tragÉdia familiar - literatura de cordel

34
Literatura de cordel TRAGÉDIA FAMILIAR Poema de Esio Antonio Pezzato 1994

Upload: mara-bombo

Post on 29-Mar-2016

230 views

Category:

Documents


3 download

DESCRIPTION

POEMAS DE CORDEL

TRANSCRIPT

Page 1: TRAGÉDIA FAMILIAR - LITERATURA DE CORDEL

Literatura de cordel

TRAGÉDIA FAMILIAR

Poema de Esio Antonio Pezzato1994

Page 2: TRAGÉDIA FAMILIAR - LITERATURA DE CORDEL

Pg2 de 34

Pequeno Comentário

Li muita poesia nordestina, a popularmentechamada “Cordel”. Sempre me fascinoumuito o estilo, as histórias, os causosnarrados, históricos, fantásticos,sobrenaturais mesmo.Pensei em compor algo do gênero, precisavade uma história, um enredo e então melembrei dessa história, que minha mãe contaainda hoje.Não sei se é verdade, se é mentira, se éimaginação, mas minha mãe a conta e dizque quem a contava, era a minha nonnaVirgínia.Essa minha nonna segundo minha mãe,contava essa história e se conformava comtal desgraça, após ter perdido duas filhas.Claro que os nomes aqui citados sãoinvenção, criação apenas de minha mente.

Page 3: TRAGÉDIA FAMILIAR - LITERATURA DE CORDEL

Pg3 de 34

O desejo mesmo era compor algo do estiloCordel.Se consegui ou não, isso já é outro assunto.

Esio Antonio Pezzato

Page 4: TRAGÉDIA FAMILIAR - LITERATURA DE CORDEL

Pg4 de 34

TRAGÉDIA FAMILIAR

Esta história é bem antigaDifícil de acreditar.Pode parecer mentiraPorém, posso até provar;Vou pedir à Musa ajuda,Pois quero que ela me acudaNo que agora vou narrar.

Quem contou a mim a históriaBem merece toda a féPois minha mãe nunca menteE ela, sim, jura de pé,Que este fato é verdadeiroE abalou o mundo inteiroE a verdade – santa é!

Minha mãe era criançaTinha ainda os pés no chão,Porém, guardou na lembrança.Dentro de seu coraçãoEstes acontecimentosQue foram tristes, violentos,

Page 5: TRAGÉDIA FAMILIAR - LITERATURA DE CORDEL

Pg5 de 34

De terrível comoção.

Mas não posso, com certeza,Dizer onde isto ocorreuE se minha mãe não sabe,Bem menos então sei eu.Contudo sei que é verdadeE se não sei da cidadeNarro o fato que se deu.

... O patriarca da famíliaEra um mestre lenhador,Trabalhava na florestaCom denodo e com vigor.Com seu robusto machadoCada tronco derrubadoNo chão fazia terror.

Cada braço pareciaUm tronco de guarantã,Eram grossos, rudes, fortes,Trabalhando com afã.Quando então ele zuniaAté faísca saía,

Page 6: TRAGÉDIA FAMILIAR - LITERATURA DE CORDEL

Pg6 de 34

No baque do tan-tan-tan!

Na sua velha casinhaFeita de barro e sapéHavia muito carinhoE na Virgem muita fé.Num oratório MariaE José... E ainda haviaO Filho de Nazaré!

A mulher – cabocla simples –Cuidava com muito amorDos filhos e do maridoQue a tratavam com ardor.Modesta, sempre atuante,Não parecia sitianteMais parecia uma flor!

Tinham dois filhos rapazesDe anos tinham dezesseis,Pois ambos nasceram gêmeosE viviam como reisNaqueles prados divinos;Eram soberbos meninos,

Page 7: TRAGÉDIA FAMILIAR - LITERATURA DE CORDEL

Pg7 de 34

Libertos de rudes leis.

Tinham também uma filha– Mimosa flor do sertão –E seu nome era RosinhaPois parecia um botãoA sua face mimosa,Que lembrava linda rosaNas cores de um coração.

No completar da alegriaTinham um lindo bebêQue vindo fora do tempoPunha na casinha um quêDe sonho e muita alegria,Um beija-flor pareciaQue a gente sonha e nem crê.

Assim vivia a famíliaNa mais perfeita união,Todos viviam felizesNeste mundo de ilusão...E o sonho é pura bobagem,Cidade grande é miragemGostoso mesmo – é o sertão!

Page 8: TRAGÉDIA FAMILIAR - LITERATURA DE CORDEL

Pg8 de 34

Todos os fins de semanaCom roupas dominicaisOs seis iam para a missaEm distantes arraiais:Tinham distantes parentesQue eram todos descendentesDas longas Minas Gerais.

Tinham vindo até São Paulo– Progresso de Capital! –Para crescerem na vidaNum trabalho sem igual.E com recursos minguadosOs sítios foram compradosCom dom sobrenatural.

Fazia já quatorze anosQue tinham chegado aqui,Tanto que a linda RosinhaDizia:– eu aqui nasci.– Somos todos brasileiros,Mas meus irmãos são mineiros,Minas – sequer conheci.

Page 9: TRAGÉDIA FAMILIAR - LITERATURA DE CORDEL

Pg9 de 34

Também meu irmão mais novoAqui no sítio nasceuEm uma noite sem luaTão escura como breu.Era negro o seu cabeloE dos meus irmãos a vê-loA primeira então – fui eu.

Era tão pequititicoQue nem pude acreditarQue sendo assim tão pequenoPudesse o mesmo vingar,Porém, era são e forte,Que – ai, meu Deus! eu tive a sorte:Ter alguém para brincar.

Diversas vezes na roçaNas touceiras de bambusOs dois filhos, à tardinha,Iam caçar inhambus.E depois, quando voltavam,Na lagoa eles nadavamDespreocupados e nus.

Page 10: TRAGÉDIA FAMILIAR - LITERATURA DE CORDEL

Pg10 de 34

Nas tardinhas de dezembroQuando dorme tarde o sol,Com mais amigos reunidosIam com vara e anzolPescar algumas piavasQue eram dentuças e bravasE delas faziam rol.

O sítio era bem gostosoE as almas eram cristãs,Gostosos escutar à noiteNo brejo o coaxar das rãs.E nesses sonhos festivosEra bonito ver vivosRoseiras, dálias, romãs...

Como almas apaixonadasAo som de um velho violãoCantavam lindas toadasAltas noites de verãoE Catulo ressurgiaNa suave melodiaDo lindo Luar do Sertão...

Todo este ridente sonho

Page 11: TRAGÉDIA FAMILIAR - LITERATURA DE CORDEL

Pg11 de 34

Parecia não ter fimO mundo era amplo, risonho,E rescendia a jasmim.Rosinha, alegre, cantava,Seu irmãozinho abraçavaRindo um riso carmesim.

Mas era muito bonitoVer tanta dedicação:O marido trabalhavaSempre com o machado à mão.A mulher – num alvoroço,Virava-se com o almoço:– Arroz, batata, feijão.

Tinham também poedeirasSempre livres no quintalE dúzias de ovos caipirasSempre tinham, afinal,Junto de alguma frituraUm ovo – é boa mistura,É gostoso e não faz mal.

Tinham também duas cabrasMansinhas como elas só,

Page 12: TRAGÉDIA FAMILIAR - LITERATURA DE CORDEL

Pg12 de 34

Que davam litros de leiteE um bom galo carijó,Que alto alarido faziaE tinha – até parecia –Despertador no gogó!

Mas como a história vai longa,Não podemos esquecerOs nomes dos dois rapazesPois isto se faz mister:E terminando com “inho”O Antoninho e o ZezinhoDepois nome de mulher.

Assim Antonio MariaSeria um nome de fé!E também José MariaEra o nome de José.Todos com nomes de santosJá que o pai desses encantosTinha o nome de Tomé.

O lenhador se chamavaAlém de Tomé, Luís...Sua mulher atendia

Page 13: TRAGÉDIA FAMILIAR - LITERATURA DE CORDEL

Pg13 de 34

Pelo nome – Flor-de-Lis.Com o caçulinha ArmandoDe Jesus, não tinha quando,Nem onde ser infeliz.

Quando dezembro chegavaTudo explodia de luz,Porque o sentimento puroN’alma alegria produz.E eles num canto de terra,Armavam com pó-de-serra,O presépio de Jesus!

Nestas noites natalinasEra enorme a multidãoQue nas noites se juntavaPara fazer oração.E com alegrias plenasRezavam suas novenasCom a voz do coração.

Rosinha, alegre e catita,Brincava como ela sóQue no terreiro da casaLevantava imenso pó.

Page 14: TRAGÉDIA FAMILIAR - LITERATURA DE CORDEL

Pg14 de 34

Ela com outras criançasTodas cheias de esperançasFaziam um quiprocó...

E a Flor-de-Lis do casebrePós a reza, na hora H,A todos ofereciaSuco de maracujáE fatias saborosas,Portanto, muito gostosas,De um bom bolo de fubá.

Com certeza até a riquezaTeria inveja dali.Outra alegria tão grandeEm outras plagas não vi.Por não ter nenhum perigoAli se sentia amigoColorido colibri.

E por se sentir de casaSeu ninho ali construiuPois tinha flores de monteComo nunca antes se viu.Podia, pois, com fricotes,

Page 15: TRAGÉDIA FAMILIAR - LITERATURA DE CORDEL

Pg15 de 34

Alimentar seus filhotesSem se espantar co’um psiu!

Mas um dia, ao fim da tarde,Após duro trabalhar,Retornando para casaTomé ouviu um guisar.Com cuidado e bem atentoMediu cada movimentoCuidava em não se assustar.

Espantado olhou por tudoE oh! triste cena cruel:Num canto jazia mortaUma cabra cor de mel.E ao analisar direitoViu que ela tinha no peitoMordida de cascavel.

Entrou no velho celeiroE entre palhas procurouA sibilante nefastaQue sua cabra matou.E na busca sem medidaFoi encontrá-la escondida

Page 16: TRAGÉDIA FAMILIAR - LITERATURA DE CORDEL

Pg16 de 34

E com um pau a matou.

Mas onde existe uma cobraOutras existem tambémE Tomé Luís matando-aNão procurou outras, nemPonderou que houvesse um ninhoEscondido no caminhoE cobras bem mais de cem.

E não querendo por sustoNos filhos e na mulherFoi enterrar sua cabraNum distante belveder...Disse apenas que a coitadaMorrera à tarde, afogada,Quando foi água beber.

Noutro dia, logo cedo,Levantou – foi trabalhar,Com seu machado afiadoMuita lenha foi cortar.O céu estava ainda escuro,Porém, com passo seguro,Ele se pôs a marchar.

Page 17: TRAGÉDIA FAMILIAR - LITERATURA DE CORDEL

Pg17 de 34

Logo que o dia clareavaA uma clareira chegou,À sombra pôs o coroteSua marmita guardou.O sol aos poucos ardia,Enorme calor fazia,Tomé Luís almoçou.

Mas voltemos ao casebre:Flor-de-Lis já de manhãFoi ao quarto de RosinhaE acordou-a com afã,Foi ao quarto dos meninosE com seus modos traquinosChamou-os num rataplã!...

Rosinha toda contenteLevantou, tomou café,E nos cabelos da mãeTentou fazer cafuné.Mas estridente, o caçula,Demonstrava imensa gulaE armou tremendo banzé!

Page 18: TRAGÉDIA FAMILIAR - LITERATURA DE CORDEL

Pg18 de 34

Porém, que coisa engraçada,Zezinho e Antoninho nãoCaíram hoje da cama...Flor-de-Lis com atençãoEntão falou à RosinhaQue fosse fazer cosquinhaPois assim acordarão...

Porém, chegando no quarto,Rosinha um grito soltou,Uma cascavel imensaSobre ela um bote tentou.Do quarto saiu chorandoÀ sua mãe foi chamandoE logo após desmaiou...

Flor-de-Lis bastante aflitaPôs o pequeno no chão,Deu água e açúcar à filhaE esta lhe falou entãoCom sua voz assustadaQue uma cascavel danadaTinha feito danação.

Tomando um grande porrete

Page 19: TRAGÉDIA FAMILIAR - LITERATURA DE CORDEL

Pg19 de 34

Pra encarar a cascavelQue dentro do quarto estavaCausando o maior revel –E com uma tocha de fogoAs duas armaram jogoContra a serpente cruel.

Foi uma luta gigante...A cobra pra não morrerDava botes lancinantesE tentava se esconder...Sacudia alto o seu guizoDando um tenebroso avisoQue poderia vencer!...

Mas Flor-de-Lis e RosinhaCom coragem sem igualConseguiram dar à morteAo peçonhento animalQue ficou na hora exanguePela boca pondo sangueApós luta triunfal!

Porém, Zezinho e AntoninhoApós luta tão cruel

Page 20: TRAGÉDIA FAMILIAR - LITERATURA DE CORDEL

Pg20 de 34

Continuaram inertes...É que a horrenda cascavel– Filha da dor do pecado! –À noite os tinha matadoCom seu veneno de fel.

Aos prantos, desesperada,Chorou demais Flor-de-Lis...Via os dois mortos na camaE o coração da infelizFicava desesperadoE a Deus lançava o seu brado;Oh! Deus, o que foi que fiz?...

Para ter em minha vidaEste momento de dor?Sempre fui uma devotaSempre cri em Teu amor.Mas agora, Deus, nest’hora,A minh’alma sangue choraE nela trago o rancor.

Rosinha a um canto choravaTamanha desilusãoAo ver os seus irmãos mortos

Page 21: TRAGÉDIA FAMILIAR - LITERATURA DE CORDEL

Pg21 de 34

Partia seu coração.E a sós em sua agonia,Brigou com a Virgem MariaE lhe passou um sermão.

– Oh, minha santa querida,Mãezinha que quero bem,Por que não levaste a mortePelas estradas do além?Mas trouxeste nesta casaA dor que é pior que brasaE tanta angústia contém.

– Veja só quanta desgraçaNesta casinha reluz.Parece que estão pregandoA minha mãe numa cruz.Nest’hora de sofrimentoTambém eu muito lamentoPelo teu filho, Jesus!

– Mas minha mãe, coitadinha,Veja só como ela vaiTropeçando pelos cantosChorando e dizendo um ai ...

Page 22: TRAGÉDIA FAMILIAR - LITERATURA DE CORDEL

Pg22 de 34

Mas de forças eu precisoPara mandar um avisoAo meu adorado pai.

– Mamãezinha, fique calma,Ai, não chores tanto assim,Ao te ver sofrendo tanto,A tua dor dói em mim.Mas nesta angústia indigesta,Eu preciso ir à florestaAvisar papai, enfim... –

– Vai logo, filha adorada,Vai dizer tudo ao papaiQue tragédia tão imensaEm nossa vida hoje cai.Vai logo, parte ligeiro,Que o coração prisioneiroSoluça um patético ai... –

Rosinha rapidamentePartiu qual vento veloz,Levava os olhos em pranto– Embargada a sua voz.E o vento disse à menina:

Page 23: TRAGÉDIA FAMILIAR - LITERATURA DE CORDEL

Pg23 de 34

– Onde vais assim traquinaCom essa expressão atroz?

– Por que choras tão sentida,Quem te fez sofrer assim?Quem te magoa na vidaHá de ter um triste fim...Mas Rosinha ia ligeiraCortando a estrada, fagueira,Com os olhos carmesim.

Rapidamente deixavaQuilômetros para traz...Não corria – e sim voavaIgual a uma águia voraz.E levava em seu desgostoProfundas mágoas no rostoNo desespero sem paz.

Mas o seu pai concentradoCom o machado lenhadorEm golpes duros, certeiros,E de profundo vigor,Feria a golpes de vândaloTronco que exalava a sândalo

Page 24: TRAGÉDIA FAMILIAR - LITERATURA DE CORDEL

Pg24 de 34

Pondo no ar cheiro de flor.

Era uma árvore imensaPronta já para cairFerida em hora de morteE começou a ruir...Rosinha, precipitada,Não percebia a ciladaQue sobre ela iria agir.

Quando o pai gritou “madeira!”E a árvore tocou o chão,Espremeu entre ela e a terraA casta flor do sertão,E sem um ai de agoniaNeste instante ali morriaEm seu desespero vão.

Ao pressentir a tragédiaDa árvore imensa a cair,O lenhador com loucuraComeçou gritar, zunir...Ao perceber sua filhaPresa em ingrata armadilha,Louco, começou a rir...

Page 25: TRAGÉDIA FAMILIAR - LITERATURA DE CORDEL

Pg25 de 34

O pranto num desesperoA sua face tomou,Invadiu sua gargantaSua garganta engasgou.Num desespero de mortePraguejou a crua sorteE contra Deus blasfemou.

E vendo Rosinha mortaDisse na sua aflição:– Preciso tirar o troncoQue a espreme contra o chão.Está morta a coitadinha,Matei a minha Rosinha,Numa falta de atenção.

– Mas o que será que a trouxeAqui pra me visitar,Será que era importanteO que ela vinha falar?Com ela está seu segredo,Oh, meu Deus, eu sinto o medo,As minhas veias gelar!

Page 26: TRAGÉDIA FAMILIAR - LITERATURA DE CORDEL

Pg26 de 34

E por mais de duas horasO sofrido lenhadorMachadeou o enorme troncoCom o coração em dor.Para libertar RosinhaQue estava morta e sozinhaE não tinha mais vigor.

Ao final de tanto empenhoDe desespero e afliçãoO lenhador tinha aos braçosA sua flor do sertão,Mas ela já não sorriaTinha as cores da agoniaA pintar seu coração.

Enquanto isso no casebreAo perceber Flor-de-LisQue Rosinha não voltava,Ela em prantos, ao céu diz,Que precisa, sem demora,Calar su’alma que choraE que está tão infeliz...

Evitar maior tragédia

Page 27: TRAGÉDIA FAMILIAR - LITERATURA DE CORDEL

Pg27 de 34

Que sobre eles se abateu...Talvez Rosinha na estradaNoutro rumo se perdeu.Se eu ficar aqui paradaMinh’alma desesperadaNão sabe o que aconteceu.

Foi ao quarto onde os dois filhosNão podiam mais sorrirE beijando-os com desvelosFalou que iria partir,Que eles ficassem quietosPois eram filhos diletosE podiam se ferir...

Falou assim desta formaMas eles, na solidão,Já não tinham sofrimentos,Nem sentiam nada, não...Pôs nos pés velhos chinelos,No coração dois cutelos– Partiu com disposição...

E deixou no chão da salaO Armandinho de Jesus,

Page 28: TRAGÉDIA FAMILIAR - LITERATURA DE CORDEL

Pg28 de 34

Que brincava sorridenteCom os ígneos raios de luzQue perfuravam o tetoE o cobriam com afetoNum carinho que seduz.

Ele em sua fantasiaFicou brincando com o solQue faiscava em seu corpoComo sublime farol,Sem perceber que o perigoEntrara pelo postigoDaquele infando paiol.

Porém, a porta entreaberta,Também não pôde anteverQue a desgraça ainda teriaMais motivos a fazer.Terrível porco-do-matoVindo das bandas do matoAli acha o que comer.

Um choro agudo, sentido,Pedia socorro em vão,Mas Flor-de-Lis ia longe

Page 29: TRAGÉDIA FAMILIAR - LITERATURA DE CORDEL

Pg29 de 34

Se embrenhando no sertão.E a fera, toda maldade,Despedaçou sem piedadeA criancinha no chão.

Mas Flor-de-Lis pela estradaNum desespero sem fimDesencontrou o maridoE não pôde achá-lo enfim.Mas na mata seresteiraUm sabiá laranjeiraCantava alegre festim.

Porém, foi seguindo em frente,E sua angústia aumentouAo ver a mancha vermelhaDo sangue que o sol secou.O corote abandonadoO machado estava ao ladoDa marmita que rolou...

Um grito rude, agressivo,Povoou a imensidão,Flor-de-Lis deu meia voltaE partiu com decisão.

Page 30: TRAGÉDIA FAMILIAR - LITERATURA DE CORDEL

Pg30 de 34

E cada passo que davaSu’alma se via escravaDa amargura e da aflição.

Tomé Luís bem cansadoEnfim chegou ao seu lar,Porém, a voz do destino,Mandou ir mais devagar.Nos braços – morta a Rosinha,Mas ao entrar na cozinhaImpossível não gritar.

Seu filhinho caçulinhaEstava morto no chãoE o esperto porco-do-matoDebandou com precisãoÀ porta que estava abertaTomé com a vista alertaSentiu pior sensação.

Deitou Rosinha num cantoFoi o filhinho acudir,Também ele estava mortoNão podia mais sorrir...O desespero paterno

Page 31: TRAGÉDIA FAMILIAR - LITERATURA DE CORDEL

Pg31 de 34

Que se viu foi tão eternoQue ribombou o porvir.

Chamou em vão os mais velhosMas que tragédia cruel!Eles não mais respondiam...E neste instante de felAo entrar no quarto rudeAchou morta a juventudeAchou morta a cascavel.

Neste infausto desesperoPediu respostas ao céu,Mas o céu calmo e silenteNada, nada respondeu.Ao perceber a tragédiaSem pensar perdeu a rédeaE mais morte aconteceu.

Foi à gaveta da cômodaE seu revólver pegouNele colocou três balasE num instante atirouMas dando o primeiro tiroDeu seu último suspiro

Page 32: TRAGÉDIA FAMILIAR - LITERATURA DE CORDEL

Pg32 de 34

Depois não mais disparou.

Cinco corpos ali mortos,– Quatro filhos mais o pai...Oh! meu Deus, que desesperoDos meus olhos pranto cai.E Flor-de-Lis, coitadinha,Vinha ligeira, sozinha,Nos lábios soltando um ai.

Porém, em seu desespero,Não podia imaginarQue a tragédia era mais forteE não ia suportar.Ao chegar à sua casaCom o coração em brasaComeçou gritar... gritar...

Ao entrar pela cozinhaViu Rosinha posta ao chãoE viu seu filhinho mortoSem piedade ou compaixão.Travando um grito na bocaSentiu n’alma a ânsia loucaE uma enorme convulsão.

Page 33: TRAGÉDIA FAMILIAR - LITERATURA DE CORDEL

Pg33 de 34

Porém, entrando no quarto,Foi maior o seu pavor...Além dos dois filhos mortosEra morto o seu amor.Então só, neste momento,Um grito no firmamentoEcoou arrasador.

Passados então três diasDesta tragédia cruelÉ que os amigos vizinhosDescobriram tanto fel.No terreiro como loucaUma mulher de voz roucaFazia infando revel..........................................

Pois isto tudo é verdadeE eu termino por aquiZangado desta tragédiaZangado do que escrevi.Assim digo que é verdadeToda esta fatalidadeOnde outra igual – nunca vi!

Page 34: TRAGÉDIA FAMILIAR - LITERATURA DE CORDEL

Pg34 de 34

F I M

Esio Antonio Pezzato

Piracicaba, 22.08.1994