o diabo na literatura de cordel

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Dissertação

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  • Estela Ramos de Souza de Oliveira

    O DIABO RIDICULARIZADO NA LITERATURA DE

    FOLHETOS DO NORDESTE

    Dissertao submetida ao Programa de

    Ps-graduao em Literatura da

    Universidade Federal de Santa

    Catarina para a obteno do Grau de

    Mestre em Literatura.

    Orientador: Prof. Dr. Salma Ferraz de

    Azevedo de Oliveira

    Florianpolis

    2013

  • Catalogao na fonte elaborada pela biblioteca da

    Universidade Federal de Santa Catarina

    A ficha catalogrfica confeccionada pela Biblioteca Central.

    Tamanho: 7cm x 12 cm

    Fonte: Times New Roman 9,5

    Maiores informaes em:

    http://www.bu.ufsc.br/design/Catalogacao.html

  • Estela Ramos de Souza de Oliveira

    O DIABO NA LITERATURA DE FOLHETOS DO NORDESTE

    Esta Dissertao foi julgada adequada para obteno do Ttulo de

    Mestre,e aprovado em sua forma final pelo Programa Ps-Graduao em Literatura.

    Florianpolis, 16 de Abril de 2013

    ________________________

    Prof. Susana Clio Leandro Scramim, Dr.

    Coordenadora do Curso

    Banca Examinadora:

    ________________________

    Prof. Salma Ferraz, Dr.

    Orientadora

    Universidade Federal de Santa Catarina

    ________________________

    Prof. xxxx, Dr.

    Corientadora

    Universidade xxxx

    ________________________

    Prof. xxxx, Dr.

    Universidade xxxxxx

  • Isabela e ao Dionis, presentes nas

    minhas ausncias.

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo a todos os educadores com quem tive o privilgio de

    conviver ao longo de minha formao.

    Aos meus pais, leitores exemplares, dos quais ganhei minhas

    inseparveis e aguardadas revistas Nosso Amiguinho. s minhas irms mais velhas, de quem eu esperava ansiosamente

    uma indicao de leitura na infncia.

    Ao meu irmo mais novo, o primeiro aluno para quem eu lecionei

    e que at hoje tento ensinar alguma coisa.

    Aos professores do Departamento de Letras da Universidade do

    Extremo Sul Catarinense, que fazem verdadeiros milagres para difundir

    a pesquisa.

    Ao professor Dr. Gladir Cabral, que me deu as primeiras dicas

    para eu empreender meu projeto de mestrado ao Programa de Ps-

    graduao em Literatura.

    Ao professor Dr. Celdon Fritzen, na UNESC, meu primeiro

    orientador de projeto de pesquisa e que, j como docente da UFSC,

    participou de minha banca de qualificao.

    Aos funcionrios da Biblioteca tila Almeida, da UEPB, solcitos

    durante toda a coleta do corpus. Aos professores participantes de minha banca de qualificao, Dr.

    Celdon Fritzen (UFSC) e Dr. Jos Ernesto de Vargas (UFSC) e de

    defesa, Dr. Antnio Augusto Nery (UFPR) e Andria Guerini (UFSC),

    cujos comentrios acrescentaram em minha pesquisa e sero

    determinantes para a continuidade de minha trajetria como

    pesquisadora.

    professora Dr Salma Ferraz pela oportunidade de ingresso,

    incentivo na permanncia e exemplo de retido, profissionalismo e

    autonomia de pesquisa. De modo especial, Salma, obrigada por valorizar

    a discusso de ideias e teorias e no superestimar a discusso de

    pessoas.

    minha cunhada, Eloisa, com quem eu pude e posso contar.

    Aos amigos que fiz na JBG Contabilidade e no Instituto

    Educacional Madre Elisa Savoldi, empresas empregadoras e

    incentivadoras de minha permanncia no Mestrado.

    Aos familiares e amigos, que conseguiram equilibrar a exigncia

    da presena e a compreenso das ausncias.

  • Disse Jesus: Que desejas

    onde no foi convidado

    Disse o diabo: Senhor Rei

    o mundo est desgraado

    a corruo demais

    vim lhe fazer avisado.

    (Jos Costa Leite, 1976)

  • RESUMO

    A estreita relao entre Satans e a maldade sempre o identificou como

    o culpado pela gnese do mal. Sem a pretenso de refutar ou confirmar

    essa teoria, este trabalho limita-se a constatar correspondncias

    estruturais entre o Diabo bblico e o Diabo na literatura de folhetos do

    nordeste, conforme a metodologia proposta por Kuschel (1999). Situada

    no ramo de estudos denominado Teopotica e tendo como base a crtica

    temtica (BERGES, 2006), esta pesquisa objetiva definir se a

    representao do Diabo como criatura ridicularizada no gnero

    apresenta-se como transgresso ou a confirmao da crena no projeto

    da redeno humana, proposto pelo Novo Testamento.

    Palavras-chave: Diabo. Teopotica. Bblia. Folhetos. .

  • ABSTRACT

    The close relationship between Satan and the evil always his identified

    as the evil culprit. Without attempting to confirm or refute this theory,

    this work is limited to observe structural correspondences between the

    Bibles Devil and the northeast cordels Devil, according to the

    methodology proposed by Kuschel (1999). Situated in the field of study

    called Teopoetic and based on the thematic critical (BERGUES, 2006),

    this research aims to determine whether the representation of the Devil

    as a derided creature in the genre presents itself as transgression or

    confirmation of the belief in project of redemption human, proposed by

    the New Testament.

    Keywords: Devil. Teopoetic. Bible. Cordel.

  • SUMRIO

    1 INTRODUO .................................................................. 17 2 DO GNESIS AO APOCALIPSE: AS APARIES DO DIABO NA BBLIA ........................................................................ Erro!

    Indicador no definido. 2.1 DEUS DE ISRAEL: O BEM E O MAL, DE ONDE PROVM? 478

    2.2 O DIABO NO NOVO TESTAMENTO: A PRESENA

    CONSTANTE DO INIMIGO ...................................................................... 39

    2.2.1 Houve pela no Cu: a revelao do inimigo de Deus .............. 40

    2.2.2 O espinho na carne ................................................................... 42

    2.2.3 O Reino do Bem X Reino do Mal: a polarizao das

    virtudes ...................................................................................................... 43

    3 LITERATURA DE FOLHETOS: A POESIA POPULAR

    EXPRESSA NA MODALIDADE ESCRITA ............................... 47 3.1 FOLHETOS: INFLUNCIA E SUPERAO DO

    RELIGIOSO ............................................................................................... 47

    3.1.1 O Diabo e a literatura de folhetos ........................................... 49

    3.2 AS PARTICULARIDADES DO FOLHETO NORDESTINO .... 49

    3.2.1 Folheto: uma arte coletiva ........................................................ 54

    3.2.2 Pelejando a autoria ................................................................... 59

    4 TENTADOR, ADVERSRIO E ACUSADOR: AS TRS

    FACES DO DIABO NOS FOLHETOS ......................................... 63 4.1 FOLHETOS DE PACTO: A FACE DO TENTADOR ............... 67

    4.1.1 Satans trabalhando no roado de So Pedro e Como So Pedro

    enganou o Diabo ....................................................................................... 69

    4.1.2 O Velho que enganou o diabo ................................................. 72

    4.1.3 O scio do diabo ......................................................................... 73

    4.1.4 A Mulher que enganou o diabo ............................................... 74

    4.2 FOLHETOS DE PELEJA, DISCUSSO E DESAFIO: A FACE DO

    ADVERSRIO .......................................................................................... 79

    4.3 FOLHETOS DE QUEIXA: A FACE DO ACUSADOR ............ 83

    5 CONSIDERAES FINAIS ............................................. 89 REFERNCIAS .............................................................................. 93

  • 17

    1 INTRODUO

    Sat o grande apstolo e cmplice do pecado e

    por isso execrado e combatido por todas as

    religies dos povos civilizados.

    (Giovanni Papini, 1954)

    Encontrar uma explicao para os fenmenos terrenos uma

    necessidade humana; identificar as razes que motivam o sofrimento no

    mundo, uma obstinao. Ao padecer com doenas incurveis,

    devastadoras epidemias, secas promotoras da fome, morte de inocentes,

    guerras civis e militares, enchentes, enfim, estando merc de todo tipo

    de fenmeno ameaador e desconhecido, o homem tenta responder a

    uma questo to antiga quanto a sua existncia: qual a gnese do mal e o

    motivo pelo qual acompanha permanentemente a humanidade.

    Nessa instigante dvida, a maioria das civilizaes imputa a

    alguma entidade o poder de promover o mal. Assim, h milhares de

    anos, o questionamento sobre a origem das molstias encontra resposta

    em deuses ou semideuses. A atribuio das funes, as caractersticas

    fsicas ou nomes pelos quais so denominados relacionam-se

    diretamente s particularidades de cada povo, suas crenas e privaes.

    Alberto Coust, em Biografia do Diabo, obra que apresenta a histria concisa da personagem-ttulo, atribui Idade Antiga os registros

    incontestveis na crena/temor em uma divindade do mal. De acordo

    com a obra, mesopotmicos, egpcios, sumrios, acdios, babilnicos,

    persas, dentre outros povos, continham em seus pantees uma entidade

    (atuando solitariamente ou em bando) responsvel pelos infortnios da

    humanidade.

    Independentemente da origem ou peculiaridades dessa figura

    detentora do poder maligno, o fato que a cultura Ocidental no fica

    indiferente a essa crena. Identificado pelo nome de Diabo _ e por

    vrios codinomes, Sat, Capeta, Demo, Satans, P Redondo, Coxo,

    Lcifer etc._ , sua figura est presente na literatura oral e escrita, artes

    plsticas, msica, cinema, teatro e em outras manifestaes laicas e

    religiosas.

    Para Carlos Roberto Nogueira na obra O Diabo no Imaginrio

    Cristo, tamanha repercusso deve-se especialmente difuso de um dos dogmas centrais do cristianismo: Bem X Mal. Em outro estudo do

    mesmo autor, l-se:

  • 18

    Com o advento do Cristianismo, chocam-se as

    tradies, interpenetrando-se e amoldando-se. O

    esprito do mal vem estabelecer, em definitivo, o

    confronto permanente entre o Bem e o Mal, vital

    para a cristalizao da figura do Maligno na

    conscincia crist. (NOGUEIRA, 2012, p. 103)

    A religio crist, que rene o maior nmero de seguidores no

    Ocidente, tem como literatura sagrada a Bblia. Esta composta por um

    conjunto de livros compilados no Antigo Testamento1 (tambm chamado

    de Velho Testamento) e Novo Testamento2. Ambos significam a aliana

    que Deus faz com a humanidade.

    No AT, encontram-se as narrativas da origem do mundo,

    mandamentos destinados aos homens, a trajetria do povo escolhido por

    Deus e as profecias reveladas. Provm da a aliana que este faz com a

    humanidade, assumindo a face de pai e criador.

    A segunda aliana de Deus encontra-se no NT. composto por quatro livros, denominados evangelhos, que contam a vinda de Deus

    encarnado, redentor da humanidade, o Cristo (da a origem do nome

    pelo qual so designados seus seguidores); narrativas da igreja primitiva

    e do trabalho apostlico de seus primeiros evangelizadores3 e pelo

    enigmtico Livro da Revelao, o Apocalipse. O principal significado

    do NT para os cristos da demonstrao do amor de Deus aos homens, porque esse vem sob a forma humana para assumir os pecados do

    mundo e dar vida eterna queles que nele creem e seguem seus

    desgnios.

    nessa parte da Bblia que o Diabo assume a funo de detentor

    do poder maligno. A estreia da personagem no NT marcada pelo encontro com ningum menos que o prprio Cristo. No evangelho de

    Mateus, ele figura tentando, sem sucesso, ao redentor da humanidade

    quando este conduzido ao deserto. Para o evangelista Joo, a

    personagem intitulada como pai da mentira, prncipe deste mundo e

    suicida desde o princpio. J nas cartas de Paulo e de Pedro, ele

    descrito como o grande tentador e adversrio astuto dos homens.

    1 Ao longo do trabalho grafado com AT.

    2 Ao longo do trabalho grafado como NT.

    3 So assim denominados pelo cristianismo queles que anunciam ao mundo o

    Cristo como Salvador da humanidade, o redentor dos pecados do mundo.

    Evangelho significa Boa Notcia, no caso do cristianismo a Boa Notcia o

    prprio Deus Encarnado, o Cristo.

  • 19

    Tardiamente, entretanto, outros nomes empregados na Bblia, tais

    como Satans, Serpente, Drago, foram relacionados ao Diabo. Essa

    variedade de denominaes pode ser confirmada no Apocalipse (12, 7-9) conforme se l:

    Aconteceu ento uma batalha no cu: Miguel e

    seus Anjos guerrearam contra o Drago. O Drago

    batalhou juntamente com os seus Anjos, mas foi

    derrotado, e no cu no houve mais lugar para

    eles. Esse grande Drago a antiga Serpente, o

    chamado Diabo ou Satans. aquele que seduz

    todos os habitantes da terra.

    Diante do exposto, consideraremos como Diabo bblico o Drago

    e a do Apocalipse, a serpente do Gnesis, o Diabo que tenta nos

    evangelhos, Satans que participa da corte celeste no livro de J e entra em Judas para vender Jesus aos fariseus. Cada uma dessas aparies,

    assim como outras ainda no citadas, ser apresentada no primeiro

    captulo deste trabalho, que visa identificao das funes exercidas

    pelo Diabo no contexto testamentrio.

    O motivo pelo qual delimitamos a figura do Diabo como bblico

    pontual para diferenci-lo de suas demais representaes, uma vez que,

    como j mencionamos, ele est presente nas mais diversificadas

    manifestaes culturais, no se restringindo apenas Bblia e forma como as pginas do Antigo e Novo Testamento apresentam-no.

    Embora no se limitando apenas s representaes bblicas, o

    livro sagrado do cristianismo influenciou todo o pensamento Ocidental

    e, por isso, suas artes, incluindo nestas a literatura. Em seu artigo A

    esfinge pejada de mistrios: travessias e travessuras de Judas, Salma Ferraz enfatiza que

    Sendo a Bblia (...) o maior best-seller de todos os

    tempos e uma obra clssica da literatura mundial,

    imprescindvel para o conhecimento do

    cristianismo, da Literatura Ocidental e da cultura

    do Ocidente, natural que muitos de seus

    personagens migrem para as pginas de grandes

    romances do Ocidente. (FERRAZ, 2010, p.2)

    Obras da literatura, tais como A divina comdia (Dante Alighieri),

    Os trs cabelos de ouro do Diabo (Irmos Grimm), O moinho do Diabo

    (H.C. Andersen), Cartas de um Diabo a seu Aprendiz (C.S. Lewis) A

  • 20

    Igreja do Diabo (Machado de Assis), O Auto da Compadecida (Ariano

    Suassuna) e O Auto da Barca do Inferno (Gil Vicente) exemplificam

    essa imigrao anunciada por Ferraz. Nelas, como possvel supor pela

    maioria dos ttulos, o Diabo, personagem bblico, invade as pginas da

    literatura.

    Se ao emigrar da Bblia para as artes, o Diabo passeou nas pginas da literatura erudita, certamente foi nos escritos populares que

    ele fez morada e fixou residncia. Segundo Jean Delumeau, em Histria do Medo no Ocidente, as camadas populares criaram uma resposta

    teologia assustadora difundida pelo cristianismo e pelas artes eruditas.

    O diabo popular pode ser tambm um personagem

    familiar, humano, muito menos temvel do que

    assegura a Igreja e isso to verdade que se chega

    bem facilmente a engan-lo. Assim ele aparece

    em inmeros contos campestres (...). A cultura

    popular assim se defendeu, no sem sucesso,

    contra a teologia aterrorizante dos intelectuais.

    (DELUMEAU, 2001, p. 249)

    desse modo tambm que sua imagem apresenta-se na literatura

    popular brasileira. Menos perturbador e vingativo, ele surge em lendas,

    mitos e folhetos com tom mais leve: ora como um conquistador de

    mulheres, outrora negociante e at mesmo engraado.

    No nordeste brasileiro, so to frequentemente encontrados os

    folhetos apresentando o Diabo como uma criatura vulnervel esperteza

    humana que os pesquisadores do gnero criaram uma categoria de

    classificao para este tipo de enredo. Ciclo do Diabo Enganado ou do

    Demnio Logrado, conforme designa Cmara Cascudo em sua

    Antologia do Folclore Brasileiro, so algumas das definies usadas

    pelos folcloristas para denominar o conjunto de folhetos nos quais o

    Tentador ludibriado pelos mortais.

    Nesse contexto, verificvel que o Diabo assume um papel de

    maior fragilidade, se comparado humanidade, do que a tradio

    teolgica crist costuma atribuir ao Inimigo. Tratando-se, pois, de uma

    transgresso no que se refere tradicional representao deste,

    queremos apresentar em nossa pesquisa os tipos de enredo presentes na

    literatura de folhetos da regio nordeste brasileira nos quais o demiurgo

    em questo aparece como ridicularizado, analisando as funes por ele

    desempenhadas bem como sua relao com a humanidade.

  • 21

    A escolha do tema e do material aqui proposto no se d de forma

    aleatria. Embora haja um nmero crescente de estudos sobre a

    figurao do Diabo nos diversos discursos (religioso, literrio, teatral,

    cinematogrfico, publicitrio, etc.), ainda h um vasto campo de

    pesquisa, especialmente nas artes populares, a ser investigado.

    A literatura de folhetos nordestina cumpre alguns critrios

    considerados primordiais para esta pesquisa. Trata-se de uma

    manifestao popular, prxima da oralidade (oriunda desta modalidade),

    que revela qual a reflexo teolgica acerca da personagem mais temvel

    do cristianismo.

    O cordelista apresenta nos folhetos em que assina seus

    pensamentos e de seus pares, baseado na conscincia de si mesmo, dos

    outros e do todo que o rodeia. possvel identificar no folheto as

    ideologias predominantes de seu meio e concepes h muito tempo

    definidas, uma vez que registra via folheto uma tradio passada por

    outras geraes. Portanto, o cordel [...] a maneira de ver e analisar os fatos sociais, polticos e religiosos da gente rude do interior nordestino,

    fotografada nas pginas dos folhetos, denunciando costumes, atitudes,

    preferncias e julgamentos. (CAMPOS, 2010, p. 60) Sendo assim, esta pesquisa tem como base a crtica temtica, cujo

    um dos principais conceitos o da interao: por sua relao consigo mesmo que o eu se estabelece, por sua relao com o que o cerca que

    se define. (BERGES, 2006, p. 105). De modo que

    A crtica temtica recusa, pois, tanto a concepo

    clssica do escritor totalmente dono do seu projeto quanto o procedimento psicanaltico que

    atribui a obra uma interioridade psquica que lhe

    anterior. Ela no esquece nem esse domnio nem

    essa parte de inconsciente, mas vincula a verdade

    da obra a uma conscincia dinmica que est se

    formando. (BERGEZ, 2006, p. 105)

    Nosso estudo articula-se a partir da metodologia proposta por

    Karl-Josef Kuschel, na rea da Teopotica. Esse ramo de estudos baseia-

    se na anlise de trs componentes: a crtica de Deus feita pelos poetas, a crtica Literatura feita em nome de Deus, e a tarefa da literatura e da

    teologia de colaborar com a apreenso mais densa da realidade. (KUSCHEL, 1999, p. 210)

    Influenciados por esse e outros estudos oriundos dos Estados

    Unidos e de pases da Amrica Latina, a Teopotica vem crescendo no

  • 22

    Brasil e j consiste em uma rea de estudos consolidada. Especialmente

    nas duas ltimas dcadas, trabalhos como os dos estudantes e

    pesquisadores do Grupo de Pesquisa Teopotica Estudos comparados entre Teologia e Literatura e do Grupo de Trabalho da ANPOLL Literatura e Sagrado contriburam para a efervescncia de publicaes e

    discusses nessa rea de pesquisa.

    Uma peculiaridade da Teopotica no Brasil que seus estudos

    no se restringem figura de Deus. Muitos trabalhos debruam-se sobre

    livros bblicos especficos e suas personagens, como o Diabo. Andrei

    Soares, Carlos Roberto F. Nogueira, Teresa Rigoni, Dante Luiz Lima,

    Marcos Lopes e Salma Ferraz so pesquisadores brasileiros cujas

    produes vinculam-se figurao do Diabo nos discursos literrios. 4

    Considerando os folhetos cujos enredos apresentam a

    ridicularizao de Satans, abordaremos de que maneira ele

    representado na literatura popular do nordeste brasileiro, verificando o

    que migra da Bblia e o que h de peculiar em sua representao nesse gnero. Para tanto, vamos empregar o mtodo da analogia estrutural de

    Kuschel, constatando correspondncias e diferenas, de acordo com os

    seguintes pressupostos:

    Com esse mtodo (analogia estrutural), torna-se

    possvel considerar seriamente tambm a

    experincia e a interpretao literria em suas

    correspondncias com a interpretao da

    realidade, mesmo quando a literatura no tem

    carter cristo ou eclesistico. (...) Quem pensa

    segundo esse mtodo constata tambm o que

    contraditrio nas obras literrias em relao

    interpretao crist da realidade, ou seja, o que

    estranho experincia crist de Deus.

    (KUSCHEL, 1997, p. 222)

    Com a delimitao do gnero e escolha da metodologia desta

    pesquisa, resta-nos ainda especificar quais exemplares faro parte do

    corpus. Haja vista a grande quantidade de folhetos cuja temtica

    recupera, de alguma forma, o Diabo, delimitamos a busca nos cordis

    4 Alguns desses estudos podem ser encontrados nas obras As malasartes de

    Lcifer: textos crticos de Teologia e Literatura e O Plen do Divino, ambos da

    compiladora Salma Ferraz.

  • 23

    que fazem parte do Acervo tila Almeida5, na Biblioteca homnima,

    instalada na Universidade Estadual da Paraba, localizada em Campina

    Grande.

    Dada as caractersticas de produo e comercializao da

    literatura de folhetos, no h como apontar com exatido a autoria e data

    de publicao. Por esse motivo, no demarcamos a busca por tempo

    cronolgico e nome de autor.6 O critrio adotado foi o de pertencer ao

    acervo tila Almeida, composto por 9.992 ttulos de folhetos.

    Desse total, 161 foram selecionados para integrar o corpus desta

    pesquisa por terem como personagem o Diabo. Como a Biblioteca tila

    Almeida at a data da coleta do material no contava com acervo virtual,

    cada um das obras necessrias para anlise foram disponibilizados pela

    biblioteca para digitalizarmos in loco. Com a digitalizao dos folhetos

    tornou-se vivel a leitura de todos para verificarmos quais enredos

    apresentavam a figura do Diabo como ridculo, restando-nos 22 obras.

    Esse corpus contribuir para confirmarmos ou refurtarmos a questo inicial de nossa pesquisa: a representao do Diabo como

    criatura ridicularizada na literatura de folhetos, embora inicialmente

    parea uma negao tradio bblica, , pelo contrrio, a confirmao

    da crena no projeto da redeno da humanidade, propagada pelo NT.

    Para que o objetivo proposto neste trabalho seja alcanado,

    iniciamos esta apresentao explanando a trajetria bblica da

    5 o maior acervo de literatura de folhetos da Amrica Latina. Trata-se da

    coleo particular do professor tila Almeida, que por anos adquiriu e

    armazenou, alm dos cordis, peridicos e obras raras. Segundo informaes da

    prpria Biblioteca tila Almeida, disponibilizadas em sua pgina na Internet, o

    Governado do Estado da Paraba comprou em 2003 todo o acervo da senhora

    Ruth Almeida, viva de tila, e doou a UEPB que, em 2004, passou a ter total

    responsabilidade pelo material, com sua guarda, conservao e manuteno.

    6 Embora a maioria dos folhetos venha datada e assinada pelo cordelista, nem

    sempre essas informaes podem ser consideradas legtimas. Alm da

    peculiaridade de que a literatura antes de ser registrada em folheto tenha sido

    repassada pelas geraes em forma de literatura oral, h outra particularidade

    que compromete a atribuio da autoria dos cordis. Muitos autores, ou mesmo

    familiares aps a morte dos entes cordelistas, vendiam os direitos autorais das

    obras. Os compradores nem sempre mantinham a autoria original registrada nos

    cordis. Como exemplo, temos o cordelista Joo Martins Athade que, em 1921,

    adquiriu os direitos de publicao de toda a obra de Leandro Gomes de Barros

    e, embora inicialmente tenha se identificado como editor, depois de algum

    tempo, passou a omitir a verdadeira autoria dos folhetos. Parte do segundo

    captulo tratar da questo da de forma mais detalhada.

  • 24

    personagem em estudo. Com o ttulo Do Gnesis ao Apocalipse: as

    aparies do Diabo na Bblia, o primeiro captulo pretende responder de

    forma analtica quais as funes que a personagem possui na leitura do

    livro sagrado do cristianismo: ele age a servio de Deus, como acusador

    dos homens, punindo aos desobedientes das determinaes das

    Escrituras?; o Anjo Cado, o grande rebelde e adversrio de Deus,

    desejoso por provar ao Criador7 que os filhos so to infiis quanto ele

    foi ao Pai8?; Trata-se, na verdade, do tentador frustrado, impotente

    diante da vontade de Deus? etc. Os trabalhos de Harold Bloom, Barth

    Ehrman, Salma Ferraz, Gerald Messadi, Jack Miles, Peter Stanford e

    Uwe Wegner sero fundamentais para a discusso apresentada no

    captulo.

    De modo a entendermos qual a importncia da literatura de

    folhetos para difuso ideolgica e manifestao genuinamente

    nordestina, o segundo captulo funciona como um precursor ao

    entendimento de nosso corpus. No captulo denominado Literatura de folhetos: a poesia popular expressa na modalidade escrita,

    apresentaremos os elementos que envolvem sua produo. Marcia

    Abreu, Iza Chain, Manuel Digues Junior, Mark Curran, Sebastio

    Nunes Batista e Joo Alves Sobrinho faro parte da fundamentao

    terica do segundo captulo. Com base nos estudos desses

    pesquisadores, haver a explanao sobre a influncia e a superao do

    religioso nos folhetos; as particularidades do gnero, especialmente no

    que se refere autoria; e uma breve introduo acerca da notoriedade do

    tema Diabo na poesia popular escrita do nordeste.

    Intitulado como Tentador, Adversrio e Acusador: as trs faces

    do Diabo nos folhetos, o captulo trs trar a apresentao do corpus, tratamento dos dados e classificao dos folhetos quanto representao

    do tema. Inicialmente, apresentar-se- a histria do acervo tila

    Almeida, desde a sua formao, passando pelo convite do proprietrio a

    Jos Alves Sobrinho para este tornar-se colaborador na aquisio de

    novos ttulos, at a breve explanao sobre sua estrutura atual. Depois,

    esclareceremos como se deu a seleo dos ttulos para composio do

    corpus e revelaremos os dados quantitativos. Faremos a anlise classificando os folhetos, de acordo com o desfecho, em trs grupos: a)

    Pacto (comportando histrias nas quais a personagem, ao realizar um

    acordo, aposta ou pacto, tenha um desfecho frustrante, sendo enganado

    ou subestimado); b) Peleja, discusso e desafio (agrupando poesias cujo

    7 Conforme denominao no livro do Gnesis. Referncia a Deus.

    8 Conforme denominao nos evangelhos.Referncia a Deus.

  • 25

    enredo apresente de um lado o Diabo e de outro um famoso cantador de

    versos); c) Queixas (reunindo folhetos em que Satans atua como

    acusador e reclama da m conduta da humanidade).

    Ao trmino, apresentaremos a discusso que impulsiona toda a

    pesquisa: a face de ridicularizado do Diabo no folheto uma

    transgresso narrativa bblica ou, pelo contrrio, a confirmao da

    crena no Redentor da humanidade.

    A partir da prxima pgina, nosso desafio identificar qual a

    explicao para a concepo do Diabo ridicularizado nos folhetos

    nordestinos, uma vez que a representao do demiurgo em questo

    flexvel e est diretamente ligada ao contexto de sua apario. Afinal,

    como aponta Coust (1997, p. 249), o Diabo gosta de mudar de feies, de sexo, de roupa. De acordo com a poca e a oportunidade, encarna sob

    formas humanas ou se encobre por detrs de maiores sutilezas.

  • 26

  • 27

    2 DO GNESIS AO APOCALIPSE: AS APARIES DO DIABO

    NA BBLIA

    Bblia: escrita literria, texto poltico ou revelao divina? Com

    esta peculiaridade, a obra religiosa mais respeitada da humanidade9 foi

    difundida em todo o mundo. Surge como escritura sagrada, aquela que

    revela as palavras de Deus. Para os que assim crem, a formao bblica

    incluindo a tradio oral, posterior escrita, compilao, revises, tradues e disposio cannica motivada pelo prprio Deus. A citao do Papa Leo XIII, extrada da obra A Face Oculta das

    Religies, de Jos Reis Chaves, repercute o pensamento catlico acerca da Bblia:

    Deus, com seu sobrenatural poder, por tal forma

    moveu os escritores sagrados a escrever, e lhes

    assistiu enquanto escreviam, que s concebiam e

    escreviam o que Lhe aprazia dizer-vos,

    expressando-se com infalvel verdade; ao

    contrrio no se poderia dizer Autor de toda a

    Bblia. (Papa Leo XVIII in CHAVES, 2001, p.

    49)

    Contudo, essa viso no unnime. H aqueles que discordam

    desse argumento e entendem-na como aparelho repressor e uma

    conveno do cristianismo para controlar os atos humanos. De acordo

    com isso, ela nada mais do que um conjunto de mandamentos, cuja

    finalidade reduzir a caminhada da humanidade condenao ou

    redeno, de acordo com a conduta tica, moral e religiosa dos homens.

    Sendo assim, a finalidade da Bblia antes poltica do que religiosa.

    Apontamos ainda uma terceira possibilidade de leitura, pensando-

    a enquanto obra literria. Pesquisadores tm empreendido trabalhos

    bem-sucedidos no intuito de identificar caractersticas literrias nos

    gneros, enredos e personagens bblicos.

    As leituras religiosa, poltica e literria so possveis. Todas,

    alis, legtimas. Contudo, a primeira a grande responsvel pela

    9 A Bblia nomeada por Jos Reis Chaves em A Face Oculta das Religies

    como a escritura sagrada mais respeitada do mundo e o livro mais importante do

    planeta. Segundo o autor, "mais de um tero da populao mundial segue ou

    procura seguir os seus ensinamentos, apesar das divergncias que h nas suas

    interpretaes que dividem em vrias igrejas ou correntes religiosas os seus

    mais de dois bilhes de seguidores. (CHAVES, 2001, p. 49)

  • 28

    disseminao do texto bblico no Ocidente, sem a qual no haveria as

    demais. E assim, por meio do discurso religioso, que o cordelista

    recebe a influncia da Bblia. Diante das inmeras formas de l-la, preciso anunciar, porm,

    que nossa abordagem dar-se- pelo vis literrio, no comportando aqui

    refutaes ou confirmaes dogmticas.

    2.1 DEUS DE ISRAEL: O BEM E O MAL, DE ONDE PROVM?

    Na perspectiva adotada, tomando a Bblia enquanto literatura e

    considerando unicamente sua disposio cannica, iniciada pelo Gnesis e finalizada no Apocalipse, a primeira ocorrncia da palavra mal na

    Bblia est em seu livro de abertura: Iahweh Deus fez crescer do solo toda espcie de rvores formosas de ver e boas de comer, e a rvore da

    vida no meio do jardim, e a rvore do conhecimento do bem e do mal. (Gn 2,9) Logo depois, Iahweh d ordem ao homem recm criado para

    que desfrute livremente de todas as rvores e frutos, exceto da rvore do

    conhecimento. Deste episdio, acontece a tentao, por meio da

    serpente, que resulta na queda do homem: E Iahweh Deus o expulsou do jardim do den, para cultivar o solo de onde fora tirado. (Gn 3,23)

    Diante disso, possvel constatar que no primeiro livro bblico

    est contida a origem de todas as coisas, incluindo a gnese do mal? A

    queda do homem seria, portanto, a explicao para sua existncia?

    Considerando que a rvore com o fruto proibido proporcionaria ao

    homem o conhecimento do bem e do mal, parece-nos lgico que este j

    existia. Ao passo que

    no fim do sculo IV, tanto no Oriente quanto no

    Ocidente, os cristos concordavam em que a

    queda do homem no foi mais que um episdio na

    histria de um prodigioso combate csmico,

    iniciado antes da Criao, quando uma parte das

    falanges celestiais havia revoltado contra Deus,

    sendo ento precipitada dos cus. (NOGUEIRA,

    2000, p. 29)

    Esta batalha, embora colocada cronologicamente antes da criao,

    encontra-se no ltimo livro bblico, o Apocalipse:

    Houve peleja no cu. Miguel e os seus anjos

    pelejaram contra o drago e seus anjos; todavia,

    no prevaleceram; nem mais se achou no cu o

  • 29

    lugar deles. E foi expulso o grande drago, a

    antiga serpente, que se chama diabo e Satans, o

    sedutor de todo o mundo, sim, foi atirado para a

    terra, e, com ele, os seus anjos. (APOCALIPSE

    12, 7-9)

    O trecho acima, emblemtico para estabelecer definitivamente a

    relao entre a serpente, Satans, o Diabo e o drago, no nos permite

    precisar a origem do mal. verificvel que os anjos do cu tiveram um

    combate, duelando entre eles, liderados pelos opositores Miguel e o

    drago, e que o resultado disto foi a precipitao deste e dos seus.

    Contudo, qual seria a razo para uma parte dos habitantes do cu

    combater com seus pares? Esta e outras questes passaram a atormentar

    as mentalidades,

    e os Pais da Igreja so obrigados a abordar o problema, pois no existe seno um dado que h que dar ao Mal a sua genealogia. (MESSADIE, 2001, p. 327)

    Desde ento, o Diabo figura como responsvel pela origem e

    existncia do mal no mundo. Para os primeiros telogos catlicos,

    Satans seria o chefe das foras das trevas, uma criatura sada pura das mos do seu autor, (...). Este anjo ter-se-ia, segundo os Pais, revoltado

    contra Deus e teria arrastado na sua revolta anjos inferiores. (MESSADIE, 2001, p. 327)

    Essa ideia, fortemente difundida e aceita com algumas ressalvas,

    considerada incompleta para explicar a existncia do mal no mundo

    por no esclarecer qual o motivo da rebeldia dos anjos. Primeiro problema nunca resolvido desde ento: qual a causa da queda dos

    maus anjos? O Mal? Mas assim o Mal teria existido anteriormente a

    Satans e este no seria o seu causador? (MESSADI, p.327). Perguntas desde sempre sem resposta foram sucedidas por teorias que

    versavam sobre a motivao da queda. Sculos de estudos resultaram na

    formulao de vrias hipteses, dentre as quais que sua queda pode ter

    sido provocada por inveja ao homem, feito a imagem e semelhana de

    Deus; soberba e orgulho por tentar igualar-se a Deus; ou pela dor de no

    ter sido o escolhido no projeto de encarnao como Verbo. Mais uma

    vez, nada que explique a origem do mal.

    Transpondo a discusso, Papini (1954, p.56) taxativo ao afirmar que Deus o nico criador de todas as criaturas e s DEle receberam e recebem todos os requisitos e qualidades. De modo que Lcifer no poderia ser orgulhoso, invejoso e soberbo se Deus no o tivesse dotado

    dessas caractersticas.

  • 30

    Na segunda parte de Isaas e em I Samuel, possvel encontrar a

    confirmao do que se disse anteriormente. Os episdios marcam

    respectivamente a fala de Iahweh a Ciro, o libertador de Israel, e o

    esprito mau de Iahweh atormentando Saul.

    Para que saiba, at o nascente do sol e at ao

    poente, que alm de mim no h outro; eu sou o

    Senhor, e no h outro. Eu formo a luz e crio as

    trevas; fao a paz e crio o mal; eu, o Senhor, fao

    todas estas coisas. (ISAIAS 45:6,7)

    O esprito de Jav afastou-se de Saul, e ele

    comeou a ficar agitado por um esprito mau,

    enviado por Jav. Ento os servos de Saul

    disseram: Voc est sendo agitado por um esprito mau enviado por Deus. (I SAMUEL,

    16:14,15)

    Ambas as leituras revelam que Deus seria o responsvel pelo mal

    no AT. Porm, para uma vertente da teologia catlica, a relao estabelecida entre o mal/esprito mau e Jav apenas uma estratgia do

    prprio Deus para proteger o povo escolhido. A ausncia da origem do

    mal, especialmente no Pentateuco, conjunto que compe os cinco

    primeiros livros bblicos, deve-se peculiaridade do povo israelita,

    conforme se l no Dictionnaire de Theologie Catholique:

    Os estudiosos so levados a crer que Moiss

    resolveu silenciar sobre o esprito maligno ou

    mesmo sobre os anjos decados para evitar que os

    israelitas, que j eram inclinados ao politesmo e

    idolatria, e que estavam cercados de povos

    idlatras, no tentassem identificar o diabo como

    uma espcie de Anti-Deus ou Deus-do-Mal, e os

    anjos decados como divindades paralelas,

    capazes de competirem com Deus.

    (MANGENOT, 1911, p. 323 in PIRES FILHO,

    1984, p.22)

    De acordo com o telogo catlico, o Diabo desde sempre o

    responsvel pelos infortnios terrenos. Entretanto, se Moiss revelasse

    essa parte dos fatos, o povo escolhido poderia confundir o adversrio de

    Deus, criatura desprezvel, com uma entidade a ser idolatrada ou temida.

    A leitura do AT apresenta um Deus nico e poderoso, para o qual a

  • 31

    idolatria a qualquer outro ser representa uma ofensa imperdovel. Basta

    lembrar o episdio do bezerro de ouro.

    Independentemente da teologia catlica, a ideia que sobrevive na

    primeira parte da Bblia esta: no h polarizao entre um demiurgo

    benevolente e outro malfico. Prepondera a concepo de que as coisas

    boas e ruins so decorrentes dos desgnios e da permisso de Iahweh.

    O Deus promotor do Dilvio, justificado pela frustrao com a

    humanidade, o mesmo que concede a maternidade para Sara. O Deus

    que institui as leis, dentre as quais determina no matars, o mesmo que permite a queda de aproximadamente trs mil homens na matana

    ordenada por Moiss em seu nome. Assim, tudo provm de Deus.

    Portanto, se Iahweh o criador de todas as coisas, incluindo o

    mal, Satans seria apenas um obediente servo? Nos livros bblicos do

    AT, h duas verses hebraicas sobre sua a atuao: uma de que ele estava a servio de Deus e a outra de que ele autnomo nos seus atos.

    Retomando os fatos narrados na Bblia,

    no Apocalipse, entretanto, escrito em torno do

    ano 100 d.C, que finalmente estabelecida a

    conexo entre a revolta de Lcifer, a queda dele e

    da tera parte dos anjos, a queda de Ado e Eva e

    o episdio da serpente no paraso, a tentao de

    Jesus e o grande Armagedon a batalha final do bem contra o mal. (FERRAZ, 2012, p.29)

    Considerando essa analogia, vamos rever os episdios que

    envolvem essas personagens nos livros que contam a Antiga Aliana de

    Deus com a humanidade.

    (...) o Velho Testamento exibe uma grande

    variedade de personagens que, separadamente ou

    em conjunto, contm as sementes do futuro

    Prncipe das Trevas, embora tais figuras nunca

    tenham aspirado ao papel que ele cumpriu mais

    tarde como apoteose do mal. (STANFRD, 2003,

    p. 25)

    Conforme se l no Gnesis, h a formao do jardim no den,

    local onde Ado ser colocado imediatamente aps Iahweh soprar-lhe as

    narinas, dando ao homem o flego da vida (Gn 2:7). Ado recebe como

    incumbncia cultivar e guardar o jardim (Gn 2:15). Diante das

    maravilhas do local, Iahweh deu ao homem o direito de usufruir de

  • 32

    todas as coisas, exceto dos frutos de uma das rvores, conforme se l em

    Gnesis, captulo 2, versculos 16 e 17:

    E Iahweh Deus deu ao homem este mandamento:

    Podes comer de todas as rvores do jardim. Mas da rvore do conhecimento do bem e do mal no

    comers; porque no dia em que dela comeres ters

    que morrer. (GNESIS 2:16,17)

    A sequncia narrativa marcada pela formao da companheira

    de Ado e o aparecimento oportuno do animal caracterizado como o

    mais astuto dentre os seres criados: a serpente. Este trecho, que

    possivelmente o mais conhecido de toda a narrativa bblica, apresenta

    o encontro e o dilogo entre a mulher e a serpente:

    Mas a serpente, mais sagaz que todos os animais

    selvticos que o Senhor Deus tinha feito, disse

    mulher: assim que Deus disse: No comereis de

    toda rvore do jardim? Respondeu-lhe a mulher:

    Do fruto das rvores do jardim podemos comer,

    mas do fruto da rvore que est no meio do

    jardim, disse Deus: Dele no comers, nem

    tocareis nele, para que no morrais. Ento a

    serpente disse mulher: certo que no

    morrereis. Porque Deus sabe que no dia em que

    dele comerdes se vos abriro os olhos como Deus,

    sereis conhecedores do bem e do mal. Vendo a

    mulher que a rvore era boa para se comer,

    agradvel aos olhos e rvore desejvel para dar

    entendimento, tomou-lhe o fruto e comeu e deu

    tambm ao marido, e ele comeu. (GENESIS,

    3:1,6)

    Com a ingesto do fruto, homem e mulher percebem-se nus e

    escondem-se ao serem chamados por Iahweh. Diante da situao, este

    pergunta ao casal sobre a desobedincia, que, ao ser confirmada, leva

    punio dos envolvidos: a serpente, a mulher e o homem.

    Dado o desfecho, encontra-se, linearmente, no segundo e terceiro

    captulo do Gnesis: a criao, a ordem de Deus a Ado, a tentao da

    serpente para a transgresso humana, a desobedincia da criatura, a

    punio divina e a queda do homem.

  • 33

    a queda que introduz a metfora jurdica que vai persistir ao longo de toda a Bblia, segundo a

    qual a vida humana est em julgamento, como

    promotores e defensores. Nesta metfora, Jesus

    o lder da defesa; o acusador-chefe Sat, o

    diabolos, uma palavra da qual deriva a nossa diabo, e que originalmente guardava o sentido de uma pessoa oposta outra, num processo legal.

    (FRYE, 2004, p. 140)

    Interessa-nos, para fins de nosso estudo, localizar a participao

    da serpente no episdio. Verifica-se que ela, falante, inicia a conversa

    com a mulher perguntando sobre a possibilidade de esta poder provar de

    todas as rvores do jardim.

    O animal poderia perguntar acerca do uso dos rios ou sobre os

    privilgios da dominao exercida pelo homem em relao aos outros

    animais. Entretanto, situa sua pergunta exatamente sobre aquilo que lhes

    fora ordenado para no experimentar. assim a interveno que a

    serpente faz criatura recm concebida e, por isso, vulnervel.

    Diante da interrogao, a mulher prontamente responde e informa

    para a sagaz criatura a restrio feita por Iahweh. Dotada das

    informaes dadas pela prpria mulher, a serpente refuta as palavras do

    criador e incentiva a violao.

    Analisando apenas o texto, no h como certificar se a serpente

    aproxima-se do humano para lev-lo desobedincia ou se oportunista

    diante do fato apresentado pela mulher. Evidencia-se, a eloquncia do

    animal, uma vez que a mulher sucumbe tentao, tomando o fruto e

    oferecendo ao marido que, por sua vez, come-o desconsiderando a

    ordem de Iahweh.

    Ao ser indagado, o homem atribuiu a culpa esposa que o Senhor

    havia lhe dado e a mulher, por sua vez, acusou a serpente de ter-lhe

    entregue o fruto. Observamos que a serpente, embora recebendo

    punio, como ocorre com a mulher e o homem, ao contrrio dos dois,

    no profere uma palavra ao criador e tampouco faz alguma acusao.

    Alm das punies individuais, do episdio resulta a expulso do

    homem do jardim (Gn 3:23). Ressalta-se que o homem deportado, mas

    nada mencionado quanto ao destino do animal.

    A explicao advm de uma fala do prprio Iahweh quando

    afirma: Depois disse Iahweh Deus: Se o homem j um de ns, versado no bem e do mal

    10, que agora ele estenda a mo e colha

    10

    Neste trabalho, os negritos encontrados nas citaes so de nossa autoria.

  • 34

    tambm da rvore da vida e coma e viva para sempre! (Gn 3:22) Haja vista que Iahweh profere essas palavras na presena das trs criaturas: a

    serpente, o homem e a mulher, dos quais os dois ltimos so humanos

    que no tinham conhecimento do bem e o mal, o pronome pessoal

    refere-se a ele e primeira criatura.

    A serpente do Gnesis , portanto, um ser criado por Iahweh, com liberdade para circular livremente pelo jardim, dotada de persuaso,

    incentivadora da desobedincia humana, a par da funo da rvore do

    conhecimento e dotada deste.

    No estudo de Ormindo Pires Filho, O Demonismo em Grande

    Serto:Veredas, o autor apresenta a sntese:

    (...) o modo de agir da serpente revela que existe

    por trs dela um ser superior, espiritual e invisvel.

    A serpente um mero portador daquele que mais

    tarde receber o apelativo de diabo. Afora essa

    meno, no encontramos mais em nenhum outro

    livro do Pentateuco qualquer referncia ao

    tentador ou ao diabo. (PIRES FILHO, 1984, p. 22)

    Mais adiante, agora sob a denominao de Satans11

    e com status

    bem mais elevado do que a rastejante criatura do Gnesis, o Diabo vai

    contracenar novamente com Deus.

    Todavia, se no Gnesis a serpente cala-se diante do Criador, Satans falante e consegue at mesmo persuadir Deus a testar um dos

    seus servos em J. Este considerado o livro cannico da Bblia mais ousado no que se refere apario de nosso tema. Conforme Coust

    (1997, p. 157) em nenhum dos livros cannicos da Bblia aparece viso to complexa e especulativa do Diabo como no prlogo do Livro de J.

    Vamos narrao do episdio:

    11

    Utilizamos aqui o termo Satans por constar essa designao na traduo para

    lngua portuguesa de Joo Ferreira de Almeida. Entretanto algumas tradues

    apresentam a denominao Sat. Tanto este quanto aquele nome so oriundos

    do termo hebraico stn, cuja traduo literal oponente. Segundo Stanfrd

    (2003, p. 37), o termo stn recorrente no Antigo Testamento e na lngua inglesa

    foi traduzido de formas diversificadas: em I Reis (1:14) o inimigo e em

    Nmeros 22:22 representa o anjo de Iahweh. Em lngua portuguesa, confirma-se

    a mesma traduo.

  • 35

    Num dia em que os filhos de Deus vieram

    apresentar-se perante a Iahweh, entre eles veio

    tambm Satans. Iahweh ento perguntou a

    Satans: Donde vens? _Venho de dar uma volta pela terra, andando a esmo, respondeu Satans. Iahweh disse a Satans: Reparastes no

    meu servo J? Na terra no h outro igual: um

    homem ntegro e reto, que teme e se afasta do

    mal. Satans respondeu a Iahweh: por nada que J teme a Deus? Por ventura no levantaste um

    muro de proteo ao redor dele, de sua casa e de

    todos os seus bens? Abenoastes a obra de suas

    mos e seus rebanhos cobrem toda a regio. Mas

    estenda tua mo e toca nos seus bens; eu te

    garanto que te lanar maldies em rosto. Ento

    Yahweh disse a Satans: Pois bem, tudo o que ele possui est em teu poder, mas no somente sua

    mo contra ele. E Satans saiu da presena de Yahveh. (JO 1:1,12)

    A partir da, Satans recebe a autorizao de Deus para tocar em

    tudo o que pertence ao fiel servo que d nome ao livro. Este perde bens,

    animais, empregados, filhos e filhas, tem o corpo tomado por tumores

    malignos, recebe acusaes, repreendido por seus amigos e participa

    de um tenso debate com Deus.

    A grande questo nessa narrativa tem como tema a justia divina.

    Nossa inteno, entretanto, analisar apenas a atuao de Satans que,

    como j dissemos, ocupa a figura de acusador da humanidade diante de

    Deus. Isso porque, em face de suas prprias atribulaes dirias, J representa a humanidade que est procura de uma resposta para o

    sofrimento e o mal. (STANFRD, 2003, p. 40). Assim, Satans, quando prope um teste fidelidade de J, o

    representante da humanidade no livro, coloca em cheque a parte

    representada, ou seja, a prpria humanidade. Desse modo, Satans ,

    sim, o acusador e grande adversrio dos homens.

    A novidade no livro, entretanto, no essa. Aqui fica explcito

    que Satans no age por conta prpria. Ele tem a permisso divina para

    atuar e s executa as aes permitidas por Deus, no se excedendo.

    Satans em J no aquele anjo que extrapola e se rebela. Parece antes um vigia da terra, que tem livre trnsito por ele e pela corte celeste.

    Satans no o anjo cado que foi expulso do

    paraso, o inimigo csmico de Deus. Aqui ele

  • 36

    retratado como um dos membros do conselho

    divino de Deus, um grupo de divindades que

    regularmente reportam a Deus e, evidentemente,

    percorrem o mundo fazendo a sua vontade.

    (EHRMAN, 2008, p. 148)

    Evidentemente esse riqussimo livro, extensamente trabalhado

    por telogos, crticos literrios e filsofos renderia uma discusso muito

    mais extensa. Entretanto, dado nosso objetivo, interessa-nos a anlise j

    apresentada da participao de Satans. Segundo Stanfrd (2003, p. 43),

    embora Sat seja introduzido em J, isto no significa que as suas pginas o coloquem como uma espcie de lado malfico de Jeov. Fica evidente que a figurao de Satans, participante da corte celeste, se d

    como acusador e inimigo dos homens.

    Para os estudiosos da Bblia, a representao de Sat, como

    inimigo dos homens, um advento do ps-exlio, quando se havia a

    necessidade de encontrar uma explicao para o que acontecia de ruim

    ao povo. O livro de J, (...) data de uma poca anterior ao exlio, mas os estudiosos de hoje acreditam que ele tenha sido escrito depois

    daquele evento e que sofreu adies e emendas subsequentes. (STANFRD, 2003, p. 27)

    Assim, por vrios anos, muitos leitores atriburam a Satans os

    sofrimentos de J. Entretanto, se Deus assim no o consentisse, J no

    sofreria. (EHRMAN, 2008, p. 151). Por isso, recentes estudos

    apresentam a tese de que Satans, na verdade, deseja colocar a

    humanidade contra Deus, tornando-se de uma vez o acusador da

    humanidade.

    Especulamos uma possvel vingana entre criaturas que, na

    inteno de uma mostrar-se mais fiel a Deus, desejam secretamente

    proporcionar a queda uma da outra. Recuperando o dilogo entre Deus e

    a mulher, verifica-se que esta acusa o ser rastejante pelo acontecido. No

    Gensis, a mulher a grande acusadora da serpente, culpando-a pela oferta do fruto. Por outro lado, em J, Satans torna-se o grande

    acusador e adversrio dos homens. Deus, soberano, o grande

    disputado. Assim, Satans e a humanidade se justapem: ambos desejam

    ser a criatura preferida de Iahweh.

    Entre esses dois livros bblicos, h uma aproximao que no se pode desprezar. Se considerarmos a funo da serpente e de Satans,

    ambas as aparies materializaram-se para levar o homem

    desobedincia. Obstruir o homem da relao de submisso a Deus uma

    tentativa de promover a ruptura da aliana proposta no AT. Assim,

  • 37

    Satans faz jus ao significado que origina a palavra hebraica sat,

    algum que um obstculo, uma pedra no caminho. (BLOOM, 2008, p.

    18)

    A concepo de que Satans o grande obstculo da humanidade

    reforada em Zacarias e Sabedoria.

    O crescente interesse pela sua figura, logo aps o

    perodo do exlio, confirmado pela sua apario

    no Livro de Zacarias. Nesse livro, Sat mais

    uma vez adversrio da humanidade, e no de

    Deus, como acontece no Novo Testamento, e nele

    tambm est presente toda a corte celeste, com

    Sat entre os seus membros. (STANFRD, 2003,

    p. 43)

    O episdio a que Stanfrd faz meno o da quarta viso: o sumo

    sacerdote Josu. Nele, Satans est mo direita para opor-se ao o sumo

    sacerdote, quando Anjo de Yahweh lhe diz: Que Yahweh te reprima, Sat(Zc 3:2). Segundo a leitura de Satanfrd, este trecho bblico ilustra a ousadia de Satans.

    Isto s aconteceu porque Sat havia se excedido

    em busca por homens injustos. Embora isso seja

    bastante tangvel a imagem de um Sat que

    transgride seus limites, tentando mesmo escapulir

    de tudo, o fato que esta ideia no predomina no

    Velho Testamento. Ela s floresceu na srie, de

    livros extraordinrios que evoluram a partir das

    Escrituras Hebraicas como produto da angstia

    nacional que afligiu os israelenses depois do

    exlio, apesar de ter sido excluda do cnone pela

    tradio.(STANFRD, 2003, p. 43,44)

    Segundo Blomm (2008, p. 19), Zacarias o livro em que Jav repreende Sat por abuso de poder, mas no o destitui do seu ofcio de

    Acusador. Ou seja, Satans ainda est a servio de Deus, como em J. E ele parece ir pouco a pouco ampliando seu poder e sua

    desobedincia em relao s ordens divinas. O livro de Crnicas

    apresenta sutilmente a interveno solitria de Satans. Referimo-nos

    passagem do recenseamento, feito pelo rei Davi.

    Sat, um tanto ambiguamente, parece atuar

    independentemente de Deus, quando o rei Davi

  • 38

    comete um erro espetacular e realiza um

    recenseamento, estimulado por Sat e

    supostamente contra a vontade de Deus.

    (BLOOM, 2008, p. 47)

    Crnicas, escrito depois de Zacarias e J, representa a insero

    de uma nova concepo de Satans: As Crnicas datam do incio da era helenstica, (...) . Assim, em mais ou menos dois sculos, Satans

    mudou de atribuies; j no age de acordo com Deus, mas por conta

    prpria. (MESSADI, 2001, p. 300) Em tempo, preciso fazer meno a nica citao do nome Diabo

    no Antigo Testamento, presente no livro da Sabedoria captulo 2,

    versculo 22 a 24, grafada com a inicial minscula:

    Eles ignoram os segredos de Deus,

    no esperam o prmio pela santidade,

    no crem na recompensa das vidas puras.

    Deus criou o homem para a incorruptibilidade

    e o fez imagem de sua prpria natureza;

    foi por inveja do diabo que a morte entrou no

    mundo:

    experimentaram-na quantos so de seu partido!

    A autoria do livro discutida. Enquanto na obra de Stanfrd

    (2003, p.46) credita-se a escrita a um judeu helenizado no sculo I a.C.,

    cujo objetivo era protestar contra os valores mpios que, no seu modo de ver, imperavam naquela cidade, a Bblia de Jerusalm aponta Salomo como suposto autor. Trata-se de um livro deuterocannico,

    com originais escritos em grego. As verses bblicas de grupos

    protestantes no o incluem, mas as verses autorizadas pela Igreja

    Catlica comportam o ttulo. So Jernimo, o padre do quarto sculo que inspirou a Vulgata com sua traduo do Novo Testamento para o latim, considerava o Livro da Sabedoria como perigoso e fora dos

    limites. (STANFRD, 2003, p. 45-46) Porm, como estamos aqui retomando todo o percurso bblico do

    Diabo, no poderamos deixar de realizar a leitura desse livro. Afinal,

    nele que se encontra a prefigurao do que mais tarde ser recorrente nas cartas dos apstolos no NT: a polarizao entre o bem e o mal.

    Sua insero, no entanto, no chega a substituir a imagem

    veiculada no AT de um Deus soberano que rege as coisas que acontecem para a humanidade. de acordo com os seus mandos que o homem

    recebe bonana ou desgraa. No h ainda algum que possa ser

  • 39

    identificado como a personificao do mal, to evidentemente, como

    acontecer com o Diabo no NT.

    Por outro lado, inegvel que Satans tem uma funo muito

    bem definida: testar a fidelidade da humanidade. Assim, seja como um

    servo eficiente, que faz exatamente o que permitido, ou como um

    empregado eficaz, que extrapola seus limites no intuito de receber

    gratificaes, o Diabo no AT o oponente da humanidade.

    2.2 O DIABO NO NOVO TESTAMENTO: A PRESENA

    CONSTANTE DO INIMIGO

    A leitura do AT encerra-se sem evidncias irrefutveis de que

    Satans, a serpente ou o Diabo seja o adversrio de Deus. Embora com

    algumas aparies suspeitas, como em Crnicas e Sabedoria, revela-se, sobretudo, sua nsia de atuar como acusador dos homens.

    O Novo Testamento marca a histria da nova aliana que Iahweh faz com a humanidade. Sua leitura mais difundida no Ocidente do que

    o AT porque o cristianismo, religio mais representativa do mundo

    Ocidental, fundamenta seus dogmas centrais a partir do que est escrito

    na segunda parte da Bblia.

    Mais constante, o aumento de aparies do Maligno

    proporcional as novas caractersticas que ele assume. No NT, a primeira

    proposta, de que Satans age de acordo com os desgnios de Deus, se

    extingue e o que vemos um Diabo opositor criao e a Iahweh (Deus

    Pai e Deus Filho, o Verbo encarnado).

    Alis, o NT no tarda ao registrar essa concepo. Estamos nos

    referindo ao evangelho de Mateus, que apresenta, logo em seus

    primeiros captulos, a tentao ao Redentor dos cristos. O episdio

    demarca bem a relao de conflito entre as partes: Jesus, de um lado, e o

    Diabo, de outro.

    Entendendo a Bblia como livro sagrado dos cristos, seguidores

    do Cristo Jesus12

    , inaugura-se assim a ideia central do cristianismo: o

    12

    Empregamos o termo Cristo ao nome Jesus, pois assim que a tradio crist

    o denominada e mais fortemente tem participado da cultura no Ocidente.

    Contudo preciso ressaltar que o significado que a palavra Cristo assume no

    exclusiva do cristianismo. Conforme Coust (1997, p. 165) Em ateno a isso, necessrio separar como, alis, o fazem atualmente todos os historiadores srios das religies o conceito de Cristo da figura de Jesus: o Cristo, que, como demiurgo redentorista, no exclusivo do cristianismo ( lembremos de

    passagem Mitra, o Prajapati hindu, o Saoshyant do zoroatrismo), tem sua

  • 40

    paralelismo estabelecido entre Bem (representado pelo Deus encarnado,

    Jesus) e Mal (sob a figurao do Diabo). por isso que, alm de o NT

    demarcar para os cristos uma Nova Aliana entre Deus e a

    humanidade, h, concomitantemente, a designao clara do inimigo a

    ser combatido: o Diabo.

    Depois da narrao desse encontro, as aparies do demiurgo em

    questo tornam-se recorrentes. Raros so os livros que no citam a

    influncia do Diabo na caminhada da humanidade. Diante disso,

    elegemos alguns momentos que ilustram o percurso bblico do Diabo no

    NT.

    Em tempo, ressaltamos que essa anlise no inclui a retomada das

    possesses demonacas, erroneamente vinculadas ao Diabo bblico.

    Muitas vezes, o termo demnio permanece como sinonmia perfeita da

    palavra Diabo. Contudo, os evangelhos no estabelecem essa relao,

    conforme se verifica:

    Nos evangelhos, diabo ou Satans so masculinos,

    vem sempre escritos no singular e costumam vir

    procedidos de artigo definido. Sua principal

    funo seduzir, tentar e induzir ao pecado. (...)

    Demnios no se relacionam com pecado ou

    tentao, e sim, infringem males fsicos ou

    psquicos s pessoas. Os demnios agem atravs

    da possesso e o diabo, atravs da seduo e

    tentao! (WEGNER, 2003, p. 89)

    Por conta dessa diferena e considerando a extensa biografia

    diablica que podemos identificar na Bblia, vamos restringir nosso

    estudo considerando as funes que as pginas do NT designaram a ele: adversrio de Deus, tentador dos homens e, por fim, a diviso entre

    Reino do Bem e Reino do Mal.

    2.2.1 Houve peleja no Cu: a revelao do inimigo de Deus

    Se a Bblia a mais influente obra do mundo Ocidental; a leitura

    do livro do Apocalipse, a mais temerosamente desejada. A possibilidade de encontro com esse texto esteve vinculado, desde sempre, a um

    contedo proibido. A poltica de disseminao da cultura do medo no

    contraparte, sua justificao e seu paredro no Diabo, como Vishnu em Shiva ou

    Osiris em Seth.

  • 41

    Ocidente contribuiu para a crena de que a leitura e interpretao dos

    fatos ali expostos levariam seu interlocutor loucura, causando a

    escassez de estudos publicados acerca do tambm chamado Livro da Revelao.

    Quando a mente dos cristos j estava bastante atormentada, por

    medo do Diabo, uma certeza pairou sobre o mundo:

    no fim do sculo IV, tanto no Oriente quanto no

    Ocidente, os cristos concordavam em que a

    queda do homem no foi mais que um episdio na

    histria de um prodigioso combate csmico,

    iniciado antes da Criao, quando uma parte das

    falanges celestiais havia revoltado contra Deus,

    sendo ento precipitada dos cus. (NOGUEIRA,

    2000, p. 29)

    Contextualizando a batalha, Agostinho o precursor desta ideia:

    Ado e Eva foram criados por Deus a fim de substituir os anjos cados. (BLOOM, 2008, p. 55). Assim, embora disposta no ltimo livro bblico, o embate situa-se cronologicamente antes da criao, narrando-

    se: Houve peleja no cu. Miguel e os seus anjos pelejaram contra o drago e seus anjos; todavia, no prevaleceram; nem mais se achou no

    cu o lugar deles. (APOCALIPSE, 12, 7-9) verificvel que os anjos do cu tiveram um combate, duelando

    entre seus pares, de um lado os liderados por Miguel em oposio

    queles seguidos pelo drago. Como resultado, houve a precipitao

    deste e dos seus. desse modo que sua historia (do Diabo), resgatada pelo Novo Testamento, a do anjo decado, expulso do cu, e

    metamorfoseado em rival de Jeov. (STANFRD, 2003, p. 44). Corroborando com a ideia do Diabo como opositor de Iahweh,

    em Mateus, Marcos e Lucas, Satans o grande tentador que quer tirar

    Jesus do caminho da ressurreio. Primeiro ao conduzir Jesus ao

    deserto (Mt 4:1,11), depois quando Jesus prediz a sua morte e

    ressurreio aos discpulos e Pedro reprova seus planos dizendo: Tem compaixo de ti, Senhor.. Ao passo que Jesus responde: Arreda, Satans! Tu s para mim pedra de tropeo, porque no cogitas das

    coisas de Deus, e sim das dos homens (Mt 16:23). Nos evangelhos, o Diabo representando ser pedra, um obstculo na maior misso de Jesus,

    o Verbo encarnado, confirma-se, portanto, como inimigo do prprio

    Deus.

  • 42

    H outros episdios que evidenciam as constantes tentativas de

    desviar o Salvador da crena na redeno. Em Lucas, Jesus reconhece

    que foi tentado e que seus discpulos o acompanhavam: Vs sois os que tendes permanecido comigo nas minhas tentaes. (Lc 22:28). E h um episdio que pode ser entendido com a derrota de Jesus diante do mal:

    Diariamente, estando eu convosco no templo, no puseste a mo sobre mim. Esta, porm, a vossa hora e o poder das trevas. (Lc 22: 53). As trevas no NT esto relacionadas a Satans, conforme se l em Atos 26:18.

    Tambm entendido como inimigo, em Joo, a grande misso de

    Satans trair Deus. Na ltima ceia com seu discipulado, h a narrativa

    que o diabo coloca-se no corao de Judas Iscariotes para que trasse a

    Jesus (conforme Jo 6:64). Soma-se a essa ideia, as palavras: (quem trair) aquele a quem eu der um pedao de po molhado. Tomou pois

    o pedao de po e, tendo molhado, deu-o a Judas, filho de Simo

    Iscariotes. E, aps o bocado, imediatamente, entrou nele Satans. (Jo 13: 26,27).

    assim, narrado nos evangelhos como traidor e tentador de Jesus

    e presente no Apocalipse na forma de um drago pelejando contra os fieis anjos do Senhor, que o Diabo no NT faz sua estreia como

    adversrio de Iahweh. desse modo tambm que ele se cristaliza no

    imaginrio de todo Ocidente, especialmente quando os pais da Igreja

    justificam a existncia da maldade no mundo.

    2.2.2 O espinho na carne

    Na Idade Mdia e Moderna, quando houve o apogeu do medo do

    Diabo no Ocidente, difundiu-se que o homem estava no meio da batalha

    travada entre Deus e o Diabo. Segundo os discursos oficiais da Igreja

    Catlica, este quer cada vez mais aumentar seus seguidores,

    desvirtuando-os dos desgnios do Deus caridoso do NT.

    A ideia no nasce naquele momento histrico, porm. Essa

    mesma concepo j havia sido veiculada em boa parte das cartas

    atribudas aos discpulos Tiago, Pedro, Joo, Judas, irmo de Tiago, e

    Paulo (Saulo de Tarso), que se tornaram parte da verso cannica da

    Bblia. Essas epstolas revelam mais fortemente qual a concepo que os

    primeiros cristos tinham do Inimigo e como a repassavam para os

    povos cristianizados. Dado o carter catequtico e normativo das cartas,

    estas revelam o que pensavam os colaboradores da Bblia sobre a

    atividade do Maligno.

  • 43

    Na maioria das quatorze cartas de Paulo, h meno ao poder de

    Sat. Nelas revela-se que o Adversrio tem a competncia de condenar

    (I Tm 3,6), promover a queda do homem (I Tm 3,7), derrotar pelo poder

    da morte (Hb 2,14), repreender (I Cor 5,5) e tentar (I Cor 5,7), podendo

    mesmo recorrer a disfarces para conquistar os homens (II Cor 2,10).

    Segundo Stanford (2003, p.58), Paulo escreve muito sobre o Diabo e do seu papel no mundo, descrevendo-o na sua funo de desmantelar a

    moral e provocar desastres. Contudo, nunca se sabe se o Satans de Paulo o colaborador de Deus, encarregado de pr os homens prova,

    ou ento inimigo confesso de Deus. (MESSADI, p. 327) De todo modo, o que fica evidente nessas epistolas que o Diabo

    se coloca como fora contrria ao homem, em seu caminho de salvao

    eterna. Em Paulo, no interessa situar se Satans autnomo em seus

    atos ou recebe autorizao divina para testar a humanidade, como em

    J. Os cristos convertidos precisariam apenas resistir-lhe s tentaes.

    Refora-se, portanto, a concepo de obstculo da humanidade j

    vislumbrada no AT.

    2.2.3 Reino do Bem X Reino do Mal: a polarizao das virtudes

    De acordo com Nogueira (2000, p.26), com o advento do

    cristianismo que se apresenta a polarizao ente o reino de Cristo e o

    reino do Diabo. Iahweh envia seu filho para fazer uma nova aliana com

    os homens e o Diabo, como pai da desobedincia, desempenha a funo

    de tent-los para esvaziar a doutrina crist.

    A polarizao entre Reino do Mal em oposio ao Reino do Bem

    uma concepo especialmente desenvolvida nos livros atribudos ao

    discpulo Joo: o evangelho segundo Joo, as duas epstolas de Joo e o

    Apocalipse. Joo se interessa muito mais pela figura do Diabo

    propriamente dita. Dos quatro evangelhos, o de

    Joo o mais dualista, antecipando o pice da

    batalha entre Deus e o Diabo que est no Livro da

    Revelao. (STANFRD, 2003, p.67)

    Essa viso dualista o que chamamos aqui de polarizao entre os dois reinos. Para o evangelista, onde h o registro do diabo como pai

    da mentira, prncipe deste mundo e suicida deste o principio, os homens

    poderiam pertencer a um dos reinos.

    A oposio entre aqueles que so do Pai, ou seja, pertencem ao

  • 44

    reino dos justos, e do Diabo, assim sendo do Prncipe deste mundo, so

    muito bem demarcadas em suas epstolas. Joo taxativo ao mencionar

    a separao dos homens que pertencem a cada um dos lados. Assim,

    Aquele que pratica o pecado procede do diabo,

    porque o diabo vive pecando desde o princpio.

    Para isto se manifestou o Filho de Deus: para

    destruir as obras do diabo. (...) Nisto so

    manifestos os filhos de Deus e os filhos do diabo:

    todo aquele que no pratica a justia no procede

    de Deus, nem aquele que no ama a seu irmo. (I

    Jo, 3,8-10)

    Em Mateus h tambm essa diviso. Nesse evangelho, fala-se em

    separao e julgamento. Segundo o evangelista, anjos viro e separaro

    os justos dos mpios e jogaro estes numa fornalha acesa, provocando

    choro e ranger de dentes. (Mt 13: 41 e 49). Para ele, acontecer grande

    julgamento h uma corte celeste: Jesus e seus anjos separaro as ovelhas

    a sua direita e os cabritos a sua esquerda (Mt 25:31, 46).

    A distino entre as partes acentuada tambm no evangelho

    segundo Lucas. nele que se afirma: a porta do reino estreita e quem

    ficar de fora no poder entrar e haver choro e ranger de dentes (Lc 13,

    22). O critrio para ficar de fora do reino de Deus se apartar do Senhor

    e praticar iniquidades. Ou seja, no nascem bons ou maus. Todos no

    principio so de Deus, depois que se apartam, por meio de condutas

    inadequadas.

    Fica em aberto nesse evangelho se os homens separam-se das

    virtudes de Deus levados por alguma entidade maligna ou se, por conta

    prpria, realizam coisas injustas que os levam aos maus caminhos.

    Os evangelhos sinpticos deixam, portanto, em

    aberto a questo de como o diabo se enquadra no

    Plano Divino de um Deus onipresente e onisciente

    e de como ele foi indispensvel para a ocorrncia

    da paixo, da morte e da ressurreio de Cristo.

    No est completamente descartada a

    possibilidade de que o Diabo poderia ser um servo

    sombrio de Deus como tentador da humanidade,

    maneira do que fez com J, embora os escritos do

    apstolo Joo e do seu crculo tenham considerado

    improcedente qualquer tipo de sugesto.

    (STANFRD, 2003, p. 66)

  • 45

    Ainda sem responder a essa questo, nas cartas de Tiago e Pedro,

    a dicotomia Bem X Mal notvel, porm os fiis recebem algumas

    recomendaes para que o Diabo seja espantado, representando ser

    menos temvel do que aquele apresentado por Paulo.

    Na carta de Judas, apresenta-se sob a forma de recomendao

    uma conduta prudente contra Satans. Seu autor faz uma analogia,

    aconselha aos fiis que combatam pela f e no pratiquem nenhum tipo

    de represso a Satans: Mas quando o arcanjo Miguel, discutindo com o Diabo, disputava a respeito do corpo de Moiss, no ousou pronunciar

    contra ele juzo de maldio, mas disse: O Senhor te repreenda! (Jd 1,9).

    Diante da explanao, cuja proposta previa o entendimento das

    principais aparies bblicas do Diabo, podemos identificar que o

    demiurgo, a partir do NT o responsvel pelo mal. E assim que sua imagem se cristaliza no Ocidente. Assumindo as funes de acusador e

    inimigo da humanidade, adversrio invejoso de Deus. O Maligno passa

    a ser com o advento do cristianismo a razo para o mal no mundo.

  • 46

  • 47

    3 LITERATURA DE FOLHETOS: A POESIA POPULAR

    EXPRESSA NA MODALIDADE ESCRITA

    A literatura de folhetos do nordeste est inserida na cultura local

    desde a chegada das primeiras prensas, que proporcionaram a

    comercializao dos versos cantados, e perpetua como arte coletiva at

    os dias de hoje. uma das formas legtimas de registro da literatura oral

    que emana do povo e, por isso, fonte de pesquisa para os que

    empreendem seus estudos no registro do imaginrio popular.

    Atualmente, com mritos tardiamente conferidos, a literatura de

    folhetos nordestina no precisa mais justificar-se para receber ateno

    na academia. De 1970 para c, um nmero crescente de pesquisadores

    estudam e propem teses acerca das origens, caractersticas poticas,

    organizaes temticas, ciclos, autores e demais elementos dessa arte

    literria. Iniciativas que proporcionam s novas pesquisas, alm de um

    respeitvel material para consulta, a garantia de um espao j

    conquistado.

    Situado no ramo de estudos denominado Teopotica, este

    trabalho toma o folheto enquanto veculo de representao da

    inquietao humana, incansvel na busca de respostas acerca de sua

    existncia. Para tanto, baseamo-nos em Kuschel (1997, p. 9), para quem

    as grandes obras de arte, por seu carter livre e indeterminado e por sua capacidade de representar a multiplicidade da existncia humana, podem

    colocar o homem em contato intenso com o que est alm dele. nessa perspectiva que faremos a anlise da concepo do Diabo

    ridicularizado na literatura de folhetos do nordeste. Para tanto,

    comearemos pontuando algumas peculiaridades do material em estudo.

    3.1 FOLHETOS: INFLUNCIA E SUPERAO DO RELIGIOSO

    Em termos de pesquisas acadmicas, no a primeira vez em que

    a literatura de folhetos aproxima-se da teologia. Estudos comparativos

    sobre a representao de livros e personagens da Bblia fazem parte de

    teses, dissertaes, trabalhos de concluso de curso e artigos cientficos.

    Lendo-os podemos inferir que a expressiva quantidade de temas bblicos

    e da teologia catlica o que instiga a interesse dos pesquisadores.

    De fato, so muitos os cordis que j no ttulo denunciam a

    representao de algum elemento religioso. Tanto que Digues Jr. faz a

    seguinte afirmao:

  • 48

    Talvez se possa dizer sem muita margem de erro

    ser este o de religio e, em particular de vida de santo o tema mais antigo nos folhetos populares. A tradio religiosa, em poca em que os meios

    de comunicao no eram aperfeioados, mas

    ainda rudimentares, encontrou no folheto um

    intermedirio para a difuso das ideias religiosas;

    (...). (DIGUES, 1973, p. 60)

    De acordo com essa leitura, portanto, possvel entender que o

    folheto caracteriza-se como um importante suporte de mediao entre as

    ideias religiosas e seus leitores. Assim, considerando a formao

    essencialmente crist e predominantemente catlica do Brasil, incluindo

    a regio nordestina, o folheto torna-se, ento, um porta-voz dos dogmas

    catlicos.

    Como transmissora da ideologia eclesistica para o povo,

    natural que a literatura de folhetos seja abundante em amostras do

    religioso e que a representao de suas personagens assuma as funes e

    sejam retratadas com fidelidade ao catecismo e liturgia catlica.

    Considerando essa influncia, importante ressaltar, entretanto,

    que no se pode reduzir a escrita popular nordestina mera reproduo

    dos ideais catlicos. Iza Chain, na publicao O Diabo nos Pores das Caravelas, defende a tese de que o Diabo nas terras brasileiras no a

    mera reproduo do que o catolicismo imposto pelo povo portugus

    queria impor. Devido miscelnea de crenas dos diferentes povos

    indgenas somadas s outras imigraes, o Diabo europeu, que

    demonizava muitos dos hbitos e crenas locais, no foi assimilado

    pelos brasileiros. A homogeneidade pretendida pelo modelo de Cristianismo trazido pela igreja lusitana no encontrava eco na

    heterogeneidade da colnia brasileira (...) (CHAIN, 2003, p. 122) Alm dessas inclinaes religiosas impostas, o folheto apresenta

    as inquietaes humanas dos grupos que o produzem, revelando a

    apreenso mais densa da realidade (conforme Kuschel, 1999, p. 210). por conta disso que em nossa anlise, alm de verificar o que migra do

    Diabo bblico para o folheto, buscaremos identificar quais novos

    elementos o folheto adiciona ao tema. Queremos estudar qual a

    experincia de Diabo que o gnero apresenta aos seus leitores. Afinal, se

    por um lado os homens fazem de acordo com os seus gostos e costumes o seu cu. (BARROSO, 1921, p. 487), inquieta-nos saber como a cultura popular nordestina apresenta o seu Diabo.

  • 49

    3.1.1 O Diabo e a literatura de folhetos

    Como citamos, os enredos e personagens religiosos acompanham

    a histria dos folhetos, e o tema em estudo, o Diabo, contribui para isso.

    Quem visita o nordeste e para diante de um ponto de venda de folhetos

    dificilmente no encontrar um, pelo menos, que fale sobre o Diabo. A

    personagem to popular no nordeste quanto essa literatura.

    Os mais famosos versos sobre a personagem retratam-na de

    forma engraada, contribuindo com a fama internacional de ridculo que

    a literatura popular passou a lhe atribuir. Delumeau (1989, p. 240) faz as

    seguintes consideraes a respeito da representao do Diabo na

    Europa: ao mesmo tempo sedutor e perseguidor, o Sat dos sculos XI e XII certamente assusta. No entanto, ele e seus aclitos so por vezes

    to ridculos ou divertidos quanto terrveis: por isso, tornam-se

    progressivamente familiares. No Brasil, os folhetos mais vendidos sobre o Diabo so aqueles

    em que lhe conferem um tom mais leve e engraado. Dentre os ttulos

    que so emblemticos em todo o nordeste, podemos citar A Chegada de

    Lampio no Inferno e Peleja de Manuel Riacho com o Diabo. No primeiro apresenta-se, o Diabo como coadjuvante. Sua

    atuao no inferno absolutamente engraada, pois o aproxima de um

    administrador de uma loja de departamentos. Na histria, ele avarento

    e gerencia o inferno, com livro ponto, mercadorias e controle do fluxo

    de caixa.

    J no segundo, que apresenta inmeras verses devido

    apropriao indbita dos versos originalmente escritos por Leandro

    Gomes de Barros, apresenta-se o Diabo como adversrio do homem, na

    forma do desafio cantado ou peleja. No folheto, ambos tm a vez de

    falar e, ao trmino, o homem sagra-se vencedor.

    Essas duas obras so exemplos para ilustrar a participao

    engraada que o Diabo faz no folheto. Alm desses ttulos, poderamos

    citar muitos outros. Tanto que a maioria dos estudiosos propulsores dos

    ciclos temticos da literatura de folhetos apresenta o ciclo do diabo

    logrado (CASCUDO, 2009). A repercusso dessa temtica leva-nos a

    crer que os poetas populares colocaram seus versos desde sempre

    disposio de uma interpretao mais leve do que seria o Diabo cristo.

    3.2 AS PARTICULARIDADES DO FOLHETO NORDESTINO

    Os folhetos comeam a ser publicados no Brasil no final do

    Sculo XIX, mais precisamente no estado da Paraba. No se encontram

  • 50

    registros que afirmem com exatido qual o primeiro autor que teve seus

    versos impressos. Pode-se citar, contudo, os nomes de Leandro Gomes

    de Barros, cujo folheto mais antigo que se tem notcia data de 1893, e

    Francisco das Chagas Batista13

    como os precursores.

    Antes mesmos desses, Jos Alves Sobrinho, um dos mais

    renomados pesquisadores da literatura popular do nordeste, atribui o

    incio da literatura popular em versos a dois nomes: Silvino Pirau Lima

    e Germano Alves de Arajo Leito (Germano da Lagoa). Segundo

    Sobrinho (2003, p. 21,22) ambos paraibanos, escreviam e cantavam ao som de suas violas, romances e pelejas (...). O que no sabemos e se

    chegaram a imprimir nestes tempos tais trabalhos. Diante de tal afirmao, esses dois nomes so possivelmente os primeiros a colocar

    no papel os versos que outrora se apresentavam apenas na modalidade

    oral.

    O fato que embora atrasse pblico, cantar versos no era uma

    atividade remunerada. A impresso dos folhetos foi o que viabilizou aos

    poetas algum tipo de retorno financeiro.

    A produo, de modo geral, iniciava-se da seguinte forma: os

    poetas escreviam e imprimiam seus versos, utilizando prensas manuais e

    a contribuio da mo-de-obra dos filhos e esposa, num sistema de

    empresa familiar. Depois partiam para a comercializao, participando

    de feiras em cidades e estados prximos a sua cidade de residncia.

    Quando os exemplares esgotavam-se, eles voltavam a suas casas para

    escrever e editar mais folhetos. Muitos j chegavam ao lar com as

    composies criadas, obras feitas entre uma parada e outra durante a

    viagem de venda.

    Quase nenhum desses poetas ganhava dinheiro

    pela composio dos versos, e sim pela comercializao dos folhetos, vendidos em feiras

    e mercados, nas estaes de trem e de nibus, nas

    festas nas fazendas e nas casas da cidade. Quando

    o estoque terminava, o poeta se cansava ou a

    saudade apertava, voltava para a casa para

    preparar um novo conjunto de folhetos. (ABREU,

    2006, p. 61-62)

    13

    Os dois figuram entre os poucos poetas que no eram cantadores. A maioria

    dos autores de folheto utilizava como meio de divulgao a cantoria de uma

    parte de seus versos em festas e feiras, estimulando o comrcio de suas obras.

  • 51

    Com o passar dos anos, o modo de comercializao

    transformou-se. Os poetas comearam a atender em pontos fixos de

    vendas, distribuindo composies prprias e de colegas. Em 1911,

    Francisco das Chagas Batista j vendia seus folhetos dessa forma.

    Segundo Abreu (2006, p.62), foi em meados do sculo XX que os

    folhetos passaram a ser vendidos de modo expositivo (colocados nos

    cho das barracas, em bancas ou pendurados em varais).

    Dentre outros fatores e, especialmente, por conta do modo de

    disposio, pendurados em varal, muitos pesquisadores passaram a

    aproximar os folhetos nordestinos literatura popular vendida do

    mesmo modo em Portugal, l nomeada como literatura de cordel.

    Entretanto tal denominao no era empregada entre os produtores e

    leitores dos folhetos brasileiros.14

    A terminologia cordel, portanto, no fazia parte do vocabulrio dos primeiros autores e leitores dos versos

    nordestinos, conforme se l:

    A expresso literatura de cordel nordestina passa a ser empregada pelos estudiosos a partir da

    dcada de 1970, importando o termo portugus

    que, l sim, empregado popularmente. Na

    mesma poca, influenciados pelo contato com os

    crticos, os poetas populares comeam a utilizar

    tal denominao. 15

    (ABREU, 1999, p. 17-18)

    Mesmo com produo bastante significativa para os padres

    editorias brasileiros16

    , desde o surgimento do folheto j se preconizava

    seu declnio. A insero de meios de comunicao no cotidiano do povo

    nordestino representava a especulao na queda das vendas de folhetos

    e, at mesmo, sua total extino. Um dos principais motivos para isso

    14

    Marcia Abreu apresenta no livro Histrias de cordis e folhetos o que ela

    mesma denominada como a condensao das ideias contidas em sua tese de

    doutoramento. A obra mostra o percurso da pesquisadora para desmitificar a

    cultura vigente at ento, a literatura de folhetos nordestinos como uma herana

    europeia. Quem l a obra tem acesso a uma infinidade de argumentos que, alm

    de derrubar essa teoria, comprovam a genuinidade nordestina ao folheto. 15

    Em coerncia com a pesquisa de Marcia Abreu (1999), neste trabalho temos

    como preferncia o uso da terminologia folheto. 16

    Baseando-se nos dados apresentados por Marlyse Meyer em Autores de

    cordel, Marcia Abreu apresenta na obra Cultura Letrada: literatura e leitura a

    venda expressiva de folhetos, conforme l-se: Folhetos sobre a morte de Getlio Vargas venderam 200 mil exemplares; sobre a renncia de Jnio

    Quadros, 70 mil; sobre a morte de Lampio, 50 mil.

  • 52

    provinha da particularidade das informaes serem circuladas por meio

    da literatura de folhetos. Com a disseminao do jornal, acreditava-se

    que pouco a pouco o folheto ficaria obsoleto, conforme afirmou Slvio

    Romero em 1879 na Revista Brasileira:

    O povo do interior ainda l muito as obras de que

    estamos falando; mas a decadncia por este lado

    patente: os livros de cordel vo tendo cada vez

    menos extrao depois da grande inundao dos

    jornais. (ROMERO, 1977, p. 257)17

    No nordeste, entretanto, mesmo com a difuso do jornal

    impresso, os folhetos continuaram em franca ascenso. Coexistindo com

    os jornais, os rumores sobre o fim da literatura de folheto no haviam

    cessado.

    J nas primeiras dcadas do sculo XX, com chegada da energia

    eltrica e o rdio, os poetas foram bombardeados com previses acerca o

    declnio na venda. O motivo no era infundado. que, at ento, as

    residncias abriam suas portas para a declamao dos folhetos e

    cantorias, realizando verdadeiras festas literrias, denominadas seres.

    Era nesse espao que muitos folhetos eram divulgados e, por isso,

    vendidos.

    A prpria vida familiar no Nordeste contribuiu

    para o sero, a reunio noturna em famlia. Em torno de um candeeiro, depois do jantar, na sala de

    visitas fosse um engenho, uma fazenda, um stio, no raro tambm numa casa na cidade reuniram-se os membros da famlia. A falta de

    eletricidade fazia do candeeiro o ponto de

    convergncia dos familiares: pais, filhos, irmos,

    primos, etc. E a leitura de novelas, de histrias, de

    poesias, se tornava o motivo do encontro familiar.

    O alfabetizado da famlia era o leitor. E assim a

    histria se divulgava. (DIGUES JR., 1973, p. 15)

    17

    A obra de 1977, Estudos Sobre a Poesia Popular no Brasil, da qual retiramos

    tal afirmao trata-se da 2 edio de um estudo publico em 1888 pelo prprio

    Silvio Romero. Ao fixar residncia na capital carioca no ano de 1879, o

    folclorista publica na Revista Brasileira os estudos A Poesia Popular no Brasil.

    Em 1888, os textos foram reunidos em Estudos Sobre a Poesia popular no

    Brasil, sendo a obra original dessa