zaffaroni, e. raúl. o inimigo do direito penal

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O inimigo do Direito Penal E. Raúl Zaffaroni Coleção Pensamento Criminológico nº14 Co-edição: Instituto Carioca de Criminologia Direito 224 páginas Resumo O poder punitivo sempre discriminou os seres humanos e lhes conferiu um tratamento punitivo que não correspondia à condição de pessoas, dado que os considerava apenas como entes perigosos ou daninhos. Esses seres humanos são assinalados como inimigos da sociedade e, por conseguinte, a eles é negado o direito de terem suas infrações sancionadas dentro dos limites do direito penal liberal, isto é, das garantias que hoje o direito internacional dos direitos humanos estabelece universal e regionalmente. Isto não consiste numa verificação apenas de dados de fato, revelados pela história e pela sociologia, mas também de dados de direito, posto que tanto as leis quanto a doutrina jurídica legitimam este tratamento diferenciado. Também os saberes pretensamente empíricos sobre a conduta humana (convergentes na criminologia tradicional ou etiológica) pretenderam dar-lhes justificação científica. A tese é que o inimigo da sociedade ou estranho, o ser humano considerado como ente perigoso ou daninho e não como pessoa com autonomia ética, de acordo com a teoria política, só é compatível com um Estado absoluto e que, consequentemente, as concessões do penalismo têm sido obstáculos absolutistas que a doutrina penal colocou como pedras no caminho da realização dos Estados constitucionais de direito.

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O inimigo do Direito Penal

O inimigo do Direito Penal E. Ral Zaffaroni Coleo Pensamento Criminolgico n14Co-edio: Instituto Carioca de Criminologia Direito 224 pginas Resumo

O poder punitivo sempre discriminou os seres humanos e lhes conferiu um tratamento punitivo que no correspondia condio de pessoas, dado que os considerava apenas como entes perigosos ou daninhos. Esses seres humanos so assinalados como inimigos da sociedade e, por conseguinte, a eles negado o direito de terem suas infraes sancionadas dentro dos limites do direito penal liberal, isto , das garantias que hoje o direito internacional dos direitos humanos estabelece universal e regionalmente.

Isto no consiste numa verificao apenas de dados de fato, revelados pela histria e pela sociologia, mas tambm de dados de direito, posto que tanto as leis quanto a doutrina jurdica legitimam este tratamento diferenciado. Tambm os saberes pretensamente empricos sobre a conduta humana (convergentes na criminologia tradicional ou etiolgica) pretenderam dar-lhes justificao cientfica.

A tese que o inimigo da sociedade ou estranho, o ser humano considerado como ente perigoso ou daninho e no como pessoa com autonomia tica, de acordo com a teoria poltica, s compatvel com um Estado absoluto e que, consequentemente, as concesses do penalismo tm sido obstculos absolutistas que a doutrina penal colocou como pedras no caminho da realizao dos Estados constitucionais de direito.O inimigo no Direito Penal - Sumrio, Apresentao e Primeiro Captulo

E. Ral ZaffaroniSumrio

Apresentao ..................................................................... 9

I. Introduo ou prolegmenos indispensveis ......................11

1. Hiptese geral ou bsica ................................................11

2. As ltimas tendncias mundiais do poder punitivo que no podem ser deixadas de lado pela doutrina ..........................13

3. O contexto mundial atual torna a reao poltica

obrigatria .....................................................................15

4. O inimigo no merece o tratamento de pessoa ................18

5. Qual a essncia do inimigo? .......................................21

6. Duas palavras sobre o "direito penal" ............................25

II. O inimigo na prtica do exerccio real do poder

punitivo ..............................................................................29

1. O poder punitivo da Revoluo Mercantil ......................29

2. A revoluo inquisitorial: o seqestro de Deus ................38

3. O poder punitivo da Revoluo Industrial .......................43

4. O poder punitivo na periferia neocolonizada ..................46

5. O velho autoritarismo do sculo XX .............................53

6. O novo autoritarismo cool do sculo XXI .....................59

7. O autoritarismo cool na Amrica Latina .........................70

8. Balano do exerccio real do poder punitivo na histria e na atualidade ......................................................................81

III. O inimigo nos discursos jurdicos penais e

criminolgicos ....................................................................83

1. O direito penal pr-moderno ........................................83

2. A preveno geral positiva e a "razo de Estado" como justificativa pr-moderna da seletividade e do poder

punitivo ........................................................................87

3. A doutrina penal da modernidade e a pretensa invidualizao "ntica" do inimigo .......................................................90

4. O coroamento do inimigo ntico garofaliano: a legitimao do genocdio pelo direito penal do sculo XX ...................102

5. O sistema penal cautelar latino-americano ....................109

IV. O inimigo, estranho ou hostis na teoria poltica.........115

1. O que se discute so os direitos individuais dos cidados.....115

2. Admitir o conceito de hostis no uma posio poltica teoricamente prudente ...........................................................121

3. A confrontao entre Hobbes e Locke .........................124

4. A confrontao entre Kant e Feuerbach .......................128

5. As contradies de Hobbes e a coerncia de Schmitt ....134

6. O hostis reclama um Estado absoluto ..........................144

V. As tticas de conteno: a proposta esttica e sua inviabilidade ............................................................................155

1. Um debate contemporneo singular ............................155

2. No existem conceitos limitados de inimigo ................161

3. A inevitvel quebra do Estado de direito .......................163

4. A avaliao negativa da eficcia de conteo .................165

VI. As tticas de conteno: a proposta dinmica ....................169

1. A dialtica do Estado de direito e o poder punitivo .........169

2. A funo essencial do direito penal do Estado de direito ....170

3. "xitos" e "fracassos" ................................................175

4. Duas palavras sobre o direito internacional penal ...........179

Digresso: o que fazer com o terrorismo? ........................184

VII. Algumas reflexes conclusivas ....................................189

Bibliografia ..................................................................193

Apresentao

Este ensaio aborda a dialtica entre o Estado de direito e o de polcia, traduzida no campo penal na admisso, mais ampla ou mais restrita, do tratamento punitivo a seres humanos privados da condio de pessoas. Este tratamento diferenciado provoca uma contradio entre a doutrina penal (e uma certa filosofia poltica de ilustre linhagem), por um lado, e a teoria poltica do Estado constitucional de direito, por outro, visto que a ltima no o admite nem sequer numa clara situao blica, pois implicaria abandonar o princpio do Estado de direito e passar ao de polcia, que deslizaria, rapidamente, para o Estado absoluto.

A atual situao do planeta revela, em toda sua crueza, esta contradio, provocando um grave transtorno na doutrina, uma vez que, de uma vez s, desnuda o fenmeno de todas as roupagens que o ocultaram at hoje e revela, como nunca acontecera antes, que a secular tradio legitimadora do exerccio estruturalmente discriminatrio do poder punitivo operou como fissura absolutista no Estado constitucional de direito, introduzindo no seu marco um elemento dissolvente que, em algum trgico momento do passado, seria chamado entre ns de doutrina da segurana nacional, de triste memria.

mister advertir que, na exposio aqui apresentada, sintetizam-se ou ampliam-se e tambm repetem-se conceitos e textos publicados em trabalhos parciais, medida que a pesquisa avanava.

Alm disso, nossa exposio est assentada numa concepo conflitivista da sociedade e na dialtica do Estado de direito e do Estado de polcia presente no interior de todo Estado de direito real ou histrico, nos termos que propusemos em 1989 e desenvolvemos posteriormente com Alejandro Slokar, Alejandro Alagia e Nilo Batista.

Nossos mais sinceros agradecimentos aos colegas Alejandro Slokar, Alejandro Alagia, Renato Vanelli, Gustavo Ferreira, Graciela Otano, Guido Risso, Martn Magram, Jacobo Grossman, Mariana Caraballo, Gabriela Gusis, Pablo Vega e Alfredo Fernndez. Todos eles tiveram a pacincia de ler o manuscrito e formular observaes.

Dedicamos este modesto ensaio memria de um querido Mestre, com quem teria sido imprescindvel discuti-lo, dado que ousamos irromper em seu campo com a proverbial inaptido do penalista e onde, por momentos, temos a sensao de mover-nos como um elefante marinho na areia. Se tivssemos tido esta sorte, seguramente estas pginas seriam muito mais claras e menos imperfeitas.

E. Ral Zaffaroni

Departamento de Direito Penal e Criminologia

Faculdade de Direito e Cincias Sociais

Universidade de Buenos Aires

Abril de 2006

Introduo

1. Hiptese geral ou bsica

A hiptese que procuramos demonstrar nestas pginas pode ser sintetizada da seguinte forma:

a) O poder punitivo sempre discriminou os seres humanos e lhes conferiu um tratamento punitivo que no correspondia condio de pessoas, dado que os considerava apenas como entes perigosos ou daninhos. Esses seres humanos so assinalados como inimigos da sociedade e, por conseguinte, a eles negado o direito de terem suas infraes sancionadas dentro dos limites do direito penal liberal, isto , das garantias que hoje o direito internacional dos direitos humanos estabelece universal e regionalmente.

b) O item acima no consiste numa verificao apenas de dados de fato, revelados pela histria e pela sociologia, mas tambm de dados de direito, posto que tanto as leis quanto a doutrina jurdica legitimam este tratamento diferenciado. Tambm os saberes pretensamente empricos sobre a conduta humana (convergentes na criminologia tradicional ou etiolgica) pretenderam dar-lhe justificao cientfica.

c) Na teoria poltica, o tratamento diferenciado de seres humanos privados do carter de pessoas (inimigos da sociedade) prprio do Estado absoluto, que, por sua essncia, no admite gradaes e, portanto, torna-se incompatvel com a teoria poltica do Estado de direito. Com isso, introduz-se uma contradio permanente entre a doutrina jurdico-penal que admite e legitima o conceito de inimigo e os princpios constitucionais internacionais do Estado de direito, ou seja, com a teoria poltica deste ltimo.

d) Visto que, na realidade, o poder punitivo atua tratando alguns seres humanos como se no fossem pessoas e que a legislao o autoriza a agir assim, a doutrina conseqente com o princpio do Estado de direito deve tratar de limitar e reduzir ou, ao menos, delimitar o fenmeno para que o Estado de direito no desaparea.

Conforme esta estratgia, so propostas duas tticas de delimitao: uma esttica, que prope aceitar o consumado e legitim-lo apenas para certos fatos, e que, a nosso juzo, carece de capacidade para atingir o objetivo estratgico proposto; e outra dinmica, que a que consideramos adequada para alcanar esse objetivo.

A hiptese de base que procuramos comprovar parte da natureza poltica da questo colocada e visa a verificar que, no plano da teoria poltica, intolervel a categoria jurdica de inimigo ou estranho no direito ordinrio (penal ou de qualquer outro ramo) de um Estado constitucional de direito, que s pode admiti-lo nas previses de seu direito de guerra e com as limitaes que lhe so impostas pelo direito internacional dos direitos humanos em seu ramo de direito humanitrio (legislao de Genebra), levando-se em conta que nem sequer este priva o inimigo blico da condio de pessoa.

Nossa tese que o inimigo da sociedade ou estranho, quer dizer, o ser humano considerado como ente perigoso ou daninho e no como pessoa com autonomia tica, de acordo com a teoria poltica, s compatvel com um modo de Estado absoluto e que, conseqentemente, as concesses do penalismo tm sido, definitivamente, obstculos absolutistas que a doutrina penal colocou como pedras no caminho da realizao dos Estados constitucionais de direito.

As racionalizaes da doutrina penal para ocultar a admisso da categoria de inimigo no direito penal, lidas a partir da teoria poltica, so concesses do Estado liberal ao Estado absoluto, que debilitam o modo orientador do Estado de direito, que a bssola indispensvel para marcar a direo do esforo do poder jurdico em sua tarefa de permanente superao dos defeitos dos Estados de direito reais ou histricos. Se entregamos os instrumentos de navegao do poder jurdico de conteno das pulses autoritrias normais em todo Estado de direito real , o poder jurdico fica privado de qualquer possibilidade de eficcia no somente ttica, como tambm estratgica.

preciso assinalar que alguns tericos da poltica, inegavelmente de primeirssima linha nada menos que Hobbes e Kant , contriburam para a manuteno desses obstculos, esforando-se por compatibiliz-las com limitaes liberais e contriubuindo, assim, em boa medida, para desorientar tambm o penalismo, de modo que o erro no s deste, ainda que as piores conseqncias prticas tenham ocorrido em seu campo.

2. As ltimas tendncias mundiais do poder punitivo que no podem ser deixadas de lado pela doutrina

Nas ltimas dcadas produziu-se uma notria transformao regressiva no campo da chamada poltica criminal ou, mais precisamente, da poltica penal, pois do debate entre polticas abolicionistas e reducionistas passou-se, quase sem soluo de continuidade, ao debate da expanso do poder punitivo. Nele, o tema do inimigo da sociedade ganhou o primeiro plano de discusso.

Talvez os tericos tenham cado, at certo ponto, na negao do fenmeno de endurecimento das legislaes penais sancionadas por causa ou a pretexto de situaes de emergncia, at que a realidade legislativa alcanou um ponto que impedia qualquer mecanismo de fuga. O certo, porm, que a invocao de emergncias justificadoras de Estados de exceo no de modo algum recente. Se nos limitarmos etapa posterior Segunda Guerra Mundial, constararemos que h mais de trs dcadas essas leis vm sendo sancionadas na Europa tornando-se ordinrias e convertendo-se na exceo perptua , tendo sido amplamente superadas pela legislao de segurana latino-americana.

Assinalou-se que as caractersticas deste avano contra o tradicional direito penal liberal ou de garantias consistiriam na antecipao das barreiras de punio (at os atos preparatrios), na desproporo das conseqncias jurdicas (penas como medidas de conteno sem proporo com a leso realmente inferida), na marcada debilitao das garantias processuais e na identificao dos destinatrios mediante um forte movimento para o direito penal de autor .

Na doutrina jurdico-penal, pode-se distinguir o debilitamento do direito penal de garantias atravs da imputao jurdica conforme critrios que so independentes da causalidade; da minimizao da ao em benefcio da omisso, sem que interesse o que o agente realmente faa, a no ser o dever que tenha violado; da construo do dolo sobre a base do simples conhecimento (teoria do conhecimento), que lhe permite abarcar campos antes considerados prprios da negligncia; da perda de contedo material do bem jurdico, com os conseqentes processos de clonao que permitem uma nebulosa multiplicao de elos; do cancelamento da exigncia de lesividade conforme multiplicao de tipos de perigo sem perigo (perigo abstrato ou presumido); da leso legalidade mediante tipos confusos e vagos e a delegao de funo legislativa penal, sob o pretexto das chamadas leis penais em branco, etc.

3. O contexto mundial atual torna a reao poltica obrigatria

impossvel ignorar que a atual situao mundial constitui um fator determinante do escndalo que parece atingir a discusso no campo penal e poltico-criminal. Com efeito, at agora e pode-se afirmar que durante o ltimo sculo e meio minimizava-se com pouco esforo a desconexo da doutrina penal com a teoria poltica. Todavia, essa situao mudou, no s porque a mudana se expressa em palavras to claras que tornam inevitvel o contraste entre os dois mbitos do conhecimento como tambm e sobretudo porque as circunstncias do mundo variaram de modo notrio, em razo de uma pluralidade de sinais alarmantes: o poder se planetarizou e ameaa com uma ditadura global; o potencial tecnolgico de controle informtico pode acabar com toda intimidade; o uso desse potencial controlador no est limitado nem existe forma de limit-lo investigao de determinados fatos; as condies do planeta se deterioram rapidamente e a prpria vida se encontra ameaada. Opera-se um imenso processo de concentrao de capital que busca maiores rendimentos sem deter-se diante de nenhum obstculo, seja tico, seja fsico. Os Estados nacionais so dbeis e incapazes de prover reformas estruturais; os organismos internacionais tornam-se raquticos e desacreditados; a comunicao de massa, de formidvel poder tcnico, est empenhada numa propaganda vlkisch e vingativa sem precedentes; a capacidademodo unilateral e com fins claramente econmicos; e, para culminar, o poder planetrio fabrica inimigos e emergncias com os conseqentes Estados de exceo em srie e em alta velocidade.

Este contexto no pode deixar de influir sobre nenhum terico do direito e, por mais que se oculte sob os mais reluzentes enfeites jurdicos, a reao que suscita a presena descarnada do inimigo da sociedade no direito penal de carter poltico, porque a questo que se coloca e sempre foi dessa natureza.

Prova disso que cada vez que se discute se possvel tratar alguns seres humanos de acordo com o perigo ou dano que representam e procura-se uma racionalizao mais elaborada, no se pode deixar de invocar Hobbes e, por conseguinte, a questo da soberania, matria que pertence, inquestionavelmente, teoria poltica. O novo panorama globalizador se caracteriza, precisamente, por uma profunda mudana poltica.

Os crimes de destruio macia e indiscriminada ocorridos em 11 de setembro de 2001 e em 11 de maio de 2004 so expresses de violncia brutal que, na opinio dos internacionalistas, configuram crimes de lesa-humanidade, os quais, por sua vez, so respostas a outras violncias e assim poderamos continuar at Ado e Eva ou at o primeiro golpe que um homindio desferiu contra outro, sem chegar a nenhuma soluo com vistas a uma convivncia racional no futuro.

No necessrio adotar nenhuma posio radical ou de pacifismo dogmtico nem sustentar a priori que a toda violncia deve responder-se com a no-violncia para verificar que nunca um conflito foi solucionado definitivamente pela violncia, salvo se a soluo definitiva seja confundida com a final (genocdio).

A histria ensina que os conflitos que no terminaram em genocdio se solucionaram pela negociao, que pertence ao campo da poltica. Porm, a globalizao, ao debilitar o poder de deciso dos Estados nacionais, empobreceu a poltica at reduzi-la sua expresso mnima. As decises estruturais atuais assumem, na prtica, a forma pr-moderna definida por Carl Schmitt, ou seja, limitam-se ao mero exerccio do poder de designar o inimigo para destru-lo ou reduzi-lo impotncia total. Qualquer pessoa que l um jornal enquanto toma o seu caf da manh se no limitar a leitura s notcias de esportes vai se inteirando dos passos que o poder mundial toma rumo aos genocdios, ou seja, rumo ao aniqilamento total daqueles a quem considera seus inimigos.

Como resultado desta sensao de minimizao da poltica e da negociao, duas frentes vo sendo delineadas no mundo do pensamento, com seu natural impacto no mundo poltico: a dos direitos humanos e da negociao, por um lado e, por outro, a da soluo violenta que arrasa com os direitos humanos e, mais cedo ou mais tarde, acaba no genocdio. A conscincia desta disjuntiva maior onde as experincias de terrorismo de Estado permanecem na memria coletiva, como na Europa e na Amrica Latina, porm no assim nos Estados Unidos, onde existiram outros abusos repressivos, mas a sua populao no sofreu, em seu territrio, nem a guerra nem o terrorismo de Estado.

4. O inimigo no merece o tratamento de pessoa

A essncia do tratamento diferenciado que se atribui ao inimigo consiste em que o direito lhe nega sua condio de pessoa. Ele s considerado sob o aspecto de ente perigoso ou daninho. Por mais que a idia seja matizada, quando se prope estabelecer a distino entre cidados (pessoas) e inimigos (no-pessoas), faz-se referncia a seres humanos que so privados de certos direitos individuais, motivo pelo qual deixaram de ser considerados pessoas, e esta a primeira incompatibilidade que a aceitao do hostis, no direito, apresenta com relao ao princpio do Estado de direito.

Na medida em que se trata um ser humano como algo meramente perigoso e, por conseguinte, necessitado de pura conteno, dele retirado ou negado o seu carter de pessoa, ainda que certos direitos (por exemplo, fazer testamento, contrair matrimnio, reconhecer filhos etc.) lhe sejam reconhecidos. No a quantidade de direitos de que algum privado que lhe anula a sua condio de pessoa, mas sim a prpria razo em que essa privao de direitos se baseia, isto , quando algum privado de algum direito apenas porque considerado pura e simplesmente como um ente perigoso.

A rigor, quase todo o direito penal do sculo XX, na medida em que teorizou admitindo que alguns seres humanos so perigosos e s por isso devem ser segregados ou eliminados, coisificou-os sem diz-lo, e com isso deixou de consider-los pessoas, ocultando esse fato com racionalizaes. O certo que desde 1948 esse direito penal que admite as chamadas medidas de segurana ou seja, as penas ou algumas penas como mera conteno de um ente perigoso viola o artigo 1 da Declarao Universal dos Direitos Humanos.

A privao de liberdade ou a deportao de uma pessoa em razo de um quarto ou quinto delito de gravidade leve ou mdia contra a propriedade, quando essa pessoa foi condenada e cumpriu pena pelos delitos anteriores, uma reao totalmente desproporcional entidade de seu injusto e de sua culpabilidade e, portanto, o sofrimento que se lhe impe uma pena entendida como mera conteno, um encerramento que cria um puro impedimento fsico; trata-se de uma espcie de enjaulamento de um ente perigoso. claro que esse no nem pode ser o tratamento que se d a algum a quem se reconhece autonomia moral em razo da qual, fazendo uso dela, cometeu uma infrao que causou dano aos direitos alheios, mas sim o que se destina a um animal ou a uma coisa perigosa.

inevitvel que o Estado proceda dessa maneira, porque por trs da mscara acredita encontrar um inimigo, retira-lhe a mscara e com isso, automaticamente, elimina-o do seu teatro (ou de seu carnaval, conforme o caso). Certamente o Estado pode priv-lo de sua cidadania, porm isso no implica que esteja autorizado a priv-lo da condio de pessoa, ou seja, de sua qualidade de portador de todos os direitos que assistem a um ser humano pelo simples fato de s-lo. O tratamento como coisa perigosa, por mais que isso seja ocultado, incorre nessa privao.

No possvel pretender que esse tratamento diferenciado possa ser aplicado a um ser humano sem afetar seu carter de pessoa, quando essa condio absolutamente incompatvel com as puras contenes que s so admissveis quando passageiras ou diante de condutas lesivas, em curso ou iminentes, que devam ser detidas, isto , no momento da agresso ou imediatamente antes, a ttulo de coero direta.

Esclarecido que o tratamento de pura conteno ou impedimento fsico no o que se confere a algum em quem se reconhece a condio de pessoa, intuitivamente por ora pareceria que no Estado constitucional de direito no possvel admitir que um serhumano seja tratado como no-pessoa, fora das hipteses de coero direta administrativa, inevitvel e muito transitria.

Sem prejuzo de voltar ao tema para demonstrar que essa incompatibilidade no apenas intuitiva, tampouco se pode passar por cima do fato de que o tratamento a um ser humano como coisa perigosa que ameaa a segurana ou a certeza acerca do futuro no se limita a despersonalizar apenas quem tratado dessa maneira. Observando mais detidamente esta questo, convm advertir que a priorizao do valor segurana como certeza acerca da conduta futura de algum, e mais ainda sua absolutizao, acabaria na despersonalizao de toda a sociedade.

No h dvida de que caminhar por um bosque duzentos anos atrs era diferente do que hoje. Naquele tempo, a segurana dos outros resumia-se a saber que no mataramos nem assaltaramos quem cruzasse nosso caminho; hoje, para proporcionar segurana aos demais e, sobretudo, ao prprio Estado, exige-se de quem anda pelo mundo a preciso de movimento do gato domstico em meio aos cristais. Devemos prestar a mxima ateno para no esquecermos de registrar nenhum rendimento para no lesar o fisco, nem comprar um cheque em dlares sem declar-lo para no favorecer o trfico de cocana, menos ainda para no ter plantas eventualmente alucingenas no jardim ou comprar livros na rua que possam ser vendidos por terroristas.

Precisamos nos mover com mais cuidado e preciso, porque o Estado nos torna, a cada dia, mais garantes daquilo que ns nunca imaginamos que teramos de garantir. Porm, da mesma forma que em intervenes cirrgicas complexas ou na armao de engenhos industriais, os robs alcanam maior preciso, uma vez que no se distraem nem se esquecem. Uma sociedade que aspire segurana com relao conduta posterior de cada um de ns como valor prioritrio, projetada para o futuro e at suas ltimas conseqncias, aspiraria a converter-se numa sociedade robotizada e, por conseguinte, despersonalizada. Certamente, esta distropia por sorte e ser falsa, porque a segurana com relao nossa conduta futura, como se sabe, no nada alm de um pretexto a mais para legitimar o controle social punitivo.

5. Qual a essncia do inimigo?

A negao jurdica da condio de pessoa ao inimigo uma caracterstica do tratamento penal diferenciado que lhe dado, porm no a sua essncia, ou seja, uma conseqncia da individualizao de um ser humano como inimigo, mas nada nos diz a respeito da individualizao em si mesma.

Quando se pergunta a respeito desta essncia, fica inegvel que, conforme doutrina que mais se aprofundou no tema e que a tratou de forma mais desabrida ou seja, sem dissimular a questo nem fugir do problema , o conceito tem origem no direito romano e o autor que trabalhou o tema com maior coerncia na teoria poltica foi Carl Schmitt, que, por sua vez, no fez mais do que resgatar e precisar o conceito tradicional proveniente do direito romano.

Para este terico do Estado absoluto, o inimigo no qualquer sujeito infrator, mas sim o outro, o estrangeiro, e basta, em sua essncia, que seja existencialmente, em um sentido particularmente intensivo, de alguma forma outro ou estrangeiro, de modo que, no caso extremo, seja possvel ocorrer com ele conflitos que no podem ser decididos nem atravs de um sistema de normas pr-estabelecidas nem mediante a interveno de um tertius descomprometido e, por isso, imparcial.

Este conceito bem preciso de inimigo remonta distino romana entre o inimicus e o hostis, mediante a qual o inimicus era o inimigo pessoal, ao passo que o verdadeiro inimigo poltico seria ouerra como negao absoluta do outro ser ou realizao extrema da hostilidade. O estrangeiro, o estranho, o inimigo, o hostis, era quem carecia de direitos em termos absolutos, quem estava fora da comunidade.

A palavra hostis provm da raiz snscrita ghas-, que alude a comer, o que explica sua origem comum com hostera [estalagem]. Hostire tambm significa matar e hostia [hstia] tem o sentido de vtima. Em muitas sociedades, a pena mxima era a expulso da comunidade, ou exlio, a perda da paz (die Friedlossigkeit), justamente por deixar o sujeito na situao de estrangeiro, estranho, inimigo, privado de todo direito.

Do prprio direito romano surgiram os eixos troncais que haveriam de servir de suportes posteriores a todas as subclassificaes do hostis levadas em conta para o exerccio diferencial do poder punitivo e racionalizadas pela doutrina penal. Estas categorias remontam a duas, originrias do direito romano: a do hostis alienigena que em escassa porm alguma medida protegia o jus gentium e a do hostis judicatus, ou seja, aquele declarado hostis em funo da auctoritas do Senado, que era um poder excepcional: em situaes excepcionais, nas quais um cidado romano ameaava a segurana da Repblica por meio de conspiraes ou traio, o Senado podia declar-lo hostis, inimigo pblico.

O estrangeiro (hostis alienigena) o ncleo troncal que abarcar todos os que incomodam o poder, os insubordinados, indisciplinados ou simples estrangeiros, que, como estranhos, so desconhecidos e, como todo desconhecido, inspiram desconfiana e, por conseguinte, tornam-se suspeitos por serem potencialmente perigosos. No se compreende o estrangeiro porque no possvel comunicar-se com ele, visto que fala uma lngua ininteligvel: no h comunicao possvel com o hostis. Para os romanos, todos os estrangeiros eram barbari, palavra tomada do grego que indicava o no-grego, de lngua incompreensvel, e que provm da raiz snscrita baba-, prxima a balbucio e parlenda.

Nas subclassificaes posteriores desta categoria geral inclui-se o hostis estrangeiro que explorado, desde o prisioneiro escravizado da Antigidade at o imigrante dos dias de hoje. Se bem que as condies jurdicas tenham variado substancialmente, trata-se sempre de um estrangeiro vencido, o que acarreta a necessidade blica ou econmica, e, portanto, deve ser vigiado, porque, como todo prisioneiro, tentar, enquanto puder e quando houver oportunidade, de subtrair-se de sua condio subordinada.

O inimigo declarado (hostis judicatus) configura o ncleo do tronco dos dissidentes ou inimigos abertos do poder de planto, do qual participaro os inimigos polticos puros de todos os tempos. Trata-se de inimigos declarados, no porque declarem ou manifestem sua animosidade, mas sim porque o poder os declara como tais: no se declaram a si mesmos, mas antes so declarados pelo poder. A instituio do hostis judicatus romano cumpria a funo de deixar o cidado em condio semelhante do escravo, para tornar-lhes aplicveis as penas que eram vedadas para os cidados. A subtrao condenao judicial mediante a expatriao fazia cessar automaticamente tambm a condio de cidado. O hostis, inimigo ou estranho nunca desapareceu da realidade operativa do poder punitivo nem da teoria jurdico-penal (que poucas vezes o reconheceu abertamente e, quase sempre, o encobriu com os mais diversosnomes). Trata-se de um conceito que, na verso original ou matizada, de cara limpa ou com mil mscaras, a partir de Roma, atravessou toda a histria do direito ocidental e penetrou na modernidade, no apenas no pensamento de juristas como tambm no de alguns de seus mais destacados filsofos e tericos polticos, recebendo especiais e at festejadas boas-vindas no direito penal.

Trata-se de um elemento conceitual contraditrio dentro do Estado de direito porque arrasta a semente de sua destruio, muito embora sua incoerncia s se tenha manifestado nos anos 30 do sculo passado, por obra da pena de Schmitt, o mais destacado terico poltico do nazismo. Sua lamentvel filiao poltica fez com que suas observaes no merecessem suficiente ateno nas dcadas posteriores e menos ainda por parte dos penalistas.

A tarefa que devemos enfrentar no a simples postulao de sua recusa no direito penal o que no tarefa simples em si mesma, dado que se trata de uma presena visvel ou invisvel, porm constante , mas precisamente para eliminar essa presena mister encarar outro esforo, muito mais amplo: nunca eliminaremos ou reduziremos a presena do hostis no direito penal se antes no verificarmos que se trata de uma cunha de madeira mole por dentro. O pensamento moderno nos oferece os elementos para proceder a essa verificao, porm cometeramos um grave erro se, deixando-os de lado, ns nos apoissemos somente em sua componente contraditria para apresent-lo como ps-moderno ou superador da modernidade, quando, na realidade, no se trata de nada mais do que um obstculo do pensamento pr-moderno arrastado contraditoriamente pela modernidade.

Contra o que foi dito acima se argumentar que o hostis dos dias de hoje submetido conteno como indivduo perigoso apenas na estrita medida da necessidade, ou seja, s se priva o inimigo do estritamente necessrio para neutralizar seu perigo, porm deixa-se aberta a porta para seu retorno ou incorporao, mantendo todos os seus outros direitos. Em outras palavras, esta no seria nada alm de uma simples limitao do princpio do Estado de direito imposta pela necessidade e em sua estrita medida.

O que esta resposta desconhece que, para os tericos e sobretudo para os prticos da exceo, sempre se invoca uma necessidade que no conhece lei nem limites. A estrita medida da necessidade a estrita medida de algo que no tem limites, porque esses limites so estabelecidos por quem exerce o poder. Como ningum pode prever exatamente o que algum de ns nem sequer ns mesmos far no futuro, a incerteza do futuro mantm aberto o juzo de periculosidade at o momento em que quem decide quem o inimigo deixa de consider-lo como tal. Com isso, o grau de periculosidade do inimigo e, portanto, da necessidade de conteno depender sempre do juzo subjetivo do individualizador, que no outro seno o de quem exerce o poder.

O conceito mesmo de inimigo introduz de contrabando a dinmica da guerra no Estado de direito, como uma exceo sua regra ou princpio, sabendo ou no sabendo (a inteno pertence ao campo tico) que isso leva necessariamente ao Estado absoluto, porque o nico critrio objetivo para medir a periculosidade e o dano do infrator s pode ser o da periculosidade e do dano (real e concreto) de seus prprios atos, isto , de seus delitos, pelos quais deve ser julgado e, se for o caso, condenado conforme o direito. Na medida em que esse critrio objetivo abandonado, entra-se no campo da subjetividade arbitrria do individualizador do inimigo, que sempre invoca uma necessidade que nunca tem limites, uma Not que no conhece Gebot.

De todo modo e para concluir, o que se discute em doutrina penal a admissibilidade do conceito de inimigo no direito penal (ou no direito em geral) do Estado de direito, considerando como tal aquele que punido s em razo de sua condio de ente perigoso ou daninho para a sociedade, sem que seja relevante saber se a privao dos direitos mais elementares qual submetido (sobretudo, a sua liberdade) seja praticada com qualquer outro nome diferente do de pena, e sem prejuzo, tampouco, de que se lhe reconhea um resduo de direitos mais ou menos amplo.

6. Duas palavras sobre o "direito penal"

Se, na realidade, o direito penal sempre aceitou o conceito de inimigo e este incompatvel com o Estado de direito, o que na verdade seria adequado a ele seria uma renovao da doutrina penal corretora dos componentes autoritrios que a acompanharam ao longo de quase todo seu percurso ou, em outras palavras, um ajustedo direito penal que o compatibilize com a teoria poltica que corresponde ao Estado constitucional de direito, depurando-o dos componentes prprios do Estado de polcia, incompatveis com seus princpios.

No obstante, para se livrar do efeito perverso do conceito de inimigo no direito penal, ou pelo menos para cont-lo, no basta precisar o conceito de inimigo; necessrio tambm precisar previamente o que se entende por direito penal.

Embora no seja costume reparar-se nesta necessidade na doutrina em geral, obrigatrio proceder a essa preciso, porque as palavras cujo uso abusivo tornam-se equvocas. Na linguagem jurdica, o desgaste tem conseqncias mais graves que em outros mbitos, justamente pela demanda de preciso semntica que a natureza da funo a ser cumprida impe. Por isso, no parece conveniente e talvez nem sequer tolervel avanar sem reparar no deterioramento semntico da prpria expresso direito penal.

Em qualquer discurso, inclusive no tcnico, podem ser encontradas frases como estas:

(a) O direito penal no pode combater a pobreza.

(b) O direito penal no apena essa conduta.

(c) O direito penal no analisou esse tema.

Trata-se de um mesmo sujeito gramatical, porm com trs sentidos semnticos diferentes: a frase a) denota o poder punitivo do Estado como fato, como dado real, sociolgico, histrico ou atual; a frase b) refere-se claramente legislao penal; e a frase c) indica uma omisso da teoria ou doutrina33.

Para afinar um pouco o instrumento da palavra, chamaremos, doravante, o sujeito da frase (a) de poder punitivo, o da frase (b) de legislao penal e reservaremos a denominao direito penal para a doutrina jurdico-penal (saber ou cincia do direito penal) da frase (c).

Enquanto que (a) o exerccio real do poder punitivo obra das agncias executivas do Estado encarregadas da coero e seu estudo matria de disciplinas preferencialmente descritivas, em especial a criminologia ou a sociologia, a (b) legislao penal produzida pelos rgos polticos competentes (legisladores) e (c) seu estudo e teorizao (legitimadora ou deslegitimadora) destinado prtica e docncia, o que corresponde ao direito penal como cincia, doutrina ou saber jurdico (obra dos juristas).

O resultado da confuso semntica entre estes trs sentidos do termo direito penal muito angustiante, pois impede o dilogo, dado que com demasiada freqncia se argumenta no plano do sentido de uma das frases mencionadas e se responde no de uma das duas restantes, ou seja, observaes da realidade so respondidas com conceitos jurdicos ou com dados legais e vice-versa, em qualquer de suas oito possveis combinaes. Isso configura um verdadeiro caos semntico que em algumas ocasies se torna desesperador, pois faz parecer que a linguagem perdeu grande parte de sua funo comunicativa.

Para o objetivo dos dois captulos seguintes deste trabalho, que meramente verificador, trataremos conjuntamente do exerccio real do poder punitivo e da legislao penal, no primeiro, e da doutrina jurdico-penal, no segundo.

Basicamente, interessa-nos distinguir entre o tratamento oferecido ao inimigo ou estranho desde a histria e a realidade do poder punitivo tal como se o habilitou legislativamente e como operou e opera na sociedade, e os discursos dos doutrinrios ou juristas e dos criminlogos que, em diversas ocasies, forneceram elementos que facilitaram a racionalizao da categoria dos inimigos ou estranhos de forma mais ou menos aberta e com conseqncias algumas vezes relativamente prudentes, mas que em outras chegaram at as suas ltimas e inevitveis conseqncias, legitimando ou postulando diretamente o genocdio.