o direito ao meio ambiente equilibrado e sua interpretação constitucional

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IRIGARAY, C. T. H. . O direito ao Meio Ambiente Equilibrado e sua Interpretação Constitucional. In: Luiz Alberto Esteves Scaloppe. (Org.). Transformações no Direito Constitucional. 02 ed. Cuiabá: Fundação Escola, 2003, v. 2, p. 194-224 O Direito ao Meio Ambiente Equilibrado e sua Interpretação Constitucional Carlos Toeodoro José Hugueney Irigaray 1 Sumário: Introdução; 1. Peculiaridades da hermenêutica constitucional; 2. O Direito ao meio ambiente equilibrado como direito fundamental; 3. O Direito ao meio ambiente equilibrado na visão dos tribunais brasileiros; 4. Conclusão; 5. Bibliografia Introdução A crise ecológica é tema que ultrapassou os limites da discussão acadêmica. Os efeitos perversos da poluição e da degradação ambiental, estão exigindo a definição de políticas públicas consistentes, que limitem direitos e subordinem o exercício de atividades econômicas ao interesse coletivo. Por outro lado, a demanda pela melhoria da qualidade do meio ambiente não está mais restrita a biólogos, ecologistas e políticos, também as massas populares vêm, gradativamente, inserindo em sua agenda de reivindicações, o direito ao meio ambiente equilibrado. No plano internacional o reconhecimento dos chamados direitos humanos de terceira geração, contribuiu significativamente para a inserção desses direitos nas modernas Cartas Políticas. Nesse sentido, foi grande a influência dos Tratados e de outros documentos internacionais, como a Declaração de Estocolmo e o Relatório da Comissão Brundtlandt, no processo que culminou com a constitucionalização do direito ao meio ambiente equilibrado, em nosso País. Propõe-se neste trabalho, uma análise interpretativa do preceito constitu- cional, através do qual o direito ao meio ambiente equilibrado foi reconhecido em nossa Carta Magna. Mais que um exercício de hermenêutica, pretende-se demonstrar que no sistema constitucional brasileiro, a norma que prevê esse direito, tem natureza principial, conferindo a este, ainda, o status de direito fundamental. Uma análise das peculiaridades inerentes à nova hermenêutica constitucional, contextualizam a análise do princípio reconhecido, a partir das novas orientações metodológicas que podem levar à sua efetiva concretização. Esta abordagem se complementa com a análise panorâmica de alguns julgados relativos à matéria, objetivando demonstrar a amplitude e relevância que a matéria adquire no Direito Público, contemporaneamente. 1. Peculiaridades da Hermenêutica Constitucional O tema da interpretação é dos mais controvertidos na seara do Direito Constitucional. Até meados do século XX, poucos autores enfrentaram essa temática, que hoje adquire especial relevância, sobretudo a partir da renovação introduzida no 1 Professor da UFMT. Coordenador do Programa de Mestrado em Direito Agroambiental da UFMT. Procurador do Estado de Mato Grosso. Presidente do Instituto O Direito por um Planeta Verde.

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IRIGARAY, C. T. H. . O direito ao Meio Ambiente Equilibrado e sua Interpretação Constitucional. In: Luiz Alberto Esteves Scaloppe. (Org.). Transformações no Direito

Constitucional. 02 ed. Cuiabá: Fundação Escola, 2003, v. 2, p. 194-224

O Direito ao Meio Ambiente Equilibrado e sua Interpretação

Constitucional

Carlos Toeodoro José Hugueney Irigaray1

Sumário: Introdução; 1. Peculiaridades da hermenêutica constitucional; 2. O Direito ao meio ambiente equilibrado como direito fundamental; 3. O Direito ao meio ambiente equilibrado na visão dos tribunais brasileiros; 4. Conclusão; 5. Bibliografia

Introdução A crise ecológica é tema que ultrapassou os limites da discussão acadêmica.

Os efeitos perversos da poluição e da degradação ambiental, estão exigindo a definição de políticas públicas consistentes, que limitem direitos e subordinem o exercício de atividades econômicas ao interesse coletivo. Por outro lado, a demanda pela melhoria da qualidade do meio ambiente não está mais restrita a biólogos, ecologistas e políticos, também as massas populares vêm, gradativamente, inserindo em sua agenda de reivindicações, o direito ao meio ambiente equilibrado.

No plano internacional o reconhecimento dos chamados direitos humanos de terceira geração, contribuiu significativamente para a inserção desses direitos nas modernas Cartas Políticas. Nesse sentido, foi grande a influência dos Tratados e de outros documentos internacionais, como a Declaração de Estocolmo e o Relatório da Comissão Brundtlandt, no processo que culminou com a constitucionalização do direito ao meio ambiente equilibrado, em nosso País.

Propõe-se neste trabalho, uma análise interpretativa do preceito constitu-cional, através do qual o direito ao meio ambiente equilibrado foi reconhecido em nossa Carta Magna. Mais que um exercício de hermenêutica, pretende-se demonstrar que no sistema constitucional brasileiro, a norma que prevê esse direito, tem natureza principial, conferindo a este, ainda, o status de direito fundamental.

Uma análise das peculiaridades inerentes à nova hermenêutica constitucional, contextualizam a análise do princípio reconhecido, a partir das novas orientações metodológicas que podem levar à sua efetiva concretização.

Esta abordagem se complementa com a análise panorâmica de alguns julgados relativos à matéria, objetivando demonstrar a amplitude e relevância que a matéria adquire no Direito Público, contemporaneamente.

1. Peculiaridades da Hermenêutica Constitucional O tema da interpretação é dos mais controvertidos na seara do Direito

Constitucional. Até meados do século XX, poucos autores enfrentaram essa temática, que hoje adquire especial relevância, sobretudo a partir da renovação introduzida no

1 Professor da UFMT. Coordenador do Programa de Mestrado em Direito Agroambiental da UFMT. Procurador do Estado de Mato Grosso. Presidente do Instituto O Direito por um Planeta Verde.

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Direito Constitucional com o advento da Constituição de Weimar, e também da atuação das Cortes Constitucionais que proliferam no mundo.

Grande parte da resistência à tarefa de hermenêutica constitucional, deveu-se ao positivismo jurídico, que equiparando Constituição e lei, excluiu da tarefa do intérprete a consideração dos princípios e valores que integram o conteúdo material da Constituição, e principalmente, dos direitos fundamentais.

Bonavides observa que a insuficiência da velha hermenêutica, aprisionada ao dedutivismo formalista, excluía da Ciência do Direito a consideração de princípios e valores, que formam o substrato estrutural da Constituição e sobretudo dos direitos fundamentais.

Atribui à Nova Hermenêutica, uma mutação renovadora no constitucionalismo, com a criação cientifica de um novo Direito Constitucional, baseado em uma teoria material da Constituição, que rompe com o jusnaturalismo e o positivismo formalista, consagrando a tese de que a Constituição é direito, e não idéia, ou mero capítulo da Ciência Política.

Como bem assinala o citado autor, “a Constituição é mesmo a lei das Leis e o Direito dos Direitos; o código de princípios normativos que fazem a unidade e o espírito do sistema, vinculado a uma ordem social de crenças e valores onde se fabrica o cimento de sua própria legitimidade”2.

Esse reconhecimento marca uma nítida distinção entre o velho Direito Constitucional e o constitucionalismo de renovação; na tradição do Estado liberal, o tema central para definição do Estado de Direito, era o da organização jurídica dos Poderes; hoje o eixo principal se assenta na esfera dos direito fundamentais, o que levou alguns autores a identificar, na atualidade, uma hipertrofia desses direitos.

Na verdade os direitos fundamentais, saíram de uma posição secundária, onde permaneciam ossificados, o que repercutiu, naturalmente, no constitucionalismo, já que o desenvolvimento do conteúdo jurídico-objetivo dos direitos fundamentais, transformou a Constituição em ordenamento jurídico fundamental da sociedade, e não apenas do Estado. Bonavides aponta algumas consequências desse processo:

a) a irradiação e a propagação dos direitos fundamentais a toda a esfera do Direito privado; em rigor, a todas as províncias do Direito, sejam jusprivatistas, sejam juspubliscistas; b) a elevação de tais direitos à categoria de princípios, de tal sorte que se convertem no mais importante pólo de eficácia normativa da Constituição; c) a eficácia vinculante, cada vez mais enérgica e extensa, com respeito aos três Poderes, nomeadamente o Legislativo; d) a aplicabilidade direta e a eficácia imediata dos direitos fundamentais, com perda do caráter de normas programáticas; e) a dimensão axiológica, mediante a qual os direitos fundamentais aparecem como postulados sociais que exprimem uma determinada ordem de valores e ao mesmo tempo servem de inspiração, impulso e diretriz para a legislação, a administração e a jurisdição; f) o desenvolvimento da eficácia inter privatos, ou seja, em relação a terceiros, com atuação no campo dos poderes sociais, fora, portanto, da órbita propriamente dita do poder Público ou do Estado, dissolvendo, assim, a exclusividade do confronto subjetivo imediato entre o direito individual e a máquina estatal; confronto do qual, nessa qualificação, os direitos fundamentais se desataram; g) a aquisição de um “duplo caráter”, ou seja, os direitos fundamentais conservam a dimensão subjetiva – da qual nunca podem se apartar, pois, se o fizessem, perderiam parte de sua essencialidade – e recebem um aditivo, uma nova qualidade, um novo feitio, que

2 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, 7º ed. São Paulo: Malheiros, 1988, p. 538

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é a dimensão objetiva, dotada de conteúdo valorativo decisório, e de função protetora tão excelentemente assinalada pelos publicistas e juizes constitucionais da Alemanha; h) a elaboração do conceito de concretização, de grau constitucional, de que se têm valido, com assiduidade, os tribunais constitucionais do Velho Mundo na sua construção jurisprudencial em matéria de direitos fundamentais; i) o emprego do princípio da proporcionalidade vinculado à hermenêutica concretizante, emprego não raro abusivo, de que derivam graves riscos para o equilíbrio dos Poderes, com os membros da judicatura constitucional desempenhando, de fato, e de maneira insólita, o papel de legisladores constituintes paralelos, sem possuírem, para tanto, o indeclinável título de legitimidade; e j) a introdução do conceito de pré-compreensão, sem o qual não há concretização3.

Das conseqüências apontadas pelo autor, algumas merecem destaque pela importância que adquirem no quadro teórico do novo constitucionalismo; certamente uma das mais relevantes é o reconhecimento do caráter principiológico dos direitos fundamentais. A Constituição passa a ser considerada como um sistema normativo aberto de regras e princípios4.

Enquanto mandamentos nucleares do sistema, “os princípios diferenciam-se das regras pelo seu maior grau de abstração: por serem vagos e indeterminados, constituindo espaços livres para a complementação e desenvolvimento do sistema, por não se limitarem a aplicar-se a uma determinada e precisa circunstância, podendo concretizar-se num sem número de hipóteses. Caracterizam-se também, por conterem os valores políticos e sociais fundamentais ditados pela sociedade, concretizados em diversas normas da Constituição ou cuja concretização a constituição impõe”5.

Essa dimensão axiológica dos direitos fundamentais, não lhes retira a aplicabilidade direta e a eficácia imediata; ao contrário, estes se converteram no mais importante pólo de eficácia normativa da Constituição, na medida em que conservam sua dimensão subjetiva, ostentando ainda, uma dimensão objetiva, com conteúdo valorativo decisório.

Decorre também dessa nova configuração dos direitos fundamentais, a elaboração do conceito de concretização, como contribuição do método concretista, que oferece importante contribuição para a hermenêutica constitucional, na medida em que supera a idéia de mera interpretação, pressupondo que ocorre verdadeiramente um processo de construção de uma norma jurídica, quando se considera os elementos intrínsecos e extrínsecos ao texto da norma.

Outros métodos foram desenvolvidos para a interpretação da Constituição, mesmo porque os métodos clássicos de interpretação são insuficientes, para concretizar, realizar e aplicar os preceitos constitucionais.

Na medida em que esses preceitos são elevados a um patamar hierárquico-normativo superior às demais regras, constituindo-se ademais, em princípios e regras com elevado nível de abstração e caráter essencialmente dinâmico, faz-se mister que a interpretação desses preceitos ocorra em sintonia com a realidade normada.

Nesse sentido, a observação de Canotilho, “o Direito Constitucional é uma ciência normativa, que não pode abdicar de uma metodologia e metódicas específicas,

3 Idem, ibidem, p. 542. 4 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1992, p. 171. 5 CARVALHO, Márcia Haydée P. de . Hermenêutica Constitucional. Métodos e princípios específicos

de interpretação. Florianópolis: Livraria e Editora Obra Jurídica, 1997. p.28.

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essencialmente dirigidas ao processo de concretização e aplicação das normas constitucionais”6.

A doutrina alemã oferece importante contribuição à hermenêutica constitucional. Nas obras de constitucionalistas alemães estão as bases dos métodos de interpretação constitucional mais difundidos na atualidade.

Em linhas gerais, posto que não constituem o tema central deste trabalho, os principais métodos de interpretação empregados no Direito Constitucional contemporâneo, são: o método integrativo, o método tópico, e o método concretista.

No método integrativo, ou científico-espiritual, cuja construção deve-se, preponderantemente, a Rudolf Smend, a interpretação deve considerar o sistema de valores sobre o qual se assenta o texto constitucional; assim a interpretação deve partir de uma articulação integrativa entre o texto legal e os valores reais da sociedade.

No caso de interpretação dos direitos fundamentais, há que se dar uma ênfase ao elemento histórico, pois como enfatiza Smend7, o sistema que conforma os direitos fundamentais, é um todo fundamentado e condicionado historicamente, devendo portanto, ser objeto de um estudo puramente histórico. Segundo ele, a jurisprudência não pode prescindir deste estudo por três razões. Em primeiro lugar, porque a legitimidade que proporciona o sistema dos direitos fundamentais constitui uma definição do ordenamento jurídico positivo, e porque uma das tarefas principais do direito consiste em concretizar o tipo e o grau de legitimidade que possui um ordenamento jurídico positivo. Em segundo lugar, porque é possível encontrar neles certas regras para a interpretação do Direito positivo. E por último, porque os direitos fundamentais, por pertencerem ao Direito especial, somente podem ser aplicados como tais, partindo do contexto global no qual se inserem.

Atribui ainda, o método integrativo, relevância ao espírito da Constituição, aos princípios políticos, assim como aos fatores extra-constitucionais, entre os quais, a realidade existencial do Estado.

Outro método de inegável importância no novo constitucionalismo, trata-se do método tópico, desenvolvido por Theodor Viehweg e Esser, que preocupa-se com as premissas, avaliando os prós e contras de cada uma das soluções possíveis para os problemas, escolhendo desse cotejo, a interpretação mais adequada para cada caso.

Para David Pardo8 “pensar o problema’ constitui o âmago da tópica em suas considerações acerca do método, voltado exclusivamente para a solução 6 CANOTILHO, J. J. Gomes. Ob. Cit. p. 53. 7 Tradução livre. Na edição espanhola: “El sistema que conforman los derechos fundamentales, entanto

que son un todo fundamentado e condicionado historicamente, debe ser objeto de un estudio puramente histórico. La jurisprudencia no puede prescindir de este estudio por tres razones. En primer lugar, porque la legitimidad que proporciona el sistema de los derechos fundamentales constituye una definición del ordenamiento jurídico positivo y porque una de las principales tareas del derecho consiste en concretar el tipo y el grado de legitimidade que posee un ordenamiento jurídico positivo. En segundo lugar, porque es possible encontrar en ellos ciertas reglas para la interpretación del Derecho positivo. Y por último, porque los derechos fundamentales, en tanto que pertencen ellos mismos ao Derecho especial, sólo pueden ser aplicados como tales,partiendo del contexto global en el que se insertan”. IN: SMEND,Rudolf. DerechoConstitucional y Constitución.Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1985, p, 233.

8 PARDO, David Wilson de Abreu. Interpretação Tópica e Sistemática da Constituição. IN: DOBROWOLSKI, Sílvio (Organiz.) A Constituição no mundo globalizado. Florianópolis: Diploma Legal, 2000, p.57

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peculiarmente adequada a cada caso, pensado como um problema em toda a sua complexidade”. Segundo o autor, “argumenta-se em favor da tópica que esta veio dar luz aos problemas do positivismo legalista e sua desgastada fórmula de subsunção dos casos às premissas genéricas do ordenamento jurídico, numa mecânica automatizada em que ao intérprete não restaria muito o que fazer”. Após reconhecer a pertinência das críticas que se faz ao dedutivismo, característico dos métodos hermenêuticos tradicionais, especialmente no positivismo jurídico, David Pardo conclui que “não se reveste a tópica de características jusnaturalistas ontológicas, como se representasse a volta de interminável debate jusfilosófico ocidental. Antes, ‘porquanto volvida concretamente para solucionar problemas traz o inafastável traço de uma abertura completa, compatível com todas as direções possíveis do pensamento jurídico-filosófico”.

Também o método concretista, foi desenvolvido por juristas alemães. Konrad Hesse, Friedrich Müller e Peter Häberle desenvolveram a base dessa metodologia, enriquecida também com importantes contribuições da Jurisprudência da Suprema Corte norte-americana.

Com efeito, graças ao papel da Suprema Corte nos EUA, com uma técnica de interpretação construtiva, de inspiração sociológica, a Constituição americana, embora formalmente rígida pode tornar-se pelo aspecto material, extremamente flexível, possibilitando uma transição do Estado liberal ao Estado social, sem rupturas.

Para Marcia Haydé de Carvalho a tarefa de concretização é composta de várias etapas ou níveis de compreensão da norma que se interpreta: 1) a compreensão prévia ou antecipada do intérprete; 2) a individualização, que estabelece antecipadamente um entendimento do conteúdo da norma individualizada, e 3) a resolução do respectivo problema. Observa ainda a autora que “a grande importância do método concretista, deriva do fato de seus autores tentarem explicar a Constituição sem perda de sua eficácia, e como ela realmente se apresenta, com vínculos materiais indissolúveis, de modo a superar o divórcio entre a Constituição formal e a Constituição material”9.

Nesse sentido enfatiza Hesse que (...) a interpretação tem significado decisivo para a consolidação e preservação da força normativa da Constituição (...) Se o direito e, sobretudo, a Constituição, têm sua eficácia condicionada pelos fatos concretos da vida, não se afigura possível que a interpretação faça deles tábula rasa. Ela há de contemplar essas condicionantes, correlacionando-as com as proposições normativas da Constituição10

Não existe para Hesse, interpretação in abstrato, ela é sempre dependente de um problema concreto.

Assegurar a força normativa da Constituição é tarefa prioritária, sobretudo nos Estados que se caracterizam por crise políticas recorrentes e constantes mutações na ordem constitucional. Essa questão é tanto mais relevante, quando envolve a hermenêutica de direito fundamental; toda a força normativa da Constituição, deve ser dirigida para torná-los efetivos. Concretizar os direitos fundamentais, implica em

9 CARVALHO, Márcia H. P. de. Op. cit. p.64 10 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. Gilvan Ferreira Mendes. Porto Alegre:

Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 22.

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dilatar e aperfeiçoar o conteúdo dos mesmos, adequando-os às mudanças ocorridas na sociedade, de modo a torná-los efetivos e atuais.

Häberle enfatiza o tema da efetividade dos direitos fundamentais, assinalando que “esses direitos se generalizam’ e sua eficácia vinculante já escalou o sentido de declaração de valor meramente programático, que tinham as garantias clássicas, para subir ao degrau da “vinculatoriedade imediata das cláusulas de realização, as quais, por via de tarefas de Estado, são honradas mediante desenvolvimento de novas dimensões conferidas aos direitos fundamentais: da versão individual e objetivo-institucional para o umbral da prestação processual e da obrigação da prestação processual”11.

Todavia, pondere-se que essa vinculariedade imediata não se traduz em efetividade espontânea; esta deve ser fruto de um trabalho de hermeneutas. Especificamente com os direitos fundamentais, esse processo é mais complexo e envolve outras singularidades, porquanto construídos, em geral, por meio de preceitos vagos e abertos, que envolvem valores e definições de primazias. Não é propósito, a afirmação de não se interpreta os direitos fundamentais, concretiza-se.

A verdade é que esse processo de integração e concretização exige uma certa diligência criativa, pressupondo, a vinculação a uma teoria dos direitos fundamentais, e em última instância, a uma concepção do Estado, necessariamente ideológica.

Hans Koch assinala a complexidade e peculiaridade na interpretação dos direitos fundamentais, que possuem uma estrutura normativa singular, exigindo, freqüentemente, “decisões de prioridade”, o que ressalta a importância do emprego do princípio da proporcionalidade, pelo exegeta. Para Koch, na hermenêutica desses direitos devem ser considerados os seguintes aspectos:

O círculo de proteção que deve envolver cada direito fundamental, as respectivas reservas de lei, as normas legais preenchedoras dessas reservas, as normas jurídicas infralegais, sobretudo os decretos, as normas de legislação procedimentais e de competência e os demais mandamentos da Constituição, tais como o pertinente ao princípio do Estado de Direito12.

Márcia Haydée de Carvalho13 apresenta um catálogo de princípios, encontrados nos principais doutrinadores que se contribuíram para a construção dos novos métodos da hermenêutica constitucional, e que merecem ser observados na interpretação dos direitos fundamentais:

1º) Princípio da Unidade Constitucional: O intérprete deve considerar a Constituição na sua globalidade, harmonizando os espaços de tensão existentes entre as normas constitucionais a concretizar;

2º) Princípio das Bases Principiológicas: Deve ser dada ênfase aos princípios, que estão na base do sistema constitucional;

3º) Princípio do Efeito Integrador: Recomenda a priorização da interpretação que favoreça a integração política e social e possibilitem o reforço da unidade política;

4º) Princípio da Proporcionalidade: Essencial à proteção dos direitos fundamentais, compõe-se dos seguintes sub-princípios: a) Adequação - busca do meio 11 HÄBERLE, P. Efectividade de los Derechos Fundamentales en el Estado Constitucional de los

Derechos Fundamentales: Alemania, España, Francia e Italia. Apud: BONAVIDES, Paulo. Ob. cit. p. 549.

12 Koch, Hans. “Die Breguendung von Grudrechtsinterpretionen”. Apud: BONAVIDES, Paulo. Op. cit. p. 545.

13 CARVALHO, Márcia Haydée de. Ob. Cit. p. 71/79.

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adequado para a realização do interesse público; b) Necessidade - deve-se escolher o meio menos nocivo ao interesse dos cidadãos; c) Proporcionalidade stricto sensu - deve-se escolher o meio que, no caso específico, melhor atenda ao conjunto de interesse em jogo;

5º) Princípio da Concordância Prática ou da harmonização: Deve-se estabelecer limites e condicionamentos recíprocos de modo a se conseguir uma harmonização ou concordância prática entre os bens constitucionais;

6º) Princípio da Força Normativa da Constituição: Deve-se dar preferência aos pontos de vistas que possibilitem a atualização da norma constitucional, garantindo a sua eficácia e permanência;

7º) Princípio da Máxima Efetividade das Normas: Na Constituição não devem existir normas tidas por não jurídicas. À norma constitucional deve ser atribuído o sentido que mais eficácia lhe dê;

8º) Princípio do Conteúdo Implícito das Normas Constitucionais: Deve-se considerar também o conteúdo implícito das normas constitucionais;

9º) Princípio da Constitucionalidade Material: A interpretação deve aproximar a Constituição da realidade sobre a qual atua;

10º) Princípio da Constituição Aberta: Sendo a Constituição aberta, sua interpretação também deverá sê-lo;

11º) Princípio do Respeito ao Espírito e à Ideologia da Constituição: É um erro interpretar a Constituição sem levar em conta seu manancial político e ideológico;

12º) Princípio da Obediência à Supremacia das Normas Constitucionais: A interpretação da Constituição pode ser conciliada com a legislação infraconstitucional, mas não pode ser restringida ou alterada por ela;

13º) Princípio da Excepcionalidade da Interpretação Restritiva: O critério da interpretação restritiva é uma excepcionalidade e só deve ser adotado, quando houver na própria regra ou em outras regras constitucionais, um interesse específico a ser protegido;

14º) Princípio da Imperatividade das Normas Constitucionais: os preceitos constitucionais são quase que invariavelmente imperativos;

15º) Princípio do Sentido Usual das Normas Constitucionais: As palavras expressas no texto constitucional devem ser tomadas em seu sentido usual, exceto quando dessa interpretação decorra contradições ou ambigüidades;

16º) Princípio do Sistema Constitucional: os conceitos exógenos ao texto da Constituição, desde que nele inseridos, devem ser interpretados a partir do sentido que adquirem com sua inserção no sistema constitucional.

Konrad Hesse, também enumera alguns princípios da interpretação constitucional, que segundo ele possuem significado dirigente e limitador para a consideração dos pontos de vista a serem elaborados, quando da resolução do problema. Segundo ele, devem ser empregados: o princípio da unidade da Constituição; o princípio da concordância prática; o critério da exatidão funcional; o princípio da relevância dos pontos de vista elaborados, ou critério do efeito integrador, e o princípio da força normativa da Constituição.

Sobre esse último princípio, Hesse observa que (...) como a Constituição quer ser atualizada, mas as possibilidades e condições históricas dessa atualização se transformam deve, na resolução de problemas jurídico-constitucionais, ser dada a preferência àqueles pontos de vista que, sob

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os respectivos pressupostos, proporcionem às normas da Constituição força de efeito ótimo14.

Importante assinalar, que especificamente para a hermenêutica dos direitos fundamentais, adquirem relevo, os princípios, da unidade constitucional, das bases principiológicas, da proporcionalidade, da força normativa da Constituição e da máxima efetividade de suas normas.

Pode-se afirmar que a interpretação constitucional converteu-se em um importante instrumento de valorização da Constituição, podendo contribuir sobremaneira para esta tenha ampliada sua força normativa; e ela exerce tanto mais esta função, quanto mais promova a materialização, no plano fático, dos preceitos fundamentais, tornando reais e concretos os direitos constitucionalmente reconhecidos.

Cabe à hermenêutica, uma importante missão de aproximar o texto da Constituição a seus destinatários, forjando um ‘sentimento constitucional’ que possa contribuir para a concretização dos princípios nela consagrados.

Valiosa a ponderação de Osmar Medeiros: O direito é relação, e como relação deve estar ao alcance e à disposição da sociedade para a qual pertence. No meio de um ordenamento jurídico eminentemente elitista e de cunho patrimonial, cuja classe majoritária é lembrada com maior alcance apenas no Código Penal, é na Constituição que está o seu instrumento emancipatório, ao qual deve ter amplo acesso, e o qual deve servir de fundamento e apoio a todas as suas lutas mais prementes. A Constituição, documento a ser levado às massas em atendimento às suas necessidades fundamentais, e das massas nascer conforme a realidade, numa dialética onde o veículo interpretativo, mormente por parte daqueles operadores jurídicos que estão em contato direto com a população, tem importância definitiva. Não basta dizer o direito, é preciso viver o Direito e dar vida a este através da práxis, de forma emancipatória e participativa, sem que com isso signifique descurar de sua normatividade15.

Essa exortação é ainda mais apropriada, quando a hermenêutica se volta para a interpretação de uma norma constitucional, conformadora do direito ao meio ambiente sadio, que vem associado à previsão do dever de conservá-lo.

No Capítulo seguinte, o dispositivo constitucional que prevê esse direito é analisado, visando demonstrar a extensão de seu conteúdo, e sua natureza jurídica, enquanto norma de direito fundamental.

2. O Direito ao meio ambiente equilibrado como direito fundamental A previsão constitucional de direitos, cuja titularidade é difusa e

indeterminada é um fenômeno recente e representa uma tendência do constitu-cionalismo contemporâneo que vem ampliando a proteção à coletividade com a incorporação de novos valores que emergem da crescente complexidade da vida social.

Martin Mateo reconhece que o aspecto ideológico foi um fator decisivo na constitucionalização do direito ao meio ambiente equilibrado, alertando para o risco

14 HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Trad.

Luis ª Heck. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1998, p. 68 15 MEDEIROS, Osmar Fernando de. Concretização Hermenêutica da Constituição: na Busca de uma

Tópica Viável. IN: DOBROWOLSKI, Sílvio. Ob. cit., p. 100.

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de que por trás do modismo em que se converteu a matéria ambiental, ocultem responsabilidades e interesses em jogo. Não há como negar que uma eficaz proteção do equilíbrio ecológico pressupõe a adoção de medidas com repercussão social, vale dizer, fundadas em critérios ideológicos.

Defender o meio ambiente é pois, uma decisão eminentemente política, embora as justificativas para escolha de uma ou outra estratégia de ação possa, isto sim, vir mascarada.

Partilhando dessa mesma opinião, Javier Galvez.16 salienta que as distintas orientações ideológicas sobre o particular tem servido para substancializar o tema, evitando que se converta em constitucionais as prescrições sobre o meio ambiente simplesmente para protegê-las por razões práticas frente ao legislador ordinário. Sua inserção nesse terreno não decorre apenas da necessidade de se levar ao convencimento da necessidade de constitucionalizar os problemas ambientais, mas sim precisar que esta matéria reveste-se de fundamental significação, o que justifica a garantia de sua rigidez constitucional.

Esse componente ideológico foi igualmente analisado por Siqueira Castro que assinalou ser, o movimento ecológico, “a última porta aberta para a inalcançada união dos homens, a esperança que restou para a utopia da sociedade fraterna e autogestionária"; assinalou também, com propriedade, que

(...) a ideologia do ecossistema, ao contrário daqueles reinados da filosofia política e existencialista, não traduz uma opção voluntária e facultativa, em face das valorações individuais acerca do papel do homem no tempo e no espaço. Traduz, sim, uma ideologia compulsória e decisiva, fadada a condicionar para sempre as formas de vida na terra e a própria sobrevivência da espécie humana17.

O reconhecimento constitucional do direito ao meio ambiente sadio e equilibrado, efetivou-se com o advento da Constituição Federal, promulgada em 1988, que contempla esse direito em seu artigo 225, verbis:

Art. 225 Todos têm direito ao meio ambiente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. § 1º Para assegurar a efetividade desse direito incumbe ao Poder Público: I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do país e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético; III - definir , em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão

16 Tradução livre. GALVEZ, Javier. Comentários a la Constitucion, Org. FALLA, Fernando Garrido.

Editorial Civitas, Madrid, 1985, p. 811(No original: "las distintas orientaciones ideológicas sobre el particular han servido para sustancializar el tema, evitando que se convirtieran en constitucionales las prescripciones sobre el medio ambiente simplesmente para protegerlas por razones prácticas frente ao legislador ordinario. Su aportación en dicho terreno no ha consistido tan sólo en llevar al convencimiento de la necesidad de constitucionalizar los problemas del medio ambiente, sino en precisar que esta materia reviste una significacion fundamental que justifica la garantia de su rigidez constitucional").

17 CASTRO, Carlos R. de Siqueira. O Direito Ambiental e o Novo Humanismo Ecológico, Revista Forense nº 317, Rio de Janeiro, Forense, 1992, p. 65.

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permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade; V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente; VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade; § 2º Aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com solução técnica exigida pelo órgão público competente, na forma da lei. § 3º As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados. § 4º A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais. § 5º São indisponíveis as terras devolutas ou arrecadadas pelo Estado, por ações discriminatórias necessárias à proteção dos ecossistemas naturais. § 6º As usinas que operem com reator nuclear deverão ter sua localização definida em lei federal, sem o que não poderão ser instaladas.

Observa José Afonso da Silva18 que o dispositivo constitucional que integra o Capítulo reservado ao meio ambiente em nossa Constituição federal compreende três conjuntos de normas.

O caput do art. 225 compreende a norma matriz, (norma-princípio) onde está cristalizado o direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

No parágrafo § 1º, com seus incisos, estão consignados os instrumentos de garantia da efetividade do direito assegurado no caput do artigo. Constituem, na acepção do autor, “normas-instrumentos da eficácia do princípio”, que conferem ao Poder Público os princípios e instrumentos para sua atuação na garantia do citado direito.

Os demais parágrafos do art. 225 compreende um conjunto de determinações particulares, relacionadas a alguns setores considerados primordiais pelo Constituinte.

Como assinalado, o reconhecimento do caráter principiológico dos dispositivos constitucionais orientados para a proteção do meio ambiente, reveste-se de importância, na medida em que estes repercutem sobre as demais normas do sistema, além de exercerem grande influência na interpretação do direito.

Álvaro Luiz Valery Mirra assinala que os princípios definem e cristalizam determinados valores sociais, e vinculam toda a atividade de interpretação e aplicação do Direito. São eles que fixam a unidade e coerência das normas que integram o sistema legislativo ambiental, servindo de critério básico para a exata inteligência e interpretação de tais normas. 18 SILVA, José Afonso. Direito Ambiental Constitucional. São Paulo: Malheiros Editores, 1994, p. 31.

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Dos dispositivos constitucionais atinentes à matéria ambiental, Álvaro Mirra19 extrai os seguintes princípios jurídicos positivados:

1. Princípio da indisponibilidade do interesse público na proteção do meio ambiente: Enquanto bem de uso comum do povo (art. 225/CF) o meio ambiente é um bem que pertence à coletividade e não integra o patrimônio disponível do Estado;

2. Princípio da intervenção estatal obrigatória na defesa do meio ambiente: Decorre da natureza indisponível do meio ambiente;

3. Princípio da participação popular na proteção do meio ambiente: Ainda o art. 225, caput da Constituição Federal atribui também à coletividade o dever de proteger o meio ambiente;

4. Princípio da garantia do desenvolvimento econômico e social ecologicamente equilibrado: A ordem econômica deve observar o princípio da defesa do meio ambiente (art. 170, VI/CF);

5. Princípio da função social e ambiental da propriedade: reconhecida na Constituição federal nos arts. 5º, inc. XXIII, 170, inc. III e 186, inc. II;

6. Princípio da avaliação prévia dos impactos ambientais das atividades de qualquer natureza: Expresso no art. 225 § 1º, inc. IV, da Constituição Federal;

7. Princípio da responsabilização das condutas e atividades lesivas ao meio ambiente: A Constituição Federal prevê, no caso de danos causados ao meio ambiente, a responsabilização civil, administrativa e penal dos infratores, cumulativamente (art. 225 § 3º);

8. Princípio do respeito à identidade, cultura e interesses das comunidades tradicionais e grupos formadores da sociedade: decorre de previsão expressa no art. 216 da Constituição Federal.

Cumpre assinalar, que os princípios elencados por Álvaro Mirra, decorrem de um direito fundamental, reconhecido no caput do art. 225 da Constituição Federal. Reside nessa norma um princípio constitucional impositivo20, na medida em que o reconhecimento de um direito fundamental está associado à imposição, ao Estado e à coletividade, de tarefas necessárias à sua efetivação.

Cumpre observar ainda que a previsão do direito ao meio ambiente equilibrado, associado ao dever de conservá-lo, representa historicamente, o reconhecimento de um interesse difuso, que somente agora ganha, entre nós, status constitucional21.

Rodolfo Mancuso, em obra anterior à Constituição, já observara que os interesses difusos, assim como as liberdades públicas, de um estágio fluido, ascenderam à ordem normativa e, mais recentemente estão sendo guindados a uma

19 MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Princípios Fundamentais de Direito Ambiental. Revista de Direito

Ambiental vol. 2. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1996, p. 54 e ss. 20 Observada a classificação proposta por Canotilho (ob. cit) 21 Rodolfo Mancuso conceitua, analiticamente, os interesses difusos, observando que são "interesses

metaindividuais que não tendo atingido o grau de agregação e organização necessário à sua afetação institucional junto a certas entidades ou órgãos representativos dos interesses já socialmente definidos, restam em estado fluido dispersos pela sociedade civil como um todo, podendo, por vezes, concernir a certa coletividade de conteúdo numérico indefinido". (in: Interesses Difusos, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1988, p. 105).

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posição hierárquico normativa superior, sendo reconhecidos em inúmeros textos constitucionais22.

Esse processo ocorreu em nosso país, com relativa celeridade, talvez sob o influxo de importantes documentos internacionais que tratam do tema, assim como a influência das Cartas Constitucionais promulgadas em vários países, após a II Guerra Mundial.

Assim, a redação adotada pelos Constituintes brasileiros, ao assegurarem, na

Carta Magna, o interesse ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, acompanha a recomendação da Organização das Nações Unidas, consubstanciada na célebre Conferência realizada em Estocolmo (1972).

Não houve pois, nesse aspecto pioneirismo na Constituição brasileira de 1988, já que tanto nos Princípios da Declaração de Estocolmo, como no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais firmado em Nova Iorque, no ano de 1975, o reconhecimento do direito ao meio ambiente equilibrado, vem associado à previsão do dever de conservá-lo.

Constam da Declaração do Meio Ambiente, adotada pela Conferência das Nações Unidas, em Estocolmo(1972), entre outros, os seguintes princípios:

Princípio I – O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequada em um meio cuja qualidade lhe permite levar uma vida digna e gozar de bem-estar e tem a solene obrigação de proteger e melhorar esse meio para as gerações presentes e futuras. (...) Princípio II – Os recursos naturais da terra inclusos o ar, a água, a terra, a flora e a fauna e especialmente as amostras representativas dos ecossistemas naturais devem ser preservados em benefício das gerações presentes e futuras, mediante uma cuidadosa planificação ou regulamentação segundo seja mais conveniente.23

Essa formulação, conjugando o direito/dever foi adotada também pela Constituição portuguesa de 1976 ( art. 66,1 ) e, posteriormente, pela Constituição espanhola de 1978 ( art. 45,1 ). Em ambas coexistem o direito positivo à ação estatal e o direito negativo à abstenção de ações lesivas ao meio ambiente.

Assinala, a propósito, José Afonso da Silva24: A Declaração de Estocolmo abriu caminho para que as constituições supervenientes reconhecessem o meio ambiente ecologicamente equilibrado como um direito fundamental entre os direitos sociais do homem, com sua característica de direitos a serem realizados e direitos a não serem perturbados.25

22 Esse processo de constitucionalização dos interesses difusos fora por ele antevisto, quando afirmou:

"Poderá haver um momento no qual um interesse difuso, à força de ser continuamente revelado e exercitado no seio da comunidade, venha a ganhar foros de uma liberdade pública, a nível constitucional, expressa ou implicitamente" (in MANCUSO, Rodolfo, ob. cit. p.85).

23 Declaração Sobre o Ambiente Humano. Coletânea da Legislação Federal do Meio Ambiente. Brasília: IBAMA, 1992, p. 25.

24 SILVA, José Afonso. Ob. Cit., p. 44. 25 Comentando também essa dupla dimensão do direito ao ambiente na Constituição portuguesa,

Canotilho e Vital Moreira ressaltam que esse preceito "reconhece e garante expressamente a dupla natureza implícita na generalidade dos chamados direitos sociais, simultaneamente direitos a serem realizados e direitos a não serem pertubados (in CANOTILHO, J. J. Gomes & MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada, 2º edição, vol. I, Coimbra Editora, 1984, p. 348).

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Não é outra a conclusão de Galves26, para quem esta explícita conjunção entre direito e dever se deve tanto a exigências técnico jurídicas da articulação do preceito em relação ao que lhe seguem, como a postulados que derivam da própria mecânica do meio ambiente. Com efeito, para desfrutar de um determinado meio ambiente é imprescindível a esta finalidade a participação ativa do meio humano, relacionado permanentemente ou ocasionalmente com o meio ambiente em questão.

O caput do artigo 225 constitui-se num verdadeiro ápice do capítulo dedicado à questão ambiental na Constituição Federal, o qual, por sua abrangência e precisão técnica, veio incorporar-se na ampla maioria das Constituições estaduais.

Nesse dispositivo dois aspectos estruturais de grande repercussão jurídica merecem ser salientados. Ao reconhecer o direito ao meio ambiente equilibrado, os constituintes conjugaram a locução "todos" com a expressão "gerações presentes e futuras".

Conquanto essa conjugação guarde estreita relação com as recomendações aprovadas por ocasião da Conferência de Estocolmo, a previsão constitucional de um interesse difuso, com tal dimensão, possui consequências no plano jurídico que exigem detido exame.

De longe, a mais importante está na legitimação internacional para a defesa ambiental, com o conseqüente redimensionamento do clássico conceito de soberania e implicações também no direito processual pátrio. A "todos" assegura a Constituição o direito previsto no art. 225 da Constituição, incluindo aí estrangeiros, pessoas físicas ou jurídicas, sem qualquer distinção27.

Ao constitucionalizar esse direito, a Assembléia Constituinte não o restringiu a brasileiros e estrangeiros aqui residentes, estendeu-o a todos, permitindo desse modo que entidades ambientalistas de outros países possam acionar no Brasil qualquer agente poluidor.

A experiência já demonstrou que os problemas ambientais desconhecem fronteiras, repercutindo não raramente em países vizinhos, ou mesmo distantes, como nos exemplos das chuvas ácidas provocadas pelas indústrias siderúrgicas do meio oeste americano que atingem as florestas canadenses, ou mesmo, a contaminação radioativa, conseqüência de acidente nuclear da Ucrânia, que atingiu Suécia e Escócia. Conciliar esta nova realidade, caracterizadora de uma ecologia transnacional28, com ordenamentos jurídicos nacionais baseados no conceito

26 Tradução livre. GALVEZ, Javier. Comentários a la Constitucion. In FALLA, Fernando Garrido el

alli , Madrid: Civitas, 1985, p. 811 (No original: "Esta explícita conjunción entre derecho e deber se debe tanto a exigencias tecnico jurídicas de la articulación del precepto en relación con los dos inmediatos que le siguen, como a postulados que derivam de la propria mecanica del medio ambiente. En efecto, para desfrutar de un determinadi medio ambiente es imprescindible a esta finalidade la participacion activa del medio humano relacionado permanente u ocasionalmente com el medio ambiente en cuestión").

27 Embora a expressão "todos" compreenda, face a sistemática jurídica atual, apenas os humanos, únicos titulares de direitos, já se pondera serem também os outros animais detentores do direito ao meio ambiente equilibrado. Conquanto tal debate transcenda para o plano filosófico, a questão tomou contorno jurídico com o voto vencido do Ministro Douglas da Suprema Corte americana que "exigiu legitimidade de pedir não só para as árvores e aves como também em nome de matérias inanimadas prestes a serem espoliadas" (in GUIMARÃES JR. Renato, ob. cit., p. 165).

28 A expressão ecologia transnacional cunhada por PETER F. DRUCKER, designa esse fenômeno da atualidade: a consciência ecológica e as políticas ecológicas já transcendem as fronteiras nacionais. Druker reconhece que a proteção do meio ambiente hoje requer leis ecológicas internacionais,

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tradicional de soberania, tem criado alguns problemas jurídicos, como ocorrido no Brasil, ainda antes do advento da Carta de 1988.

Entre nós, um típico exemplo de conflito transnacional, deu-se no curso da construção da usina nuclear de Angra dos Reis, quando associações ambientalistas americanas propuseram, em Washington, a ação civil nº 1.867/72, contra o Secretário de Estado americano, o Banco de Exportação-Importação e a extinta Comissão de Energia Atômica, visando impedir a exportação de reatores e combustíveis nucleares até que fosse processado o estudo de impacto ambiental. Embora já iniciadas as obras, o estudo de impacto ambiental foi feito e a ação civil julgada ao final procedente.

Esse fato ocorrido a quase duas décadas e pouco conhecido no Brasil, pelo inexplicável sigilo com que se trata, ainda hoje, a questão nuclear, motiva-nos a conjecturar acerca do destino de tal demanda se proposta em nosso país, antes da promulgação da Constituição, que reconheceu legitimação internacional para a defesa do meio ambiente.

De qualquer forma, a Constituição Federal reconheceu, com a redação dada ao dispositivo em exame, a responsabilidade internacional por danos ao meio ambiente, já anteriormente prevista na Declaração de Estocolmo, que contempla em seu postulado 21 a "causa indenizatória governamental".

Ainda quando ao "caput" do art. 225, outro aspecto relevante é a "solidariedade diacrônica com as gerações futuras", expressa na parte final do dispositivo e que guarda curiosa similitude com o "Goa Guidelines on Intergenerational Equity", publicado também de 1988 pela Organização das Nações Unidas.

O documento da ONU sintetiza toda uma construção doutrinária hoje conhecida como Teoria da Eqüidade Intergerações, reforçando, em bom momento, a necessidade de se preservar o patrimônio natural para as gerações futuras.

No campo teórico, advogando a existência de um fideicomisso entre gerações Edith Brow Weiss notabilizou-se internacionalmente ao defender a instituição de um "ombudsman" para as futuras gerações.

Não faltam críticas a essa eqüidade entre gerações; a principal delas se baseia no crescente desenvolvimento tecnológico que poderá, no futuro, recuperar danos ambientais hoje tidos como irreversíveis. Ora, se o conceito de dano irreversível pode eventualmente ser relativo, não autoriza tal constatação, o saque aos recursos naturais sem solidariedade às futuras gerações, mesmo porque a extinção de espécies é sem margem de dúvidas, irreversível.

A sugestão de Weiss, inserida no documento de Goa, é parcialmente suprida em nossa Constituição com o fortalecimento do Ministério Público. As demais recomendações do guia sobre eqüidade intergerações guardam igualmente grande semelhança com os incisos do artigo 225 § 1º, da Carta Magna Nacional .

Vale acrescentar que, ao reconhecerem o direito ao meio ambiente equilibrado, não definiram os Constituintes o que seja meio ambiente, subsistindo destarte, o conceito normativo dado pela Lei que define a Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/81), ao qual se acrescenta nos termos do preceito

advertindo: "Somente acordos transnacionais poderão impedir, quanto mais reverter, a destruição ambiental nos países em desenvolvimento" ( in Novas Realidades, Pioneira, p. 112 ).

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constitucional, tratar-se de bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida29.

Como consectário dessa ampliação, além do expresso dever de defesa e preservação do meio ambiente imposto à coletividade, a doutrina ressalva a existência de limites aos utentes desses bens de uso comum, assinalando que o uso comum geral, por sua própria essência, supõe nele a compatibilidade de todos os cidadãos. Como complementar a este princípio de compatibilidade deve reger o de prioridade, sempre que mediante este o uso geral se converta em abusivo, e tendo em conta que subsiste sempre a possibilidade da Administração em regular a forma desse uso, afim de alcançar melhor a compatibilidade.30

Compatibilizar o uso dos recursos naturais com a preservação do meio ambiente equilibrado, em um país que detém inúmeros records em matéria de degradação, trata-se de um desafio não apenas para a o Poder Público, mas também para a coletividade.

A Constituição reconhece o direito-dever de desfrutar-preservar de um meio ambiente sadio, fornecendo ademais novas ferramentas para a efetivação desse direito; resta à cada brasileiro a responsabilidade de exercer efetivamente sua cidadania, reconhecendo como intrínseca a essa tarefa, a defesa de nosso patrimônio natural.

Importante ressaltar que a participação política do cidadão, em defesa da qualidade de vida pode se efetivar, hoje, em várias instâncias, que vão desde a iniciativa legislativa, até a presença em órgãos colegiados, em audiências públicas e a propositura de ações populares, mandado de segurança coletivo entre outros remédios judiciais.

Todavia, malgrado o inegável avanço, a previsão constitucional do direito ao meio ambiente equilibrado, inserida na Carta de 1988, não significa, de per si a solução para os dramáticos problemas ambientais do país.

Em verdade, a questão da eficácia dessas normas de proteção ambiental consagradas nas novas Constituições, envolve algumas questões complexas. Forçoso reconhecer que, do ponto de vista da normatividade não se pode estabelecer uma hierarquia entre esses dispositivos e aqueles que consagram os direitos e garantias individuais. No dizer de Canotilho, o direito ao meio ambienta equilibrado é um autêntico "direito subjetivo inerente ao espaço existencial do cidadão".

Adverte porém o mestre português, que embora se possa reconhecer nesse direito a mesma densidade subjetiva dos direitos, liberdades e garantias; distinguem-se do ponto de vista da operatividade, na medida em que esses novos preceitos ao

29 A expressão "bem de uso comum do povo" corresponde no direito espanhol à expressão "bem de uso

comum geral". Trata-se de categoria que pode ser deduzida pela própria natureza do bem, em concreto, não suscitando maiores indagações, embora deva-se admitir que o exame da natureza jurídica do direito dos particulares a esse uso comum constituiu-se em tema de longa controvérsia, superado hoje com a introdução do conceito de interesse difuso. Sobre essa polêmica doutrinária ver: AMARAL, Diogo Freitas do. A Utilização do Domínio Público Pelos Particulares. Lisboa: Coimbra Editora, 1965.

30 Tradução livre de GAMIR, R. Parejo & OLIVER, J. M. Rodrigues. Leciones de Domínio Público. Madrid: Libreria ICAI, 1976, p. 53 (No original: "el uso comúm general, por própia esencia, supone la compatibilidad en él de todos los ciudadanos. (...) Como complementário a este principio de compatibilidad deve regir el de prioridad, siempre que mediante éste el uso general no se convierta en abusivo, y teniendo en cuenta la possibilidad de la Administracion, subsistente siempre, de regular, la forma de dicho uso a fin de lograr mejor la compatibilidad).

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invés de se articularem enquanto pretensão de omissão, exigem, ao contrário, uma intervenção ativa do Poder Público como forma de proteger o interesse difuso assegurado pela norma.

Outra particularidade, apontada por Canotilho, refere-se ao fato de que os direitos sociais, entre os quais inclui o autor o direito ao meio ambiente e a qualidade de vida, não se traduzem em justiciabilidade imediata, mas sim no "estabelecimento de imposições constitucionais dirigidas fundamentalmente aos órgãos de direção política, dependendo, por conseguinte, das várias estratégias políticas tendentes à concretização dos fins e tarefas constitucionalmente definidos".

Como decorrência dessas especificidades, ressalta Canotilho que "o problema da operatividade dos direitos econômicos, sociais e culturais confronta-se com a relativização destes mesmos direitos, pois uma otimização dos direitos a prestações pressupõe a "interpositio" do legislador e a subordinação da efetividade concreta dos direitos em questão a uma "reserva econômica do possível", eventualmente interpretada pelos órgãos de direção política segundo os modelos político-econômicos portadores dos seus programas de ação”.31

Destarte, embora se possa reconhecer que o direito ao meio ambiente equilibrado não tenha uma normatividade diminuída em face das garantias previstas também na Constituição, forçoso é admitir que a realização desse direito esbarra em complexos problemas de operatividade prática, e

(...) embora ao dever jurídico-constitucional do legislador não corresponda uma pretensão jurídico-subjetiva, autonomamente acionável, o legislador não pode deixar de suportar uma censura de intensidade equivalente à interferência ou coação ilícita no âmbito dos direitos, liberdades e garantias32.

Outro aspecto, igualmente relevante, está no reconhecimento do direito ao meio ambiente sadio, como um dos direito fundamentais, abrangido portanto, pela proteção reservada ao núcleo intangível da Constituição Federal.

Com efeito, nossa Carta Magna estabeleceu em seu art. 5º § 2º, que os direitos e garantias nela expressos não excluem outros decorrentes dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que o País seja signatário, conforme estabelecido no dispositivo retro:

Art. 5º (...) § 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

Aplica-se na interpretação desse dispositivo, o princípio do conteúdo implícito das normas constitucionais, para considerar que integra o rol dos direitos fundamentais, aqueles explicitamente arrolados no artigo 5º da Constituição Federal, como também aqueles implicitamente assim considerados.

Além de constar do Título reservado à Ordem Social, na Constituição brasileira, e nessa condição, poder ser considerado um direito social, o direito ao meio ambiente equilibrado insere-se entre os direitos fundamentais, também por força da já

31 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional, Coimbra: Almedina, 1986, p. 512. 32 Uma primeira reação possível, nessa hipótese, segundo o constitucionalista português, é o

desencandeamento do processo de inconstitucionalidade por omissão (in CANOTILHO, J. J. Gomes. Idem. Ibidem).

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mencionada Declaração do Meio Ambiente, adotada pela Conferência das Nações Unidas, em Estocolmo (1972).

Enquanto direito fundamental, o direito ao meio ambiente equilibrado deve ser considerado também como cláusula pétrea, não podendo ser objeto de deliberação, a proposta de emenda tendente a aboli-lo (art. 60 § 4º, IV).

Com efeito, no supramencionado dispositivo, a Constituição Federal de 1988 prevê um elenco de cláusulas também denominadas de super-constitucionais, através de um compromisso maximizador que permitiu a constitucionalização de variados interesses de demandas substantivas.

Trata-se de um tema tormentoso, na esfera do Direito Público. Segundo Oscar Vieira33, esse processo (infração constituinte) é uma resposta às diversas experiências autoritárias de nossa história; alerta porém, o autor, que esse “engessamento da ordem jurídica” cria limitações à dinâmica social abrindo espaço para freqüentes rupturas34 .

Observa ainda que esses dispositivos super-constitucionais, se mal formulados ou interpretados podem constituir-se em instrumento antagônico à democracia, mas se bem construídos e aplicados, poderão favorecer a continuidade da jornada. Para Oscar Vieira, devem merecer a proteção super-constitucional:

1. os direitos que conferem autonomia privada a cada indivíduo, bem como as garantias necessárias para que essas liberdades sejam preservadas;

2. a instituição do estado de Direito, que garanta o princípio da legalidade; 3. um rol de direitos essenciais para que a igualdade e dignidade dos

cidadãos, enquanto seres racionais e autônomos seja mantida, e 4. os direitos sociais, econômicos e culturais básicos. Certamente o direito ao meio ambiente equilibrado, deve ser considerado no

rol dos direito essenciais para a preservação da vida e da dignidade do ser humano. Com efeito, não podemos nos esquecer, que a proteção legal do meio

ambiente, iniciou-se no nosso País, a partir do momento em que os níveis de poluição e contaminação, na cidade de Cubatão, provocaram o nascimento de crianças com alterações mutagênicas, incluindo o nascimento de fetos sem cérebro. Também não é demais lembrar, que os desequilíbrios ambientais, podem comprometer a própria continuidade da vida na terra, conforme o repetido alerta de conceituados cientistas.

Finalmente, há que se considerar que o direito à vida digna é a matriz de todos os direitos fundamentais do homem, é ele que deve orientar todas as formas de atuação no campo da tutela do meio ambiente. Como assinala José Afonso da Silva,

(...) o direito à vida há de estar acima de quaisquer outras considerações como as de desenvolvimento, como as de respeito ao direito de propriedade, como as da iniciativa privada. Também estes são garantidos no texto constitucional, mas a toda evidência, não podem primar sobre o direito fundamental à vida, que está em jogo quando se discute a tutela da qualidade do meio ambiente. É que a tutela

33 VIEIRA, Oscar. A Constituição como Reserva de Justiça. In Lua Nova nº 42, São Paulo: CEDEC,

1997, p. 53/97. 34 Também Manoel Gonçalves Ferreira Filho questiona a significação e o alcance das “Cláusulas

Pétreas” afirmando que a intocabilidade dessas clásusulas, que petrificam o texto brasileiro, não é um dogma. In: Significação e alcance das ‘Cláusulas Pétreas’. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política nº 13. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 5/8.

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da qualidade do meio ambiente é instrumental no sentido de que, através dela, o que se protege é um valor maior: a qualidade da vida.35

Outro aspecto importante que deve ser considerado na interpretação do direito ao meio ambiente equilibrado, é a possibilidade de colisão desse direito, com outros bens jurídicos protegidos constitucionalmente.

Argumenta-se freqüentemente que a abrangência reconhecida ao direito ao meio ambiente equilibrado, colide com o exercício do direito de propriedade; isso tem ocorrido, sobretudo quando as restrições impostas pela necessidade da tutela ambiental, implicam, em limitações administrativas ao direito de propriedade. Assim por exemplo, a criação de uma área de preservação ambiental (APA), não implica na desapropriação da área abrangida, mas impede o proprietário de exercer determinadas atividades econômicas, em razão do interesse público. Nessa hipótese, argumenta-se que o princípio do meio ambiente equilibrado estaria em colisão com os princípios da propriedade e da livre iniciativa.

Robert Alexy assinala que na hipótese de colisão de princípios, um dos princípios deve ceder ao outro, o que não significa a invalidação do princípio descartado, ou que nele tenha que se introduzir uma cláusula de exceção. Pondera, o autor, que nos casos concretos, os princípios possuem peso diferente, devendo prevalecer, na interpretação, o princípio de maior peso36.

No exemplo assinalado, estamos diante de uma aparente colisão de princípios, facilmente superada com uma interpretação da Constituição que leve em consideração os princípios da unidade da Constituição, do sistema constitucional e da concordância prática ou harmonização.

Verifica-se no texto constitucional que a propriedade rural só exerce sua função social quando atende o requisito da utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente (art. 186, II); também a ordem econômica, fundada na livre iniciativa, deve observar, como princípio, a defesa do meio ambiente (art. 170, VI); donde se conclui que inexiste colisão de princípios; bastando que tais dispositivos sejam harmonizados, para o reconhecimento da supremacia do direito ao meio ambiente, no exemplo apresentado.

Nesse sentido, não estando inviabilizada a exploração econômica do imóvel, ou, conforme as palavras do pelo Ministro Celso de Mello37, não implicando “em esvaziamento do conteúdo econômico da propriedade”, não cabe ao proprietário do imóvel protegido, a indenização por desapropriação indireta.

Embora a constitucionalização do direito ao ambiente equilibrado, no Brasil, seja um fenômeno recente, todo um sistema legal de proteção a este direito, foi estruturado no plano infraconstitucional. Inúmeras ações estão sendo propostas com vistas à proteção desse direito, na esfera civil e penal.

No Capítulo seguinte, algumas decisões judiciais são apresentadas, objetivando demonstrar a abrangência que está alcançando o direito ao meio ambiente equilibrado, no ordenamento jurídico brasileiro.

3. O Direito ao meio ambiente equilibrado na visão dos tribunais

brasileiros 35 SILVA, José Afonso. Op. cit. p. 44 36 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios

Constitucionales, 1993, p. 89. 37 RE nº 134,297-8 SP.

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Inicialmente cabe assinalar que a consagração do direito ao meio ambiente sadio é um fenômeno recente; o capítulo do meio ambiente, inserido em nossa Carta Magna não encontra precedente em nosso ordenamento constitucional e constitui-se inegável avanço, se comparado à regulamentação constitucional de outros países, razão pela qual, não se pode contar com uma doutrina ou mesmo uma jurisprudência sedimentadas.

Destarte, desde o advento da Carta de 1988, o reconhecimento constitucional do direito ao meio ambiente sadio e equilibrado, suscitou a edição de inúmeros diplomas legais, regulamentando amplamente a matéria no plano infraconstitucional, o que levou alguns autores, como Édis Milaré, a cunhar a expressão “poluição legislativa”, tal a quantidade e abrangência dos diplomas legais que regulamentaram a matéria em seus múltiplos aspectos.

Acompanhando esse esforço de implementação do citado direito, inúmeras ações estão sendo propostas, em sua maioria, objetivando a cessação de práticas, ou condutas, deletérias ao meio ambiente, ou ainda, a reparação de danos ambientais.

Aos poucos vem se consolidando uma jurisprudência firme no sentido de assegurar a supremacia do interesse público sobre o particular, reconhecendo ainda, o dever do Estado de promover a proteção do meio ambiente.

A expressão meio ambiente, consoante conceito normativo, apresentado pela Lei de Política nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938, de 31.08.81) , compreende: “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas” (art. 3º, I).

Trata-se de conceito extremamente abrangente, que está sendo interpretado em toda sua amplitude, compreendendo, segundo a doutrina, o meio ambiente natural, o meio ambiente artificial e o meio ambiente cultural.

Certo é que a abrangência do direito ao meio ambiente equilibrado, tem suscitado a propositura de ações com os mais diversificados pedidos, englobando temas variados como poluição atmosférica, contaminação de recursos hídricos, resíduos sólidos, ordenamento territorial, desmatamentos, maus-tratos à fauna, danos ao patrimônio paisagístico, reparação de dano ambiental, entre outros.

Os julgados abaixo transcritos são ilustrativos do amplo aspecto que a jurisprudência, em matéria ambiental, está tomando após o advento da Carta de 1988.

Dano ao patrimônio natural, cultural e paisagístico

AÇÃO CIVIL PÚBLICA – ATIVIDADE GARIMPEIRA – DANO AO MEIO AMBIENTE – ZONAS DECLARADAS DE PROTEÇÃO AMBIENTAL DEFINITIVA – RESTRIÇÕES – FUNÇÃO SOCIAL – “Ação civil pública. Atividade garimpeira no Rio Vermelho e seus afluentes. Dano ao meio ambiente e ao patrimônio cultural e paisagístico. Proibição de não fazer (...) 2. Conceitua-se o meio ambiente como “a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciam o desenvolvimento equilibrado da vida humana”. Por via da ação civil pública, promove-se a defesa de bens culturais e patrimoniais coletivos, cuja proteção hoje é tratada como de ordem pública, segundo dispõe a Lei maior do País (art. 225). 3. As propriedades circunscritas na zona declarada de proteção ambiental definitiva, continuam garantidas como propriedade privadas, porém seu uso sofre as restrições determinadas pela sua função social (CF art. 5º XXII e XXIII) – Apelo Improvido (Apelação Cível 28.606 – TJ/GO – Ver. Dir. Ambiental 1/189).

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Desmatamento de área legalmente protegida

AÇÃO CIVIL PÚBLICA – INDENIZAÇÃO – DESMATAMENTO DE ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE – PROVA IRREFUTÁVEL – CONDENAÇÃO PARA RECOMPOSIÇÃO DA ÁREA EM SEU ESTADO ANTERIOR – AÇÃO JULGADA PROCEDENTE – RECURSO NÃO PROVIDO (TJSP – APELAÇÃO 144.513.1-6 – 3º CÂMARA CIVIL)

Desfiguração da paisagem

AÇÃO DE ANULAÇÃO DE REGISTRO DE LOTEAMENTO – Desfiguração da paisagem e danos a recursos naturais da região (Sentença no processo 697/85 – 1º vara da Comarca de São Sebastião-RJ).

Poluição sonora

AÇÃO CIVIL PÚBLICA – PRETENSÃO DE CONDENAÇÃO DA RÉ AO CUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER CONSISTENTE EM CESSAR A ATIVIDADE DEGRADADORA DO MEIO AMBIENTE, COM A PARALIZAÇÃO IMEDIATA E INTEGRAL DA EMISSÃO DE POLUIÇÃO SONORA – ADMISSIBILIDADE – PROVA NOS AUTOS DA EMISSÃO DE RUÍDOS ACIMA DO PERMITIDO NO ESTABELECIMENTO DA RÉ – MULTA CORRETAMENTE APLICADA – RECURSO IMPROVIDO (TJSP – 4º Câmara Cível Apelação Cível 004.939-5/2).

Poluição por resíduos sólidos

AÇÃO CIVIL PÚBLICA – Dano Ambiental – Lixo – Destinação final – Ação procedente para compelir a Municipalidade a fazer aterro sanitário e a não depositar detritos noutro local – Recurso não provido (TJSP – Ap. Civ. Nº 113.882-1).

Configuração de delito

COMPETÊNCIA – CRIME CONTRA A FAUNA – JUSTIÇA FEDERAL. A caça ou apanha das espécies de nossa fauna silvestre foi elevada à categoria de crime federal com o advento da Lei n. 7.653/88, logo, as condutas desta natureza afetam bens ou interesses da União, o que convoca, para o feito, a competência da Justiça federal, mercê do art. 109, IV da CF/88 (Ccomp. 3.369-9-SC, RSTJ, 43:25). CRIME CONTRA O MEIO AMBIENTE - POLUIÇÃO DO RIO PARNAÍBA – VIOLAÇÃO DO ART. 15 DA LEI 6.938/81. Comete o crime previsto no art.15 da Lei 6.938/81 o proprietário de curtume que lança no rio matérias orgânicas putrefactas, matérias não biodegradáveis, substâncias tóxicas, poluindo-o, criando assim, uma situação de perigo para a vida humana, animal e vegetal (TRF – 1º Reg. 3º T. Ap. 95.01.11586-0-PI, RT 729:651). CRUELDADE CONTRA ANIMAIS – INDIVÍDUOS QUE, A GOLPE DE ENXADA, QUEBRAM A PERNA DE EQUINO, ABANDONANDO-O SEM SOCORRO. Protege a lei os animais não só por sentimento de piedade como também para educar o espírito humano, a fim de evitar que a prática de atos de

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crueldade possa transformar os homens em seres insensíveis ao sofrimento alheio, tornando-os também cruéis para com os semelhantes (RT 295/343).

Em que pese a aparente unanimidade em torno da importância do meio

ambiente, a questão ambiental polariza. O interesse pela concretização do direito ao meio ambiente equilibrado, conflita com a cupidez de grupos econômicos, de interesses imediatistas, quando não enfrenta resistências de ordem cultural.

Um exemplo de conflitos de ordem cultural, foi resolvido recentemente, pelo Supremo Tribunal Federal, quando este apreciou, em recurso extraordinário, decisão proibindo a “farra do boi” em Santa Catarina.

Tratando-se de prática, que integra o patrimônio da cultura açoreana, a “farra do boi”, estaria, em princípio protegida pelo art. 216 da Constituição Federal, que define o patrimônio cultural, incumbindo o Poder Público de promovê-lo e protegê-lo (art. 216, § 1º). Ocorreu, na hipótese uma colisão de princípios, e a tradição açoreana, cedeu ao princípio que assegura a proteção da fauna e da flora, vedando as práticas que submetam animais à crueldade (art. 225, § 1º, VII-CF).

A decisão do Supremo foi amplamente divulgada em outdoors (abaixo transcrito) afixados nas rodovias catarinenses, mas certamente enfrenta resistência de segmentos populares, evidenciando os conflitos que a interpretação do direito ao meio ambiente sadio pode suscitar.

“A farra do boi é crime, inclusive em mangueirões. O Supremo Tribunal Federal decidiu e o Governador Amin confirma: A farra do boi é inconstitucional e contrária ao interesse público.” Outdor afixado nas ruas de Florianópolis-SC

Sobre essa polêmica, posicionou-se um leitor do Diário Catarinense, através

de carta enviada à coluna do leitor: A respeito da polêmica da farra do boi, acho que a violência ali contida é muito relativa, pois é de origem cultural. O espetáculo é violento, sem dúvida, mas está sendo condenado porque pertence a uma cultura mais fraca que a altamente globalizada, cínica e manipuladora cultura de massa. Hoje não é possível imaginar os açoreanos denunciando a violência do mundo, dos miseráveis jogados na rua (...).38

O argumento não é de todo descabido; mesmo porque não se conhece nenhuma decisão da Corte Suprema reconhecendo a inconstitucionalidade da miséria a que se encontra submetida considerável parcela do povo brasileiro. Resta ainda, saber como o Supremo Tribunal Federal irá se posicionar quanto aos rodeios na próspera Barretos-SP, que movimentam milhões, também às custas do sofrimento de animais.

Finalmente, exemplifica o confronto entre o direito constitucionalizado e o interesse de segmentos empresariais, resistentes à proteção ambiental, a pressão exercida por setores da indústria paulista, contra a nova Lei dos Crimes Ambientais (Lei n.º 9.605/98), que sofreu forte revés com a edição da Medida Provisória n.º

38 Carta de leitor do Jornal Diário Catarinense(23.04.2000 p. 62).

“A farra do boi é crime, inclusive em mangueirões. O Supremo Tribunal Federal decidiu e o Governador Amin confirma: A farra do boi é inconstitucional e contrária ao interesse público.”

Outdoor afixado nas rodovias de Santa Catarina

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1.710, em 07 de agosto de 1998 (atual MP n.º 1.874-14, de 26/08/99). Através da citada medida, o Presidente da República autoriza os órgãos ambientais a celebrarem termo de compromisso com os infratores das normas ambientais, outorgando a estes uma moratória de até seis anos, para que se adeqüem aos padrões ambientais da legislação, que vigora desde 1976, ao mesmo tempo que suspende as sanções administrativas impostas aos poluidores “anistiados”.

Além de inoportuna, porquanto editada em pleno processo eleitoral que culminou com a reeleição do atual Presidente, a referida medida provisória é flagrantemente inconstitucional; primeiro por não se caracterizar a urgência e relevância exigidas pelo art. 62 da Constituição Federal; e, principalmente, por representar uma inadmissível transação sobre bens indisponíveis – saúde e meio ambiente; o que se constitui em ofensa à Constituição e sobretudo à moralidade pública39.

Que magistrado condenará uma empresa, por crime de poluição, quando esta apresenta, em sua defesa, um termos de ajustamento que lhe autoriza cultivar seu passivo ambiental por até seis anos e portanto, a continuar operando em desacordo com os padrões ambientais ?

Os desdobramentos dessa questão, são uma incógnita; ilustram, contudo, os desafios que a concretização do direito ao meio ambiente equilibrado, enfrentará nestes tempos de “globalitarismo neoliberal”40.

4. CONCLUSÃO

A abordagem panorâmica das peculiaridades da hermenêutica constitucional, evidenciou a inadequação dos métodos exegéticos tradicionais para a interpretação das normas constitucionais, posto que incapazes de captar o sentido das cláusulas não raros principiais de uma Constituição, ou o alcance normativo pluridimensional de um direito fundamental.

Os direitos fundamentais, entre os quais se insere o direito ao meio ambiente equilibrado, possuem uma dimensão histórica, e exercem além da função de resistência e defesa do cidadão, também a função participativa. A interpretação visa apenas atualizá-los, ampliando-lhes a força normativa.

A concretização do direito ao meio ambiente equilibrado, através da Nova hermenêutica constitucional, será tanto mais efetiva, quanto mais lograr aproximar o texto da Constituição de seus destinatários, contribuindo para forjar um sentimento constitucional, e envolver a coletividade na tarefa que lhe foi constitucionalmente atribuída – junto com o poder público, defender o meio ambiente e preservá-lo, para as presentes e futuras gerações.

Os desafios são enormes, sobretudo, nesse contexto de mundialização do capital, onde os Direitos Sociais são empecilho à expansão do mercado globalizado. A insurgência do neoliberalismo, que pensa possível a concretização da democracia

39 Ver a propósito, Carta aberta ao Presidente Fernando Henrique Cardoso, intitulada "A Saúde dos

Brasileiros e o Meio Ambiente em Primeiro Lugar", dos participantes do 1º Encontro Nacional do Ministério Público de Meio Ambiente, realizado nos dias 12/14 de agosto de 1998, em Florianópolis-SC.

40 A expressão “regimes globalitários” foi empregada pelo diretor do “Le Monde Diplomatique”, para expressar essa nova forma de totalitarismo, que se assenta no dogma da globalização e do pensamento único, no qual a sociedade, sem escolha, deve se submeter à razão competitiva e à direção ditada pelo mercado.

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apartada da realização dos direitos fundamentais, está tendo, como conseqüência, um processo de inefetivação desses direitos e sobretudo de esvaziamento dos direitos sociais, através das chamadas reformas do Estado. Nesse quadro, ao hermeneuta, incumbe buscar mecanismos que possam assegurar a efetividade desses direitos, proporcionando às normas constitucionais “força de efeito ótimo”.

Esse esforço de concretização, na área ambiental, é da maior relevância, pois, se por um lado, contamos com um texto constitucional e um amplo rol de leis consideradas internacionalmente avançadas; por outro lado, todo esse acervo institucional se mostra anêmico, não em quantidade, mas na força política e na capacidade de realizar o interesse público.

Oportuna a análise do prof. Erni Seibel, (...)uma política ambiental necessita de esferas efetivamente públicas (no sentido do bem comum) para que sua efetivação tenha resultados concretos e eficazes, social e ambientalmente. Isto contrapõe-se ao fato de que as estruturas de poder cristalizadas no aparato público, principalmente governamentais, atuam sempre na direção da privatização da ação política administrativa que acaba por comprometer os resultados das políticas públicas (...)41

O que se traduz em uma prática já consagrada em nosso meio, onde os lucros são privatizados, socializando-se os prejuízos.

De toda sorte, nossa Carta Magna oferece os instrumentos jurídicos para um grande avanço em termos de política ambiental, mas é imprescindível que esses avanços encontrem eco na sociedade civil, traduzindo-se, em última instância, no fortalecimento da cidadania.

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41 Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Catarina. Ensaio intitulado “Cultura política e gestão pública: os limites político-administrativos para a efetivação de políticas públicas” (ainda não publicado).

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