Download - O Diabo na literatura de cordel
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Estela Ramos de Souza de Oliveira
O DIABO RIDICULARIZADO NA LITERATURA DE
FOLHETOS DO NORDESTE
Dissertao submetida ao Programa de
Ps-graduao em Literatura da
Universidade Federal de Santa
Catarina para a obteno do Grau de
Mestre em Literatura.
Orientador: Prof. Dr. Salma Ferraz de
Azevedo de Oliveira
Florianpolis
2013
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Catalogao na fonte elaborada pela biblioteca da
Universidade Federal de Santa Catarina
A ficha catalogrfica confeccionada pela Biblioteca Central.
Tamanho: 7cm x 12 cm
Fonte: Times New Roman 9,5
Maiores informaes em:
http://www.bu.ufsc.br/design/Catalogacao.html
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Estela Ramos de Souza de Oliveira
O DIABO NA LITERATURA DE FOLHETOS DO NORDESTE
Esta Dissertao foi julgada adequada para obteno do Ttulo de
Mestre,e aprovado em sua forma final pelo Programa Ps-Graduao em Literatura.
Florianpolis, 16 de Abril de 2013
________________________
Prof. Susana Clio Leandro Scramim, Dr.
Coordenadora do Curso
Banca Examinadora:
________________________
Prof. Salma Ferraz, Dr.
Orientadora
Universidade Federal de Santa Catarina
________________________
Prof. xxxx, Dr.
Corientadora
Universidade xxxx
________________________
Prof. xxxx, Dr.
Universidade xxxxxx
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Isabela e ao Dionis, presentes nas
minhas ausncias.
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AGRADECIMENTOS
Agradeo a todos os educadores com quem tive o privilgio de
conviver ao longo de minha formao.
Aos meus pais, leitores exemplares, dos quais ganhei minhas
inseparveis e aguardadas revistas Nosso Amiguinho. s minhas irms mais velhas, de quem eu esperava ansiosamente
uma indicao de leitura na infncia.
Ao meu irmo mais novo, o primeiro aluno para quem eu lecionei
e que at hoje tento ensinar alguma coisa.
Aos professores do Departamento de Letras da Universidade do
Extremo Sul Catarinense, que fazem verdadeiros milagres para difundir
a pesquisa.
Ao professor Dr. Gladir Cabral, que me deu as primeiras dicas
para eu empreender meu projeto de mestrado ao Programa de Ps-
graduao em Literatura.
Ao professor Dr. Celdon Fritzen, na UNESC, meu primeiro
orientador de projeto de pesquisa e que, j como docente da UFSC,
participou de minha banca de qualificao.
Aos funcionrios da Biblioteca tila Almeida, da UEPB, solcitos
durante toda a coleta do corpus. Aos professores participantes de minha banca de qualificao, Dr.
Celdon Fritzen (UFSC) e Dr. Jos Ernesto de Vargas (UFSC) e de
defesa, Dr. Antnio Augusto Nery (UFPR) e Andria Guerini (UFSC),
cujos comentrios acrescentaram em minha pesquisa e sero
determinantes para a continuidade de minha trajetria como
pesquisadora.
professora Dr Salma Ferraz pela oportunidade de ingresso,
incentivo na permanncia e exemplo de retido, profissionalismo e
autonomia de pesquisa. De modo especial, Salma, obrigada por valorizar
a discusso de ideias e teorias e no superestimar a discusso de
pessoas.
minha cunhada, Eloisa, com quem eu pude e posso contar.
Aos amigos que fiz na JBG Contabilidade e no Instituto
Educacional Madre Elisa Savoldi, empresas empregadoras e
incentivadoras de minha permanncia no Mestrado.
Aos familiares e amigos, que conseguiram equilibrar a exigncia
da presena e a compreenso das ausncias.
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Disse Jesus: Que desejas
onde no foi convidado
Disse o diabo: Senhor Rei
o mundo est desgraado
a corruo demais
vim lhe fazer avisado.
(Jos Costa Leite, 1976)
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RESUMO
A estreita relao entre Satans e a maldade sempre o identificou como
o culpado pela gnese do mal. Sem a pretenso de refutar ou confirmar
essa teoria, este trabalho limita-se a constatar correspondncias
estruturais entre o Diabo bblico e o Diabo na literatura de folhetos do
nordeste, conforme a metodologia proposta por Kuschel (1999). Situada
no ramo de estudos denominado Teopotica e tendo como base a crtica
temtica (BERGES, 2006), esta pesquisa objetiva definir se a
representao do Diabo como criatura ridicularizada no gnero
apresenta-se como transgresso ou a confirmao da crena no projeto
da redeno humana, proposto pelo Novo Testamento.
Palavras-chave: Diabo. Teopotica. Bblia. Folhetos. .
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ABSTRACT
The close relationship between Satan and the evil always his identified
as the evil culprit. Without attempting to confirm or refute this theory,
this work is limited to observe structural correspondences between the
Bibles Devil and the northeast cordels Devil, according to the
methodology proposed by Kuschel (1999). Situated in the field of study
called Teopoetic and based on the thematic critical (BERGUES, 2006),
this research aims to determine whether the representation of the Devil
as a derided creature in the genre presents itself as transgression or
confirmation of the belief in project of redemption human, proposed by
the New Testament.
Keywords: Devil. Teopoetic. Bible. Cordel.
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SUMRIO
1 INTRODUO .................................................................. 17 2 DO GNESIS AO APOCALIPSE: AS APARIES DO DIABO NA BBLIA ........................................................................ Erro!
Indicador no definido. 2.1 DEUS DE ISRAEL: O BEM E O MAL, DE ONDE PROVM? 478
2.2 O DIABO NO NOVO TESTAMENTO: A PRESENA
CONSTANTE DO INIMIGO ...................................................................... 39
2.2.1 Houve pela no Cu: a revelao do inimigo de Deus .............. 40
2.2.2 O espinho na carne ................................................................... 42
2.2.3 O Reino do Bem X Reino do Mal: a polarizao das
virtudes ...................................................................................................... 43
3 LITERATURA DE FOLHETOS: A POESIA POPULAR
EXPRESSA NA MODALIDADE ESCRITA ............................... 47 3.1 FOLHETOS: INFLUNCIA E SUPERAO DO
RELIGIOSO ............................................................................................... 47
3.1.1 O Diabo e a literatura de folhetos ........................................... 49
3.2 AS PARTICULARIDADES DO FOLHETO NORDESTINO .... 49
3.2.1 Folheto: uma arte coletiva ........................................................ 54
3.2.2 Pelejando a autoria ................................................................... 59
4 TENTADOR, ADVERSRIO E ACUSADOR: AS TRS
FACES DO DIABO NOS FOLHETOS ......................................... 63 4.1 FOLHETOS DE PACTO: A FACE DO TENTADOR ............... 67
4.1.1 Satans trabalhando no roado de So Pedro e Como So Pedro
enganou o Diabo ....................................................................................... 69
4.1.2 O Velho que enganou o diabo ................................................. 72
4.1.3 O scio do diabo ......................................................................... 73
4.1.4 A Mulher que enganou o diabo ............................................... 74
4.2 FOLHETOS DE PELEJA, DISCUSSO E DESAFIO: A FACE DO
ADVERSRIO .......................................................................................... 79
4.3 FOLHETOS DE QUEIXA: A FACE DO ACUSADOR ............ 83
5 CONSIDERAES FINAIS ............................................. 89 REFERNCIAS .............................................................................. 93
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1 INTRODUO
Sat o grande apstolo e cmplice do pecado e
por isso execrado e combatido por todas as
religies dos povos civilizados.
(Giovanni Papini, 1954)
Encontrar uma explicao para os fenmenos terrenos uma
necessidade humana; identificar as razes que motivam o sofrimento no
mundo, uma obstinao. Ao padecer com doenas incurveis,
devastadoras epidemias, secas promotoras da fome, morte de inocentes,
guerras civis e militares, enchentes, enfim, estando merc de todo tipo
de fenmeno ameaador e desconhecido, o homem tenta responder a
uma questo to antiga quanto a sua existncia: qual a gnese do mal e o
motivo pelo qual acompanha permanentemente a humanidade.
Nessa instigante dvida, a maioria das civilizaes imputa a
alguma entidade o poder de promover o mal. Assim, h milhares de
anos, o questionamento sobre a origem das molstias encontra resposta
em deuses ou semideuses. A atribuio das funes, as caractersticas
fsicas ou nomes pelos quais so denominados relacionam-se
diretamente s particularidades de cada povo, suas crenas e privaes.
Alberto Coust, em Biografia do Diabo, obra que apresenta a histria concisa da personagem-ttulo, atribui Idade Antiga os registros
incontestveis na crena/temor em uma divindade do mal. De acordo
com a obra, mesopotmicos, egpcios, sumrios, acdios, babilnicos,
persas, dentre outros povos, continham em seus pantees uma entidade
(atuando solitariamente ou em bando) responsvel pelos infortnios da
humanidade.
Independentemente da origem ou peculiaridades dessa figura
detentora do poder maligno, o fato que a cultura Ocidental no fica
indiferente a essa crena. Identificado pelo nome de Diabo _ e por
vrios codinomes, Sat, Capeta, Demo, Satans, P Redondo, Coxo,
Lcifer etc._ , sua figura est presente na literatura oral e escrita, artes
plsticas, msica, cinema, teatro e em outras manifestaes laicas e
religiosas.
Para Carlos Roberto Nogueira na obra O Diabo no Imaginrio
Cristo, tamanha repercusso deve-se especialmente difuso de um dos dogmas centrais do cristianismo: Bem X Mal. Em outro estudo do
mesmo autor, l-se:
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Com o advento do Cristianismo, chocam-se as
tradies, interpenetrando-se e amoldando-se. O
esprito do mal vem estabelecer, em definitivo, o
confronto permanente entre o Bem e o Mal, vital
para a cristalizao da figura do Maligno na
conscincia crist. (NOGUEIRA, 2012, p. 103)
A religio crist, que rene o maior nmero de seguidores no
Ocidente, tem como literatura sagrada a Bblia. Esta composta por um
conjunto de livros compilados no Antigo Testamento1 (tambm chamado
de Velho Testamento) e Novo Testamento2. Ambos significam a aliana
que Deus faz com a humanidade.
No AT, encontram-se as narrativas da origem do mundo,
mandamentos destinados aos homens, a trajetria do povo escolhido por
Deus e as profecias reveladas. Provm da a aliana que este faz com a
humanidade, assumindo a face de pai e criador.
A segunda aliana de Deus encontra-se no NT. composto por quatro livros, denominados evangelhos, que contam a vinda de Deus
encarnado, redentor da humanidade, o Cristo (da a origem do nome
pelo qual so designados seus seguidores); narrativas da igreja primitiva
e do trabalho apostlico de seus primeiros evangelizadores3 e pelo
enigmtico Livro da Revelao, o Apocalipse. O principal significado
do NT para os cristos da demonstrao do amor de Deus aos homens, porque esse vem sob a forma humana para assumir os pecados do
mundo e dar vida eterna queles que nele creem e seguem seus
desgnios.
nessa parte da Bblia que o Diabo assume a funo de detentor
do poder maligno. A estreia da personagem no NT marcada pelo encontro com ningum menos que o prprio Cristo. No evangelho de
Mateus, ele figura tentando, sem sucesso, ao redentor da humanidade
quando este conduzido ao deserto. Para o evangelista Joo, a
personagem intitulada como pai da mentira, prncipe deste mundo e
suicida desde o princpio. J nas cartas de Paulo e de Pedro, ele
descrito como o grande tentador e adversrio astuto dos homens.
1 Ao longo do trabalho grafado com AT.
2 Ao longo do trabalho grafado como NT.
3 So assim denominados pelo cristianismo queles que anunciam ao mundo o
Cristo como Salvador da humanidade, o redentor dos pecados do mundo.
Evangelho significa Boa Notcia, no caso do cristianismo a Boa Notcia o
prprio Deus Encarnado, o Cristo.
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Tardiamente, entretanto, outros nomes empregados na Bblia, tais
como Satans, Serpente, Drago, foram relacionados ao Diabo. Essa
variedade de denominaes pode ser confirmada no Apocalipse (12, 7-9) conforme se l:
Aconteceu ento uma batalha no cu: Miguel e
seus Anjos guerrearam contra o Drago. O Drago
batalhou juntamente com os seus Anjos, mas foi
derrotado, e no cu no houve mais lugar para
eles. Esse grande Drago a antiga Serpente, o
chamado Diabo ou Satans. aquele que seduz
todos os habitantes da terra.
Diante do exposto, consideraremos como Diabo bblico o Drago
e a do Apocalipse, a serpente do Gnesis, o Diabo que tenta nos
evangelhos, Satans que participa da corte celeste no livro de J e entra em Judas para vender Jesus aos fariseus. Cada uma dessas aparies,
assim como outras ainda no citadas, ser apresentada no primeiro
captulo deste trabalho, que visa identificao das funes exercidas
pelo Diabo no contexto testamentrio.
O motivo pelo qual delimitamos a figura do Diabo como bblico
pontual para diferenci-lo de suas demais representaes, uma vez que,
como j mencionamos, ele est presente nas mais diversificadas
manifestaes culturais, no se restringindo apenas Bblia e forma como as pginas do Antigo e Novo Testamento apresentam-no.
Embora no se limitando apenas s representaes bblicas, o
livro sagrado do cristianismo influenciou todo o pensamento Ocidental
e, por isso, suas artes, incluindo nestas a literatura. Em seu artigo A
esfinge pejada de mistrios: travessias e travessuras de Judas, Salma Ferraz enfatiza que
Sendo a Bblia (...) o maior best-seller de todos os
tempos e uma obra clssica da literatura mundial,
imprescindvel para o conhecimento do
cristianismo, da Literatura Ocidental e da cultura
do Ocidente, natural que muitos de seus
personagens migrem para as pginas de grandes
romances do Ocidente. (FERRAZ, 2010, p.2)
Obras da literatura, tais como A divina comdia (Dante Alighieri),
Os trs cabelos de ouro do Diabo (Irmos Grimm), O moinho do Diabo
(H.C. Andersen), Cartas de um Diabo a seu Aprendiz (C.S. Lewis) A
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Igreja do Diabo (Machado de Assis), O Auto da Compadecida (Ariano
Suassuna) e O Auto da Barca do Inferno (Gil Vicente) exemplificam
essa imigrao anunciada por Ferraz. Nelas, como possvel supor pela
maioria dos ttulos, o Diabo, personagem bblico, invade as pginas da
literatura.
Se ao emigrar da Bblia para as artes, o Diabo passeou nas pginas da literatura erudita, certamente foi nos escritos populares que
ele fez morada e fixou residncia. Segundo Jean Delumeau, em Histria do Medo no Ocidente, as camadas populares criaram uma resposta
teologia assustadora difundida pelo cristianismo e pelas artes eruditas.
O diabo popular pode ser tambm um personagem
familiar, humano, muito menos temvel do que
assegura a Igreja e isso to verdade que se chega
bem facilmente a engan-lo. Assim ele aparece
em inmeros contos campestres (...). A cultura
popular assim se defendeu, no sem sucesso,
contra a teologia aterrorizante dos intelectuais.
(DELUMEAU, 2001, p. 249)
desse modo tambm que sua imagem apresenta-se na literatura
popular brasileira. Menos perturbador e vingativo, ele surge em lendas,
mitos e folhetos com tom mais leve: ora como um conquistador de
mulheres, outrora negociante e at mesmo engraado.
No nordeste brasileiro, so to frequentemente encontrados os
folhetos apresentando o Diabo como uma criatura vulnervel esperteza
humana que os pesquisadores do gnero criaram uma categoria de
classificao para este tipo de enredo. Ciclo do Diabo Enganado ou do
Demnio Logrado, conforme designa Cmara Cascudo em sua
Antologia do Folclore Brasileiro, so algumas das definies usadas
pelos folcloristas para denominar o conjunto de folhetos nos quais o
Tentador ludibriado pelos mortais.
Nesse contexto, verificvel que o Diabo assume um papel de
maior fragilidade, se comparado humanidade, do que a tradio
teolgica crist costuma atribuir ao Inimigo. Tratando-se, pois, de uma
transgresso no que se refere tradicional representao deste,
queremos apresentar em nossa pesquisa os tipos de enredo presentes na
literatura de folhetos da regio nordeste brasileira nos quais o demiurgo
em questo aparece como ridicularizado, analisando as funes por ele
desempenhadas bem como sua relao com a humanidade.
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A escolha do tema e do material aqui proposto no se d de forma
aleatria. Embora haja um nmero crescente de estudos sobre a
figurao do Diabo nos diversos discursos (religioso, literrio, teatral,
cinematogrfico, publicitrio, etc.), ainda h um vasto campo de
pesquisa, especialmente nas artes populares, a ser investigado.
A literatura de folhetos nordestina cumpre alguns critrios
considerados primordiais para esta pesquisa. Trata-se de uma
manifestao popular, prxima da oralidade (oriunda desta modalidade),
que revela qual a reflexo teolgica acerca da personagem mais temvel
do cristianismo.
O cordelista apresenta nos folhetos em que assina seus
pensamentos e de seus pares, baseado na conscincia de si mesmo, dos
outros e do todo que o rodeia. possvel identificar no folheto as
ideologias predominantes de seu meio e concepes h muito tempo
definidas, uma vez que registra via folheto uma tradio passada por
outras geraes. Portanto, o cordel [...] a maneira de ver e analisar os fatos sociais, polticos e religiosos da gente rude do interior nordestino,
fotografada nas pginas dos folhetos, denunciando costumes, atitudes,
preferncias e julgamentos. (CAMPOS, 2010, p. 60) Sendo assim, esta pesquisa tem como base a crtica temtica, cujo
um dos principais conceitos o da interao: por sua relao consigo mesmo que o eu se estabelece, por sua relao com o que o cerca que
se define. (BERGES, 2006, p. 105). De modo que
A crtica temtica recusa, pois, tanto a concepo
clssica do escritor totalmente dono do seu projeto quanto o procedimento psicanaltico que
atribui a obra uma interioridade psquica que lhe
anterior. Ela no esquece nem esse domnio nem
essa parte de inconsciente, mas vincula a verdade
da obra a uma conscincia dinmica que est se
formando. (BERGEZ, 2006, p. 105)
Nosso estudo articula-se a partir da metodologia proposta por
Karl-Josef Kuschel, na rea da Teopotica. Esse ramo de estudos baseia-
se na anlise de trs componentes: a crtica de Deus feita pelos poetas, a crtica Literatura feita em nome de Deus, e a tarefa da literatura e da
teologia de colaborar com a apreenso mais densa da realidade. (KUSCHEL, 1999, p. 210)
Influenciados por esse e outros estudos oriundos dos Estados
Unidos e de pases da Amrica Latina, a Teopotica vem crescendo no
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Brasil e j consiste em uma rea de estudos consolidada. Especialmente
nas duas ltimas dcadas, trabalhos como os dos estudantes e
pesquisadores do Grupo de Pesquisa Teopotica Estudos comparados entre Teologia e Literatura e do Grupo de Trabalho da ANPOLL Literatura e Sagrado contriburam para a efervescncia de publicaes e
discusses nessa rea de pesquisa.
Uma peculiaridade da Teopotica no Brasil que seus estudos
no se restringem figura de Deus. Muitos trabalhos debruam-se sobre
livros bblicos especficos e suas personagens, como o Diabo. Andrei
Soares, Carlos Roberto F. Nogueira, Teresa Rigoni, Dante Luiz Lima,
Marcos Lopes e Salma Ferraz so pesquisadores brasileiros cujas
produes vinculam-se figurao do Diabo nos discursos literrios. 4
Considerando os folhetos cujos enredos apresentam a
ridicularizao de Satans, abordaremos de que maneira ele
representado na literatura popular do nordeste brasileiro, verificando o
que migra da Bblia e o que h de peculiar em sua representao nesse gnero. Para tanto, vamos empregar o mtodo da analogia estrutural de
Kuschel, constatando correspondncias e diferenas, de acordo com os
seguintes pressupostos:
Com esse mtodo (analogia estrutural), torna-se
possvel considerar seriamente tambm a
experincia e a interpretao literria em suas
correspondncias com a interpretao da
realidade, mesmo quando a literatura no tem
carter cristo ou eclesistico. (...) Quem pensa
segundo esse mtodo constata tambm o que
contraditrio nas obras literrias em relao
interpretao crist da realidade, ou seja, o que
estranho experincia crist de Deus.
(KUSCHEL, 1997, p. 222)
Com a delimitao do gnero e escolha da metodologia desta
pesquisa, resta-nos ainda especificar quais exemplares faro parte do
corpus. Haja vista a grande quantidade de folhetos cuja temtica
recupera, de alguma forma, o Diabo, delimitamos a busca nos cordis
4 Alguns desses estudos podem ser encontrados nas obras As malasartes de
Lcifer: textos crticos de Teologia e Literatura e O Plen do Divino, ambos da
compiladora Salma Ferraz.
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que fazem parte do Acervo tila Almeida5, na Biblioteca homnima,
instalada na Universidade Estadual da Paraba, localizada em Campina
Grande.
Dada as caractersticas de produo e comercializao da
literatura de folhetos, no h como apontar com exatido a autoria e data
de publicao. Por esse motivo, no demarcamos a busca por tempo
cronolgico e nome de autor.6 O critrio adotado foi o de pertencer ao
acervo tila Almeida, composto por 9.992 ttulos de folhetos.
Desse total, 161 foram selecionados para integrar o corpus desta
pesquisa por terem como personagem o Diabo. Como a Biblioteca tila
Almeida at a data da coleta do material no contava com acervo virtual,
cada um das obras necessrias para anlise foram disponibilizados pela
biblioteca para digitalizarmos in loco. Com a digitalizao dos folhetos
tornou-se vivel a leitura de todos para verificarmos quais enredos
apresentavam a figura do Diabo como ridculo, restando-nos 22 obras.
Esse corpus contribuir para confirmarmos ou refurtarmos a questo inicial de nossa pesquisa: a representao do Diabo como
criatura ridicularizada na literatura de folhetos, embora inicialmente
parea uma negao tradio bblica, , pelo contrrio, a confirmao
da crena no projeto da redeno da humanidade, propagada pelo NT.
Para que o objetivo proposto neste trabalho seja alcanado,
iniciamos esta apresentao explanando a trajetria bblica da
5 o maior acervo de literatura de folhetos da Amrica Latina. Trata-se da
coleo particular do professor tila Almeida, que por anos adquiriu e
armazenou, alm dos cordis, peridicos e obras raras. Segundo informaes da
prpria Biblioteca tila Almeida, disponibilizadas em sua pgina na Internet, o
Governado do Estado da Paraba comprou em 2003 todo o acervo da senhora
Ruth Almeida, viva de tila, e doou a UEPB que, em 2004, passou a ter total
responsabilidade pelo material, com sua guarda, conservao e manuteno.
6 Embora a maioria dos folhetos venha datada e assinada pelo cordelista, nem
sempre essas informaes podem ser consideradas legtimas. Alm da
peculiaridade de que a literatura antes de ser registrada em folheto tenha sido
repassada pelas geraes em forma de literatura oral, h outra particularidade
que compromete a atribuio da autoria dos cordis. Muitos autores, ou mesmo
familiares aps a morte dos entes cordelistas, vendiam os direitos autorais das
obras. Os compradores nem sempre mantinham a autoria original registrada nos
cordis. Como exemplo, temos o cordelista Joo Martins Athade que, em 1921,
adquiriu os direitos de publicao de toda a obra de Leandro Gomes de Barros
e, embora inicialmente tenha se identificado como editor, depois de algum
tempo, passou a omitir a verdadeira autoria dos folhetos. Parte do segundo
captulo tratar da questo da de forma mais detalhada.
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personagem em estudo. Com o ttulo Do Gnesis ao Apocalipse: as
aparies do Diabo na Bblia, o primeiro captulo pretende responder de
forma analtica quais as funes que a personagem possui na leitura do
livro sagrado do cristianismo: ele age a servio de Deus, como acusador
dos homens, punindo aos desobedientes das determinaes das
Escrituras?; o Anjo Cado, o grande rebelde e adversrio de Deus,
desejoso por provar ao Criador7 que os filhos so to infiis quanto ele
foi ao Pai8?; Trata-se, na verdade, do tentador frustrado, impotente
diante da vontade de Deus? etc. Os trabalhos de Harold Bloom, Barth
Ehrman, Salma Ferraz, Gerald Messadi, Jack Miles, Peter Stanford e
Uwe Wegner sero fundamentais para a discusso apresentada no
captulo.
De modo a entendermos qual a importncia da literatura de
folhetos para difuso ideolgica e manifestao genuinamente
nordestina, o segundo captulo funciona como um precursor ao
entendimento de nosso corpus. No captulo denominado Literatura de folhetos: a poesia popular expressa na modalidade escrita,
apresentaremos os elementos que envolvem sua produo. Marcia
Abreu, Iza Chain, Manuel Digues Junior, Mark Curran, Sebastio
Nunes Batista e Joo Alves Sobrinho faro parte da fundamentao
terica do segundo captulo. Com base nos estudos desses
pesquisadores, haver a explanao sobre a influncia e a superao do
religioso nos folhetos; as particularidades do gnero, especialmente no
que se refere autoria; e uma breve introduo acerca da notoriedade do
tema Diabo na poesia popular escrita do nordeste.
Intitulado como Tentador, Adversrio e Acusador: as trs faces
do Diabo nos folhetos, o captulo trs trar a apresentao do corpus, tratamento dos dados e classificao dos folhetos quanto representao
do tema. Inicialmente, apresentar-se- a histria do acervo tila
Almeida, desde a sua formao, passando pelo convite do proprietrio a
Jos Alves Sobrinho para este tornar-se colaborador na aquisio de
novos ttulos, at a breve explanao sobre sua estrutura atual. Depois,
esclareceremos como se deu a seleo dos ttulos para composio do
corpus e revelaremos os dados quantitativos. Faremos a anlise classificando os folhetos, de acordo com o desfecho, em trs grupos: a)
Pacto (comportando histrias nas quais a personagem, ao realizar um
acordo, aposta ou pacto, tenha um desfecho frustrante, sendo enganado
ou subestimado); b) Peleja, discusso e desafio (agrupando poesias cujo
7 Conforme denominao no livro do Gnesis. Referncia a Deus.
8 Conforme denominao nos evangelhos.Referncia a Deus.
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enredo apresente de um lado o Diabo e de outro um famoso cantador de
versos); c) Queixas (reunindo folhetos em que Satans atua como
acusador e reclama da m conduta da humanidade).
Ao trmino, apresentaremos a discusso que impulsiona toda a
pesquisa: a face de ridicularizado do Diabo no folheto uma
transgresso narrativa bblica ou, pelo contrrio, a confirmao da
crena no Redentor da humanidade.
A partir da prxima pgina, nosso desafio identificar qual a
explicao para a concepo do Diabo ridicularizado nos folhetos
nordestinos, uma vez que a representao do demiurgo em questo
flexvel e est diretamente ligada ao contexto de sua apario. Afinal,
como aponta Coust (1997, p. 249), o Diabo gosta de mudar de feies, de sexo, de roupa. De acordo com a poca e a oportunidade, encarna sob
formas humanas ou se encobre por detrs de maiores sutilezas.
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2 DO GNESIS AO APOCALIPSE: AS APARIES DO DIABO
NA BBLIA
Bblia: escrita literria, texto poltico ou revelao divina? Com
esta peculiaridade, a obra religiosa mais respeitada da humanidade9 foi
difundida em todo o mundo. Surge como escritura sagrada, aquela que
revela as palavras de Deus. Para os que assim crem, a formao bblica
incluindo a tradio oral, posterior escrita, compilao, revises, tradues e disposio cannica motivada pelo prprio Deus. A citao do Papa Leo XIII, extrada da obra A Face Oculta das
Religies, de Jos Reis Chaves, repercute o pensamento catlico acerca da Bblia:
Deus, com seu sobrenatural poder, por tal forma
moveu os escritores sagrados a escrever, e lhes
assistiu enquanto escreviam, que s concebiam e
escreviam o que Lhe aprazia dizer-vos,
expressando-se com infalvel verdade; ao
contrrio no se poderia dizer Autor de toda a
Bblia. (Papa Leo XVIII in CHAVES, 2001, p.
49)
Contudo, essa viso no unnime. H aqueles que discordam
desse argumento e entendem-na como aparelho repressor e uma
conveno do cristianismo para controlar os atos humanos. De acordo
com isso, ela nada mais do que um conjunto de mandamentos, cuja
finalidade reduzir a caminhada da humanidade condenao ou
redeno, de acordo com a conduta tica, moral e religiosa dos homens.
Sendo assim, a finalidade da Bblia antes poltica do que religiosa.
Apontamos ainda uma terceira possibilidade de leitura, pensando-
a enquanto obra literria. Pesquisadores tm empreendido trabalhos
bem-sucedidos no intuito de identificar caractersticas literrias nos
gneros, enredos e personagens bblicos.
As leituras religiosa, poltica e literria so possveis. Todas,
alis, legtimas. Contudo, a primeira a grande responsvel pela
9 A Bblia nomeada por Jos Reis Chaves em A Face Oculta das Religies
como a escritura sagrada mais respeitada do mundo e o livro mais importante do
planeta. Segundo o autor, "mais de um tero da populao mundial segue ou
procura seguir os seus ensinamentos, apesar das divergncias que h nas suas
interpretaes que dividem em vrias igrejas ou correntes religiosas os seus
mais de dois bilhes de seguidores. (CHAVES, 2001, p. 49)
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disseminao do texto bblico no Ocidente, sem a qual no haveria as
demais. E assim, por meio do discurso religioso, que o cordelista
recebe a influncia da Bblia. Diante das inmeras formas de l-la, preciso anunciar, porm,
que nossa abordagem dar-se- pelo vis literrio, no comportando aqui
refutaes ou confirmaes dogmticas.
2.1 DEUS DE ISRAEL: O BEM E O MAL, DE ONDE PROVM?
Na perspectiva adotada, tomando a Bblia enquanto literatura e
considerando unicamente sua disposio cannica, iniciada pelo Gnesis e finalizada no Apocalipse, a primeira ocorrncia da palavra mal na
Bblia est em seu livro de abertura: Iahweh Deus fez crescer do solo toda espcie de rvores formosas de ver e boas de comer, e a rvore da
vida no meio do jardim, e a rvore do conhecimento do bem e do mal. (Gn 2,9) Logo depois, Iahweh d ordem ao homem recm criado para
que desfrute livremente de todas as rvores e frutos, exceto da rvore do
conhecimento. Deste episdio, acontece a tentao, por meio da
serpente, que resulta na queda do homem: E Iahweh Deus o expulsou do jardim do den, para cultivar o solo de onde fora tirado. (Gn 3,23)
Diante disso, possvel constatar que no primeiro livro bblico
est contida a origem de todas as coisas, incluindo a gnese do mal? A
queda do homem seria, portanto, a explicao para sua existncia?
Considerando que a rvore com o fruto proibido proporcionaria ao
homem o conhecimento do bem e do mal, parece-nos lgico que este j
existia. Ao passo que
no fim do sculo IV, tanto no Oriente quanto no
Ocidente, os cristos concordavam em que a
queda do homem no foi mais que um episdio na
histria de um prodigioso combate csmico,
iniciado antes da Criao, quando uma parte das
falanges celestiais havia revoltado contra Deus,
sendo ento precipitada dos cus. (NOGUEIRA,
2000, p. 29)
Esta batalha, embora colocada cronologicamente antes da criao,
encontra-se no ltimo livro bblico, o Apocalipse:
Houve peleja no cu. Miguel e os seus anjos
pelejaram contra o drago e seus anjos; todavia,
no prevaleceram; nem mais se achou no cu o
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29
lugar deles. E foi expulso o grande drago, a
antiga serpente, que se chama diabo e Satans, o
sedutor de todo o mundo, sim, foi atirado para a
terra, e, com ele, os seus anjos. (APOCALIPSE
12, 7-9)
O trecho acima, emblemtico para estabelecer definitivamente a
relao entre a serpente, Satans, o Diabo e o drago, no nos permite
precisar a origem do mal. verificvel que os anjos do cu tiveram um
combate, duelando entre eles, liderados pelos opositores Miguel e o
drago, e que o resultado disto foi a precipitao deste e dos seus.
Contudo, qual seria a razo para uma parte dos habitantes do cu
combater com seus pares? Esta e outras questes passaram a atormentar
as mentalidades,
e os Pais da Igreja so obrigados a abordar o problema, pois no existe seno um dado que h que dar ao Mal a sua genealogia. (MESSADIE, 2001, p. 327)
Desde ento, o Diabo figura como responsvel pela origem e
existncia do mal no mundo. Para os primeiros telogos catlicos,
Satans seria o chefe das foras das trevas, uma criatura sada pura das mos do seu autor, (...). Este anjo ter-se-ia, segundo os Pais, revoltado
contra Deus e teria arrastado na sua revolta anjos inferiores. (MESSADIE, 2001, p. 327)
Essa ideia, fortemente difundida e aceita com algumas ressalvas,
considerada incompleta para explicar a existncia do mal no mundo
por no esclarecer qual o motivo da rebeldia dos anjos. Primeiro problema nunca resolvido desde ento: qual a causa da queda dos
maus anjos? O Mal? Mas assim o Mal teria existido anteriormente a
Satans e este no seria o seu causador? (MESSADI, p.327). Perguntas desde sempre sem resposta foram sucedidas por teorias que
versavam sobre a motivao da queda. Sculos de estudos resultaram na
formulao de vrias hipteses, dentre as quais que sua queda pode ter
sido provocada por inveja ao homem, feito a imagem e semelhana de
Deus; soberba e orgulho por tentar igualar-se a Deus; ou pela dor de no
ter sido o escolhido no projeto de encarnao como Verbo. Mais uma
vez, nada que explique a origem do mal.
Transpondo a discusso, Papini (1954, p.56) taxativo ao afirmar que Deus o nico criador de todas as criaturas e s DEle receberam e recebem todos os requisitos e qualidades. De modo que Lcifer no poderia ser orgulhoso, invejoso e soberbo se Deus no o tivesse dotado
dessas caractersticas.
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30
Na segunda parte de Isaas e em I Samuel, possvel encontrar a
confirmao do que se disse anteriormente. Os episdios marcam
respectivamente a fala de Iahweh a Ciro, o libertador de Israel, e o
esprito mau de Iahweh atormentando Saul.
Para que saiba, at o nascente do sol e at ao
poente, que alm de mim no h outro; eu sou o
Senhor, e no h outro. Eu formo a luz e crio as
trevas; fao a paz e crio o mal; eu, o Senhor, fao
todas estas coisas. (ISAIAS 45:6,7)
O esprito de Jav afastou-se de Saul, e ele
comeou a ficar agitado por um esprito mau,
enviado por Jav. Ento os servos de Saul
disseram: Voc est sendo agitado por um esprito mau enviado por Deus. (I SAMUEL,
16:14,15)
Ambas as leituras revelam que Deus seria o responsvel pelo mal
no AT. Porm, para uma vertente da teologia catlica, a relao estabelecida entre o mal/esprito mau e Jav apenas uma estratgia do
prprio Deus para proteger o povo escolhido. A ausncia da origem do
mal, especialmente no Pentateuco, conjunto que compe os cinco
primeiros livros bblicos, deve-se peculiaridade do povo israelita,
conforme se l no Dictionnaire de Theologie Catholique:
Os estudiosos so levados a crer que Moiss
resolveu silenciar sobre o esprito maligno ou
mesmo sobre os anjos decados para evitar que os
israelitas, que j eram inclinados ao politesmo e
idolatria, e que estavam cercados de povos
idlatras, no tentassem identificar o diabo como
uma espcie de Anti-Deus ou Deus-do-Mal, e os
anjos decados como divindades paralelas,
capazes de competirem com Deus.
(MANGENOT, 1911, p. 323 in PIRES FILHO,
1984, p.22)
De acordo com o telogo catlico, o Diabo desde sempre o
responsvel pelos infortnios terrenos. Entretanto, se Moiss revelasse
essa parte dos fatos, o povo escolhido poderia confundir o adversrio de
Deus, criatura desprezvel, com uma entidade a ser idolatrada ou temida.
A leitura do AT apresenta um Deus nico e poderoso, para o qual a
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idolatria a qualquer outro ser representa uma ofensa imperdovel. Basta
lembrar o episdio do bezerro de ouro.
Independentemente da teologia catlica, a ideia que sobrevive na
primeira parte da Bblia esta: no h polarizao entre um demiurgo
benevolente e outro malfico. Prepondera a concepo de que as coisas
boas e ruins so decorrentes dos desgnios e da permisso de Iahweh.
O Deus promotor do Dilvio, justificado pela frustrao com a
humanidade, o mesmo que concede a maternidade para Sara. O Deus
que institui as leis, dentre as quais determina no matars, o mesmo que permite a queda de aproximadamente trs mil homens na matana
ordenada por Moiss em seu nome. Assim, tudo provm de Deus.
Portanto, se Iahweh o criador de todas as coisas, incluindo o
mal, Satans seria apenas um obediente servo? Nos livros bblicos do
AT, h duas verses hebraicas sobre sua a atuao: uma de que ele estava a servio de Deus e a outra de que ele autnomo nos seus atos.
Retomando os fatos narrados na Bblia,
no Apocalipse, entretanto, escrito em torno do
ano 100 d.C, que finalmente estabelecida a
conexo entre a revolta de Lcifer, a queda dele e
da tera parte dos anjos, a queda de Ado e Eva e
o episdio da serpente no paraso, a tentao de
Jesus e o grande Armagedon a batalha final do bem contra o mal. (FERRAZ, 2012, p.29)
Considerando essa analogia, vamos rever os episdios que
envolvem essas personagens nos livros que contam a Antiga Aliana de
Deus com a humanidade.
(...) o Velho Testamento exibe uma grande
variedade de personagens que, separadamente ou
em conjunto, contm as sementes do futuro
Prncipe das Trevas, embora tais figuras nunca
tenham aspirado ao papel que ele cumpriu mais
tarde como apoteose do mal. (STANFRD, 2003,
p. 25)
Conforme se l no Gnesis, h a formao do jardim no den,
local onde Ado ser colocado imediatamente aps Iahweh soprar-lhe as
narinas, dando ao homem o flego da vida (Gn 2:7). Ado recebe como
incumbncia cultivar e guardar o jardim (Gn 2:15). Diante das
maravilhas do local, Iahweh deu ao homem o direito de usufruir de
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todas as coisas, exceto dos frutos de uma das rvores, conforme se l em
Gnesis, captulo 2, versculos 16 e 17:
E Iahweh Deus deu ao homem este mandamento:
Podes comer de todas as rvores do jardim. Mas da rvore do conhecimento do bem e do mal no
comers; porque no dia em que dela comeres ters
que morrer. (GNESIS 2:16,17)
A sequncia narrativa marcada pela formao da companheira
de Ado e o aparecimento oportuno do animal caracterizado como o
mais astuto dentre os seres criados: a serpente. Este trecho, que
possivelmente o mais conhecido de toda a narrativa bblica, apresenta
o encontro e o dilogo entre a mulher e a serpente:
Mas a serpente, mais sagaz que todos os animais
selvticos que o Senhor Deus tinha feito, disse
mulher: assim que Deus disse: No comereis de
toda rvore do jardim? Respondeu-lhe a mulher:
Do fruto das rvores do jardim podemos comer,
mas do fruto da rvore que est no meio do
jardim, disse Deus: Dele no comers, nem
tocareis nele, para que no morrais. Ento a
serpente disse mulher: certo que no
morrereis. Porque Deus sabe que no dia em que
dele comerdes se vos abriro os olhos como Deus,
sereis conhecedores do bem e do mal. Vendo a
mulher que a rvore era boa para se comer,
agradvel aos olhos e rvore desejvel para dar
entendimento, tomou-lhe o fruto e comeu e deu
tambm ao marido, e ele comeu. (GENESIS,
3:1,6)
Com a ingesto do fruto, homem e mulher percebem-se nus e
escondem-se ao serem chamados por Iahweh. Diante da situao, este
pergunta ao casal sobre a desobedincia, que, ao ser confirmada, leva
punio dos envolvidos: a serpente, a mulher e o homem.
Dado o desfecho, encontra-se, linearmente, no segundo e terceiro
captulo do Gnesis: a criao, a ordem de Deus a Ado, a tentao da
serpente para a transgresso humana, a desobedincia da criatura, a
punio divina e a queda do homem.
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a queda que introduz a metfora jurdica que vai persistir ao longo de toda a Bblia, segundo a
qual a vida humana est em julgamento, como
promotores e defensores. Nesta metfora, Jesus
o lder da defesa; o acusador-chefe Sat, o
diabolos, uma palavra da qual deriva a nossa diabo, e que originalmente guardava o sentido de uma pessoa oposta outra, num processo legal.
(FRYE, 2004, p. 140)
Interessa-nos, para fins de nosso estudo, localizar a participao
da serpente no episdio. Verifica-se que ela, falante, inicia a conversa
com a mulher perguntando sobre a possibilidade de esta poder provar de
todas as rvores do jardim.
O animal poderia perguntar acerca do uso dos rios ou sobre os
privilgios da dominao exercida pelo homem em relao aos outros
animais. Entretanto, situa sua pergunta exatamente sobre aquilo que lhes
fora ordenado para no experimentar. assim a interveno que a
serpente faz criatura recm concebida e, por isso, vulnervel.
Diante da interrogao, a mulher prontamente responde e informa
para a sagaz criatura a restrio feita por Iahweh. Dotada das
informaes dadas pela prpria mulher, a serpente refuta as palavras do
criador e incentiva a violao.
Analisando apenas o texto, no h como certificar se a serpente
aproxima-se do humano para lev-lo desobedincia ou se oportunista
diante do fato apresentado pela mulher. Evidencia-se, a eloquncia do
animal, uma vez que a mulher sucumbe tentao, tomando o fruto e
oferecendo ao marido que, por sua vez, come-o desconsiderando a
ordem de Iahweh.
Ao ser indagado, o homem atribuiu a culpa esposa que o Senhor
havia lhe dado e a mulher, por sua vez, acusou a serpente de ter-lhe
entregue o fruto. Observamos que a serpente, embora recebendo
punio, como ocorre com a mulher e o homem, ao contrrio dos dois,
no profere uma palavra ao criador e tampouco faz alguma acusao.
Alm das punies individuais, do episdio resulta a expulso do
homem do jardim (Gn 3:23). Ressalta-se que o homem deportado, mas
nada mencionado quanto ao destino do animal.
A explicao advm de uma fala do prprio Iahweh quando
afirma: Depois disse Iahweh Deus: Se o homem j um de ns, versado no bem e do mal
10, que agora ele estenda a mo e colha
10
Neste trabalho, os negritos encontrados nas citaes so de nossa autoria.
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tambm da rvore da vida e coma e viva para sempre! (Gn 3:22) Haja vista que Iahweh profere essas palavras na presena das trs criaturas: a
serpente, o homem e a mulher, dos quais os dois ltimos so humanos
que no tinham conhecimento do bem e o mal, o pronome pessoal
refere-se a ele e primeira criatura.
A serpente do Gnesis , portanto, um ser criado por Iahweh, com liberdade para circular livremente pelo jardim, dotada de persuaso,
incentivadora da desobedincia humana, a par da funo da rvore do
conhecimento e dotada deste.
No estudo de Ormindo Pires Filho, O Demonismo em Grande
Serto:Veredas, o autor apresenta a sntese:
(...) o modo de agir da serpente revela que existe
por trs dela um ser superior, espiritual e invisvel.
A serpente um mero portador daquele que mais
tarde receber o apelativo de diabo. Afora essa
meno, no encontramos mais em nenhum outro
livro do Pentateuco qualquer referncia ao
tentador ou ao diabo. (PIRES FILHO, 1984, p. 22)
Mais adiante, agora sob a denominao de Satans11
e com status
bem mais elevado do que a rastejante criatura do Gnesis, o Diabo vai
contracenar novamente com Deus.
Todavia, se no Gnesis a serpente cala-se diante do Criador, Satans falante e consegue at mesmo persuadir Deus a testar um dos
seus servos em J. Este considerado o livro cannico da Bblia mais ousado no que se refere apario de nosso tema. Conforme Coust
(1997, p. 157) em nenhum dos livros cannicos da Bblia aparece viso to complexa e especulativa do Diabo como no prlogo do Livro de J.
Vamos narrao do episdio:
11
Utilizamos aqui o termo Satans por constar essa designao na traduo para
lngua portuguesa de Joo Ferreira de Almeida. Entretanto algumas tradues
apresentam a denominao Sat. Tanto este quanto aquele nome so oriundos
do termo hebraico stn, cuja traduo literal oponente. Segundo Stanfrd
(2003, p. 37), o termo stn recorrente no Antigo Testamento e na lngua inglesa
foi traduzido de formas diversificadas: em I Reis (1:14) o inimigo e em
Nmeros 22:22 representa o anjo de Iahweh. Em lngua portuguesa, confirma-se
a mesma traduo.
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Num dia em que os filhos de Deus vieram
apresentar-se perante a Iahweh, entre eles veio
tambm Satans. Iahweh ento perguntou a
Satans: Donde vens? _Venho de dar uma volta pela terra, andando a esmo, respondeu Satans. Iahweh disse a Satans: Reparastes no
meu servo J? Na terra no h outro igual: um
homem ntegro e reto, que teme e se afasta do
mal. Satans respondeu a Iahweh: por nada que J teme a Deus? Por ventura no levantaste um
muro de proteo ao redor dele, de sua casa e de
todos os seus bens? Abenoastes a obra de suas
mos e seus rebanhos cobrem toda a regio. Mas
estenda tua mo e toca nos seus bens; eu te
garanto que te lanar maldies em rosto. Ento
Yahweh disse a Satans: Pois bem, tudo o que ele possui est em teu poder, mas no somente sua
mo contra ele. E Satans saiu da presena de Yahveh. (JO 1:1,12)
A partir da, Satans recebe a autorizao de Deus para tocar em
tudo o que pertence ao fiel servo que d nome ao livro. Este perde bens,
animais, empregados, filhos e filhas, tem o corpo tomado por tumores
malignos, recebe acusaes, repreendido por seus amigos e participa
de um tenso debate com Deus.
A grande questo nessa narrativa tem como tema a justia divina.
Nossa inteno, entretanto, analisar apenas a atuao de Satans que,
como j dissemos, ocupa a figura de acusador da humanidade diante de
Deus. Isso porque, em face de suas prprias atribulaes dirias, J representa a humanidade que est procura de uma resposta para o
sofrimento e o mal. (STANFRD, 2003, p. 40). Assim, Satans, quando prope um teste fidelidade de J, o
representante da humanidade no livro, coloca em cheque a parte
representada, ou seja, a prpria humanidade. Desse modo, Satans ,
sim, o acusador e grande adversrio dos homens.
A novidade no livro, entretanto, no essa. Aqui fica explcito
que Satans no age por conta prpria. Ele tem a permisso divina para
atuar e s executa as aes permitidas por Deus, no se excedendo.
Satans em J no aquele anjo que extrapola e se rebela. Parece antes um vigia da terra, que tem livre trnsito por ele e pela corte celeste.
Satans no o anjo cado que foi expulso do
paraso, o inimigo csmico de Deus. Aqui ele
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36
retratado como um dos membros do conselho
divino de Deus, um grupo de divindades que
regularmente reportam a Deus e, evidentemente,
percorrem o mundo fazendo a sua vontade.
(EHRMAN, 2008, p. 148)
Evidentemente esse riqussimo livro, extensamente trabalhado
por telogos, crticos literrios e filsofos renderia uma discusso muito
mais extensa. Entretanto, dado nosso objetivo, interessa-nos a anlise j
apresentada da participao de Satans. Segundo Stanfrd (2003, p. 43),
embora Sat seja introduzido em J, isto no significa que as suas pginas o coloquem como uma espcie de lado malfico de Jeov. Fica evidente que a figurao de Satans, participante da corte celeste, se d
como acusador e inimigo dos homens.
Para os estudiosos da Bblia, a representao de Sat, como
inimigo dos homens, um advento do ps-exlio, quando se havia a
necessidade de encontrar uma explicao para o que acontecia de ruim
ao povo. O livro de J, (...) data de uma poca anterior ao exlio, mas os estudiosos de hoje acreditam que ele tenha sido escrito depois
daquele evento e que sofreu adies e emendas subsequentes. (STANFRD, 2003, p. 27)
Assim, por vrios anos, muitos leitores atriburam a Satans os
sofrimentos de J. Entretanto, se Deus assim no o consentisse, J no
sofreria. (EHRMAN, 2008, p. 151). Por isso, recentes estudos
apresentam a tese de que Satans, na verdade, deseja colocar a
humanidade contra Deus, tornando-se de uma vez o acusador da
humanidade.
Especulamos uma possvel vingana entre criaturas que, na
inteno de uma mostrar-se mais fiel a Deus, desejam secretamente
proporcionar a queda uma da outra. Recuperando o dilogo entre Deus e
a mulher, verifica-se que esta acusa o ser rastejante pelo acontecido. No
Gensis, a mulher a grande acusadora da serpente, culpando-a pela oferta do fruto. Por outro lado, em J, Satans torna-se o grande
acusador e adversrio dos homens. Deus, soberano, o grande
disputado. Assim, Satans e a humanidade se justapem: ambos desejam
ser a criatura preferida de Iahweh.
Entre esses dois livros bblicos, h uma aproximao que no se pode desprezar. Se considerarmos a funo da serpente e de Satans,
ambas as aparies materializaram-se para levar o homem
desobedincia. Obstruir o homem da relao de submisso a Deus uma
tentativa de promover a ruptura da aliana proposta no AT. Assim,
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Satans faz jus ao significado que origina a palavra hebraica sat,
algum que um obstculo, uma pedra no caminho. (BLOOM, 2008, p.
18)
A concepo de que Satans o grande obstculo da humanidade
reforada em Zacarias e Sabedoria.
O crescente interesse pela sua figura, logo aps o
perodo do exlio, confirmado pela sua apario
no Livro de Zacarias. Nesse livro, Sat mais
uma vez adversrio da humanidade, e no de
Deus, como acontece no Novo Testamento, e nele
tambm est presente toda a corte celeste, com
Sat entre os seus membros. (STANFRD, 2003,
p. 43)
O episdio a que Stanfrd faz meno o da quarta viso: o sumo
sacerdote Josu. Nele, Satans est mo direita para opor-se ao o sumo
sacerdote, quando Anjo de Yahweh lhe diz: Que Yahweh te reprima, Sat(Zc 3:2). Segundo a leitura de Satanfrd, este trecho bblico ilustra a ousadia de Satans.
Isto s aconteceu porque Sat havia se excedido
em busca por homens injustos. Embora isso seja
bastante tangvel a imagem de um Sat que
transgride seus limites, tentando mesmo escapulir
de tudo, o fato que esta ideia no predomina no
Velho Testamento. Ela s floresceu na srie, de
livros extraordinrios que evoluram a partir das
Escrituras Hebraicas como produto da angstia
nacional que afligiu os israelenses depois do
exlio, apesar de ter sido excluda do cnone pela
tradio.(STANFRD, 2003, p. 43,44)
Segundo Blomm (2008, p. 19), Zacarias o livro em que Jav repreende Sat por abuso de poder, mas no o destitui do seu ofcio de
Acusador. Ou seja, Satans ainda est a servio de Deus, como em J. E ele parece ir pouco a pouco ampliando seu poder e sua
desobedincia em relao s ordens divinas. O livro de Crnicas
apresenta sutilmente a interveno solitria de Satans. Referimo-nos
passagem do recenseamento, feito pelo rei Davi.
Sat, um tanto ambiguamente, parece atuar
independentemente de Deus, quando o rei Davi
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comete um erro espetacular e realiza um
recenseamento, estimulado por Sat e
supostamente contra a vontade de Deus.
(BLOOM, 2008, p. 47)
Crnicas, escrito depois de Zacarias e J, representa a insero
de uma nova concepo de Satans: As Crnicas datam do incio da era helenstica, (...) . Assim, em mais ou menos dois sculos, Satans
mudou de atribuies; j no age de acordo com Deus, mas por conta
prpria. (MESSADI, 2001, p. 300) Em tempo, preciso fazer meno a nica citao do nome Diabo
no Antigo Testamento, presente no livro da Sabedoria captulo 2,
versculo 22 a 24, grafada com a inicial minscula:
Eles ignoram os segredos de Deus,
no esperam o prmio pela santidade,
no crem na recompensa das vidas puras.
Deus criou o homem para a incorruptibilidade
e o fez imagem de sua prpria natureza;
foi por inveja do diabo que a morte entrou no
mundo:
experimentaram-na quantos so de seu partido!
A autoria do livro discutida. Enquanto na obra de Stanfrd
(2003, p.46) credita-se a escrita a um judeu helenizado no sculo I a.C.,
cujo objetivo era protestar contra os valores mpios que, no seu modo de ver, imperavam naquela cidade, a Bblia de Jerusalm aponta Salomo como suposto autor. Trata-se de um livro deuterocannico,
com originais escritos em grego. As verses bblicas de grupos
protestantes no o incluem, mas as verses autorizadas pela Igreja
Catlica comportam o ttulo. So Jernimo, o padre do quarto sculo que inspirou a Vulgata com sua traduo do Novo Testamento para o latim, considerava o Livro da Sabedoria como perigoso e fora dos
limites. (STANFRD, 2003, p. 45-46) Porm, como estamos aqui retomando todo o percurso bblico do
Diabo, no poderamos deixar de realizar a leitura desse livro. Afinal,
nele que se encontra a prefigurao do que mais tarde ser recorrente nas cartas dos apstolos no NT: a polarizao entre o bem e o mal.
Sua insero, no entanto, no chega a substituir a imagem
veiculada no AT de um Deus soberano que rege as coisas que acontecem para a humanidade. de acordo com os seus mandos que o homem
recebe bonana ou desgraa. No h ainda algum que possa ser
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39
identificado como a personificao do mal, to evidentemente, como
acontecer com o Diabo no NT.
Por outro lado, inegvel que Satans tem uma funo muito
bem definida: testar a fidelidade da humanidade. Assim, seja como um
servo eficiente, que faz exatamente o que permitido, ou como um
empregado eficaz, que extrapola seus limites no intuito de receber
gratificaes, o Diabo no AT o oponente da humanidade.
2.2 O DIABO NO NOVO TESTAMENTO: A PRESENA
CONSTANTE DO INIMIGO
A leitura do AT encerra-se sem evidncias irrefutveis de que
Satans, a serpente ou o Diabo seja o adversrio de Deus. Embora com
algumas aparies suspeitas, como em Crnicas e Sabedoria, revela-se, sobretudo, sua nsia de atuar como acusador dos homens.
O Novo Testamento marca a histria da nova aliana que Iahweh faz com a humanidade. Sua leitura mais difundida no Ocidente do que
o AT porque o cristianismo, religio mais representativa do mundo
Ocidental, fundamenta seus dogmas centrais a partir do que est escrito
na segunda parte da Bblia.
Mais constante, o aumento de aparies do Maligno
proporcional as novas caractersticas que ele assume. No NT, a primeira
proposta, de que Satans age de acordo com os desgnios de Deus, se
extingue e o que vemos um Diabo opositor criao e a Iahweh (Deus
Pai e Deus Filho, o Verbo encarnado).
Alis, o NT no tarda ao registrar essa concepo. Estamos nos
referindo ao evangelho de Mateus, que apresenta, logo em seus
primeiros captulos, a tentao ao Redentor dos cristos. O episdio
demarca bem a relao de conflito entre as partes: Jesus, de um lado, e o
Diabo, de outro.
Entendendo a Bblia como livro sagrado dos cristos, seguidores
do Cristo Jesus12
, inaugura-se assim a ideia central do cristianismo: o
12
Empregamos o termo Cristo ao nome Jesus, pois assim que a tradio crist
o denominada e mais fortemente tem participado da cultura no Ocidente.
Contudo preciso ressaltar que o significado que a palavra Cristo assume no
exclusiva do cristianismo. Conforme Coust (1997, p. 165) Em ateno a isso, necessrio separar como, alis, o fazem atualmente todos os historiadores srios das religies o conceito de Cristo da figura de Jesus: o Cristo, que, como demiurgo redentorista, no exclusivo do cristianismo ( lembremos de
passagem Mitra, o Prajapati hindu, o Saoshyant do zoroatrismo), tem sua
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40
paralelismo estabelecido entre Bem (representado pelo Deus encarnado,
Jesus) e Mal (sob a figurao do Diabo). por isso que, alm de o NT
demarcar para os cristos uma Nova Aliana entre Deus e a
humanidade, h, concomitantemente, a designao clara do inimigo a
ser combatido: o Diabo.
Depois da narrao desse encontro, as aparies do demiurgo em
questo tornam-se recorrentes. Raros so os livros que no citam a
influncia do Diabo na caminhada da humanidade. Diante disso,
elegemos alguns momentos que ilustram o percurso bblico do Diabo no
NT.
Em tempo, ressaltamos que essa anlise no inclui a retomada das
possesses demonacas, erroneamente vinculadas ao Diabo bblico.
Muitas vezes, o termo demnio permanece como sinonmia perfeita da
palavra Diabo. Contudo, os evangelhos no estabelecem essa relao,
conforme se verifica:
Nos evangelhos, diabo ou Satans so masculinos,
vem sempre escritos no singular e costumam vir
procedidos de artigo definido. Sua principal
funo seduzir, tentar e induzir ao pecado. (...)
Demnios no se relacionam com pecado ou
tentao, e sim, infringem males fsicos ou
psquicos s pessoas. Os demnios agem atravs
da possesso e o diabo, atravs da seduo e
tentao! (WEGNER, 2003, p. 89)
Por conta dessa diferena e considerando a extensa biografia
diablica que podemos identificar na Bblia, vamos restringir nosso
estudo considerando as funes que as pginas do NT designaram a ele: adversrio de Deus, tentador dos homens e, por fim, a diviso entre
Reino do Bem e Reino do Mal.
2.2.1 Houve peleja no Cu: a revelao do inimigo de Deus
Se a Bblia a mais influente obra do mundo Ocidental; a leitura
do livro do Apocalipse, a mais temerosamente desejada. A possibilidade de encontro com esse texto esteve vinculado, desde sempre, a um
contedo proibido. A poltica de disseminao da cultura do medo no
contraparte, sua justificao e seu paredro no Diabo, como Vishnu em Shiva ou
Osiris em Seth.
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41
Ocidente contribuiu para a crena de que a leitura e interpretao dos
fatos ali expostos levariam seu interlocutor loucura, causando a
escassez de estudos publicados acerca do tambm chamado Livro da Revelao.
Quando a mente dos cristos j estava bastante atormentada, por
medo do Diabo, uma certeza pairou sobre o mundo:
no fim do sculo IV, tanto no Oriente quanto no
Ocidente, os cristos concordavam em que a
queda do homem no foi mais que um episdio na
histria de um prodigioso combate csmico,
iniciado antes da Criao, quando uma parte das
falanges celestiais havia revoltado contra Deus,
sendo ento precipitada dos cus. (NOGUEIRA,
2000, p. 29)
Contextualizando a batalha, Agostinho o precursor desta ideia:
Ado e Eva foram criados por Deus a fim de substituir os anjos cados. (BLOOM, 2008, p. 55). Assim, embora disposta no ltimo livro bblico, o embate situa-se cronologicamente antes da criao, narrando-
se: Houve peleja no cu. Miguel e os seus anjos pelejaram contra o drago e seus anjos; todavia, no prevaleceram; nem mais se achou no
cu o lugar deles. (APOCALIPSE, 12, 7-9) verificvel que os anjos do cu tiveram um combate, duelando
entre seus pares, de um lado os liderados por Miguel em oposio
queles seguidos pelo drago. Como resultado, houve a precipitao
deste e dos seus. desse modo que sua historia (do Diabo), resgatada pelo Novo Testamento, a do anjo decado, expulso do cu, e
metamorfoseado em rival de Jeov. (STANFRD, 2003, p. 44). Corroborando com a ideia do Diabo como opositor de Iahweh,
em Mateus, Marcos e Lucas, Satans o grande tentador que quer tirar
Jesus do caminho da ressurreio. Primeiro ao conduzir Jesus ao
deserto (Mt 4:1,11), depois quando Jesus prediz a sua morte e
ressurreio aos discpulos e Pedro reprova seus planos dizendo: Tem compaixo de ti, Senhor.. Ao passo que Jesus responde: Arreda, Satans! Tu s para mim pedra de tropeo, porque no cogitas das
coisas de Deus, e sim das dos homens (Mt 16:23). Nos evangelhos, o Diabo representando ser pedra, um obstculo na maior misso de Jesus,
o Verbo encarnado, confirma-se, portanto, como inimigo do prprio
Deus.
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H outros episdios que evidenciam as constantes tentativas de
desviar o Salvador da crena na redeno. Em Lucas, Jesus reconhece
que foi tentado e que seus discpulos o acompanhavam: Vs sois os que tendes permanecido comigo nas minhas tentaes. (Lc 22:28). E h um episdio que pode ser entendido com a derrota de Jesus diante do mal:
Diariamente, estando eu convosco no templo, no puseste a mo sobre mim. Esta, porm, a vossa hora e o poder das trevas. (Lc 22: 53). As trevas no NT esto relacionadas a Satans, conforme se l em Atos 26:18.
Tambm entendido como inimigo, em Joo, a grande misso de
Satans trair Deus. Na ltima ceia com seu discipulado, h a narrativa
que o diabo coloca-se no corao de Judas Iscariotes para que trasse a
Jesus (conforme Jo 6:64). Soma-se a essa ideia, as palavras: (quem trair) aquele a quem eu der um pedao de po molhado. Tomou pois
o pedao de po e, tendo molhado, deu-o a Judas, filho de Simo
Iscariotes. E, aps o bocado, imediatamente, entrou nele Satans. (Jo 13: 26,27).
assim, narrado nos evangelhos como traidor e tentador de Jesus
e presente no Apocalipse na forma de um drago pelejando contra os fieis anjos do Senhor, que o Diabo no NT faz sua estreia como
adversrio de Iahweh. desse modo tambm que ele se cristaliza no
imaginrio de todo Ocidente, especialmente quando os pais da Igreja
justificam a existncia da maldade no mundo.
2.2.2 O espinho na carne
Na Idade Mdia e Moderna, quando houve o apogeu do medo do
Diabo no Ocidente, difundiu-se que o homem estava no meio da batalha
travada entre Deus e o Diabo. Segundo os discursos oficiais da Igreja
Catlica, este quer cada vez mais aumentar seus seguidores,
desvirtuando-os dos desgnios do Deus caridoso do NT.
A ideia no nasce naquele momento histrico, porm. Essa
mesma concepo j havia sido veiculada em boa parte das cartas
atribudas aos discpulos Tiago, Pedro, Joo, Judas, irmo de Tiago, e
Paulo (Saulo de Tarso), que se tornaram parte da verso cannica da
Bblia. Essas epstolas revelam mais fortemente qual a concepo que os
primeiros cristos tinham do Inimigo e como a repassavam para os
povos cristianizados. Dado o carter catequtico e normativo das cartas,
estas revelam o que pensavam os colaboradores da Bblia sobre a
atividade do Maligno.
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Na maioria das quatorze cartas de Paulo, h meno ao poder de
Sat. Nelas revela-se que o Adversrio tem a competncia de condenar
(I Tm 3,6), promover a queda do homem (I Tm 3,7), derrotar pelo poder
da morte (Hb 2,14), repreender (I Cor 5,5) e tentar (I Cor 5,7), podendo
mesmo recorrer a disfarces para conquistar os homens (II Cor 2,10).
Segundo Stanford (2003, p.58), Paulo escreve muito sobre o Diabo e do seu papel no mundo, descrevendo-o na sua funo de desmantelar a
moral e provocar desastres. Contudo, nunca se sabe se o Satans de Paulo o colaborador de Deus, encarregado de pr os homens prova,
ou ento inimigo confesso de Deus. (MESSADI, p. 327) De todo modo, o que fica evidente nessas epistolas que o Diabo
se coloca como fora contrria ao homem, em seu caminho de salvao
eterna. Em Paulo, no interessa situar se Satans autnomo em seus
atos ou recebe autorizao divina para testar a humanidade, como em
J. Os cristos convertidos precisariam apenas resistir-lhe s tentaes.
Refora-se, portanto, a concepo de obstculo da humanidade j
vislumbrada no AT.
2.2.3 Reino do Bem X Reino do Mal: a polarizao das virtudes
De acordo com Nogueira (2000, p.26), com o advento do
cristianismo que se apresenta a polarizao ente o reino de Cristo e o
reino do Diabo. Iahweh envia seu filho para fazer uma nova aliana com
os homens e o Diabo, como pai da desobedincia, desempenha a funo
de tent-los para esvaziar a doutrina crist.
A polarizao entre Reino do Mal em oposio ao Reino do Bem
uma concepo especialmente desenvolvida nos livros atribudos ao
discpulo Joo: o evangelho segundo Joo, as duas epstolas de Joo e o
Apocalipse. Joo se interessa muito mais pela figura do Diabo
propriamente dita. Dos quatro evangelhos, o de
Joo o mais dualista, antecipando o pice da
batalha entre Deus e o Diabo que est no Livro da
Revelao. (STANFRD, 2003, p.67)
Essa viso dualista o que chamamos aqui de polarizao entre os dois reinos. Para o evangelista, onde h o registro do diabo como pai
da mentira, prncipe deste mundo e suicida deste o principio, os homens
poderiam pertencer a um dos reinos.
A oposio entre aqueles que so do Pai, ou seja, pertencem ao
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reino dos justos, e do Diabo, assim sendo do Prncipe deste mundo, so
muito bem demarcadas em suas epstolas. Joo taxativo ao mencionar
a separao dos homens que pertencem a cada um dos lados. Assim,
Aquele que pratica o pecado procede do diabo,
porque o diabo vive pecando desde o princpio.
Para isto se manifestou o Filho de Deus: para
destruir as obras do diabo. (...) Nisto so
manifestos os filhos de Deus e os filhos do diabo:
todo aquele que no pratica a justia no procede
de Deus, nem aquele que no ama a seu irmo. (I
Jo, 3,8-10)
Em Mateus h tambm essa diviso. Nesse evangelho, fala-se em
separao e julgamento. Segundo o evangelista, anjos viro e separaro
os justos dos mpios e jogaro estes numa fornalha acesa, provocando
choro e ranger de dentes. (Mt 13: 41 e 49). Para ele, acontecer grande
julgamento h uma corte celeste: Jesus e seus anjos separaro as ovelhas
a sua direita e os cabritos a sua esquerda (Mt 25:31, 46).
A distino entre as partes acentuada tambm no evangelho
segundo Lucas. nele que se afirma: a porta do reino estreita e quem
ficar de fora no poder entrar e haver choro e ranger de dentes (Lc 13,
22). O critrio para ficar de fora do reino de Deus se apartar do Senhor
e praticar iniquidades. Ou seja, no nascem bons ou maus. Todos no
principio so de Deus, depois que se apartam, por meio de condutas
inadequadas.
Fica em aberto nesse evangelho se os homens separam-se das
virtudes de Deus levados por alguma entidade maligna ou se, por conta
prpria, realizam coisas injustas que os levam aos maus caminhos.
Os evangelhos sinpticos deixam, portanto, em
aberto a questo de como o diabo se enquadra no
Plano Divino de um Deus onipresente e onisciente
e de como ele foi indispensvel para a ocorrncia
da paixo, da morte e da ressurreio de Cristo.
No est completamente descartada a
possibilidade de que o Diabo poderia ser um servo
sombrio de Deus como tentador da humanidade,
maneira do que fez com J, embora os escritos do
apstolo Joo e do seu crculo tenham considerado
improcedente qualquer tipo de sugesto.
(STANFRD, 2003, p. 66)
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Ainda sem responder a essa questo, nas cartas de Tiago e Pedro,
a dicotomia Bem X Mal notvel, porm os fiis recebem algumas
recomendaes para que o Diabo seja espantado, representando ser
menos temvel do que aquele apresentado por Paulo.
Na carta de Judas, apresenta-se sob a forma de recomendao
uma conduta prudente contra Satans. Seu autor faz uma analogia,
aconselha aos fiis que combatam pela f e no pratiquem nenhum tipo
de represso a Satans: Mas quando o arcanjo Miguel, discutindo com o Diabo, disputava a respeito do corpo de Moiss, no ousou pronunciar
contra ele juzo de maldio, mas disse: O Senhor te repreenda! (Jd 1,9).
Diante da explanao, cuja proposta previa o entendimento das
principais aparies bblicas do Diabo, podemos identificar que o
demiurgo, a partir do NT o responsvel pelo mal. E assim que sua imagem se cristaliza no Ocidente. Assumindo as funes de acusador e
inimigo da humanidade, adversrio invejoso de Deus. O Maligno passa
a ser com o advento do cristianismo a razo para o mal no mundo.
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3 LITERATURA DE FOLHETOS: A POESIA POPULAR
EXPRESSA NA MODALIDADE ESCRITA
A literatura de folhetos do nordeste est inserida na cultura local
desde a chegada das primeiras prensas, que proporcionaram a
comercializao dos versos cantados, e perpetua como arte coletiva at
os dias de hoje. uma das formas legtimas de registro da literatura oral
que emana do povo e, por isso, fonte de pesquisa para os que
empreendem seus estudos no registro do imaginrio popular.
Atualmente, com mritos tardiamente conferidos, a literatura de
folhetos nordestina no precisa mais justificar-se para receber ateno
na academia. De 1970 para c, um nmero crescente de pesquisadores
estudam e propem teses acerca das origens, caractersticas poticas,
organizaes temticas, ciclos, autores e demais elementos dessa arte
literria. Iniciativas que proporcionam s novas pesquisas, alm de um
respeitvel material para consulta, a garantia de um espao j
conquistado.
Situado no ramo de estudos denominado Teopotica, este
trabalho toma o folheto enquanto veculo de representao da
inquietao humana, incansvel na busca de respostas acerca de sua
existncia. Para tanto, baseamo-nos em Kuschel (1997, p. 9), para quem
as grandes obras de arte, por seu carter livre e indeterminado e por sua capacidade de representar a multiplicidade da existncia humana, podem
colocar o homem em contato intenso com o que est alm dele. nessa perspectiva que faremos a anlise da concepo do Diabo
ridicularizado na literatura de folhetos do nordeste. Para tanto,
comearemos pontuando algumas peculiaridades do material em estudo.
3.1 FOLHETOS: INFLUNCIA E SUPERAO DO RELIGIOSO
Em termos de pesquisas acadmicas, no a primeira vez em que
a literatura de folhetos aproxima-se da teologia. Estudos comparativos
sobre a representao de livros e personagens da Bblia fazem parte de
teses, dissertaes, trabalhos de concluso de curso e artigos cientficos.
Lendo-os podemos inferir que a expressiva quantidade de temas bblicos
e da teologia catlica o que instiga a interesse dos pesquisadores.
De fato, so muitos os cordis que j no ttulo denunciam a
representao de algum elemento religioso. Tanto que Digues Jr. faz a
seguinte afirmao:
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Talvez se possa dizer sem muita margem de erro
ser este o de religio e, em particular de vida de santo o tema mais antigo nos folhetos populares. A tradio religiosa, em poca em que os meios
de comunicao no eram aperfeioados, mas
ainda rudimentares, encontrou no folheto um
intermedirio para a difuso das ideias religiosas;
(...). (DIGUES, 1973, p. 60)
De acordo com essa leitura, portanto, possvel entender que o
folheto caracteriza-se como um importante suporte de mediao entre as
ideias religiosas e seus leitores. Assim, considerando a formao
essencialmente crist e predominantemente catlica do Brasil, incluindo
a regio nordestina, o folheto torna-se, ento, um porta-voz dos dogmas
catlicos.
Como transmissora da ideologia eclesistica para o povo,
natural que a literatura de folhetos seja abundante em amostras do
religioso e que a representao de suas personagens assuma as funes e
sejam retratadas com fidelidade ao catecismo e liturgia catlica.
Considerando essa influncia, importante ressaltar, entretanto,
que no se pode reduzir a escrita popular nordestina mera reproduo
dos ideais catlicos. Iza Chain, na publicao O Diabo nos Pores das Caravelas, defende a tese de que o Diabo nas terras brasileiras no a
mera reproduo do que o catolicismo imposto pelo povo portugus
queria impor. Devido miscelnea de crenas dos diferentes povos
indgenas somadas s outras imigraes, o Diabo europeu, que
demonizava muitos dos hbitos e crenas locais, no foi assimilado
pelos brasileiros. A homogeneidade pretendida pelo modelo de Cristianismo trazido pela igreja lusitana no encontrava eco na
heterogeneidade da colnia brasileira (...) (CHAIN, 2003, p. 122) Alm dessas inclinaes religiosas impostas, o folheto apresenta
as inquietaes humanas dos grupos que o produzem, revelando a
apreenso mais densa da realidade (conforme Kuschel, 1999, p. 210). por conta disso que em nossa anlise, alm de verificar o que migra do
Diabo bblico para o folheto, buscaremos identificar quais novos
elementos o folheto adiciona ao tema. Queremos estudar qual a
experincia de Diabo que o gnero apresenta aos seus leitores. Afinal, se
por um lado os homens fazem de acordo com os seus gostos e costumes o seu cu. (BARROSO, 1921, p. 487), inquieta-nos saber como a cultura popular nordestina apresenta o seu Diabo.
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3.1.1 O Diabo e a literatura de folhetos
Como citamos, os enredos e personagens religiosos acompanham
a histria dos folhetos, e o tema em estudo, o Diabo, contribui para isso.
Quem visita o nordeste e para diante de um ponto de venda de folhetos
dificilmente no encontrar um, pelo menos, que fale sobre o Diabo. A
personagem to popular no nordeste quanto essa literatura.
Os mais famosos versos sobre a personagem retratam-na de
forma engraada, contribuindo com a fama internacional de ridculo que
a literatura popular passou a lhe atribuir. Delumeau (1989, p. 240) faz as
seguintes consideraes a respeito da representao do Diabo na
Europa: ao mesmo tempo sedutor e perseguidor, o Sat dos sculos XI e XII certamente assusta. No entanto, ele e seus aclitos so por vezes
to ridculos ou divertidos quanto terrveis: por isso, tornam-se
progressivamente familiares. No Brasil, os folhetos mais vendidos sobre o Diabo so aqueles
em que lhe conferem um tom mais leve e engraado. Dentre os ttulos
que so emblemticos em todo o nordeste, podemos citar A Chegada de
Lampio no Inferno e Peleja de Manuel Riacho com o Diabo. No primeiro apresenta-se, o Diabo como coadjuvante. Sua
atuao no inferno absolutamente engraada, pois o aproxima de um
administrador de uma loja de departamentos. Na histria, ele avarento
e gerencia o inferno, com livro ponto, mercadorias e controle do fluxo
de caixa.
J no segundo, que apresenta inmeras verses devido
apropriao indbita dos versos originalmente escritos por Leandro
Gomes de Barros, apresenta-se o Diabo como adversrio do homem, na
forma do desafio cantado ou peleja. No folheto, ambos tm a vez de
falar e, ao trmino, o homem sagra-se vencedor.
Essas duas obras so exemplos para ilustrar a participao
engraada que o Diabo faz no folheto. Alm desses ttulos, poderamos
citar muitos outros. Tanto que a maioria dos estudiosos propulsores dos
ciclos temticos da literatura de folhetos apresenta o ciclo do diabo
logrado (CASCUDO, 2009). A repercusso dessa temtica leva-nos a
crer que os poetas populares colocaram seus versos desde sempre
disposio de uma interpretao mais leve do que seria o Diabo cristo.
3.2 AS PARTICULARIDADES DO FOLHETO NORDESTINO
Os folhetos comeam a ser publicados no Brasil no final do
Sculo XIX, mais precisamente no estado da Paraba. No se encontram
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registros que afirmem com exatido qual o primeiro autor que teve seus
versos impressos. Pode-se citar, contudo, os nomes de Leandro Gomes
de Barros, cujo folheto mais antigo que se tem notcia data de 1893, e
Francisco das Chagas Batista13
como os precursores.
Antes mesmos desses, Jos Alves Sobrinho, um dos mais
renomados pesquisadores da literatura popular do nordeste, atribui o
incio da literatura popular em versos a dois nomes: Silvino Pirau Lima
e Germano Alves de Arajo Leito (Germano da Lagoa). Segundo
Sobrinho (2003, p. 21,22) ambos paraibanos, escreviam e cantavam ao som de suas violas, romances e pelejas (...). O que no sabemos e se
chegaram a imprimir nestes tempos tais trabalhos. Diante de tal afirmao, esses dois nomes so possivelmente os primeiros a colocar
no papel os versos que outrora se apresentavam apenas na modalidade
oral.
O fato que embora atrasse pblico, cantar versos no era uma
atividade remunerada. A impresso dos folhetos foi o que viabilizou aos
poetas algum tipo de retorno financeiro.
A produo, de modo geral, iniciava-se da seguinte forma: os
poetas escreviam e imprimiam seus versos, utilizando prensas manuais e
a contribuio da mo-de-obra dos filhos e esposa, num sistema de
empresa familiar. Depois partiam para a comercializao, participando
de feiras em cidades e estados prximos a sua cidade de residncia.
Quando os exemplares esgotavam-se, eles voltavam a suas casas para
escrever e editar mais folhetos. Muitos j chegavam ao lar com as
composies criadas, obras feitas entre uma parada e outra durante a
viagem de venda.
Quase nenhum desses poetas ganhava dinheiro
pela composio dos versos, e sim pela comercializao dos folhetos, vendidos em feiras
e mercados, nas estaes de trem e de nibus, nas
festas nas fazendas e nas casas da cidade. Quando
o estoque terminava, o poeta se cansava ou a
saudade apertava, voltava para a casa para
preparar um novo conjunto de folhetos. (ABREU,
2006, p. 61-62)
13
Os dois figuram entre os poucos poetas que no eram cantadores. A maioria
dos autores de folheto utilizava como meio de divulgao a cantoria de uma
parte de seus versos em festas e feiras, estimulando o comrcio de suas obras.
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51
Com o passar dos anos, o modo de comercializao
transformou-se. Os poetas comearam a atender em pontos fixos de
vendas, distribuindo composies prprias e de colegas. Em 1911,
Francisco das Chagas Batista j vendia seus folhetos dessa forma.
Segundo Abreu (2006, p.62), foi em meados do sculo XX que os
folhetos passaram a ser vendidos de modo expositivo (colocados nos
cho das barracas, em bancas ou pendurados em varais).
Dentre outros fatores e, especialmente, por conta do modo de
disposio, pendurados em varal, muitos pesquisadores passaram a
aproximar os folhetos nordestinos literatura popular vendida do
mesmo modo em Portugal, l nomeada como literatura de cordel.
Entretanto tal denominao no era empregada entre os produtores e
leitores dos folhetos brasileiros.14
A terminologia cordel, portanto, no fazia parte do vocabulrio dos primeiros autores e leitores dos versos
nordestinos, conforme se l:
A expresso literatura de cordel nordestina passa a ser empregada pelos estudiosos a partir da
dcada de 1970, importando o termo portugus
que, l sim, empregado popularmente. Na
mesma poca, influenciados pelo contato com os
crticos, os poetas populares comeam a utilizar
tal denominao. 15
(ABREU, 1999, p. 17-18)
Mesmo com produo bastante significativa para os padres
editorias brasileiros16
, desde o surgimento do folheto j se preconizava
seu declnio. A insero de meios de comunicao no cotidiano do povo
nordestino representava a especulao na queda das vendas de folhetos
e, at mesmo, sua total extino. Um dos principais motivos para isso
14
Marcia Abreu apresenta no livro Histrias de cordis e folhetos o que ela
mesma denominada como a condensao das ideias contidas em sua tese de
doutoramento. A obra mostra o percurso da pesquisadora para desmitificar a
cultura vigente at ento, a literatura de folhetos nordestinos como uma herana
europeia. Quem l a obra tem acesso a uma infinidade de argumentos que, alm
de derrubar essa teoria, comprovam a genuinidade nordestina ao folheto. 15
Em coerncia com a pesquisa de Marcia Abreu (1999), neste trabalho temos
como preferncia o uso da terminologia folheto. 16
Baseando-se nos dados apresentados por Marlyse Meyer em Autores de
cordel, Marcia Abreu apresenta na obra Cultura Letrada: literatura e leitura a
venda expressiva de folhetos, conforme l-se: Folhetos sobre a morte de Getlio Vargas venderam 200 mil exemplares; sobre a renncia de Jnio
Quadros, 70 mil; sobre a morte de Lampio, 50 mil.
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provinha da particularidade das informaes serem circuladas por meio
da literatura de folhetos. Com a disseminao do jornal, acreditava-se
que pouco a pouco o folheto ficaria obsoleto, conforme afirmou Slvio
Romero em 1879 na Revista Brasileira:
O povo do interior ainda l muito as obras de que
estamos falando; mas a decadncia por este lado
patente: os livros de cordel vo tendo cada vez
menos extrao depois da grande inundao dos
jornais. (ROMERO, 1977, p. 257)17
No nordeste, entretanto, mesmo com a difuso do jornal
impresso, os folhetos continuaram em franca ascenso. Coexistindo com
os jornais, os rumores sobre o fim da literatura de folheto no haviam
cessado.
J nas primeiras dcadas do sculo XX, com chegada da energia
eltrica e o rdio, os poetas foram bombardeados com previses acerca o
declnio na venda. O motivo no era infundado. que, at ento, as
residncias abriam suas portas para a declamao dos folhetos e
cantorias, realizando verdadeiras festas literrias, denominadas seres.
Era nesse espao que muitos folhetos eram divulgados e, por isso,
vendidos.
A prpria vida familiar no Nordeste contribuiu
para o sero, a reunio noturna em famlia. Em torno de um candeeiro, depois do jantar, na sala de
visitas fosse um engenho, uma fazenda, um stio, no raro tambm numa casa na cidade reuniram-se os membros da famlia. A falta de
eletricidade fazia do candeeiro o ponto de
convergncia dos familiares: pais, filhos, irmos,
primos, etc. E a leitura de novelas, de histrias, de
poesias, se tornava o motivo do encontro familiar.
O alfabetizado da famlia era o leitor. E assim a
histria se divulgava. (DIGUES JR., 1973, p. 15)
17
A obra de 1977, Estudos Sobre a Poesia Popular no Brasil, da qual retiramos
tal afirmao trata-se da 2 edio de um estudo publico em 1888 pelo prprio
Silvio Romero. Ao fixar residncia na capital carioca no ano de 1879, o
folclorista publica na Revista Brasileira os estudos A Poesia Popular no Brasil.
Em 1888, os textos foram reunidos em Estudos Sobre a Poesia popular no
Brasil, sendo a obra original dessa