivencialidade, mas apenas

produzir um impacto tranquilizador sobre o cidadão e sobre a opinião

pública, acalmando os sentimentos individual ou coletivo, de

insegurança.

Souza (2008, p.79) afirma que violência e criminalidade não são causas dos

problemas de segurança pública, são consequências. Prossegue salientando que a ideia

equivocada desvia a discussão do seu principal foco – não a violência das pessoas, mas a

violência institucional, revelada pela miséria, desemprego, falta de investimento em

educação e saúde, pela desigualdade, em síntese, pela exclusão social.

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Todos esses fatos denotam que a sociedade globalizada, marcada por um nefasto

processo dicotômico – onde de um lado se encontram aqueles que com seu poder

aquisitivo podem se valer de todas as vantagens do capitalismo e do consumismo, e de

outro, aqueles seres não reconhecidos, invisibilizados, estranhos – longe de unir, afasta;

longe de homogeneizar, produz diferenças; ao contrário de humanizar, desumaniza; e o

Estado, incapaz ou mesmo indolente diante dessa situação, despreza suas causas e busca,

somente através da penalização e do encarceramento, remediar essa doença crônica que

assola a humanidade.

O cárcere nos moldes como é conhecido, longe de resolver a situação da intensa

criminalidade, acaba servindo como motor propulsor para o seu avanço, onde os

detentos acabam aprendendo novas técnicas para o cometimento de crimes, como já

salientava Foucault (1984, p. 131) ao dizer que desde 1820 se constata que a prisão,

longe de transformar os criminosos em gente honesta, serve apenas para fabricar novos

criminosos ou para afundá-los ainda mais na criminalidade.

Essa situação acaba se revelando um grave problema social, e algo que se

apresenta como um ciclo vicioso, uma vez que o Estado encarcera o indivíduo no afã de

punir e prevenir novos crimes, mas a consequência disso acaba sendo justamente um

aumento da criminalidade, não só pelas razões antes enunciadas, mas porque a

ressocialização do indivíduo é algo utópico, vez que após sair da prisão, ele acaba

levando consigo um peso que se revela impossível de carregar, qual seja, o da

estigmatização.

A própria sociedade promove a marginalização desse indivíduo egresso do

cárcere, impondo as mais severas restrições, impedindo-o de retomar sua vida por meios

lícitos, fato que acaba fazendo com que ele retome a vida criminosa, e assim nos fala

Foucault (1984, p. 132) que a partir do momento em que alguém entrava na prisão se

acionava um mecanismo que o tornava infame, e quando saia, não podia fazer nada

senão voltar a ser delinquente.

Como consequência de tudo isso, notamos que a saída utilizada pelo Estado ante

esse aumento da criminalidade acaba sendo mesmo o direito penal, como bem diz

Hassemer (1999, p. 86):

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El destinatário de todas estas exigências de la opinión pública que se

siente amenazada por la violência es, sobre todo, el derecho penal,

incluyendo tambiénel derecho procesal penal .

Desfecho de todas essas circunstâncias também não é outro senão a

implementação de uma legislação penal e processual penal de emergência que acabam

por legitimar o incremento da violência institucional e de algumas práticas distorcidas e

autoritárias de segurança. (SOUZA, 2008, p. 84).

2.5 - A seletividade do sistema penal

Como acentua Souza (2008, p. 79), a evolução que transita do Estado liberal ao

Estado neoliberal6 somente agrava o problema da exclusão social. Para o mesmo autor, o

capitalismo desenfreado, a despeito de anunciar uma situação de paz, de segurança,

propicia o aprofundamento da miséria, da exclusão e da própria guerra.

Ainda para Souza (2008, p. 85), a onda de violência e criminalidade faz eclodir a

crise e marca uma tendência de endurecimento das respostas penais e de segurança

pública, em consonância com os anseios de alguns segmentos da sociedade.

Pois bem, as consequências do aumento da interferência estatal através do direito

penal acabam, na maioria das vezes, tendo destinatários certos, ou seja, aqueles que

vivem à margem da sociedade.

6O neoliberalismo representa um movimento político filosófico que surgiu, após 1945, mediante as críticas ao

Estado de Bem-Estar Social apresentadas pelas ideias de economistas como Milton Fridman, Friedrich Hayeck e

Robert Nozick, cujas características gerais é o retorno ao individualismo centrado na postura contra o Estado

coercitivo e centralizador de direitos sociais e coletivos. Esta posição teve como principal influência as ideias de

filósofos como John Stuart Mill, James Stuart Mill e Jeramy Bentham considerados próceres do pensamento

liberal contemporâneo. Porém, o marco teórico-conceitual cerne do pensamento liberal atual centra-se nas ideias

de igualdade, liberdade e equidade do filósofo John Rawls (2002).

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A produção exacerbada de normas penais, nos moldes como são editadas, leva-

nos a crer que elas acabam tendo endereço certo, ou seja, nota-se, em análise sumária,

que elas se dirigem àquelas camadas menos favorecidas.

Esse fato acaba nos levando à conclusão de que o direito penal reforça a

desigualdade social, sendo um instrumento de manutenção de interesses das classes mais

favorecidas, como preleciona Juarez Cirino dos Santos (1985, p. 26):

Através das definições legais de crimes e penas o legislador protege,

especialmente, os interesses e as necessidades (valores) das classes

dominantes, incriminando, rigorosamente, as condutas lesivas dos

fundamentos das relações de produção, concentradas na área da

criminalidade patrimonial: constrói tipos de condutas proibidas sobre

uma seleção de bens jurídicos próprios das classes dominantes,

garantindo seus interesses de classe e as condições necessárias à sua

dominação e reprodução como classe.

Esse fato é bem notório, como, aliás, já foi bem delineado anteriormente, uma

vez que em se tratando de microcriminalização, ou seja, aqueles delitos praticados, via

de regra, contra o patrimônio, são justamente cometidos pelos consumidores falhos,

aqueles seres privados do consumo que a globalização marginalizou, e aí, para

conseguirem se inserir nesse contexto, praticam as condutas tipificadas nas normas

penais que tutelam interesses de determinada classe.

Coadunando esse pensamento, Maria Lucia Karam (1993, p. 75) nos explica que

a definição e seleção de bens jurídicos se dá de maneira classista, ou seja, se faz

fundamentalmente em defesa de interesses daqueles que detêm riqueza e poder, as

classes dominantes.

Ainda segundo Karam (1993, p. 206):

A seleção dos que vão desempenhar o papel de criminoso, de mau, de

inimigo – os bodes expiatórios – naturalmente, também obedece à regra

básica da sociedade capitalista, ou seja, a desigualdade na distribuição

de bens. Como se trata aqui da distribuição de um atributo negativo, os

escolhidos para receber toda a carga de estigma, de injustiça e de

violência, direta ou indiretamente provocada pelo sistema penal, são

preferencial e necessariamente os membros das classes subalternas, fato

facilmente constatável, no Brasil, bastando olhar para quem está preso

ou para quem é vítima de grupos de extermínio.

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Como salienta Wacquant (2007, p. 16), o encarceramento serve para neutralizar e

estocar fisicamente as frações excedentes da classe operária, notadamente os membros

despossuídos dos grupos estigmatizados que insistem em se manter em “rebelião aberta

contra seu ambiente social”.

Ressalta ainda Loic Wacquant acerca da famigerada punição dos pobres, o

seguinte:

Enfim, e sobretudo, para a classe superior e a sociedade em seu

conjunto, o ativismo incessante e sem freios da instituição penal cumpre

a missão simbólica de reafirmar a autoridade do Estado e a vontade

reencontrada das elites políticas de enfatizar e impor a fronteira sagrada

entre os cidadãos de bem e as categorias desviantes, os pobres

“merecedores” e os “não-merecedores”, aqueles que merecem ser alvos

e “inseridos” (mediante uma mistura de sanções e incentivos) no

circuito do trabalho assalariado instável e aqueles que, doravante,

devem ser postos no índex e banidos, de forma duradoura.

(WACQUANT, 2007, p. 17).

Vemos diante dessa conjuntura que a questão relativa à desigualdade social

atinge setores onde em verdade não poderia haver distorções, ou seja, até nas prisões há

uma seleção de determinadas categorias.

Para Dornelles (2003, p.54):

[...] o mito do Estado Mínimo é sublinhado, debilitando o Estado

Social e glorificando o ‘Estado Penal’. É a constituição de um

novo sentido comum penal que aponta para a criminalização da

miséria como um mecanismo perverso de controle social para,

através deste caminho, conseguir regular o trabalho assalariado

precário em sociedades capitalistas neoliberais.

Notamos que o Estado, além não procurar atender às expectativas sociais das

classes menos favorecidas, acaba por substituir políticas públicas por políticas de

encarceramento.

E o que é pior, na sociedade moderna a criminalização assume contornos raciais

e étnicos, na medida em que jovens pobres e negros e a população de rua são tidos como

perigosos para a sociedade, considerados ameaça para a sociedade dita privilegiada.

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3 - AS POLÍTICAS CRIMINAIS NA ATUALIDADE: CARACTERÍSTICA DE

EXPANSÃO E RECRUDESCIMENTO DO DIREITO PENAL

3.1 – O Expansionismo Penal

O aumento absurdo da criminalidade na atualidade e a deficiência estatal em

conter esse avanço da violência, vem dando margem a uma mudança paradigmática no

âmbito do direito penal.

Apesar de existirem hodiernamente muitas vozes favoráveis ao que se denomina

direito penal mínimo, em que há a ideia de que o Estado só deve incriminar problemas

sociais onde se revele realmente necessária a tutela por esse ramo do direito, zelando

pela liberdade do indivíduo, há uma vertente diametralmente oposta que, por diversos

motivos, como se verá, desprezando muitas vezes a técnica e os princípios do direito

penal, acaba incitando a produção de tipos penais ou o aumento das penas que já

existem.

O momento, como afirma Cancio Meliá (2007, p. 55), é de uma política criminal

com características de “expansão” do direito penal.

Vemos hoje um abandono do direito penal fundado em ideais liberais, e que a

cada dia mais vem passando por mudanças, tornando-se bastante seletivo, como assevera

Andrade (2003, p. 187):

A eficácia invertida do sistema penal é consistente no fato de que a

função latente e real deste é construção seletiva da criminalidade e,

neste processo, a reprodução material e ideológica, das desigualdades e

diferenças sociais (de classe, gênero, raça) e não o combate da

criminalidade, com a proteção de bens jurídicos universais e geração de

segurança pública e jurídica.

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Aliado a esse fator, a proliferação de leis penais também é algo bastante

preocupante. O Legislativo, utilizando-se do sistema penal sob uma ótica eminentemente

política7, acaba elaborando normas penais como forma a dar uma resposta à sociedade,

pensando não somente em proporcionar uma tranquilidade que na verdade não existe,

como também fazer política com a produção de leis, criminalizando condutas que, por

certo, acaso se respeitasse o direito penal como ultima ratio8, não teriam a tutela deste

ramo do direito.

Acentua Cancio Meliá que quando se usa em sentido crítico o conceito de Direito

penal simbólico, quer-se, então, fazer referência a que determinados agentes políticos

tão-só perseguem o objetivo de dar a impressão tranquilizadora de um legislador atento

e decidido, isto é, que predomina uma visão latente sobre a manifesta.

Sobre essa situação, Munoz Conde (2012, p. 21) acentua que os problemas

político-criminais tinham se convertido em problemas fundamentais desse moderno

direito penal não só para os políticos encarregados pela elaboração de leis penais e

obrigados a responder perante seus eleitores e a opinião pública pela eficácia de sua

gestão, como também para teóricos, professores e assessores parlamentares nestas

questões.

A mídia também tem papel preponderante nessa fase de mudança na política

criminal, uma vez que, com sua atuação cada vez mais sensacionalista e exploradora da

cultura do terror, acaba por potencializar a ânsia da população por leis cada vez mais

duras.

7André Luís Callegari, quando se refere à politização do Direito Penal, assim se pronuncia: “A politização do

Direito Penal por meio da utilização política da noção de segurança, resulta de um empobrecimento ou

simplificação do discurso político-criminal, que passa a ser orientado tão somente por campanhas eleitorais que

oscilam ao sabor das demandas conjunturais midiáticas e populistas, em detrimento de programas efetivamente

emancipatórios”. (Callegari; Wermuth, 2010, p. 22) 8O Direito Penal é o ramo mais invasivo da esfera privada do cidadão, sua utilização deve se dar com cautela,

deve ele se manter subsidiário e fragmentário, não se justificado seu uso do Direito Penal em casos que poderiam

ser resolvidos por outros ramos do Direito. Mir Puig esclarece o motivo do caráter subsidiário do direito penal

com as seguintes palavras: “O Direito Penal deixa de ser necessário para proteger a sociedade quando isso

puder ser obtido por outros meios, que serão preferíveis enquanto sejam menos lesivos aos direitos individuais.

Trata-se de uma exigência de economia social coerente com a lógica do estado social, que deve buscar o maior

benefício possível com o menor custo social. O princípio da ‘máxima utilidade possível’ para as eventuais

vítimas deve ser combinado com o ‘mínimo sofrimento necessário’ para os criminosos. Isso conduz a uma

fundamentação utilitarista do Direito Penal que não tende à maior prevenção possível, mas ao mínimo de

prevenção imprescindível. Entra em jogo, assim, o ‘princípio da subsidiariedade’, segundo o qual o Direito

Penal deve ser a ultima ratio, o último recurso a ser utilizado, à falta de outros meios menos lesivos” (Santiago,

2007, p. 93 e 94).

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Aliado a isso, o papel que a mídia de massa cumpre na produção e difusão do

medo, tende a aumentar e consolidar um elevado grau de sensibilidade de risco, criando,

por vezes, monstros onde não há.

E não é só, é por demais sabido que principalmente a televisão exerce grande

influência social, ora trazendo benefícios, ora malefícios, como verificamos quando

exploram determinados fatos de forma distorcida, acabando, por vezes, por persuadir a

população ao cometimento de barbáries.

Como bem explicitado por Newton e Walter Fernandes (1995, p. 409), uma

notícia sensacionalista sobre um crime, não raro, deflagra o cometimento de outros da

mesma natureza.

A doutrina, por sua vez, preocupada em fazer cumprir seu papel na tentativa de

contribuir para conter o avanço da criminalidade, vem criando teorias que, em

determinadas situações se revelam, a priori, incompatíveis com o papel do Estado

Democrático de Direito, como se mostra a polêmica Teoria do Direito Penal do Inimigo.

Essa crescente expansão já preocupava a comunidade jurídica como assevera

Munoz Conde (2012, p. 21), quando afirma que desde o início dos anos 1980, a chamada

Escola de Frankfurt, com Hassemer, Naucke Y Luderssen como expoentes, já havia

advertido sobre os perigos que, uma política criminal, demasiadamente pragmática e

disposta a resolver a qualquer preço, por meio do Direito Penal, problemas que não lhe

eram próprios, poderia ocasionar.

Resta-nos acreditar na utilização do ordenamento jurídico através do direito penal

como instrumento de preservação de poder, e assim nos fala Quinney (1980, p. 236)

quando afirma que o direito criminal é usado pelo Estado e pela classe dominante para

assegurar a sobrevivência do sistema capitalista.

3.2 – Políticas de enfrentamento do crime

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3.2.1 - Das teorias de Conflito9

3.2.1.1 - Da Teoria do Etiquetamento ou Labelling Approach

Segundo Penteado Filho (2015, p.73), a Teoria do Etiquetamento, interacionismo

simbólico, rotulação ou reação social, seria uma das mais importantes teorias de

conflito, surgida nos anos 1960 nos Estados Unidos, tendo como seus principais

expoentes Erving Goffman e Howard Becker.

Para o referido autor, a criminalidade não é uma qualidade da conduta humana,

mas a consequência de um processo em que se atribui tal qualidade (estigmatização), e

ainda afirma:

O criminoso apenas se diferencia do homem comum em razão do

estigma que sofre e do rótulo que recebe. Por isso, o tema central desse

enfoque é o processo de interação em que o indivíduo é chamado de

criminoso. (PENTEADO FILHO, 2015, p. 73).

Para Baratta (2002, p. 86), não se pode compreender a criminalidade se não se

estuda a ação do sistema penal, que a define e reage contra ela, começando pelas normas

abstratas até a ação das instâncias oficiais (polícia, juízes, instituições penitenciárias que

as aplicam), e que, por isso, o status social do delinquente pressupõe, necessariamente, o

efeito das atividades das instâncias oficiais de controle social da delinquência . Enquanto

não adquire esse status aquele que, apesar de ter realizado o mesmo comportamento

punível, não é alcançado, todavia, pela ação daquelas instâncias, não sendo, portanto,

considerado e tratado pela sociedade como um delinquente.

9 Teorias de conflito, nos dizeres de Nestor Sampaio Penteado Filho (2015, p. 65) argumentam que a harmonia

social decorre da força e da coerção, em que há uma relação entre dominantes e dominados, não existindo

voluntariedade entre os personagens para a pacificação social, sendo esta decorrente da imposição ou da coerção.

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Nota-se claramente, que cabe à sociedade, com a anuência do Estado, rotular

aquelas atividades que consideram como conduta desviante, rotulando-as de perigosas,

impondo sanções a quem age dessa forma.

E mais, ainda para Baratta (2002, p. 93), o comportamento transgressor da norma

seria um comportamento já qualificado de modo valorativo e considerado como tendo

uma qualidade própria, quase como se fosse já dada, de que o processo do labelling não

fosse senão a simples confirmação.

No que diz respeito aos efeitos do etiquetamento, assinala Anyiar de Castro: “o

principal efeito da rotulação seria o de induzir a novos atos desviantes e/ou delitivos,

apesar da sua grande referência à reação social, esta teoria continua fortemente

vinculada à criminologia do Passar à Ação” (CASTRO, 1983. p. 101).

Fala-se em induzir a novos atos desviantes porque a criminalização primária seria

produtora propriamente do rótulo, que teria como consequência a reincidência que se

apresentaria como uma criminalização secundária, ou seja, ao se encontrar rotulado ou

etiquetado, o indivíduo carrega um estigma que o leva a ser colocado à margem pela

própria sociedade, tendo como consequência clara o cometimento de novos crimes.

A teoria do etiquetamento ou labelling approach se revela não só mantenedora

de interesses de determinada classe, como também um abuso do poder estatal, como bem

esclarece Cirino dos Santos (2006, p. 24):

A teoria da sociologia do desajuste é politicamente limitada e

historicamente confusa: não compreende a estrutura das classes e da

sociedade, não identifica as relações de poder político e de exploração

econômica (e sua interdependência) do modo de produção capitalista e,

definitivamente, não toma posição nas lutas fundamentais da sociedade

moderna.

3.2.1.2 - Da Teoria crítica ou radical

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A teoria crítica se verifica como mais uma teoria de conflito e teve origem no

início do século XX, com o trabalho do holandês Bonger, com clara inspiração do

Marxismo, afirma ser o capitalismo a base da criminalidade na medida em que promove

o egoísmo, levando os homens, via de consequência, a delinquir. (PENTEADO FILHO,

2012, p. 75)

Os adeptos desta teoria asseveram que a classe trabalhadora, estigmatizada, é o

principal alvo do sistema punitivo, e assim sendo, mantém-se a estabilidade da produção

e da ordem social.

Os autores Newton e Walter Fernandes, em sua obra Criminologia Integrada,

resumem bem a ideia da teoria crítica quando assim nos fala:

A criminologia dialética ou crítica é um movimento radical,

caracterizado pelo questionamento da ordem social que gera o

fenômeno delinquencial e pelo compromisso com uma prática

social transformadora, tudo com vistas às condições estruturais da

desigualdade material e da marginalização econômica nas

sociedades sedimentadas na divisão e exploração de classes. [...]

proclama que o crime e a criminalidade não serão equacionados e

resolvidos sem alterações profundas e radicais na base estrutural

da sociedade capitalista. (FERNANDES e FERNANDES, 1995, p.

473).

3.2.1.3 - Do Neorretribucionismo

3.2.1.3.1 - Movimento Lei e Ordem, Política de tolerância zero, Teoria das janelas

quebradas e a Teoria das três faltas e está fora

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Com o término da Segunda Guerra Mundial, países do ocidente, impregnados de

ideais socialistas, buscaram implementar uma política de bem-estar social, a qual se

denominou de “welfarestate”, o Estado Providência.

Acontece que, motivado por diversos fatores, entre os quais o enfraquecimento

dos ideais socialistas, surge um Estado neoliberal de mercado, afastando-se da sociedade

no que diz respeito ao seu papel prestacionista, gerando uma insegurança geral.

Como não poderia ser diferente, ocorre um aumento quase imediato da

criminalidade de massa, o que acaba por exigir uma interferência do Estado para coibir

seu avanço.

O denominado movimento lei e ordem teve seu nascedouro nos Estados Unidos

da América na década de 70, e surge como resposta estatal ao avanço crescente da

criminalidade, enxergando o crime e o criminoso como um mal que deve ser eliminado

da sociedade a qualquer preço.

Essa política criminal ganhou impulso com o movimento denominado

“Tolerância Zero”, implantado na cidade de Nova York pelo então prefeito Rudolph

Giuliani, que buscava criminalizar condutas de pequena ofensividade, tentando legitimar

um intervencionismo estatal exagerado como forma de garantir uma pseudotranquilidade

no seio da sociedade, baseada na cultura do medo.

Segundo Penteado Filho (2012, p. 76-77), essa vertente radical parte da premissa

de que os pequenos delitos devem ser rechaçados, o que acabaria inibindo os delitos

mais graves, fulminado o mal no nascedouro, atuando como prevenção geral.

Ainda segundo o autor, para essa teoria, haveria uma relação de causalidade entre

a desordem e a criminalidade.

Dentro desses contornos, vemos que essa política acaba sendo direcionada para

determinadas camadas sociais, e nesse sentido expõe Eduardo Galeano (2004, p. 19-20):

Para os que mandam, não há “tolerância zero”. A exitosa receita de

Rudolph Giuliani, nascida para limpar as ruas de Nova Iorque dos

delinquentes e vendida no mundo inteiro, não se equivoca nunca. Aplica

sempre para baixo, jamais para cima a mão dura e o castigo preventivo,

que vem a ser algo assim como a versão policial da guerra preventiva.

Converte a pobreza em delito e atribuiu uma “conduta protocriminal” a

todos os pobres de origem africana ou latino-americana, que são

culpados enquanto não provem sua inocência. [...] Em muitos países,

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pode-se ser preso pela cor da pele. Nos Estados Unidos, por exemplo.

Dentro das prisões, há quatro negros por cada dez presos. Fora das

prisões, há um negro para cada dez habitantes.

Frise-se que o movimento de lei e ordem com essa ideia de repressão à

criminalidade de forma implacável, contou com o apoio da sociedade, uma vez que a

insegurança acaba por gerar nas pessoas essa ânsia por algo que venha a coibir os

crimes.

Essa política criminal é uma clara expressão do que Ferrajoli (2014, p. 1010)

denomina de direito penal máximo10

, uma vez que segundo ele, esse sistema é próprio

do Estado absoluto ou totalitário, entendendo-se por tais expressões qualquer

ordenamento em que os poderes públicos sejam legibus ou “totais”, ou seja, não

disciplinados pela lei e, portanto, carentes de limites e condições.

Ainda na linha dessa política criminal cunhada na cultura do medo, surgiu

também nos EUA a chamada Teoria da “Janela Quebrada” (broken-windowstheory)11

,

criada por Wilson e Kelling em um artigo publicado em 1992, a qual se utilizava da

metáfora das janelas quebradas para afirmar a ideia de que, punindo antecipadamente

pequenos delitos, prevenia-se, futuramente, males maiores.

No mencionado artigo, os autores usaram a imagem de janelas quebradas para

explicar como a desordem e a criminalidade poderiam, aos poucos, infiltrar -se numa

comunidade, causando a sua decadência e a consequente queda da qualidade de vida.

Sustentava-se que se uma janela de um imóvel fosse quebrada e não

imediatamente consertada, as pessoas que por ali passassem concluiriam que ninguém se

importava com o local e que naquela região não havia autoridade responsável pela

manutenção da ordem. Em pouco tempo, algumas pessoas começariam a atirar pedras

para quebrar as demais janelas ainda intactas. Tão logo, todas as janelas estariam

quebradas.

Iniciava-se, assim, a decadência daquela rua e da própria comunidade. Apenas os

desocupados e pessoas com tendências criminosas, sentir-se-iam à vontade para ter

10Segundo Luigi Ferrajoli (2014, p. 102), direito penal máximo é aquele incondicionado e ilimitado, é o que se

caracteriza, além de sua excessiva severidade, pela incerteza e imprevisibilidade das condenações e das penas e

que, consequentemente, configura-se como um sistema de poder não controlável racionalmente em face da

ausência de parâmetros certos e racionais de convalidação e anulação. 11

http://www.manhattan-institute.org/pdf/_atlantic_monthly-broken_windows.pdf

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algum negócio ou mesmo morar na rua cuja decadência era evidente. O passo seguinte

seria o abandono daquela localidade pelas “pessoas de bem”, deixando o bairro à mercê

dos “desordeiros”. Pequenas desordens levariam às grandes e, mais tarde, ao crime. Em

razão da imagem das janelas quebradas que seria a origem de todo o “caos”, o estudo

ficou conhecido como Broken Windows Theory.

Implementada por meio da operação tolerância zero (zero tolerance), é necessário

esclarecer que essa política acabou por diminuir sensivelmente o número de crimes em

Nova York.

Acontece, entretanto, como bem salienta Penteado Filho (2015, p. 78), que essa

teoria sofreu críticas em virtude do fato de que, com essa política implantada, houve o

encarceramento em massa da população menos favorecida, contudo, para o mesmo

autor, essas críticas não procedem, uma vez que o que se analisava não era a situação

pessoal do criminoso, mas sua conduta.

Também nessa mesma esteira surgiu a Teoria do “Three strikes and you’re out”

que faz referência a uma regra do jogo de beisebol que determina a expulsão do jogador

no cometimento da terceira falta, e, semelhantemente, impõe ela a “expulsão” daquele

que reitera pela terceira vez uma conduta criminosa.

Essa teoria nasceu no Estado norte-americano de Ilinois e posteriormente foi

adotada por vários Estados daquele país. A lei, orientada por esta teoria, estabelece uma

gradação das penas que varia de Estado para Estado, podendo imputar ao indivíduo que

delinque pela terceira vez a prisão perpétua.

Depreende-se claramente a ideia de recrudescimento da pena, uma vez que, como

dito, pode-se chegar à situação de impor o cárcere perpétuo ao delinquente que se revele

reincidente.

Diante do atual panorama, com a criminalidade cada vez mais acentuada e com

movimentos dessa espécie, observa-se uma ofensa frontal ao princípio da

proporcionalidade com o recrudescimento das penas e um desprezo ao princípio da

intervenção mínima, ou seja, utilizou-se o direito penal como fonte primeira (prima

ratio) para solução de problemas de pequena ou quase nenhuma relevância, fragilizando

direitos conquistados ao longo de vários séculos.

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3.3 - A criminalidade real12

, a cifra negra13

e a cifra dourada14

Note-se que, inobstante tudo o que foi anteriormente relatado acerca da

criminalidade crescente e da utilização demasiada do direito penal, hiperinflacionando o

sistema com leis penais, vê-se ainda que a situação é muito mais grave do que aparenta.

Ora, é por demais claro que para que haja uma correta elaboração de leis penais,

para evitar o uso do direito penal em excesso ou mesmo mais restritivamente, é

necessário que se saiba o número real de crimes que são praticados. Contudo, vemos que

grande parte dos crimes deixa de fazer parte das estatísticas por razões diversas, fato que

se denominou de cifra negra.

Como razões que levam à existência dessa cifra negra, podemos citar a omissão

da própria vítima em comunicar a ofensa contra ela praticada; a desconfiança ou mesmo

incredulidade nas autoridades públicas; o medo; entre outros tantos aspectos que

conduzem à falta de comunicação dos delitos, o que acaba gerando uma falsidade nos

dados oficiais.

Observa-se assim, que por duas razões bastante plausíveis, não se pode ter por

legítimos os dados oficiais acerca da criminalidade, uma vez que não só os crimes mais

comuns praticados pela parcela da população marginalizada deixam de ser comunicados,

como também aqueles que são cometidos por quem detém os poderes econômicos e

políticos (cifra dourada).

Essa mácula nas estatísticas apresentadas conduz a uma série de ponderações,

haja vista que não sabemos de fato o índice real de criminalidade que assola a sociedade

12Criminalidade revelada, é para Penteado Filho (2015, p. 57) é a quantidade efetiva de crimes perpetrados pelos

delinquentes. 13

Nos dizeres de Penteado Filho (2015, p. 59), cifra negra seria o número de delitos que por alguma razão não

são levados ao conhecimento das autoridades, contribuindo para uma estatística divorciada da realidade

fenomênica. 14

Para Penteado Filho (2015, p. 59), entende-se por cifra dourada a criminalidade de “colarinho branco”, definida

como práticas antissociais impunes do poder político e econômico, seja a nível nacional ou internacional, em

prejuízo da coletividade e dos cidadãos e em proveito das oligarquias econômico-financeiras.

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contemporânea, bem como vemos que mesmo sem se ter noção do número efetivo de

crimes cometidos, o direito penal já é utilizado de forma banalizada, quiçá se tivessem

os parlamentares esse conhecimento.

As cifras negra e dourada acabam acusando a deficiência do Estado quanto ao

quesito segurança. A hiperinflação legislativa fomentadora do direito penal simbólico é

baseada em números irreais, e o que se revela ainda mais preocupante é que o

conhecimento das infrações que de fato chegam ao conhecimento das autoridades, são

aquelas cometidas pela parcela da população já estigmatizada, tais como os pobres e os

negros.

As estatísticas que são reveladas pelas autoridades, apresentam-se seletivas, ou

seja, só acabamos tendo conhecimento das infrações denominadas de

microcriminalidade, consubstanciada esta principalmente pelo cometimento de crimes

contra o patrimônio.

Percebe-se assim que o equívoco das estatísticas acaba prejudicando a

implementação de uma política criminal baseada na real carência da sociedade, porque

vemos de um lado o cômputo maior de crimes cometidos por uma classe social excluída,

e por outro lado, pouca ou quase nenhuma comunicação de crimes que compõem a

chamada cifra dourada que é, como vimos, aqueles cometidos por quem detém o poder

econômico e político.

3.4 - A expansão do direito penal em Jesús-Maria Silva Sanches – As três

velocidades do direito penal

O Professor Catedrático de Direito Penal da Universidade de Pompeu Fabra, na

Espanha, Jesús-Maria Silva Sanchez, expõe em sua obra “A expansão do direito penal”

de forma brilhante quais seriam as possíveis causas do agigantamento desse ramo do

direito na sociedade moderna, bem como revela aquilo que denomina de “velocidades do

direito”.

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“Ali onde chovem leis penais continuadamente, onde por qualquer

motivo surge entre o público um clamor geral de que as coisas se

resolvam com novas leis penais ou agravando as existentes, aí não se

vivem os melhores tempos para a liberdade – pois toda lei penal é uma

sensível intromissão na liberdade, cujas consequências serão

perceptíveis também para os que a exigiram da forma mais ruidosa -, ali

se pode pensar na frase de Tácito: péssima respublica, plurimae leges”

(SANCHEZ, 2013, pag. 25)

O que se observa é que já no início de sua obra, o mencionado autor ressalta o

papel incisivo do Estado para esse fenômeno de expansão do direito penal, quando

afirma que frequentemente a referida expansão se revela como fruto de uma

perversidade estatal que buscaria no permanente recurso à legislação penal uma aparente

solução fácil aos problemas sociais, deslocando ao plano simbólico, o que deveria se

resolver no plano da instrumentalidade. (SANCHEZ, 2013, p. 29).

Ao realçar as possíveis causas do expansionismo penal, Sanchez (2013, p.33)

inicia elencando o surgimento de novos bens jurídicos que necessitariam da proteção do

direito penal, que seriam provenientes daquilo que se denominou de novas realidades.

Outra causa seria o efetivo aparecimento de novos riscos, fazendo menção ao que

Ulrich Beck chamou de “sociedade de risco”. Para Sanchez (2013, p. 35) a sociedade

atual aparece caracterizada, basicamente, por um âmbito econômico rapidamente

variante e pelo aparecimento de avanços tecnológicos sem paralelo em toda a história da

humanidade, e tudo isso acabou tendo impacto direto no bem-estar das pessoas.

Sanchez (2013, p. 40) caracteriza a sociedade atual como sociedade da

“insegurança sentida” ou sociedade do medo, uma vez que segundo ele a sensação de

insegurança permeia entre os cidadãos.

O autor atribui também parcela de culpa dessa insegurança geral aos meios de

comunicação, afirmando que há correlação, uma vez que a mídia ocuparia posição de

privilégio nessa sociedade da informação e no seio de uma concepção do mundo como

aldeia global transmitem a imagem da realidade, o que ocasionaria, contudo, em

determinadas ocasiões, percepções inexatas. (SANCHEZ, 2013, p.47),

Dentro desses contornos, para Sanchez (2013, p. 50/51) a segurança se converte

em uma pretensão social à qual se supõe que o Estado e, em particular, o Direito Penal

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devem oferecer a resposta, e vai além afirmando que atualmente a solução para a

insegurança não se busca em seu lugar natural que seria o “direito de polícia”, mas sim

no direito penal.

Outro ponto delicado que assola o atual modelo social segundo Sanchez (2013, p.

59), é a existência de um protótipo de vítima que não assume a possibilidade de que o

fato que sofreu derive de culpa sua ou que simplesmente corresponda ao azar. Para o

autor, parte-se do axioma de que haverá sempre um terceiro responsável a quem imputar

o fato e suas consequências patrimoniais e/ou penais, e a isso se denomina

Zurechnungsexpansion15

.

O descrédito de outras instâncias de proteção é algo que para Sanchez acaba se

somando às causas de expansão do direito penal, ou seja, vários fatores dão a conotação

de que só esse ramo do direito é capaz de resolver os problemas sociais, situação essa

que chega a um resultado que para o autor é desalentador, uma vez que vemos

abandonada a ideia do Direito Penal como ultima ratio, senão vejamos:

Por um lado, por a visão do Direito Penal como único instrumento

eficaz de pedagogia político-social, como mecanismo de socialização,

de civilização, supõe uma verdadeira expansão ad absurdum da outra

ultima ratio. Mas, principalmente, porque tal expansão é em boa parte

inútil, à medida que transfere ao Direito Penal um fardo que ele não

pode carregar. (SANCHEZ, 2013, p. 79).

Como já delineado, o corrente século foi veementemente marcado por um

fenômeno que modificou toda a estrutura da sociedade moderna, a globalização.

Como já vastamente explanado, a globalização, como reflexo dessa modernidade

centrada no “eu”, despreza o outro, como esclarece Bauman (1998, p. 29) quando fala:

Na sociedade moderna, e sob a égide do Estado moderno, a aniquilação

cultural e física dos estranhos e o diferente foi uma destruição criativa,

demolindo, mas construindo ao mesmo tempo; mutilando, mas

corrigindo.

15Zurechnungsexpansion em Sanchez (2013, p. 59) seria a expansão da imputação de responsabilidade como

característica cultural da sociedade contemporânea.

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Essa invisibilidade gerada pelo capitalismo nocivo acarretou, como era de se

esperar, um aumento na criminalidade, uma vez que aqueles excluídos do consumo, para

que pudessem se inserir nessa relação, buscaram meios que facilitassem esse intento, e,

como se observou no decorrer do trabalho, um desses meios foi justamente a prática de

crimes.

Logo, o que se notou é que há uma relação intrínseca entre o processo de

exclusão ocasionado pelo sistema capitalista através dessa sociedade globalizada, que

conduz ao não reconhecimento do outro, com o avanço da criminalidade, não só se

tratando da macrocriminalidade, mas e, com maior habitualidade, da

microcriminalidade, consistente em grande parte na prática de crimes contra o

patrimônio.

E esse é o pensamento de Sanchez (2013, p. 102/103), quando afirma que a

globalização econômica e a integração supranacional tem duplo efeito sobre a

delinquência, onde o primeiro seria o de que dão lugar a que determinadas condutas

tradicionalmente contempladas como delitivas devam deixar de sê-lo, pois o contrário se

converteria em um obstáculo às próprias finalidades perseguidas com a globalização e a

integração nacional. E o segundo é que esse fenômeno dá lugar à conformação de

modalidades novas de delitos clássicos, assim como a aparição de novos crimes.

Assevera ainda que a delinquência que faz surgir a expansão do Direito Penal é a

econômica, abandonando-se o paradigma do Direito Penal Clássico, sendo que essa nova

espécie de delinquência, tende a assinalar menos garantias pela menor gravidade das

sanções, ou é criminalidade pertencente ao âmbito da classicamente denominada

legislação excepcional. (SANCHEZ, 2013, p. 122).

3.4.1 - As Velocidades do Direito Penal

É de Jesús-Maria Silva Sanchez a ideia das “velocidades do Direito Penal”,

segundo ele o Direito Penal Moderno teria três velocidades, sendo a primeira

caracterizada pela pena de prisão, seguindo o modelo de Direito Penal liberal clássico,

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que se utiliza preferencialmente da pena privativa de liberdade, mas se funda em

garantias individuais indissociáveis, e, como ele bem afirma, onde haveriam de se

manter rigidamente os princípios político-criminais clássicos, as regras de imputação e

os princípios processuais. (SANCHEZ, 2013, p. 193).

A segunda velocidade do Direito Penal leva em conta que aos delitos

socioeconômicos são imputadas penas privativas de liberdade, sendo que para estas

devem ser respeitadas todas as garantias e princípios processuais. A segunda velocidade

cuida do modelo que incorpora duas tendências: a flexibilização proporcional de

determinadas garantias penais e processuais aliadas à adoção de medidas alternativas à

prisão, ou seja, para os casos em que, por não se tratar já de prisão, senão de penas de

privação de direitos ou pecuniárias, aqueles princípios e regras poderiam experimentar

uma flexibilização proporcional à menor intensidade da sanção. (SANCHEZ, 2013, p.

193).

Nessa segunda velocidade, o autor defende a ideia de um Direito Penal que seja

ao mesmo tempo funcional e garantista, com a preservação de garantias individuais para

os delitos cuja pena prevista é a prisão. Contudo, para as novas modalidades de delitos,

as quais não trazem um perigo real a bens individuais, sustenta a flexibilização

controlada das regras de imputação, como também dos princípios político-criminais.

Por fim, e do outro lado da moeda, está a terceira velocidade do Direito Penal,

guardando esta estreita relação com a Teoria idealizada pelo alemão Günther Jakobs, do

Direito Penal do Inimigo, que se revelaria pela ampla antecipação da proteção penal, isto

é, a mudança de perspectiva do fato passado a um porvir; a ausência de uma redução de

pena correspondente a tal antecipação; a transposição da legislação jurídico-penal à

legislação de combate e o solapamento de garantias processuais. (SANCHEZ, 2013, p.

194).

3.5 - O Direito Penal Mínimo e o Direito Penal Máximo

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O atual panorama do direito penal é visualizado através de três ângulos bem

definidos, por um lado temos aqueles que pregam a completa supressão do direito penal,

não enxergando a prisão como remédio para os delinquentes, do outro lado da moeda,

temos os que defendem uma maior interferência do Estado através do direito penal, e

finalmente, os pregadores de um direito penal mais equilibrado, conhecidos como

defensores de um direito penal mínimo.

Segundo Batista, Zaffaroni, Alagia e Slokar (2003, p. 648):

“o abolicionismo é um movimento impulsionado por autores do norte da

Europa, embora com considerável repercussão no Canadá, Estados

Unidos e na América Latina. Partindo da deslegitimação do poder

punitivo e de sua incapacidade para resolver conflitos, postula o

desaparecimento do sistema penal e sua substituição por modelos de

solução de conflitos alternativos, preferentemente informais. Seus

mentores partem de diversas bases ideológicas podendo ser assinalada

de modo prevalentemente a fenomenológica, de Louk Hulsman, a

marxista, da primeira fase de Thomas Mathiesen, a fenomenológica-

histórica, de Nils Christie e, embora não tenha formalmente integrado o

movimento, não parece temerário incluir neste a estruturalista, de

Michel Foucault”.

Como afirmado, os abolicionistas pregam a descriminalização e despenalização

de condutas, afirmam que o direito penal não serve para resolver problemas sociais e

pugnam por outras formas de resolução dos conflitos.

Não bastasse, os abolicionistas não só se insurgem contra os sistemas prisionais,

como questionam sua eficiência, fazendo emergir a ideia de que outros ramos do direito

podem e devem resolver as celeumas da sociedade.

A ideia abolicionista passa por desconstruir o direito penal, revendo a finalidade

retributiva da pena, propugnando por uma faceta onde se possa atribuir às partes

envolvidas no conflito, um maior protagonismo.

Zaffaroni (2001, págs. 89 e 97), acerca da ideia abolicionista, assim nos diz:

“O abolicionismo nega a legitimidade do sistema penal tal como atua na

realidade social contemporânea e, como princípio geral, nega a

legitimação de qualquer outro sistema penal que se possa imaginar no

futuro como alternativa a modelos formais e abstratos de solução de

conflitos, postulando a abolição radical dos sistemas penais e a solução

dos conflitos por instâncias ou mecanismos informais. (...)

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47

Na verdade, existem diferentes abolicionismos e, sem dúvida, é até

possível falar-se de um abolicionismo anárquico, (...). Entretanto, o

abolicionismo aqui referido não é este e, sim o abolicionismo radical do

sistema penal, ou seja, sua radical substituição por outras instâncias de

solução dos conflitos (ao contrário do abolicionismo da pena de morte,

da prisão, etc.), que surge nas duas últimas décadas como resultado da

crítica sociológica ao sistema penal. (...)

O abolicionismo representa a mais original e radical proposta político-

criminal dos últimos anos, a ponto de ter seu mérito reconhecido até

mesmo por seus mais severos críticos.”

Consoante se infere dos ideais abolicionistas, algumas características acabam

saltando aos olhos, como o aumento de políticas preventivas das situações, ou seja,

atuação antes de se tornar situações problemáticas; solução dos conflitos sem a

necessidade de recorrer para o modelo punitivo atual, preferindo o consensualismo;

deslocamento do poder punitivo do Estado para um tecido social, revigorado, baseado

em princípios morais e éticos comunitários; abolir não o direito penal, mas o sistema

punitivo atual, mudando percepções, comportamentos, extinguindo os paradigmas do

sistema penal, sobretudo o encarceramento.

3.5.1 - Direito Penal Mínimo

O Direito Penal deve ter como norte a seleção dos bens jurídicos mais

importantes para a convivência harmônica em sociedade, somente criminalizando

aquelas condutas que se revelem realmente nocivas e que tumultuem a relação do

indivíduo com o meio onde ele está inserido.

Não há que se cogitar como ilícita uma conduta que não ofenda minimamente um

bem jurídico tutelado.

Essa é a ideia dos defensores do direito penal mínimo, corrente que tem como

principal expoente o jus filósofo italiano Luigi Ferrajoli.

Referido autor idealizou um sistema penal garantista, criando o que ele

denominou de axioma do garantismo penal. Para Ferrajoli (2014, p . 90):

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48

[...] Trata-se, em outras palavras, de implicações deônticas,

normativas ou de dever ser, cuja conjunção nos diversos sistemas,

que aqui se tornarão axiomatizados, dará vida aos modelos

deônticos, normativos ou axiológicos. A adoção destes modelos,

começando pelo garantista no grau máximo, pressupõe, assim,

uma opção ético-política a favor dos valores normativamente por

eles tutelados.

Construído sob o enfoque do princípio da intervenção mínima, o que sinaliza para

uma atuação mínima do punitivismo estatal, Ferrajoli (2014, p. 91) denomina de sistema

penal SG (Sistema Garantista), que resulta da adoção de dez axiomas ou princípios

axiológicos fundamentais, não deriváveis entre si, que expressa através de máximas

latinas, como se observa:

“A 1 Nulla poena sine crimine

A 2 Nullum crimen sine lege

A 3 Nulla lex (poenalis) sine necessitate

A 4 Nulla necessitas sine injuria

A 5 Nulla injuria sine actione

A 6 Nulla actio sine culpa

A 7 Nulla culpa sine judicio

A 8 Nullum judicium sine accusatione

A 9 Nulla accusatio sine probatione

A 10 Nulla probatio sine defensione”

E prossegue:

Denomino estes princípios, ademais das garantias penais e processuais

por eles expressas, respectivamente: 1) princípio da retributividade ou

da consequencialidade da pena em relação ao delito; 2) princípio da

legalidade, no sentido lato ou no sentido estrito; 3) princípio da

necessidade ou da economia do direito penal; 4) princípio da lesividade

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ou da ofensividade do evento; 5) princípio da materialidade ou da

exteriorização da ação; 6) princípio da culpabilidade ou da

responsabilidade pessoal; 7) princípio da jurisdicionalidade, também no

sentido lato ou no sentido estrito; 8) princípio acusatório ou da

separação entre juiz e acusação; 9) princípio do ônus da prova ou da

verificação; 10) princípio do contraditório ou da defesa, ou da

falseabilidade. (FERRAJOLI, 2014, p. 91).

O Direito Penal deve ser visto como ultima ratio, ou seja, apenas as condutas que

apresentem real lesividade social merecem ser incriminadas, e assim nos informa

Callegari (1998, p. 478):

“Haja vista que o Direito Penal lida com o bem jurídico liberdade, um

dos mais importantes dentre todos, nada mais lógico do que esse ramo

do Direito obrigar-se a dispor das máximas garantias individuais. E

mais, conhecendo o nosso sistema carcerário, fica claro que só

formalmente a atuação do Direito Penal restringe-se à privação da

liberdade. Na prática, a sua ação vai mais além, afetando, muitíssimas

vezes, outros bens jurídicos de extrema importância, como a vida, a

integridade física e a liberdade sexual, verbi gratia; uma vez que no

atual sistema prisional são frequentes as ocorrências de homicídios,

atentados violentos ao pudor, agressões e diversos outros crimes entre

os que ali convivem.”

Note-se que não há como se confundir o garantismo com o abolicionismo penal,

enquanto este se caracteriza por uma ampla liberdade, quase que numa total ausência do

Estado, aquele reage contra o rigor do jus puniendi estatal, ou seja, trata-se aqui de uma

liberdade regrada, um meio termo entre o abolicionismo e o direito penal máximo,

apesar de que ambos convergem no sentido de se insurgir em face do rigorismo, como

esclarece Queiroz (2002, p. 39-40):

Por abolicionismo penal e por minimalismo (ou direito penal mínimo)

consideram-se movimentos de políticas criminais, vertentes da assim

chamada nova criminologia ou criminologia crítica, surgidas nos

Estados Unidos por volta dos anos 60 e 70 que, rompendo com a

criminologia tradicional (a criminologia positiva), e sob o influxo de

teorias sociológicas principalmente, das diversas tendências, contrapõe

ao paradigma “etiológico”, próprio da criminologia positiva, um novo

paradigma, o do “controle”. É natural. Pois, que sob influência comum,

ambos os movimentos, os mais representativos da criminologia

contemporânea, convirjam, em geral, em seus pressupostos e críticas ao

sistema de justiça penal. Coincidem, por motivo vário, [...] quanto à

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“deslegitimidade” (ou ilegitimidade) deste mecanismo formal de

controle social. Ambos são, enfim, movimentos político-criminais

deslegitimadores do sistema penal. Veem, tanto o abolicionismo quanto

o minimalismo, o sistema penal como um subsistema funcional de

reprodução material e ideológica (legitimação) do sistema social global,

é dizer, das relações de poder e da propriedade existentes.

Vê-se assim, que a corrente minimalista trouxe uma proposta emancipatória,

propondo uma utilização sensata do direito penal pelo Estado, optando por deslegitimar,

por exemplo, a função da pena como hoje ela se apresenta.

3.5.2 – Do Direito Penal Máximo

Essa vertente prega a expansão do direito penal, defendendo uma hiperinflação

legislativa no que concerne às normas penais, bem como o recrudescimento das penas e

dos seus regimes de cumprimento.

A ideia de um Direito Penal mais atuante, baseada no atual momento de aumento

da criminalidade, enseja intolerância às práticas delituosas e solidifica a perspectiva de

um sistema penal mais firme e controlador.

Observa-se, portanto, que o direito penal máximo vai de encontro ao pensamento

das correntes abolicionista e minimalista.

Enquanto verificamos as correntes anteriores serem favoráveis à diminuição da

interferência estatal na vida das pessoas, os maximalistas procuram aumentar a tutela

dos bens jurídicos protegidos pelo Direito Penal.

O Direito Penal de Emergência é reflexo desse direito penal máximo, ou seja, em

situações de emergência, de excepcionalidade, tem-se a falsa percepção de que a

utilização do direito penal irá produzir uma solução rápida, mas na verdade, isso não

passa de um efeito meramente simbólico.

É sabido que durante muitos anos, sobretudo nos Estados autoritários, com a

justificativa de manter a segurança nacional, utilizou-se a violência além dos limites

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autorizados pelo Estado de Direito. Hoje, novamente, por meio do absolutismo penal,

retoma-se essa ideia, com a adoção, pelos Estados, de atitudes repressivas e punitivas,

justificando esse abuso de violência pelo mesmo argumento: “segurança nacional”,

visando conter o aumento da criminalidade (CALLEGARI; DUTRA, 2007, p. 433).

Ainda para Callegari; Dutra (2007, p. 433), a pressão da sociedade, amedrontada

com a crescente criminalidade, tem servido como justificativa para o aumento da força

do Estado, o qual passa a exercer o controle penal, criando, como dito alhures, novos

tipos penais, enrijecendo as penas e suprimindo os direitos e garantias constitucionais,

chegando até a se falar de um “direito penal do inimigo”, visando, pura e simplesmente,

conter a criminalidade.

O Direito Penal Máximo permite, portanto, que se violem princípios

constitucionais, em especial o de maior relevância para o sistema penal, o da dignidade

humana.

Segundo Luigi Ferrajoli (2014, p. 102), direito penal máximo, é aquele

incondicionado e ilimitado, é o que se caracteriza, além de sua excessiva severidade,

pela incerteza e imprevisibilidade das condenações e das penas e que,

consequentemente, configura-se como um sistema de poder não controlável

racionalmente em face da ausência de parâmetros certos e racionais de convalidação e

anulação.

E como exemplo mais flagrante desse direito penal máximo temos o Direito Penal

do Inimigo, teoria idealizada por Günter Jakobs, o qual elege “inimigos da sociedade”,

ou seja, aqueles que romperam com o “pacto social”, os quais requerem tratamento

repressivo maior, negando-se a eles diversas garantias processuais, como a ampla

defesa, o contraditório e o devido processo legal, teoria esta que será no próximo

capítulo objeto de estudo.

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4 – O DIREITO PENAL DO INIMIGO

4.1 – Considerações Preliminares

Como já delineado, dentre vários fatores, o aumento absurdo da criminalidade na

atualidade e a deficiência estatal em conter esse avanço da violência, acabou na

sociedade contemporânea, desviando o foco do direito penal, relegando seu papel de

pacificação social e se centrando pura e simplesmente na proteção da norma, como

veremos.

Consequência direta desse fenômeno é a proliferação desenfreada de leis penais,

como bem acentua Cancio Meliá (2007, p. 55-56):

As características principais da política criminal praticada nos últimos

anos podem resumir-se no conceito da “expansão” do direito penal.

Efetivamente, no momento atual pode ser adequado que o fenômeno

mais destacado na evolução atual das legislações penais do “mundo

ocidental” está no surgimento de setores inteiros de regulação,

acompanhada de uma atividade de reforma de tipos penais já existentes,

realizada a um ritmo muito superior ao de épocas anteriores.

De forma também esclarecedora, Gracia Martin nos fala:

En los últimos años, la doctrina del Derecho penal dirige su mirada a

ciertas regulaciones del Derecho positivo que parecen diferenciarse del

Derecho penal general en virtud de determinadas características

peculiares, las cuales motivarían o podrían motivar su agrupamiento e

individualización como un particular corpus punitivo que podría

identificarse con la denominación “Derecho penal del enemigo”. Desde

una perspectiva general, se podría decir que este Derecho penal del

enemigo sería una clara manifestación de los rasgos característicos del

llamado Derecho penal moderno, es decir, de la actual tendencia

expansiva del Derecho penal que, en general, da lugar, formalmente, a

una ampliación de los ámbitos de intervención de aquél, y

materialmente, según la opinión mayoritaria, a un desconocimiento, o

por lo menos a una clara flexibilización o relajación y, con ello, a un

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menoscabo de los principios y de las garantías jurídico-penales liberales

del Estado de Derecho16

Em virtude disso, o modelo clássico, tal qual como pensado, ou pelo menos

imaginado durante os últimos séculos, vem sendo substituído por um direito penal

simbólico.

E foi nesse ambiente que surgiu a teoria do direito penal do inimigo, aquela que,

muito provavelmente, nas últimas décadas, foi a teoria que mais causou polêmica no

seio da comunidade jurídica, despertando, em sua grande maioria, reações críticas

baseadas, principalmente, no fundamento de que seria ela incompatível com um Estado

de Direito, e também que seria uma prática de disseminação do medo.

Segundo Zaffaroni (2006, p. 9), a atual situação do planeta revela, em toda sua

crueza, uma contradição17

, provocando um grande transtorno na doutrina, uma vez que,

de uma vez só desnuda o fenômeno de todas as roupagens que o ocultaram até hoje, e

revela, como nunca acontecera antes, que a secular tradição legitimadora do exercício

estruturalmente discriminatório do poder punitivo operou como fissura absolutista no

Estado constitucional de direito.

E prossegue Zaffaroni (2006, p. 11):

“Na teoria política, o tratamento diferenciado de seres humanos

privados do caráter de pessoas (inimigos da sociedade) é próprio do

Estado Absoluto que, por sua essência, não admite gradações...”

Diante desses aspectos, revela-se de extrema importância que se compreenda, ou

pelo menos, frente à complexidade da questão, que se tente compreender o que de fato

Günther Jakobs sugere com a Teoria do Direito Penal do Inimigo.

4.2 – Análise da Teoria do Direito Penal do Inimigo de Günther Jakobs

16GRACIA MARTIN, Luis. Consideraciones críticas sobre el actualmente denominado “Derecho penal del

enemigo”. Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminologia (em línea). 2005. Núm. 07-02, p. 02:1-02:43.

Disponivel em http://criminet.ugr.es/recpc/07/recpc07-02.pdf. Acesso em: 05 de janeiro de 2016. 17

Para Zaffaroni (2006, p. 9), o tratamento diferenciado conferido a determinadas pessoas provocou uma

contradição entre a doutrina penal e a política do Estado Constitucional de Direito, uma vez que esta não admite

sequer uma clara situação bélica, pois implicaria no abandono do Estado de Direito e passaria ao de Polícia, o

que deslizaria rapidamente para um Estado Absoluto.

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Essa teoria foi exposta por Günther Jakobs ao mundo em 1999, em Berlim,

durante uma conferência no Congresso realizado em outubro sobre “Os desafios da

ciência do direito penal frente ao futuro”. (CONDE, 2012, p. 25).

Nesse Congresso, como bem salienta Conde (2012, p. 25), Jakobs afirmou que, ao

lado de um direito penal cujo único objetivo é promover a segurança normativa, havia

outro direito penal, um direito penal do inimigo (Feindstrafrecht), pelo qual o Estado

diante de determinados sujeitos, que de forma grave e reiterada se comportam

contrariamente às normas básicas, tem que reagir de forma mais contundente.

Essa idealização de Jakobs de um direito penal do inimigo, como acentua Conde

(2012, p. 26), talvez não tivesse passado de uma discussão puramente acadêmica se os

fatos que se sucederam após o seu discurso não viessem a respaldar sua teoria, como por

exemplo os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 em Nova Iorque e o de 7 de

julho de 2005 ao metrô de Londres.

Jakobs desenvolveu um funcionalismo sistêmico baseado na teoria dos sistemas

de Niklas Lhumannn, estabelecendo que a função primordial da pena é a manutenção da

norma, colocando a estabilidade do ordenamento como principal objetivo da aplicação

do sistema jurídico.

Como explica Bitencourt (2014, p. 125):

Jakobs, por sua vez, incorporando fundamentalmente a teoria dos

sistemas sociais de Luhmann, concebe o Direito Penal como um sistema

normativo fechado, autorreferente (autopoiético) e limita a dogmática

jurídico-penal à análise normativo-funcional do Direito Positivo, em

função da finalidade de prevenção geral positiva da pena, com a

exclusão de considerações empíricas não normativas de valorações

externas ao sistema jurídico positivo.

Conforme se extrai da análise do funcionalismo sistêmico de Jakobs, pode ser

explicado como aquele que não concebe influências externas, não esbarra em limitações

materiais que não seja do próprio sistema, o autor crê na ideia de que a principal

finalidade da pena é mesmo a de reafirmar a vigência da norma.

4.2.1 – Suporte Filosófico

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A teoria do direito penal do inimigo aparece, como dito alhures, como fiel retrato

da vertente maximalista do direito penal.

Consoante se observará adiante, Günther Jakobs deixa bem claro que dentro de

um mesmo ordenamento devem existir duas espécies de direito penal, aquele

denominado de Direito Penal do Cidadão e o chamado Direito Penal do Inimigo. No

primeiro são observadas todas as garantias constitucionais e processuais; já no que

concerne ao segundo, estas seriam reduzidas ou até mesmo suprimidas, cujos detalhes

serão abordados em tópico próprio.

Acontece, entretanto, que essa abordagem distinguindo cidadão de inimigo,

dando-se consequentemente tratamentos distintos, não surgiu com a teoria de Jakobs,

muito antes dela, aqueles que atentavam contra a existência do Estado já recebiam

tratamento diferenciado.

A teoria de Günther Jakobs, apesar de afirmar não seguir in totum a concepção

abstrata proposta por Rousseau e Fichte (2007, p. 26), possui como suporte filosófico

contratualistas como os já citados, como também Hobbes e Kant.

Acerca dessa ideia de contrato, depreende-se que os cidadãos renunciam parte de

sua liberdade e a transferem para uma autoridade – o Estado. Há uma transição do

Estado de natureza para um Estado Político e, nessa linha, aquele que se volta contra as

bases desse Contrato Social firmado, não merece o status de cidadão, deve ser

caracterizado como inimigo.

Em várias passagens de sua obra – Direito Penal do Inimigo – Jakobs (2007, p.

25) deixa clara a influência dos filósofos contratualistas, como se vê:

São especialmente aqueles autores que fundamentam o Estado de modo

estrito, mediante um contrato, entendem o delito no sentido de que o

delinquente infringe o contrato, de maneira que já não participa dos

benefícios deste: a partir desse momento, já não vive com os demais

dentro de uma relação jurídica.

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Rousseau (1712-1778) afirma que qualquer malfeitor que ataque o direito social

deixa de ser membro do Estado, posto que se encontra em guerra com este, como

demonstra a pena pronunciada contra o malfeitor, e prossegue afirmando que a

consequência diz que: “ao culpado se lhe faz morrer mais como inimigo que como

cidadão”.

E mais, Fichte (1762-1814) afirma que “quem abandona o contrato cidadão em

um ponto em que no contrato se encontrava sua prudência, seja no modo voluntário ou

por imprevisão, em sentido estrito perde todos os seus direitos como cidadão e como ser

humano e passa a um estado de ausência completa de direitos”.

Hobbes (1984, apud Jakobs 2007, p. 27) revela que o delinquente, em princípio,

mantém em sua função de cidadão: o cidadão não pode eliminar, por si mesmo seu

status. Entretanto, a situação é distinta quando se trata de uma rebelião, isto é, de alta

traição: “pois a natureza deste crime está na rescisão da submissão, o que significa uma

recaída no estado de natureza... E aqueles que incorrem em tal delito não são castigados

como súditos, mas como inimigos”.

Ao retratar o pensamento de Kant em sua obra Sobre a paz eterna, Jakobs assim

nos fala:

Consequentemente, quem não participa da vida em um estado

comunitário-legal, deve retirar-se, o que significa que é expelido (ou

impelido à custódia de segurança); em todo caso, não há que ser tratado

como pessoa, mas pode ser tratado como anota expressamente Kant,

como um inimigo.( JAKOBS, 2007, pags. 28/29).

Como se observa, extraindo-se do pensamento dos contratualistas acima elencados, vê-se

mais precisamente em Hobbes e Kant, a base filosófica mais patente, uma vez que, como se

abordará adiante, inimigo não é todo aquele que pratica crimes, mas sim aqueles que atentam

contra a existência do próprio Estado, aqueles que vão de encontro à ordem social.

4.2.2 – O inimigo em Jakobs

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Na teoria apresentada por Günther Jakobs, fica clara a distinção entre pessoa e

não pessoa, entre cidadão e inimigo. Em razão desse fato é mister tentar buscar dentro

do direito penal do inimigo quem seria o destinatário dessas normas mais duras.

Em todo caso, o antigo truque de transformar os inimigos em seres

que, por sua maldade, não preenchem o conceito de humanidade,

continua vigente. (GALLARDO, 2014, p. 26)

Pois bem, para o próprio Jakobs (2007, p. 42), o inimigo seria:

[...] quem por princípio se conduz de modo desviado, não oferece

garantia de um comportamento pessoal. Por isso, não pode esperar ser

tratado como pessoa, mas o Estado não deve tratá-lo como pessoa, já

que do contrário vulneraria o direito à segurança das demais pessoas.

Para Sanchez (2013, p.149):

[…] O Inimigo é um indivíduo que, mediante seu comportamento, sua

ocupação profissional ou, principalmente mediante sua vinculação a

uma organização abandonou o Direito de modo supostamente duradouro

e não somente de maneira incidental. Em todo caso, é alguém que não

garante mínima segurança cognitiva de seu comportamento pessoal e

manifesta esse déficit por meio de sua conduta.

Ainda para Sanchez (2013, p.149), a caracterização do inimigo seria produzida

mediante a reincidência, a habitualidade, a delinquência profissional e pela integração

em organizações delitivas estruturadas.

Nota-se claramente que o conceito de inimigo de Jakobs não é político ou

religioso, mas normativo, ou seja, para Jakobs (2007, p. 29), citando Hobbes e Kant que,

como visto, conhecem um direito penal do cidadão para aqueles que não delinquem de

modo persistente, há também um direito penal do inimigo contra quem se desvia da

norma por princípio.

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Zaffaroni (2006, p. 18) em perfeita definição do inimigo, afirma que seria aquele

a quem o direito negou a qualidade de pessoa, só sendo considerado sob o aspecto de ser

daninho, perigoso.

Como se evidencia pelo até agora visto, não é todo delinquente que é

categorizado como inimigo. Esse atributo somente é imputado àquele que se afasta do

direito, ou seja, em face daquele que não mais reconhece o Estado como terceiro capaz

de promover a pacificação social e atenta contra sua própria existência.

O inimigo não tolera ou mesmo não reconhece as normas jurídicas, e opta por não

prestar uma segurança cognitiva, ou seja, o inimigo não é taxado somente pelo que fez

ou está prestes a fazer, ele é assim considerado pelo que representa para a sociedade,

diga-se, como um ser perigoso que dever ser banido do convívio social.

Os inimigos na sociedade moderna, como assevera Luiz Gracia Martin18

, seriam

os terroristas, os integrantes de organizações criminosas, traficantes de pessoas etc.,

como se vê:

Diferentes de los ciudadanos que han cometido un hecho delictivo son

los enemigos. Estos son individuos que en su actitud, en su vida

económica o mediante su incorporación a una organización, se han

apartado del Derecho presumiblemente de un modo duradero y no sólo

de manera incidental, y por ello, no garantizan la mínima seguridad

cognitiva de un comportamiento personal y demuestran este déficit por

medio de su comportamiento. Las actividades y la ocupación

profesional de tales individuos no tienen lugar en el ámbito de

relaciones sociales reconocidas como legítimas, sino que aquéllas son

más bien la expresión y el exponente de la vinculación de tales

individuos a una organización estructurada que opera al margen del

Derecho y que está dedicada a actividades inequívocamente

“delictivas”. Este es el caso, por ejemplo, de los individuos que

pertenecen a organizaciones terroristas, de narcotráfico, de tráfico de

personas, etc. y, en general, de quienes llevan a cabo actividades típicas

de la llamada criminalidad organizada.

Como se infere, evidenciando o dito anteriormente, Bitencourt (2014, p. 126)

retratando o pensamento de Jakobs assevera que para este autor o verdadeiro bem

jurídico penal a ser protegido é a validez fática das normas, porque somente assim se

18GRACIA MARTIN, Luis. Consideraciones críticas sobre el actualmente denominado “Derecho penal del

enemigo”. Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminologia (em línea). 2005. Núm. 07-02, p. 02:1-02:43.

Disponível em http://criminet.ugr.es/recpc/07/recpc07-02.pdf. Acesso em: 05 de janeiro de 2016.

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pode esperar o respeito aos bens que interessam ao indivíduo e à sociedade, e que esses

indivíduos considerados inimigos que reconhecem como legítimas.

4.2.3 - Características do Direito Penal do Inimigo

Ultrapassada essa fase inicial de se saber quem seria o inimigo para Jakobs, faz -se

necessário reconhecer de que modo essas normas se revelam dentro do ordenamento

jurídico.

Conforme já delineado, Conde (2012, p. 25) revela que Jakobs admite nas

sociedades atuais, junto a um direito penal dirigido à única tarefa de restabelecer através

da sanção punitiva a vigência da norma violada pelo delinquente e a confiança dos

cidadãos no Direito (segurança normativa), havia outro direito penal, um direito penal

que diante de determinados sujeitos que ameaçam o sistema, tem que reagir de forma

mais contundente visando a segurança cognitiva.

Nota-se então que ao querer preservar a confiança na norma e não apenas tentar

restaurar essa confiança depois de violada, a concepção de Jakobs (2007, p. 44) é

voltada para um direito penal prospectivo, ou seja, para ele o ponto de partida ao qual se

ata a regulação para o inimigo é a conduta não realizada, mas só planejada, isto é, não o

dano à vigência da norma que tenha sido realizado, mas o fato futuro.

Aliado a esse aspecto prospectivo do direito penal do inimigo, encontra-se o fato

de que, como bem salienta Conde (2012, p.25), no direito penal do inimigo, o Estado

para lutar eficazmente contra o inimigo impõe penas desproporcionais e draconianas,

penaliza condutas inócuas em si mesmas e elimina ou reduz ao mínimo certas garantias

e direitos do imputado no processo penal, estando aqui, o principal foco das críticas da

teoria de Jakobs.

Como se observou, algumas características exsurgem de modo acentuado como a

antecipação da punição, uma vez que criam-se tipos penais que tipificam atos

meramente preparatórios, aliada a essa característica temos também a imposição de

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penas consideradas cruéis, bem como a diminuição ou mesmo a supressão de garantias

penais e processuais.

Cancio Meliá (2007, p. 67), corroborando o anteriormente dito, ressalta que o

Direito Penal do Inimigo de Günther Jakobs se caracteriza por três elementos, a saber:

[...] em primeiro lugar, constata-se um amplo adiantamento da

punibilidade, isto é, que neste âmbito, a perspectiva do ordenamento

jurídico-penal é prospectiva (ponto de referência: o fato futuro), no

lugar de – como é o habitual – retrospectiva (ponto de referência: o fato

cometido). Em segundo lugar, as penas previstas são

desproporcionalmente altas: especialmente, a antecipação da barreira de

punição não é considerada para reduzir, correspondentemente, a pena

cominada. Em terceiro lugar, determinadas garantias processuais são

relativizadas ou inclusive suprimidas.

Com notória propriedade, afirma Luis Gracia Martin19

no que concerne às

principais características da teoria de Jakobs:

La particular y distinta finalidad del Derecho penal del enemigo tiene

que dar lugar también, por fuerza, a una diferencia en sus principios

constitutivos y en sus reglas operativas con respecto al Derecho penal

del ciudadano. En concreto, en el Derecho penal del enemigo se

renuncia a las garantías materiales y procesales del Derecho penal de la

normalidad41. Estos principios y reglas propios del Derecho penal del

enemigo vendrían impuestos por el significado de las circunstancias

fácticas que caracterizan la actividad y la posición del enemigo frente a

la sociedad y se configurarían como instrumentos adecuados al fin de la

prevención del peligro que representa el enemigo, el cual sólo se puede

alcanzar mediante su vencimiento o eliminación en la guerra desatada

entre él y el Estado, y mediante su inocuización42 . Para hacer frente a

los enemigos se recurre en las sociedades modernas a regulaciones de

características tales que permitirían identificarlas como típicas de un

Derecho penal del enemigo43 . 1) Una primera manifestación de éste

está representada por aquellos tipos penales que anticipan la punibilidad

a actos que sólo tienen el carácter de preparatorios de hechos futuros44.

Estos tipos toman como base los datos específicos de abandono

permanente del Derecho y de amenaza permanente a los principios

básicos de la sociedad (falta de seguridad cognitiva) y su contenido ya

no es la comisión de hechos delictivos concretos y determinados, sino

cualquier conducta informada y motivada por la pertenencia a la

organización que opera fuera del Derecho. Mediante tales tipos se

19 GRACIA MARTIN, Luis. Consideraciones críticas sobre el actualmente denominado “Derecho penal del

enemigo”. Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminologia (em línea). 2005. Núm. 07-02, p. 02:1-02:43.

Disponível em http://criminet.ugr.es/recpc/07/recpc07-02.pdf. Acesso em: 05 de janeiro de 2016.

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criminalizan conductas que tienen lugar en un ámbito previo a la

comisión de cualquier hecho delictivo en razón de la falta de seguridad

cognitiva que se supone en quienes actúan de cualquier modo en dicho

ámbito previo 45, o de conductas que simplemente favorecen la

existencia de una organización criminal y alimentan su subsistencia y

permanência.

Observamos que normas penais com essas características saltam aos olhos dentro

de vários ordenamentos jurídicos dos mais diversos países, a exemplo dos Estados

Unidos, Espanha, dentre tantos outros e, como se verá, mais particularmente, no Brasil.

4.2.4 - O Direito Penal do Inimigo no ordenamento jurídico brasileiro

Franciso Munoz Conde em sua obra Direito Penal do Inimigo (2012, p. 28),

afirma que ninguém nega a existência deste nos ordenamentos jurídicos atuais.

Ainda, quando se pensa em direito penal do inimigo vem logo à mente como

exemplo de normas desse jaez, como exemplifica Agamben (2011, p;16) o chamado

USA Patriot Act, promulgado pelo Senado no dia 26 de outubro de 2001, logo após os

atentados terroristas ocorridos em setembro do mesmo ano, o qual permite manter preso

estrangeiro suspeito de atividades que ponham em perigo a segurança nacional dos

EUA.

Contudo, o direito penal do inimigo não está presente só na legislação estrangeira,

no ordenamento jurídico brasileiro ele se revela bastante flagrante em diversas

passagens.

Como exemplo de um típico direito penal do inimigo temos o RDD – Regime

Disciplinar Diferenciado, instituto introduzido pela Lei nº 10.792/2003, que modificou a

Lei de Execuções Penais (Lei nº 7.210/84).

Em breve síntese, o regime disciplinar diferenciado caracteriza-se por impor ao

detento uma restrição maior à sua liberdade, evitando contato com outros presos,

restringindo contato com familiares, enfim, tolhendo ainda mais direitos que já foram

castrados quando de sua imposição ao cárcere.

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Parte da doutrina brasileira avaliza esse instituto, priorizando a segurança nos

estabelecimentos prisionais, e, principalmente, a ordem pública, como afirma Mirabete

(2004, p. 151)

Exige-se, portanto, que o preso apresente alto risco para a ordem e

segurança do estabelecimento penal, no sentido de que sua permanência

no regime comum possa ensejar a ocorrência de motins, rebeliões, lutas

entre facções, subversão coletiva da ordem ou a prática de crimes no

interior do estabelecimento em que se encontra ou no sistema prisional,

ou então, que, mesmo preso, possa liderar ou concorrer para a prática de

infrações penais no mundo exterior, por integrar quadrilha, bando ou

organização criminosa. Por coerência, dada a natureza cautelar da

medida, o alto risco mencionado no §1º deve estar presente também na

hipótese regulada no §2º do art. 52.

Outro exemplo é a possibilidade de prisão preventiva constante no art. 312 do

Código de Processo Penal, que permite encarcerar fundamentando tão somente na

garantia da ordem pública, utilizando como critério o grau de periculosidade do agente:

Art. 312 – A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da

ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução

criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver

prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.

Esse instituto, segundo uma visão garantista, ofende, entre outros aspectos, a

paridade de armas entre a defesa e a acusação, e garante ao indivíduo uma prisão sem

culpa, como assevera Ferrajoli (2014, p. 505):

Se a jurisdição é a atividade necessária para obter a prova de que um

sujeito cometeu um crime, desde que tal prova não tenha sido

encontrada mediante um juízo regular, nenhum delito pode ser

considerado cometido e nenhum sujeito pode ser reputado culpado nem

submetido à pena.

O Código Penal Brasileiro (Decreto-Lei nº 2848/40) em diversas passagens possui

um direito penal do inimigo, a exemplo da reincidência e crimes que antecipam a

punibilidade a uma fase anterior ao seu cometimento, como se observa:

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Art. 61 - São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando

não constituem ou qualificam o crime:

I - a reincidência

Art. 288. Associarem-se 3 (três) ou mais pessoas, para o fim

específico de cometer crimes.

Art. 288-A. Constituir, organizar, integrar, manter ou custear

organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão com a

finalidade de praticar qualquer dos crimes previstos neste Código.

Por óbvio que resta demonstrado à saciedade a presença do direito penal do

inimigo no ordenamento jurídico brasileiro, inobstante a certeza de que muitos outros

exemplos existem, e ainda hoje mais são editados.

Urge também esclarecer que todas as normas supra elencadas se encontram em

perfeita vigência dentro do Estado Democrático de Direito Brasileiro, e, como dito, mais

continuam a ser editadas, a exemplo das Leis nºs 12.654/12 e 12.850/13, a seguir

analisadas.

4.2.4.1 – A edição da Lei nº 12.654/12 e o surgimento de um novo processo de

escolha de inimigos no Brasil

A Lei nº 12.654/12 introduziu no ordenamento jurídico brasileiro a

possibilidade de se colher materiais genéticos e utilizá-los no âmbito da persecução

criminal, bem como para se traçar perfil de indivíduos condenados por determinados

crimes.

Não há um direito absoluto para negar a utilização do corpo humano

como prova, a não ser quando isso se faça de modo coercitivo e

violador da dignidade humana. (CARVALHO, 2014, p. 99).

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O mencionado diploma promoveu alterações no âmbito da Lei nº 12.037/09,

bem como na Lei nº 7.210/84. A primeira regula o processo de identificação criminal e,

a segunda, a lei de execução penal.

Sobre sua utilização durante a persecução criminal, foi acrescentado um

parágrafo único ao art. 5º da Lei nº 12.037/09, que diz o seguinte:

Art. 5o.......................................................................

Parágrafo único. Na hipótese do inciso IV do art. 3o, a identificação

criminal poderá incluir a coleta de material biológico para a obtenção

do perfil genético.

A Lei de Execução Penal ganhou um novo artigo, conforme transcrição a seguir:

Art. 9o-A. Os condenados por crime praticado, dolosamente, com

violência de natureza grave contra pessoa, ou por qualquer dos crimes

previstos no art. 1o da Lei n

o 8.072, de 25 de julho de 1990, serão

submetidos, obrigatoriamente, à identificação do perfil genético,

mediante extração de DNA - ácido desoxirribonucleico, por técnica

adequada e indolor.

§ 1o A identificação do perfil genético será armazenada em banco de

dados sigiloso, conforme regulamento a ser expedido pelo Poder

Executivo.

§ 2o A autoridade policial, federal ou estadual, poderá requerer ao juiz

competente, no caso de inquérito instaurado, o acesso ao banco de

dados de identificação de perfil genético.

Como se observou, a identificação criminal poderá incluir a coleta de material

biológico para obtenção do perfil genético quando for essencial às investigações

policiais, segundo despacho da autoridade judiciária competente, que decidirá de ofício

ou mediante representação da autoridade policial, do Ministério Público ou da defesa.

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Os dados biológicos deverão ser armazenados em banco de dados de perfis

genéticos, gerenciado por unidade oficial de perícia criminal, e terão caráter sigiloso,

sob pena de responsabilidade civil, criminal e administrativa.

Com relação aos condenados por crime praticado dolosamente, com violência de

natureza grave contra pessoa, ou por qualquer crime hediondo, estes serão submetidos,

obrigatoriamente, à identificação do perfil genético, mediante extração de DNA, por

técnica adequada e indolor.

No que diz respeito ao primeiro aspecto, realização de identificação criminal,

observa-se desde já que o legislador andou na contramão do que apregoa o princípio da

dignidade da pessoa humana, uma vez que, como se sabe, a Constituição Federal

considera esse meio de identificação como medida excepcional, priorizando a

identificação civil, senão vejamos:

art. 5º.

LVIII - o civilmente identificado não será submetido a identificação

criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei.

Verifica-se desde logo que o constituinte optou por priorizar a identificação

civil do indivíduo, uma vez que respeita a dignidade da pessoa humana, mormente no

que diz respeito à sua intimidade.

A identificação criminal, antes mesmo do advento da Lei 12.654/12, já era

tratada como uma opção mais invasiva e menos respeitadora dos direitos individuais,

razão pela qual só se admitia sua utilização em hipóteses excepcionais e, observe-se, que

ainda não se estava cogitando em coleta de material genético, e sim apenas do processo

datiloscópico e fotográfico.

Com a possibilidade, hoje, de se fazer a identificação criminal também através

da coleta de material genético, verifica-se que o legislador desprezou princípios

fundamentais, ensejando uma interferência cada vez maior na esfera privada do

indivíduo.

Além da violação desses preceitos que têm sido respeitados pelo Supremo

Tribunal Federal, a lei chega a ser inconstitucional por ser lacunosa, quando trata do

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procedimento de antecipação de prova, porque não traça as regras básicas para tal

procedimento e não prevê solução para a recusa do indiciado em fornecer o material

genético.

Com maior gravidade, e aí revelando-se uma verdadeira seleção de “inimigos”

estatais, temos a previsão do art. 3º da mencionada lei, já transcrito anteriomente que

determina que aqueles que forem condenados por crime praticado dolosamente, com

violência de natureza grave contra pessoa, ou por qualquer crime hediondo, serão

submetidos, obrigatoriamente, à identificação do perfil genético, mediante extração de

DNA.

Como se vê, aqueles que cometeram os crimes mencionados no art. 3º da Lei

12.654/12, serão obrigados a colher material para se traçar um perfil genético, ou seja,

nos deparamos aqui com uma versão moderna daquilo que em tempos mais remotos

Lombroso logrou fazer, quando, estudando características de indivíduos encarcerados,

quis traçar um perfil dos criminosos da época.

Como se observa, o Estado elegeu os inimigos, aqueles que têm que ser

combatidos a qualquer preço, violando os princípios mais comezinhos que qualquer

Estado que se auto intitule Democrático de Direito deve obedecer.

Ademais, por mais que se avance no campo da ciência, existem aspectos que

interferem diretamente na confiabilidade do procedimento de coleta, tais como o fato de

que, muito embora resistente, o vestígio biológico está sujeito a alterações, mormente

quando de sua manipulação que, como se sabe, submete-se às mais diversas intempéries.

Verifica-se assim que, a pretexto da identificação de acusados, trata-se sim, de

um novo processo de escolha dos inimigos, utilizando-se de material genético para se

construir um banco de dados que permita, antecipadamente, localizar possíveis

destinatários da sanha incriminalizadora do Estado.

Observa-se também, que aos condenados por crime praticado dolosamente, com

violência de natureza grave contra pessoa, ou por qualquer crime hediondo, estes serão

submetidos, obrigatoriamente, à identificação do perfil genético, mediante extração de

DNA, por técnica adequada e indolor.

Conclui-se então que o condenado não poderá se negar a fornecer material

genético, ante a obrigatoriedade prevista no novel art. 9A da Lei de Execução Penal

introduzido pela Lei nº 12.654/12.

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Diante desse fato, verifica-se clara a incongruência da norma com o princípio

que garante a possibilidade de não fornecer prova contra si mesmo, decorrência do

próprio direito ao silêncio garantido constitucionalmente no art. 5º, LXIII, como se vê:

Art. 5º.

LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de

permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de

advogado.”

O direito ao silêncio, como anuncia Pacelli (2013, p.383), tem raízes na Idade

Média e início da Renascença, é a versão do privilege against self-incrimation do

Direito anglo-americano.

Ainda segundo Pacelli (2013, p. 384), esse princípio atua também na tutela da

integridade física do réu, na medida em que autoriza expressamente a não participação

na formação da culpa.

Como bem salienta Silva (2012, p.71), a intervenção corporal demanda a

participação física da pessoa em um procedimento cujo resultado pode ensejar uma

condenação, de maneira que o indivíduo estaria cooperando coercitivamente com uma

atividade conflitante com os seus interesses.

O Supremo Tribunal Federal, no que diz respeito ao princípio da não

autoincriminação, por diversas vezes já considerou legítimo o direito do indiciado de

não contribuir com as investigações, a fim de não produzir provas contra si próprio,

como se vê:

STF HABEAS CORPUS nº 96219/SP

Data de publicação: 15/10/2008

“[...] Em virtude do princípio constitucional que protege qualquer

pessoa contra a autoincriminação, ninguém pode ser constrangido a

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produzir provas contra si próprio [...], tanto quanto o Estado, em

decorrência desse mesmo postulado, não tem o direito de tratar

suspeitos, indiciados ou réus como se culpados (já) fossem [...]. Tais

consequências ' direito individual de não produzir provas contra si

mesmo, de um lado, e obrigação estatal de não tratar qualquer pessoa

como culpada antes do trânsito em julgado da condenação penal, de

outro ' qualificam-se como direta emanação da presunção de inocência,

hoje expressamente contemplada no texto da vigente Constituição da

República (CF, art. 5º, inciso LVII). Não se pode desconhecer, por

relevante, que a presunção de inocência, além de representar importante

garantia constitucional estabelecida em favor de qualquer pessoa, não

obstante a gravidade do delito por ela supostamente cometido, também

impõe significativa limitação ao poder do Estado, pois impede-o de

formular, de modo abstrato, e por antecipação, juízo de culpabilidade

contra aquele que ainda não sofreu condenação criminal transitada em

julgado. Na realidade, ao delinear um círculo de proteção em torno da

pessoa do réu - que nunca se presume culpado, até que sobrevenha

irrecorrível sentença condenatória -, o processo penal revela-se

instrumento que inibe a opressão estatal e que, condicionado por

parâmetros ético-jurídicos, impõe, ao órgão acusador, o ônus integral da

prova, ao mesmo tempo em que faculta, ao acusado, que jamais

necessita demonstrar a sua inocência, o direito de defender-se e de

questionar, criticamente, sob a égide do contraditório, todos os

elementos probatórios produzidos pelo Ministério Público. [...]”.

STF - HABEAS CORPUS HC 77135 SP (STF)

Data de publicação: 06/11/1998

“Ementa: HABEAS CORPUS. CRIME DE DESOBEDIÊNCIA.

RECUSA A FORNECER PADRÕES GRÁFICOS DO PRÓPRIO

PUNHO, PARA EXAMES PERICIAIS, VISANDO A INSTRUIR

PROCEDIMENTO INVESTIGATÓRIO DO CRIME DE

FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO. NEMO TENETUR SE

DETEGERE. Diante do princípio nemo tenetur se detegere, que informa

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o nosso direito de punir, é fora de dúvida que o dispositivo do inciso IV

do art. 174 do Código de Processo Penal há de ser interpretado no

sentido de não poder ser o indiciado compelido a fornecer padrões

gráficos do próprio punho, para os exames periciais, cabendo apenas ser

intimado para fazê-lo a seu alvedrio. É que a comparação gráfica

configura ato de caráter essencialmente probatório, não se podendo, em

face do privilégio de que desfruta o indiciado contra a

autoincriminação, obrigar o suposto autor do delito a fornecer prova

capaz de levar à caracterização de sua culpa. Assim, pode a autoridade

não só fazer requisição a arquivos ou estabelecimentos públicos, onde

se encontrem documentos da pessoa a qual é atribuída a letra, ou

proceder a exame no próprio lugar onde se encontrar o documento em

questão, ou ainda, é certo, proceder à colheita de material, para o que

intimará a pessoa, a quem se atribui ou pode ser atribuído o escrito, a

escrever o que lhe for ditado, não lhe cabendo, entretanto, ordenar que o

faça, sob pena de desobediência, como deixa transparecer, a um

apressado exame, o CPP , no inciso IV do art. 174 . Habeas corpus

concedido.”

STF - HABEAS CORPUS HC 83096 RJ (STF)

Data de publicação: 12/12/2003

“Ementa: HABEAS CORPUS. DENÚNCIA. ART. 14 DA LEI Nº 6.368

/76. REQUERIMENTO, PELA DEFESA, DE PERÍCIA DE

CONFRONTO DE VOZ EM GRAVAÇÃO DE ESCUTA

TELEFÔNICA. DEFERIMENTO PELO JUIZ. FATO

SUPERVENIENTE. PEDIDO DE DESISTÊNCIA PELA PRODUÇÃO

DA PROVA INDEFERIDO. 1. O privilégio contra a autoincriminação,

garantia constitucional, permite ao paciente o exercício do direito de

silêncio, não estando, por essa razão, obrigado a fornecer os padrões

vocais necessários a subsidiar prova pericial que entende lhe ser

desfavorável. 2. Ordem deferida, em parte, apenas para, confirmando a

medida liminar, assegurar ao paciente o exercício do direito de silêncio,

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do qual deverá ser formalmente advertido e documentado pela

autoridade designada para a realização da perícia.”

Depreende-se assim, diante do princípio que veda a autoincriminação, que a

inovação trazida pela Lei nº 12.654/12 que prevê a obrigatoriedade do fornecimento de

material genético, nos moldes como atualmente traçada, há de ser revista, uma vez que

deve prevalecer a autonomia da vontade do condenado.

Ainda analisando a Lei nº 12.654/12, foi trazido para o ordenamento jurídico

brasileiro a possibilidade de se impor àquele que foi condenado por crimes violentos

contra a pessoa, bem como aqueles previstos no art. 1º da Lei de Crimes Hediondos

(8.072/90) a obrigação de fornecer material genético com o fito de traçar seu perfil.

Pois bem, a norma penal em comento, em seu art. 3º já transcrito, exige a coleta

de material genético de indivíduos que já se submeteram a um processo judicial,

sofreram uma condenação definitiva, não havendo nada mais a se provar, logo, indaga-

se com que intuito o Estado o obriga a fornecer material para que se trace seu perfil

genético? A resposta que se revela mais plausível é a de que referido material por certo

será utilizado em processo-crime futuro!!!!!

Como se observa, não bastasse a ofensa patente à autonomia privada do

condenado, a partir do momento em que é obrigado a fornecer material genético contra

sua vontade quando já não há mais processo tramitando, ou seja, não há nada mais a se

apurar ante a existência de decisão condenatória definitiva, a coleta de material se

constitui em flagrante prova pré-constituída a ser utilizada em processo ainda

inexistente.

A Constituição Federal em seu art. 5º, LVII, dispõe que ninguém será

considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, erigindo

como direito fundamental o de ser presumidamente inocente aquele que ainda não tem

contra si uma sentença penal condenatória. Trata-se, no dizer de Avena (2012, p. 27), de

um desdobramento do devido processo legal, consagrando-se como um dos mais

importantes alicerces do Estado de Direito.

A partir do momento em que conste num banco de dados informações sobre

indivíduos já condenados, por certo que futura utilização dessas informações gerará uma

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efetiva presunção de culpabilidade, o que não se coaduna com um Estado Democrático

de Direito.

Nota-se pelo exposto e sem a necessidade de maiores digressões, que a Lei nº

12.654/12, tal como atualmente configurada, apresenta-se como uma norma violadora de

princípios, entre os quais e de maneira mais aparente o da dignidade da pessoa humana,

da presunção de inocência e o “Nemo tenetur se detegere” que impõe que o indivíduo

tem o direito de não contrair prova contra si mesmo, bem como viola a própria

autonomia da vontade.

Observa-se também que o novo diploma traz lacunas em seu bojo que merecem

ser sanadas, tais como a inexistência de regulação em caso de eventual recusa do

fornecimento do material genético por parte do condenado, além de se afigurar

extremamente desproporcional quando confrontada com determinados tipos penais

praticados sem violência ou grave ameaça.

Ora, posta da forma como o foi, revela-se a Lei nº 12.654/12 como um flagrante

exemplo de um direito penal simbólico, sendo ilógico conceber por parte do Estado que,

na busca de promover uma falsa sensação de segurança para a sociedade, que se utilize

de meios que violem a intimidade do cidadão, sua honra, sua imagem, seu direito de não

ser considerado um não cidadão.

Na forma em que se apresenta, se revela atentatória à dignidade da pessoa

humana, e por ser desproporcional ao submeter todos os condenados por crimes

hediondos e crimes dolosos violentos, de maneira genérica, à coleta de material

genético, apresenta-se como uma norma que mais condiz com Estados Totalitários, que

acabam por eleger seus próprios inimigos.

Não se trata de negar, absolutamente, a possibilidade de utilização de padrão

genético em processo criminal, mas sua admissão deve lastrear-se na excepcionalidade

da medida, na preferência pela obtenção de material sem violar o nemo tenetur se

detegere e na regulamentação das consequências quando houver recusa, como, aliás,

com especial clareza, nos ensina Luís Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho:

No momento, basta assinalar que, diante do direito posto, especialmente

da Convenção Americana, recepcionada como norma fundamental, não

há espaço para permitir-se a intervenção corporal destinada a extrair

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compulsoriamente material biológico de investigados ou de réus”

(CARVALHO, 2014. p. 103).

4.2.4.2 – A Lei nº 12.850/13 e a ofensa a garantias constitucionais

O novel Diploma – Lei 12.850/13 – revogou a lei que regulava a utilização de

meios operacionais para o combate às denominadas organizações criminosas. E mais,

inseriu elementos para a caracterização da conduta criminosa prevista na Lei 12.694/12,

promovendo outras inovações, como se verá adiante.

A Lei nº 12.850/13 inseriu no ordenamento jurídico instrumentos que interferem

na privacidade do cidadão, sob o fundamento de combater as denominadas organizações

criminosas.

Em seu art. 3º, vislumbra-se o seguinte:

DA INVESTIGAÇÃO E DOS MEIOS DE OBTENÇÃO DA PROVA

Art. 3o Em qualquer fase da persecução penal, serão permitidos, sem

prejuízo de outros já previstos em lei, os seguintes meios de obtenção

da prova:

I - colaboração premiada;

II - captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos;

III - ação controlada;

IV - acesso a registros de ligações telefônicas e telemáticas, a dados

cadastrais constantes de bancos de dados públicos ou privados e a

informações eleitorais ou comerciais;

V - interceptação de comunicações telefônicas e telemáticas, nos termos

da legislação específica;

VI - afastamento dos sigilos financeiro, bancário e fiscal, nos termos da

legislação específica;

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VII - infiltração, por policiais, em atividade de investigação, na forma

do art. 11;

VIII - cooperação entre instituições e órgãos federais, distritais,

estaduais e municipais na busca de provas e informações de interesse da

investigação ou da instrução criminal.

Infere-se do supratranscrito art. 3º que a Lei nº 12.850/13 deixou para a legislação

específica a regulamentação de interceptação de comunicações telefônicas e telemáticas,

inclusive o aspecto atinente à quebra dos sigilos financeiro, bancário e fiscal, sendo que

os demais instrumentos investigatórios previstos serão regulados pela própria lei, sem

prejuízo da legislação existente.

A lei sob ótica prevê que é dispensável a autorização judicial para que o

Ministério Público e o delegado de polícia tenham acesso a dados cadastrais do

investigado que se refiram exclusivamente à sua qualificação pessoal, filiação e

endereço mantidos pela Justiça Eleitoral, empresas telefônicas, instituições financeiras,

provedores de internet e administradoras de cartão de crédito, como se observa:

Art. 15. O delegado de polícia e o Ministério Público terão acesso,

independentemente de autorização judicial, apenas aos dados

cadastrais do investigado que informem exclusivamente a qualificação

pessoal, a filiação e o endereço mantidos pela Justiça Eleitoral,

empresas telefônicas, instituições financeiras, provedores de internet e

administradoras de cartão de crédito.

E é justamente neste ponto que surge relevante questionamento acerca dos limites

relativos à privacidade do indivíduo investigado, emergindo daí duas vertentes, quais

sejam: a preservação da esfera íntima da pessoa, e a outra, a utilização de instrumentos

que, embora possuam suporte legal, relativizam mencionado direito.

De início, salutar ressaltar os dizeres de Luis Gustavo Grandinetti Castanho de

Carvalho (2014, p.89), em sua obra Processo Penal e Constituição, quando afirma que a

quebra de sigilos constitucionais só poderia ocorrer por ordem fundamentada da

autoridade judiciária, logo, permitir o acesso a essas fontes por outras autoridades sem a

necessidade de recorrer ao Judiciário, já se revela, a priori, temerário.

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Nesse sentido o Superior Tribunal de Justiça já se manifestou, por exemplo,

contrário à requisição de informações fiscais por parte do Ministério Público, como se

vê no julgamento do HC 160.646/SP de 19/9/2011, abaixo transcrito:

“HABEAS CORPUS . QUEBRA DE SIGILO FISCAL REALIZADA

DIRETAMENTE PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. REQUISIÇÃO DE

CÓPIAS DE DECLARAÇÕES DE IMPOSTO DE RENDA SEM

AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. ILICITUDE DA PROVA.

DESENTRANHAMENTO DOS AUTOS. CONCESSÃO DA ORDEM.

1. Considerando o artigo 129, inciso VI, da Constituição

Federal, e o artigo 8º, incisos II, IV e 2º, da Lei Complementar 75/1993,

há quem sustente ser possível ao Ministério Público requerer,

diretamente, sem prévia autorização judicial, a quebra de sigilo

bancário ou fiscal.

2. No entanto, numa interpretação consentânea com o

Estado Democrático de Direito, esta concepção não se mostra a

mais acertada, uma vez que o Ministério Público é parte no processo

penal, e embora seja entidade vocacionada à defesa da ordem jurídica,

representando a sociedade como um todo, não atua de forma totalmente

imparcial, ou seja, não possui a necessária isenção para decidir sobre a

imprescindibilidade ou não da medida que excepciona os sigilos fiscal e

bancário.

3. A mesma Lei Complementar 75/1993 - apontada por

alguns como a fonte da legitimação para a requisição direta

pelo Ministério Público de informações contidas na esfera

de privacidade dos cidadãos - dispõe, na alínea a do inciso XVIII do

artigo 6º, competir ao órgão ministerial representar pela quebra do

sigilo de dados.

4. O sigilo fiscal se insere no direito à privacidade

protegido constitucionalmente nos incisos X e XII do artigo 5º da Carta

Federal, cuja quebra configura restrição a uma liberdade pública, razão

pela qual, para que se mostre legítima, se exige a demonstração ao

Poder Judiciário da existência de fundados e excepcionais motivos que

justifiquem a sua adoção.

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5. É evidente a ilicitude da requisição feita diretamente

pelo órgão ministerial à Secretaria de Receita Federal, por meio da qual

foram encaminhadas cópias das declarações de rendimentos do paciente

e dos demais investigados no feito.

6. Conquanto sejam nulas as declarações de imposto de

renda anexadas à medida cautelar de sequestro, não foi juntada

ao presente mandamus a íntegra do mencionado

procedimento, tampouco o inteiro teor da ação penal na qual a citada

documentação teria sido utilizada, de modo que este Sodalício não pode

verificar quais “provas e atos judiciais” estariam por ela contaminados,

exame que deverá ser realizado pelo Juízo Federal responsável pelo

feito.

7. Ordem concedida para determinar o desentranhamento

das provas decorrentes da quebra do sigilo fiscal realizada

pelo Ministério Público sem autorização judicial, cabendo

ao magistrado de origem verificar quais outros elementos de convicção

e decisões proferidas na ação penal em tela e na medida cautelar de

sequestro estão contaminados pela ilicitude ora reconhecida.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros

da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos

votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, conceder a

ordem, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros

Adilson Vieira Macabu (Desembargador convocado do TJ/RJ), Gilson

Dipp e Laurita Vaz votaram com o Sr. Ministro Relator.

SUSTENTOU ORALMENTE: DRA. CAMILA JORGE

TORRES (P/ PACTE)

Brasília (DF), 1º de setembro de 2011 (Data do Julgamento).”

Recentemente o art. 15 da Lei nº12.850/12 que prevê a desnecessidade de

autorização judicial para acesso aos dados bancários por parte do delegado de polícia e

do Ministério Público foi alvo de Ação Direta de Inconstitucionalidade por parte da

ACEL – Associação Nacional das Operadora de Celular (LINK), na qual aponta-se

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vício, uma vez que além de ofender a intimidade do cidadão, o acesso a tais dados seria

matéria atinente a reserva de jurisdição.

A pré-falada ADIN 506320

encontra-se ainda em andamento, contudo, já conta

com parecer pugnando pela sua improcedência firmado pelo Procurador Geral da

República Rodrigo Janot.

Ocorre, entretanto, que em data de 24 de fevereiro de 2016, o Plenário do Supremo

Tribunal Federal concluiu o julgamento conjunto de cinco processos que questionavam

dispositivos da Lei Complementar nº 105/2001, que permitem à Receita Federal receber

dados bancários de contribuintes fornecidos diretamente pelos bancos, sem prévia autorização

judicial21

.

Dos onze Ministros, nove votaram no sentido de que a norma não resulta em quebra de

sigilo bancário, mas sim em transferência de sigilo da órbita bancária para a fiscal, ambas

protegidas contra o acesso de terceiros.

O STF considerou que a transferência de informações dos bancos ao Fisco, não viola a

Constituição Federal.

Observa-se assim, que mesmo que ainda não tenha havido o julgamento da ADI

nº 5063, o posicionamento do STF já se revela claro no sentido de não enxergar ofensa a

direito individual o acesso a dados bancários por parte de determinadas autoridades.

Muito embora tenha havido essa mudança de entendimento por parte do Supremo

Tribunal Federal, que em momento anterior comungava com o entendimento de que o

acesso a esse tipo de dado dependeria de autorização judicial, o que se observa é que

direitos constitucionalmente garantidos como o é o sigilo bancário, muito embora não

seja absoluto, sua quebra depende do preenchimento de pressupostos legais, como

esclarece Carvalho (2014, p. 92), asseverando ainda que o sigilo bancário é considerado

parte integrante do direito à intimidade.

O acesso a tais dados, sem a consequente autorização judicial, banaliza essa

espécie de prova, ferindo direito que possui tutela constitucional, qual seja, a vida

privada, a intimidade.

20 http://stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4494216

21

http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=310670

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É necessário que a quebra do sigilo bancário se dê de forma legítima, sendo

indispensável que se recorra ao juiz pleiteando tal medida, não somente quando se tratar

de organizações criminosas, como em qualquer outra situação que se revele necessária.

Resumindo a situação em comento, Carvalho (2014, p. 111), com peculiar

sutileza, revela-nos o limite que deve existir entre a preservação da intimidade do

cidadão e o acesso a informações que subsidiarão as investigações:

O que vai dar contorno, limite, peso e profundidade a tais direitos são as

regras que vão se superpondo para diminuir ou aumentar a densidade do

princípio. Se tais regras estiveram de acordo com a Constituição, são

legítimas e devem ser aplicadas mesmo para restringir o princípio. Se

estiveram em desacordo com a Constituição, se forem desarrazoadas,

são ilegítimas e não devem ser aplicadas.

Pois bem, o acesso indiscriminado a informações sigilosas ofende a intimidade do

cidadão, direito consagrado constitucionalmente, logo, o texto da lei em comento revela -

se norma condizente com a teoria que Jakobs propugna.

4.3 – O Direito Penal do Inimigo diante do Estado de Direito

Francisco Munoz Conde (2012, p. 66) afirma que a tese de Jakobs sobre direito

penal do inimigo é uma construção valorativamente ambígua, válida tanto para um

sistema democrático, como para um sistema totalitário.

Ainda para Conde (2012, p. 67), a análise deve se situar em um determinado

contexto sociopolítico e responder, a partir desse contexto, a duas questões básicas. A

primeira a de definir quem é o inimigo, e a segunda, se é compatível com o Estado de

Direito e com o reconhecimento a todos, sem exceções, dos direitos fundamentais que

correspondem ao ser humano pelo fato de serem considerados inimigos.

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Analisando essas ponderações que, frise-se, não é só do supracitado autor, mas de

todos aqueles que são contrários à teoria de Jakobs, vê-se que a primeira, de certo modo

foi debatida anteriormente quando tratamos do complexo conceito de inimigo, razão

pela qual devemos nos ater, neste momento, ao segundo questionamento.

Pois bem, talvez respondendo à indagação, Jakobs assim acentua:

Um direito penal do inimigo, claramente delimitado, é menos perigoso,

desde a perspectiva do Estado de Direito, que entrelaçar todo o Direito

penal com fragmentos de regulações próprias do direito penal do

inimigo. (JAKOBS, 2007, p. 49-50)

O que se observa, e isso não se nega, é a presença de um direito penal do inimigo

em alguns países, entre os quais os mais representativos e poderosos da comunidade

internacional, dos direitos fundamentais e dos princípios do Estado de Direito. (CONDE,

2012, p. 29).

Chega-se à conclusão, diante do referenciado acima, de que a discussão acerca da

legitimidade do direito penal do inimigo dentro de um Estado de Direito é assente e

recorrente até os dias atuais.

4.3.1 – O Estado Democrático de Direito como garantidor dos direitos humanos

“O Estado de direito é um Estado de direitos fundamentais”

(CANOTILHO, 1999, p. 19)

A origem dos direitos humanos passa pela análise de pelo menos duas teorias que

se revelam aptas a descreve-la, quais sejam: a jusnaturalista e a positivista.

Para a teoria jusnaturalista os direitos humanos são inerentes ao ser humano e, em

virtude disso, nascem com a própria humanidade. Os jusnaturalistas idealizam como

algo natural, de origem divina.

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Como esclarece Pagliuca (2010, p. 18), analisando o pensamento jusnaturalista,

afirma que os direitos humanos são próprios da criação do indivíduo, não sendo,

portanto, suscetíveis de relativizações.

Para a teoria positivista, os direitos humanos seriam aqueles que a lei cria.

Segundo Pagliuca (2010, p. 18), esses direitos não são considerados como próprios a

todo ser humano, mas concedidos e garantidos pelo estado de forma institucionalizada.

Feita essa análise, e analisando o Estado de Direito nas sábias palavras de

Canotilho (1999, p. 4), nós tem que é um Estado ou uma forma de organização político-

estadual cuja atividade é determinada e limitada pelo direito. Prossegue o mesmo autor

afirmando que Estado de não direito, por outro lado, seria aquele em que o poder

político se proclama desvinculado de limites jurídicos e não reconhece aos indivíduos

uma esfera de liberdade ante o poder protegida pelo direito.

Para Canotilho (1999, p. 4), para que se entenda o Estado de Direito, é necessário

antes de mais nada entender o seu contrário, ou seja, o Estado de não direito, expondo

como suas principais características:

Três ideias bastam para o caracterizar: (I) é um Estado que decreta leis

arbitrárias, cruéis ou desumanas; (2) é um Estado em que o direito se

identifica com a «razão do Estado» imposta e iluminada por «chefes»;

(3) é um Estado pautado por radical injustiça e desigualdade na

aplicação do direito. Explicitemos melhor estas três ideias. «Estado de

não direito» é aquele em que existem leis arbitrárias, cruéis e

desumanas que fazem da força ou do exercício abusivo do poder o

direito, deixando sem qualquer defesa jurídica eficaz o indivíduo, os

cidadãos, os povos e as minorias. Lei arbitrária, cruel e desumana é, por

exemplo, aquela que permite experiências científicas impostas

exclusivamente a indivíduos de outras raças, de outras nacionalidades,

de outras línguas e de outras religiões.

Partindo dessa ideia de Estado de não direito, e ainda seguindo as orientações de

Joaquim José Gomes Canotilho (1999, p. 10), temos que Estado de Direito seria:

O Estado domesticado pelo direito é um Estado juridicamente vinculado

em nome da autonomia individual ou, se se preferir, em nome da

autodeterminação da pessoa. É a autonomia individual que explica

alguns dos postulados nucleares do Estado de direito de inspiração

germânica. Desde logo, o Estado de direito, para o ser verdadeiramente,

tem de assumir-se como um Estado liberal de direito. Contra a ideia de

um Estado de polícia que tudo regula a ponto de assumir como tarefa

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própria a felicidade dos súbditos, o Estado de direito perfila-se como

um Estado de limites, restringindo a sua acção à defesa da ordem e

segurança públicas. Por sua vez, os direitos fundamentais liberais ─ a

liberdade e a propriedade ─ decorriam do respeito de uma esfera de

liberdade individual e não de uma declaração de limites fixada pela

vontade política da nação. Compreende-se, assim, que qualquer

intervenção autoritária sobre os dois direitos básicos ─ liberdade e

propriedade ─ estivesse submetida à existência de uma lei do

parlamento.

E não para por aí, não basta apenas que seja um Estado devidamente limitado

pelo direito, é necessário que seja uma ordem de domínio legitimada pelo povo, a

estruturar-se como um verdadeiro “Estado Democrático de Direito”.

O Estado Democrático de Direito caracteriza-se assim, de um lado, como

limitador do poder político e, de outro, como garantidor dos direitos fundamentais.

Nota-se assim, que a ideia de direitos humanos está ínsita na de Estado de Direito,

como nos revela Canotilho (1999, p. 12), afirmando que Estado de Direito é o Estado

que respeita e cumpre os direitos do homem consagrados nos grandes pactos

internacionais (exemplo: Pacto Internacional de Direitos Pessoais, Civis e Políticos;

Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais), nas grandes

declarações internacionais (exemplo: Declaração Universal dos Direitos do Homem) e

noutras grandes convenções de direito internacional (exemplo: Convenção Europeia dos

Direitos do Homem), e não encerra aí, prossegue nos falando que a vinculação do

Estado pelo direito internacional é, em alguns Estados, de tal forma intensa que leva as

próprias constituições internas a proclamarem o direito internacional como fonte de

direito de valor superior à própria Constituição (exemplo: Holanda e Áustria).

O Estado Democrático de Direito surge assim como instituição preservadora dos

bens passíveis de tutela jurídica, e como tal, como ente que busca efetivar os direitos

humanos.

4.3.2 – A (In) compatibilidade do Direito Penal do Inimigo de Jakobs com o Estado

Democrático de Direito

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Os seres humanos são tão capazes de comportamentos perversos como

de imaginar e institucionalizar direitos humanos.” (GALLARDO, 2014,

p. 26).

O respeito aos direitos fundamentais do indivíduo revela a própria ideia nuclear

do Estado Democrático de Direito.

Alberto Silva Franco prefaciando a obra de Zaffaroni (2015, p.20) afirma que

num Estado Democrático de Direito, a intervenção penal não poderia ter uma dimensão

expansionista, ou seja, deveria ser necessariamente mínima, tendo por missão a defesa

dos direitos humanos.

Dito isto, e considerando as características propostas por Günther Jakobs em sua

teoria do direito penal do inimigo, observa-se flagrantemente que ela não se coaduna

com um Estado de Direito, sendo mais condizente com Estados Totalitários, como, aliás,

denunciam seus antecedentes históricos.

Exemplos flagrantes de Estados de não direito foram o Nazismo e o Fascismo, em

que os direitos fundamentais foram desprezados, cedendo lugar a interesses dos

governantes. O direito penal do inimigo encontra berço na história nesses regimes, em

que indivíduos perdiam o status de pessoa e passavam a ser alvo de uma política

criminal insana, sem qualquer resquício de humanidade.

O famoso penalista alemão Mezger, já acenava na década de 40 a possibilidade

de existência de um direito penal com característica daquele vivenciado na Alemanha

nazista, como se vê:

No futuro haverá dois (ou mais) “Direitos Penais”: um Direito Penal

para a generalidade (no qual em essência continuarão os princípios

vigentes até agora), e um Direito Penal (completamente diferente) para

grupos especiais de determinadas pessoas, como, por exemplo, os

delinquentes por tendência. O decisivo é em que grupo deve ser incluída

a pessoa em questão ... Uma vez que se realize a inclusão, o “ Direito

Especial” (isto é, a reclusão por tempo indefinido) deverá ser aplicado

sem limites. E desde esse momento carecem de objeto todas as

diferenciações jurídicas... Esta separação entre diversos grupos de

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pessoas me parece realmente nova (estar na nova Ordem; nela se radica

um “novo começo”). (MEZGER apud CONDE, 2012, p. 61).

Cristiano Falk Fragoso (2015, p. 122), em sua obra Autoritarismo e Sistema

Penal também vê na Alemanha nazista exemplos de normas penais de cunho autoritário,

citando por exemplo as leis que criminalizavam o casamento e relações sexuais entre

judeus e alemães.

Verifica-se assim, como bem ressalta Zaffaroni (2006, p. 144), que o conceito de

inimigo nunca é compatível com um Estado de Direito nem com os princípios do

liberalismo político.

O estado de direito concreto de Jakobs, para Zaffaroni (2006, p. 163), deste

modo, torna-se inviável, porque seu soberano, invocando a necessidade e a emergência,

pode suspendê-lo e designar como inimigo quem considerar oportuno, na extensão que

lhe permitir o espaço de poder de que dispõe.

Fica claro que esse tipo de política de eleger ao bel-prazer de poucos, aqueles que

serão considerados inimigos, não se coaduna com o Estado Democrático de Direito.

Resta cristalino que se analisados os escopos que fundamentam um Estado de

Direito, o direito penal do inimigo não teria guarida nesse modelo de Estado.

Magistralmente Zaffaroni (2006, p. 173), pontua:

O direito penal de garantias é inerente ao Estado de Direito, porque as

garantias processuais penais e as garantias penais não são mais do que o

resultado da experiência de contenção acumulada secularmente e

constitui a essência da cápsula que encerra o Estado de Polícia, ou seja,

são o próprio Estado de Direito.

E prossegue:

Numa perspectiva dinâmica, o direito penal do Estado de Direito não

pode cometer a ingenuidade de ceder um espaço e menos ainda, o seu

instrumento orientador ao Estado de polícia, confiando em que este se

mantenha neste âmbito acordado e compartimentalizado.

(ZAFFARONI, 2006, p. 173).

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Por óbvio que o objetivo primordial de um Estado Democrático de Direito é a

preservação dos direitos humanos, logo, um direito penal nos moldes pensados por

Jakobs acaba por desvirtuar essa finalidade.

Nas sábias palavras de Shecaria e Correa Jr.(2002, pags. 8/9), se se trata de um

Estado Social e Democrático de Direito, que representa a fusão entre o Estado Liberal e

o Estado Social, a que se acrescenta uma terceira característica – a democracia –, não há

cogitar de sanção penal desregrada, arbitrária, sem limites.

A Carta Magna de todo Estado que se intitule Democrático de Direito prevê em

seu bojo direitos fundamentais e uma gama de instrumentos que visa garanti -los, sendo

que esse fato se apresenta como um verdadeiro sistema de limitação de abusos estatais

que visem, inclusive através do direito penal, ferir tais direitos.

Norberto Bobbio, prefaciando a obra de Luigi Ferrajoli (2014, p. 7), sobre a

Teoria do Garantismo Penal, afirma que a aposta é alta, referindo-se à elaboração de um

sistema geral de garantismo ou, se preferir, a construção de vigas-mestras do Estado de

Direito que tem por fundamento e por escopo a tutela da liberdade do indivíduo contra

as várias formas de exercício arbitrário do poder, particularmente odioso no direito

penal.

Um Estado efetivamente de Direito não pode admitir instrumentos próprios de um

Estado de não direito22

. Gallardo (2014, p. 26), com propriedade afirma que na América

Latina, e talvez no mundo todo, vivemos, como se fosse normal, um simulacro23

de

direitos humanos.

Gallardo (2014, p. 26) ainda afirma:

No âmbito político, por exemplo, a guerra permanente por prevenção,

decidida pelos Estados Unidos contra o terrorismo em setembro de

2001, representa, com o apoio dos meios de comunicação de massa, os

terroristas e seus aliados não como seres humanos, mas como animais

ou, pior, como não pessoas.

22 Nas palavras de Canotilho, Estado de não direito, por outro lado, seria, aquele em que o poder político se

proclama desvinculado de limites jurídicos e não reconhece aos indivíduos uma esfera de liberdade ante o poder

protegida pelo direito (1999, p. 4). 23

Simulacro, do latim simulacrum, é uma imitação, falsificação ou ficção. O conceito está associado à

simulação, que é a acção de simular. Disponível em: Conceito de simulacro - O que é, Definição e

Significado http://conceito.de/simulacro#ixzz3y7uJ0cw7

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Ferrajoli (2014, p. 328) assevera que o fundamento político ou externo do

moderno Estado de direito tem, com efeito, a função de garantia dos direitos

fundamentais.

Fica, com tudo isso, clara a ideia de que, normas com características tal como

aquelas idealizadas por Jakobs acabam, pelo menos para muitos jusfilósofos de peso

como os citados neste trabalho, sendo incompatíveis com o Estado de Direito, sendo

condizentes com aquilo que Canotilho chamou de Estado de não direito, representando

verdadeiro simulacro de direitos humanos, nas palavras de Helio Gallardo.

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5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

A sociedade contemporânea assustada com o aumento da criminalidade, vivencia

um momento de hiperinflação legislativa em matéria penal, e esse fato decorre de várias

causas, em especial pelas novas condutas ilícitas que surgiram juntamente com a

ascensão do fenômeno da globalização econômica, o que ensejou a criação de novos

tipos penais, bem como o incremento de outros já existentes, assim como em virtude de

outros fatores como já destacado.

Antes de mais nada, é necessário esclarecer que, apesar de vários doutrinadores

afirmarem que houve uma mudança paradigmática no âmbito do direito penal,

asseverando que a dogmática empunhada pelo direito penal iluminista foi

gradativamente, na atual sociedade de risco, dando lugar a um direito penal menos

garantista e menos respeitador dos princípios que informam esse ramo, essa afirmação

não corresponde à realidade, haja vista que o alicerce do direito penal clássico e do

direito penal denominado de terceira velocidade é o mesmo, ou seja, ambos tem clara

base contratualista.

Ora, o direito penal liberal desde seu nascedouro reflete interesse de determinada

ou determinadas classes, o que, por vezes, acabou por despejar seu lado mais sombrio

sobre as classes menos favorecidas, sendo nítida a distinção entre as normas destinadas

às classes detentoras do poder, e aquelas dirigidas aos marginalizados, estava, portanto,

o direito penal mais “severo” ainda oculto, tendo ele, nos dias de hoje, sido

descortinado.

O que de fato se verificou nesses tempos modernos foi uma mudança no escopo

principal do direito penal, ou seja, esse ramo foi paulatinamente deixando de ter como

foco principal a pacificação social, abandonando seu caráter instrumental, elegendo a

proteção da norma como sua função primordial.

Essa situação ocasionou mudanças nas políticas criminais proclamadas

hodiernamente, quando vemos o Legislativo editar normas com acentuado caráter

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simbólico, dando, pelo menos em tese, o remédio que a sociedade esperançosa e crente

na solução dos problemas ligados ao crime, anseia.

Foi dentro desse contexto que surgiu a teoria idealizada por Günther Jakobs, o

Direito Penal do Inimigo, tendo como substrato principal garantir a eficácia do

ordenamento jurídico.

A ideia de Jakobs é que se faz premente existir dentro de uma mesma realidade,

duas espécies de direito penal, um com normas destinadas ao cidadão, e outro com

normas dirigidas àquele que denomina inimigo.

O cidadão para Jakobs, destinatário do direito penal mais brando, seria aquele

delinquente não contumaz, que esporadicamente pratica delitos, para o qual seriam

mantidas todas as garantias previstas no ordenamento. Por outro lado, para o inimigo,

caracterizado este, com base nos filósofos contratualistas, como aquele indivíduo que

coloca em perigo o contrato social, que atenta contra a existência do Estado, seriam

destinadas normas menos respeitadoras dessas garantias, mais cruéis, visando manter

protegido o sistema jurídico.

A ideia de Jakobs, no que concerne às normas destinadas ao inimigo, como se

observou, é de antecipação da tutela punitiva, diminuição ou supressão das garantias

constitucionais e processuais, bem como de criação de penas mais severas e desumanas.

Acontece, entretanto, que a incorporação desregrada de normas com caracteres de

um direito penal do inimigo, revela-se, pelo menos para os defensores de um direito

penal mínimo, por diversos fatores, incompatível com um Estado de Direito, protetor do

mínimo de dignidade do ser humano.

A ideia de um Estado com poder para eleger, ao seu bel-prazer, aqueles que serão

considerados inimigos, apresenta-se como um perigo sem precedentes, emergindo a

partir daí perguntas que permanecem sem respostas, quais sejam: como serão ditados os

critérios para caracterizar o inimigo? Esses critérios serão modificados com a mudança

de governantes? O cidadão de hoje poderá ser o inimigo de amanhã?

É óbvio que, pelo menos por hora, não existe um critério infalível de eleição de

inimigos. Se para a sociedade moderna o inimigo é o terrorista, o traficante de pessoas,

de órgãos, o estuprador, entre outros, amanhã poderá ser o ladrão de galinha, o motorista

embriagado, o batedor de carteiras!!!!

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Uma outra situação que também revela um nítido caráter de norma condizente

com Estados Totalitários, é a de que o direito penal do inimigo clama por uma

antecipação da punição estatal, criminalizando condutas que ainda não entraram na fase

de execução, bem como cria crimes de duvidosa constitucionalidade, como se revelam

os delitos de perigo abstrato, violadores do princípio da ofensividade, haja vista que

punem condutas que sequer chegaram a lesar bens jurídicos.

A existência de penas cruéis desde muito tempo já era repugnável, que nos diga

Beccaria. O próprio cárcere por si só já se apresenta atentatório à dignidade humana,

quiçá, rechear o ordenamento com penas ainda mais degradantes como propõe a teoria

do direito penal do inimigo. Admitir isso, é o mesmo que abandonar o contrato social e

retroagir ao estado de natureza.

Em que pese tudo que até esse momento foi dito, que tornaria normas desse jaez

irremediavelmente incompatíveis com um Estado Democrático de Direito, temos que

nos atentar para a realidade que nos cerca, ou seja, em vários países, mormente aqueles

mais representativos na defesa dos direitos humanos, possuem no bojo de seus

ordenamentos leis com características presentes na teoria de Jakobs, como podemos citar

os Estados Unidos da América com o pacote legislativo para combate ao terrorismo

editado após o 11 de setembro de 2001, como também, e em especial, aqui no Brasil, a

exemplo das Leis nºs. 12.654/12 e 12.850/13.

Diante desse fato, notamos que na verdade o alemão Günther Jakobs apenas

constatou algo que já existia, ou seja, o direito penal do inimigo já permeava vários

ordenamentos jurídicos. Verifica-se, então, ao se discutir a legitimidade de normas com

esse aspecto dentro de um Estado Democrático de Direito, que a questão primordial é

apurar limites para a aplicação de um direito penal mais severo, tendo em vista que,

como dito, essas normas de exceção já estão inseridas no sistema jurídico, às vezes de

forma oculta, outras vezes de forma mais aparente.

Por óbvio que um indivíduo que abandona o pacto social firmado, que opta por

não se valer de suas benesses, deve receber um tratamento mais grave, isso é próprio de

um Estado de Direito tratar os desiguais desigualmente. Não seria isonômico, muito

menos justo, punir com o mesmo rigor aquele cidadão que por uma infelicidade praticou

um crime, da mesma forma que um criminoso contumaz, não se revelaria proporcional.

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Ocorre, entretanto, que o estabelecimento de critérios para essa diferenciação não

pode ser político, mas sim jurídico, ou seja, o direito penal não pode ser objeto de

manobra eleitoreira, bem como não pode se revestir de caráter simbólico.

Se aparentemente é inevitável a convivência com normas desse tipo, ante o atual

estágio que a criminalidade alcançou, é necessário traçar limites bem claros para sua

edição, impondo regras que impeçam a flexibilização de garantias ou criação de penas

mais severas do que as já existentes.

Se é fato que o direito penal do inimigo nos exatos termos previstos por Jakobs é

digno de Estados Totalitários, não pode se conceber que esse tipo de norma exista de

forma oculta em ordenamentos jurídicos de Estados Democráticos de Direito. Logo, é

necessário, respeitando os direitos humanos, que se dê proporcional àquele que se impõe

de forma veemente contra o Estado praticando crimes, sem, todavia, afastar sua

condição de pessoa.

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