o (des) arranjo das lembranças: notas · antes de nos determos sobre o filme, retomaremos...

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Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Imagem e Som (PPGIS), da Universidade

Federal de São Carlos. Estuda a relação entre audiovisual e memória através da análise do

filme Sem Sol (Sans Soleil, Chris Marker, 1982). A pesquisa tem apoio da fapesp (Fundação de

Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).

Resumo

O ensaio como enunciado audiovisual permite ao cinema jogar com os elementos que

configuram sua linguagem, experimentando e reinventando suas formas de expressão. Ana-

lisamos, no trabalho, a inclinação ensaística de Chris Marker a partir de seu filme Sem Sol

(Sans Soleil, 1982). Apontamos as contribuições do ensaio no que tange ao trabalho com a

linguagem e ao pensar sobre a memória-tema que atravessa a película.

Palavras-chave

Vídeo, ensaio, linguagem audiovisual, memória, Chris Marker

Abstract

The essay as an audiovisual statement allows cinema to play with the elements that con-

figure its language, experimenting and reinventing the way it expresses itself. We analise,

in this work, Chris Marker’s essayistic tendencies in his film Sans Soleil (1982). We have

pointed out the contributions of the essay in the work with language and the reflections on

memory-theme that is present throughout the movie.

Keywords

Video, essay, audiovisual language, memory, Chris Marker.

O (DES) Arranjo das lembranças: notas sobre o vídeo-ensaísmo em Sem SolEdson PErEira da Costa Júnior

Publicación semestral del seminario universitario de análisis cinematográficonÚmero 1 julio-diciembre de 2012, P. 89-105

montajes, revista de análisis cinematográfico

O ensaio surgiu na literatura como uma forma de escrita pautada sobre a liberdade de es-

pírito. Nega o rígido, o vitalício ou qualquer tentativa de prescrição que vise encerrá-lo em

modelos pré-concebidos e duradouros. Sua natureza é lúbrica. Desliza por sobre as cate-

gorizações, amealhando, por vezes, traços de umas e de outras sem, no entanto, fixar-se a

alguma delas. O ensaio só pode ser apontado nas particularidades. Seguindo essa linha oblí-

qua, empreendemos um pensamento sobre a inclinação ensaística que permeia e dá forma

ao filme Sem Sol (Sans Soleil, 1982), realizado pelo artista multimídia francês Chris Marker.

É o ensaio, em sua configuração itinerante, que possibilita a Marker desdobrar o vídeo para

escrever1 sobre e através da memória.

Antes de nos determos sobre o filme, retomaremos brevemente a trajetória do ensaio dentro

da literatura, indicando algumas matrizes que serviram como eixo comum às obras que o

configuram. Foram as primeiras aparições no meio literário, pois, que abriram caminho para

o uso das propriedades daquela genealogia, tempos depois, no cinema e em outras formas

de expressão artísticas.

Quem dá o primeiro passo em direção ao que hoje denominamos como ensaio é o francês

Michel Eyquem de Montaigne, com sua publicação Essais, de 1580. Apesar de iniciar uma

tradição literária, esta obra de Montaigne não significou a deliberação de preceitos ou normas

que, daquele momento em diante, constituíram uma fórmula para a literatura ensaística. A pro-

dução de diversos pensadores e escritores que, ao longo desses quatro séculos, recebeu o título

de ensaio nem sempre se assemelha ou carrega as características dos Essais de Montaigne2.

A dificuldade de categorização do ensaio vem justamente das várias formas que este ramo

da literatura assumiu desde suas primeiras manifestações. Não podemos atribuir-lhe uma

1 Partimos da definição de Alexander Astruc, em seu artigo sobre a câmera-caneta “The birth of new avant-garde: la caméra-stylo” in The French New Wave: Critical Landmarks, ed. Peter Graham e Ginette Vincendeau (Hampshire: Palgrave MacMillan, 2009). O texto foi publicado inicialmente sob o título “Naissance d’une nouvelle avant-garde: la caméra-stylo” na L’Écran français, nº 144, em 30 de março de 1948.2 Jean Starobinski, Montaigne em movimento (São Paulo: Companhia das Letras, 1993) citado em Marília Rocha de Siquei-ra, “O ensaio e as travessias do cinema documentário” (Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Minas Gerais, 2006), http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/ds pace/ bitstream/1843/VCSA-6WLHMK/.

O (DES) Arranjo das lembranças: notas sobre o vídeo-ensaísmo em Sem Sol

Edson Pereira da Costa Júnior (UFSCar)

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estética que sirva universalmente, muito menos um tema que seja comum. O ensaio vai

de encontro à idéia de gênero. Por mais que este tenha capacidade de renovar alguns de

seus elementos conforme o tempo, não é suficiente para circunscrever um texto ensaísti-

co. Quando encontramos o gênero é, se assim podemos dizer, submetido a uma espécie

de mestiçagem. Haroldo de Campos, ao se referir à ruptura com os gêneros na Literatura

Latino-Americana, considera que o barroco foi responsável por provocar uma fusão, um

confronto entre culturas diferentes que culminou na não conformidade à partilha clássica

do gênero e suas convenções literárias3. As obras passaram a reunir elementos de outras

correntes literárias ou que antes eram específicos a determinadas culturas. O caso ilustra

o que acontece ao ensaio: ou recusa o gênero ou o trabalha em parceria com outros. A

dimensão ensaística estabelece uma escrita que impede o leitor (ou espectador) de prever

o próximo movimento. O que rege o ensaio é a incerteza.

A não filiação a modelos estéticos e temáticos específicos não impede a existência de um

eixo, uma linha que sirva de direção, mesmo vagamente. A preocupação com a linguagem e

o olhar crítico sobre o meio no qual se desenvolve são fundamentais para a configuração da

inflexão ensaística. Dentro das seis funções de linguagem definidas por Roman Jakobson, o

ensaio enfatiza a metalinguística e a poética em detrimento das demais: referencial, emotiva,

conativa e fática.4 O texto ensaístico tende ao desdobramento, principalmente, do código e

da mensagem.

A metalinguagem, reservada inicialmente à estética e à ciência da literatura, é desenvolvida

no domínio literário por Mallarmé em Un Coup de Dés (1897). Trata-se, para Haroldo de

Campos, de um poema que questiona a si mesmo sobre a essência de poetar, marcando um

momento em que a reflexão sobre a arte acaba sendo mais importante que a própria arte.5

A dimensão metalinguística nada mais é que um lançar-se sobre o código, um momento

em que a linguagem fala da própria linguagem. Desnuda-se o processo, a forma pela qual

a mensagem é transmitida para revelar “a arquitetura mesma da obra à medida que ela vai

sendo feita, num permanente circuito autocrítico”6. O texto ensaístico volta-se para si atra-

vés de operações metalinguísticas que compreendem desde a interpretação de um signo

linguístico por meio de outros signos da mesma língua —como é o caso das substituições

3 Haroldo de Campos, Ruptura dos gêneros na literatura latino-americana (São Paulo: Perspectiva, 1977).4 Roman Jakobson, Linguística e comunicação, 9ª edição (São Paulo: Cultrix, 1977).5 Campos, Ruptura dos gêneros.6 Campos, Ruptura dos gêneros, 36.

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por sinônimos— até a remissão direta (ou indireta) ao código, como costuma fazer Jorge Luis

Borges ao mencionar e criar dentro de suas ficções e ensaios histórias ou enredos referentes

ao universo literário.7

Juntamente à metalinguagem, o ensaio desenvolve a função poética. Debruça-se sobre o

aspecto material dos signos, sobre a estética da própria mensagem. Molda o texto e seus

componentes a fim de transmitir o conteúdo de maneira mais desenvolvida, através de uma

forma que também é discursiva. O escrutínio da mensagem vem acompanhado de jogos e

relações textuais entre os signos, tornando-a mais eficaz ao que propõe comunicar.

Ao falar ou escrever, o sujeito seleciona entidades linguísticas e as combina em unidades

linguísticas. Jakobson distingue duas formas de arranjo dos signos da linguagem: a combi-

nação, pois todo signo é composto de signos constituintes e/ou aparece em combinação

com outros; e a seleção, que consiste na escolha entre termos alternativos, substituindo um

por outro —equivalente ao primeiro num aspecto e diferente em outro.8 Saussure comple-

menta a esta distinção as características in prasentia e in absentia.9 O linguísta considera

que na combinação as entidades estão situadas, necessariamente, na mensagem. Estão,

portanto, em presença. A seleção, por outro lado, se dá em ausência, pois se refere às en-

tidades associadas no código e não na mensagem. Em outras palavras: o enunciado dado

(mensagem) é uma combinação de partes constituintes (frases, palavras, fonemas etc.),

inseridas no próprio contexto, selecionadas do repertório de todas as partes constituintes

possíveis (código). A seleção se opera na equivalência (semelhança e dessemelhança, si-

nonímia e antonímia), enquanto a combinação se ampara na contigüidade, na construção

de uma sequência.

Recapitulamos os modos de arranjo dos signos linguísticos a fim de enfatizar que, na função

poética, a equivalência do eixo de seleção se projeta sobre o eixo de combinação. isso, se-

gundo Jakobson significa que a equivalência adquire funcionalidade não apenas na seleção,

mas é adotada como um recurso de configuração da sequência.10 Retomaremos as funções

metalinguística e poética na análise da estrutura de Sem Sol.

7 Roman Jakobson, Linguística e comunicação.8 Roman Jakobson, Linguística e comunicação.9 Saussure citado em Roman Jakobson, Linguística e comunicação.10 Roman Jakobson, Linguística e comunicação.

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11 Arlindo Machado, “Filme-ensaio” in Chris Marker: bricoleur multimídia, orgs. Maria Dora Mourão e Rafael Sampaio, (Rio de Janeiro: CCBB, 2009), 20.12 Theodor W. Adorno, “O ensaio como forma” in Adorno, trad. Gabriel Cohn (São Paulo: Ática, 1986), 174.13 Theodor W. Adorno, “O ensaio como forma”.14 Arlindo Machado, “Filme-ensaio”.

Ao apuramento estético, herança do meio literário de onde adveio, o ensaio alia a reflexão

tenaz sobre o seu objeto. A forma é, antes de uma finalidade, um meio que se complementa

ao exercício teórico. Aqui, há um cruzamento da arte literária com o desejo acadêmico da

busca pelo conhecimento, do pensar sobre uma questão que inquieta o autor. O ensaísta alia

o refinamento do escritor à curiosidade do filósofo, borra as fronteiras que separam a arte da

ciência. Para Arlindo Machado, o ensaio nega a dicotomia entre literatura e ciência, entre

experiência sensível e cognitiva: nele, “as paixões invocam o saber, as emoções arquitetam

o pensamento e o estilo burila o conceito”.11

Não devemos confundir o desejo em explorar o objeto, com o rigor do cientificismo. O

ensaísta mergulha no conhecimento, mas sem recorrer à busca por uma verdade universal,

definitiva e irrevogável. O texto com inflexão ensaística tenteia sem vaidade, rebelando-se

“contra a doutrina, arraigada desde Platão, segundo a qual o mutável, o efêmero, não seria

digno da filosofia; revolta-se contra essa antiga injustiça cometida contra o transitório”.12 O

ensaio se satisfaz com o parcial diante do total, com um saber fragmentário, não totalizante.

A liberdade de espírito é fundamental àquele que se lança à tradição ensaística. Ao preferir

a modéstia à vaidade do cientificismo, o parcial ao total, o ensaio também abdica da obri-

gação de começar de algo primeiro, de uma introdução que busca os dados mais longevos

sobre o assunto, e do fechamento com uma conclusão que dispensa adendos. O ensaio

começa de onde acha preferível e “termina onde ele mesmo acha que acabou, e não onde

nada mais resta a dizer: assim ele se insere entre os despropósitos”.13 Não há contrato com

uma visão absoluta, total. Compreendemos o porquê da tradição positivista, fiel ao espírito

científico que se acredita capaz de apreender a realidade integral e objetivamente, posicio-

nar-se na defensiva contra o ensaio, forma que pressupõe a impossibilidade de alcançar a

verdade evitando uma certeza indubitável.

A distinção entre sujeito e objeto, tão cara ao positivismo, é recusada pela tradição ensaís-

tica, que não esconde a influência das emoções, do “eu” de seu autor dentro do texto que

escreve. O relato objetivo cede espaço à tendência que Machado caracteriza como a sub-

jetividade do enfoque que, em determinados casos, consiste na explicitação do sujeito que

fala.14 É Adorno, mais uma vez, quem precisa essa inclinação:

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A objetiva pletora de significações encapsuladas em cada fenômeno espiritual exige

de seu receptor, para ser descoberta, exatamente aquela espontaneidade da fantasia

subjetiva que se condena em nome da disciplina objetiva. Nada pode ser extraído

pela interpretação que, ao mesmo tempo, não seja introduzido pela interpretação.15

A permeabilidade do objeto aos sentimentos e outros aspectos pessoais do sujeito não deve

encerrar o ensaio dentro do gênero autobiográfico. O texto ensaístico pode carregar, sim,

marcas da experiência de vida de seu autor, mas não se resumo ao relato dos fatos diários e

cotidianos concernentes à vida do sujeito. Por meio das cartas enviadas pelo personagem San-

dor Krasna (heterônimo do diretor) em Sem Sol, encontramos marcas da subjetividade de Chris

Marker. isso não significa a adesão do filme à autobiografia. Enquanto esta se centra na descri-

ção de fatos e ações da vida que se conta, o ensaio utiliza a experiência do autor como ponto

de partida para refletir sobre questões externas e mais amplas que, na medida do possível, re-

verberam uma interioridade.16 As produções ensaísticas não obliteram o cotidiano e a narração

das intimidades do autor, o sujeito aceita seu envolvimento com o processo, direcionando sua

reflexão sobre o objeto a partir de um olhar descrente da neutralidade. Há correlação com o

que Benjamin escreve sobre a figura do narrador, que se desenvolveu sobre dois grupos: o dos

marinheiros comerciantes e o dos homens sedentários. Os primeiros viajavam pelo mundo e,

ao voltar, contavam suas aventuras além-mar. Os segundos viviam durante toda a vida na mes-

ma terra, conhecendo os costumes e tradições dos que lhe antecederam.17 Chris Marker parece

um meio-termo entre os dois conjuntos: comporta-se como globe-trotter e, simultaneamente,

preocupa-se com a tradição e a cultura dos lugares por onde passa —incluindo sua terra natal,

a França. De um modo ou de outro, imprime sua experiência.

Eloquência, liberdade, afeto: a escrita ensaística de Chris Marker

O primeiro filme da história do cinema a utilizar a forma ensaística não é precisado ao certo.

Sabe-se, porém, que Chris Marker foi um dos pioneiros a experimentar tal tradição literá-

ria nos domínios do audiovisual. O realizador, juntamente a Agnès Varda e Alain Resnais,

criou a gramática de um novo cinema, na metade da década de 50. O grupo atuou junto

15 Theodor W. Adorno, “O ensaio como forma”, 169.16 Marília Rocha de Siqueira, “O ensaio e as travessias”.17 Walter Benjamin, “O narrador” in Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura, 7ª edição, trad. Sergio Paulo Rouanet (São Paulo: Brasiliense, 1994).

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18 O termo é utilizado por Arnauld Lambert, em Also known as Chris Marker (Paris: Le Point du Jour, 2008).17 Marília Rocha de Siqueira, “O ensaio e as travessias”.19 Arnauld Lambert, Also known as Chris Marker.20 André Bazin, “Lettre de Sibérie“ in Le cinéma français: de la Liberátion à la Nouvelle Vague (Paris: Cahiers du cinéma, 1998), 258 [No original: “(...) un essai documenté par la film. Le mot important étant celui d’essai entendu dans la même sens qu’en littérature : essai à la fois historique et politique encore qu’écrit par un poète” (tradução nossa)].21 André Bazin, “Lettre de Sibérie“, 259 [No original: “(...) de l’oreille à l’oeil” (tradução nossa)].22 Richard Roud, “A margem esquerda” in Chris Marker: bricoleur multimídia. O artigo que utilizamos do autor foi original-mente publicado sob o título “Left Bank Group”, na revista Sight and Sound, vol.32, nº1, 1962-1963.

no coletivo de cineastas Left Bank Group e estabeleceu novas práticas para o documentário,

deslocando-o do “docucus” 18 (didatismo documental em que a imagem é mero ilustrativo

do texto), a partir da inventividade sobre as problemáticas teóricas: confrontação de tem-

poralidades e conciliação de heterogeneidades, reflexão sobre as formas de montagem e

composição, exploração da divisão entre real-imaginário, inteligência da imagem e refle-

xões sobre a imagem a partir do comentário.19 O cuidado em jogar com os componentes da

narrativa cinematográfica marca toda a filmografia do diretor de Sem Sol.

É com Cartas da Sibéria (Lettre de Sibérie, 1957) que Marker instaura um divisor dentro do

que vinha sendo feito até então no documentário, demonstrando a capacidade do audiovi-

sual em incluir, na sua linguagem, a inflexão ensaística. O artigo homônimo de André Bazin

sobre o filme se tornou célebre ao abordar a hipótese do ensaio no cinema. Na tentativa de

propor uma definição para a natureza do filme de Marker, Bazin o conceitua como um “en-

saio documentado pelo filme. A palavra importante sendo a do ensaio, entendido no mesmo

sentido que na literatura: um ensaio ao mesmo tempo histórico e político, ainda que escrito

por um poeta”.20 O autor enfatiza o papel que a inteligência —e sua expressão imediata, a

língua— recebe em Cartas da Sibéria ao inverterem a tradicional construção de sentido de

plano a plano, em prol de uma montagem que vai do comentário à imagem ou “da orelha

ao olho”.21 Resgatamos também os dizeres de Richard Roud,22 para quem o diretor escreve

um filme como se escreve um livro:

O mais notável aspecto dos filmes-ensaio de Marker é que seus fascinantes e enlou-

quecedores comentários extremamente literários não parecem ter precedido a filma-

gem e nem se seguido a ela. A imagem, o texto e a ideia parecem milagrosamente

criados simultaneamente.

Os autores sublinham o lirismo e a importância que a palavra (através da voz over) tem ao

estabelecer novas articulações com a imagem, extrapolando seu papel usual de reforçar o

que é visto. Estabelece-se uma nova ordem na qual o comentário dialoga com a imagem,

podendo concordar, desmentir ou complementá-la. Averiguamos nos filmes de Marker uma

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concepção da imagem que recusa o estatuto indicial e indubitável, provindo da relação di-

reta que a imagem captada pela câmera tem com o mundo real. Em Cartas da Sibéria como

em Sem Sol, Nível cinco (Level Five, 1997) e outros filmes do diretor, a imagem é, antes de

tudo, fonte de enunciados, discurso, e não um documento objetivo e imparcial. Já aqui en-

contramos o que Adorno entende pela tendência do ensaio em se rebelar contra o purismo

científico e sua arrogância por apreender a realidade objetivamente.23 Trata-se não da perda

do valor documental da imagem, mas, antes, de lembrar que a imparcialidade é uma ilu-

são.24 Há uma correspondência com o que Jost pondera sobre todo plano cinematográfico

conter, virtualmente, uma pluralidade de enunciados narrativos que se sobrepõem.25

A sequência inicial de Sem Sol mostra três crianças de mãos dadas caminhando em uma en-

costa, na islândia. O plano isolado pode remeter ao espectador uma série de significados. A

narração, porém, sobrepõe à imagem uma camada de significação: “A primeira imagem de

que ele me falou foi a de três crianças em uma estrada, na islândia, em 1965. Ele disse que,

para ele [grifo nosso], era a imagem da felicidade.” A fala não reduz a imagem a um sentido

único, não se constitui como uma verdade, mas se mostra relativa a um olhar.

O apuramento dos comentários em voz over nos filmes de Chris Marker traz à tona a influ-

ência do meio literário. As primeiras manifestações do diretor no meio cultural francês se de-

ram em periódicos culturais e políticos (como o jornal L´Esprit), nos quais publicou poesias,

contos, críticas de filmes e livros, e ensaios sobre literatura e política. Também é autor do

romance Le coeur net (1949), que anunciou um procedimento de montagem frequente em

seus filmes: a ubiqüidade.26 Verificamo-la em Sem Sol quando o diretor aproxima imagens

feitas na África, Japão, islândia, Île-de-France e Estados Unidos, como se se fizesse presente

em todos os lugares ao mesmo tempo.

A eloquência característica da voz over pode levar a crer em uma seriedade exacerbada. isso

de fato aconteceria se Marker não aliasse, como faz, o lirismo verbal a um senso de humor

crítico e provocador. Os comentários de seus filmes estão mais próximos de impressões,

interpretações livres sobre o que chama a atenção do realizador: desde a banalidade (como

ressalta em Sem Sol) até as grandes questões, como a memória e a história. Existe no co-

23 Theodor W. Adorno, “O ensaio como forma”.24 André Bazin, “Lettre de Sibérie“.25 André Gaudreault et François Jost. A narrativa cinematográfica (Brasília: Editora UNB, 2009).26 Guy Gauthier, Chris Marker, écrivain multimédia ou Voyage à travers les médias (Paris: L’Harmattan, 2001).

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mentário markeriano um tom de despojamento típico do ensaio no que tange a renunciar às

ideias conclusivas para adotar uma postura reflexiva que se constrói por meio de conexões

que não distinguem entre o saber fruto do conhecimento científico e o saber afetivo, fincado

na experiência.

O que permite a Marker trafegar sobre as várias formas de conhecimento e, ainda assim,

assumir uma postura de proximidade com o espectador, como quem compartilha algo pre-

cioso, é a estrutura epistolar adotada em parte de sua filmografia, a exemplo de: Cartas da

Sibéria, o mistério Koumiko (Le mystère Koumiko, 1965), Sem Sol e o túmulo de Alexandre

(Le tombeau d’Alexandre, 1993). Os filmes são constituídos como se fossem correspon-

dências endereças ao espectador ou a alguém da própria diegese. A carta como parte da

estrutura fílmica permite o enfoque do “eu” e remete diretamente a um gênero referente à

literatura de viagem. “Eu te escrevo de um país distante”, frase que inicia Cartas da Sibéria,

foi uma das grandes contribuições de Marker para a história do cinema moderno. O diretor

reformulou “a enunciação tradicional do documentário, supostamente neutra e objetiva,

assumindo o discurso da primeira pessoa e a subjetividade do olhar – reivindicações clássi-

cas do ensaísmo”.27 Daquele momento em diante, continuou partidário à explicitação das

marcas subjetivas.

O modo de reflexão perpassado pela pessoalidade do autor vem desde Montaigne. O escri-

tor francês afirmava que a matéria de seus Essais constituía-se de si próprio. Acrescentava a

isso sua ideia de que “a abertura para o mundo vai de par com a abertura para si mesmo”.28

O “eu” é uma porta de entrada para pensar o que nos rodeia. Ancorar uma reflexão na voz

pessoal é mais um modo de se dirigir ao outro. Chris Marker não foi o único a fazer valer

a idéia de uma biografia do mundo que se desenvolve, inicialmente, a partir do sujeito.

Outros cineastas contribuíram para o desenvolvimento dessa forma de escrita audiovisual:

Jonas Mekas, David Perlov,29 Agnès Varda, Jean-Luc Godard, entre outros. Apesar das fases

que cada um atravessou ou vem atravessando, suas obras, em algum momento, colaboraram

para um cinema que pensa o mundo pelo crivo da subjetividade do autor. As maneiras são as

mais diversas possíveis: podemos pensar nos diários fílmicos de Mekas e Perlov; na aparição

física do diretor, como Godard em Longe do Vietnã (Loin du Viêt-nam, 1967) ou Varda em os

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27 Arnauld Lambert, Also known as Chris Marker, 63 [No original: ‘‘(...) l’énnonciation traditionnelle du documentaire, supposée neutre et objective, en assumant le discours à ça première personne et la subjectivité du regard – revendications classiques de l’essayiste.’’ (tradução nossa)].28 Montaigne citado em Marília Rocha de Siqueira, “O ensaio e as travessias”.29 O realizador foi tema da mostra “David Perlov: Epifanias do Cotidiano”, realizada no Brasil em 2011. O título faz alusão a um traço que lhe característico: o dia-a-dia, o cotidiano como princípio do seu cinema.

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catadores e a catadora (Les glaneurs et la glaneuse, 2000); nas cartas de Marker; entre uma

série de outros exemplos.

Em Sem Sol, as missivas são enviadas pelo personagem e alter-ego de Marker, Sandor Krasna,

para a narradora que as lê e as comenta durante toda a projeção. Temos um cruzamento da pri-

meira com a terceira pessoa do singular. O diretor cria uma estrutura que joga com as formas

de enunciação que se convencionou utilizar no meio documental: à subjetividade oriunda da

forma epistolar, acrescenta personagens e, a partir deles, cria associações que potencializam

a voz over. Os comentários da narradora criam novos sentidos para o que Sandor Krasna lhe

escreve. Está-se bem distante da narração off que o documentário vinha adotando, cujo papel

se restringia a comentar e dar um sentido às imagens. Aqui, temos a enunciação provinda das

cartas de Sandor Krasna, os comentários que a narradora faz sobre as missivas, e a relação que

estas duas camadas de significação estabelecem com a imagem, a montagem e o som. Os

elementos narrativos não funcionam como meros adornos do que se vê, atuam, antes, como

instâncias narrativas. Aos nove minutos do filme, a narração diz:

Ele me falou sobre Sei Shônagon, dama de honra da princesa Sadako, no século 11,

no período de Heian. Sabe-se lá onde se faz a História! Os governantes governaram,

afrontavam-se em estratégias complicadas. Mas o poder pertencia a uma família de

regentes hereditários. Na corte do imperador, apenas intrigas e diversão. E esse pe-

queno grupo de ociosos deixou na sensibilidade japonesa um traço mais marcante

do que todas as imprecações da classe política, levando a tirar da contemplação das

menores coisas um tipo de reconforto melancólico. Shônagon tinha mania de listas:

lista das coisas elegantes, das coisas tristes ou das coisas que não valia a pena fazer.

Fez, até, a lista das coisas que fazem bater o coração. Não é um mau critério, eu

percebi isso ao filmar.

Enquanto a voz menciona Shônagon e os governantes do período Heian, as imagens mos-

tram o foguete Polaris emergindo do mar e percorrendo uma longa trajetória em direção

ao céu, até perder-se de vista. A este, sucedem-se planos de aviões no céu. A imagem não

ilustra o texto ou vice-versa. As duas instâncias narrativas (imagem e voz) fazem parte de

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uma rede de conexões balizada, entre outros, pela montagem. São como pontos a serem

atados a outros momentos do filme, gerando redes de significação que se entrecruzam. A

lenda sobre Shônagon, por exemplo, é verbalmente aludida neste trecho que citamos, mas

implicitamente percorre toda a duração de Sem Sol, onde Marker filma as “coisas que fazem

bater o coração”.

A relação dialética não se dá apenas entre palavra e imagem. O som de Sem Sol é minori-

tariamente direto, sendo substituído por ruídos, sons e músicas geralmente sintetizados. O

mesmo procedimento acontece em o fundo do ar é vermelho (Le fond de l’air est rouge,

1977). A música sintetizada distancia e abstrai nos trechos sem som original e onde a voz

over se pronuncia. Em outras sequências, reforça —isoladamente ou misturada com o som

original— o que se passa na imagem.30 A tensão entre som e imagem potencializa o papel

do primeiro como uma das instâncias narrativas, pois é utilizado como um discurso, e não

só com a finalidade de intensificar o caráter “real” da imagem por meio do som concernente

ao momento em que a imagem-câmera foi captada.

À inteligência que Bazin exortou como matéria-prima do cinema markeriano, devemos aliar

a liberdade.31 É ela quem permite a construção de uma relação dialética entre palavra, tri-

lha musical, som e imagem, além da outras articulações narrativas presentes em Sem Sol e

outros filmes do diretor. A liberdade é presente, sobretudo, no trabalho com os elementos

que compõem o código audiovisual. As experimentações que burilam as construções de

significação dentro do cinema nos remetem à inquietação dos ensaístas da literatura em

trabalhar em cima da própria linguagem verbal, assumindo uma dimensão metalinguística.

Semelhantes àqueles escritores, Chris Marker faz de seu filme um campo de reflexão sobre

o objeto que explora e simultaneamente sobre a forma, o código de linguagem que utiliza

para se expressar.

Mas a estrutura adotada por Sem Sol revela muito mais que o desejo de seu realizador em

usar a arte para falar da própria arte. A adesão ao ensaio como um modo de construção

audiovisual se concatena aos temas que constituem os objetos de reflexão do diretor: ima-

gem, história e memória. Diante da extensão que temos neste artigo, optaremos pelo último

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30 Ursula Langmann, “O manual de história atualizado” in o bestiário de Chris Marker, ed. António Lojas Neves (Lisboa: Livros Horizontes, 1986). 31 André Bazin, “Lettre de Sibérie“.

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elemento. investigaremos o ensaio enquanto expressão que permite ao cinema explorar a

estrutura mnemônica.

Sem Sol: movimento e ficção da memória

As cartas enviadas por Sandor Krasna à narradora são como diários em que o cinegrafista

fictício comenta as imagens que gravou ao redor do mundo. As alusões à memória são fre-

qüentes nas correspondências, onde o personagem reflete sobre a tensão permanente entre

suas lembranças e as imagens que gravou. Escreve em uma das missivas: “Eu passaria a

vida a indagar sobre a função da lembrança, que não é o oposto do esquecimento, mas seu

avesso. Nós não lembramos, recriamos a memória, como recriamos a história.” Este excerto

se conecta a outros momentos em que a narradora ou o próprio Sandor comentam a fixação

deste sobre o ato de rememorar. O texto não é o único a se deter no tema. A montagem do

filme carrega em sua articulação uma estrutura que remete à capacidade do aparelho mne-

mônico ou do imaginário de conectar espaços, tempos e documentos heterogêneos.

A montagem de imagens em Sem Sol abdica o modelo linear. O avanço do filme não obe-

dece a uma lógica cronológica dos acontecimentos. O primeiro plano, o das crianças que

caminham em uma estrada da islândia, é sucedido pelo de um avião de guerra e posterior-

mente por sequências feitas em uma embarcação que parte de Hokkaido, ilha no norte do

Japão. Seguem-se imagens de trens em Tóquio, de uma ema na África, do rosto de uma

moradora da ilha de Bijagos e de um templo de gatos novamente em Tóquio. O curto trecho

sobre a capital do Japão será sucedido pelo de um vulcão que se esconde entre as nuvens,

das ondas do mar, de cachorros correndo pela praia, de imagens aéreas, até chegar a uma

cabo-verdiana que olha para a câmera. Esse movimento de ir e vir por espaços e tempos é

permanente em Sem Sol.

A estrutura alude à liberdade da consciência reflexiva, entrando em simbiose com o que

Alexander Astruc escreve sobre os filmes como meio capaz de expressar pensamentos,

por mais abstratos que sejam, ou traduzir obsessões exatamente como fazem os ensaios

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ou romances.32 Baseando-se nessa influência literária, o autor optou por denominar essa

fase do cinema como a era da câmera-caneta (caméra-stylo). Os realizadores que fazem

uso deste recurso para escrever sobre os significados do mundo aderem a um modelo de

expressão tão flexível e sutil como a linguagem escrita. Para Astruc, o cinema se tornou o

meio ideal para as meditações filosóficas que versam sobre psicologia, ideias, paixões e

metafísica. Posiciona-se a favor de uma forma de cinema que não utiliza métodos conven-

cionais para refletir sobre seu objeto, não recorrendo a associações pesadas e tradicionais

de imagens: “com o objetivo de sugerir a passagem de tempo, não há necessidade de mos-

trar folhas caindo e pés de maçã dando frutos”.33 O cinema deixa de ilustrar uma reflexão

com imagens para estabelecer o processo de reflexão nas próprias imagens, pensar por

meio delas.34 É dessa maneira que o filme pode se tornar equivalente (em profundidade e

significado) a obras como as de Sartre e de Camus, como desejava Astruc.35

A montagem não linear é um meio que Marker utiliza para representar as construções do cons-

ciente/inconsciente através da estrutura audiovisual. Sua câmera-caneta escreve sobre e por

meio (metaforicamente) da memória. A relação que Catalá faz entre o filme-ensaio e dispositi-

vos da idade Média relacionados à Arte da Memória é um ponto de partida para compreender-

mos o processo de construção de Sem Sol.36 O autor cita a pesquisadora Mary Carruthers para

mencionar a prática de meditação monástica composta por imagens mentais, um dispositivo

de reflexão baseado na memória, que é convertida em técnica (ou arte) com a capacidade não

só de reproduzir algo. A memória atua como matriz de um exercício reminiscente que emba-

ralha e justapõe elementos armazenados em um esquema mnemônico cujo acesso é aleatório,

funciona como uma biblioteca de imagens mentais erguida, ao longo da vida, com a intenção

expressa de ser usada inventivamente.

Catalá recobra a meditação monástica a fim de tentar compreender sua possível similaridade

com o filme-ensaio no que concerne ao trabalho que ambos efetuam com o intuito de pro-

cessar experiências e transformá-las em novas experiências.37 Os monges medievais realiza-

vam, através da memória, uma reflexão em que o pensamento era moldado a partir de uma

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32 Alexander Astruc, “The birth of new avant-garde: la caméra-stylo”.33 No original: “in order to suggest the passing of time, there is no need to show falling leaves and the apple trees in blossom.” (Tradução nossa), Alexander Astruc, “The birth of new avant-garde: la caméra-stylo”.34 Josep M. Catalá, “Film-ensayo y vanguardia” in Josetxo Cerdán e Casimiro Torreiro, Documental y vanguardia (Madrid: Cátedra, 2005).35 Alexander Astruc, “The birth of new avant-garde: la caméra-stylo”36 Josep M. Catalá, “Film-ensayo y vanguardia”.37 Josep M. Catalá, “Film-ensayo y vanguardia”.

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prática de gestão mental das imagens mnemônicas. Com o cinema de inflexão ensaística,

o que antes era um processo mental “se converteu em um trabalho material: a memória foi

objetivada em imagem e o cineasta pode manipulá-la através de uma hermenêutica basica-

mente visual”.38 É no mesmo sentido que o cinegrafista Sandor Krasna percebe a questão.

Em uma das cartas, escreve que não entende como o homem fazia para recordar antes do

advento da fotografia e do vídeo. Chega a afirmar que suas memórias se confundem com

suas imagens.

Chris Marker encena o funcionamento da estrutura mnemônica em Sem Sol. O anacronis-

mo da montagem condensa tempos, espaços e imagens heterogêneas. O encadeamento

não é feito à toa. Os planos são entrelaçados a partir de uma lógica subjetiva e não pela

continuidade convencional. Ao invés do tradicional raccord, que liga os planos a partir de

uma relação de continuidade de movimento ou através da lógica do olhar, utiliza-se o que

Barbara Lemaître denomina de “raccord de souvenir” (raccord da lembrança), que permite:

(...) transpor a distância entre dois motivos, duas imagens, dois tempos, dois espaços,

dois pontos de vista ou ainda dois acontecimentos em princípio distantes ou desco-

nectados radicalmente. Ele pode ser induzido por um comentário ou um parentesco

visual, e é mais ou menos explícito. Assim, qualquer coisa em um rosto japonês, um

olhar particular, pode evocar, chamar ou lembrar outro olhar que aparece sobre um

rosto africano. (...) O raccord da lembrança descobre o imaginário não apenas como

possibilidade para o indivíduo ser visto como interlocutor, mas como instrumento de

ligação de elementos heterogêneos.39

O filme pode ser pensado como uma encenação da memória de Sandor Krasna a partir

do vídeo. A montagem das imagens demonstra o que Adorno abordava sobre as cone-

xões transversais que o ensaio permite estabelecer entre os elementos.40 A função poética

mencionada por Jakobson é uma pista para a compreensão dos modos de arranjos das

imagens-lembranças.41 O eixo de seleção dos planos por critérios de equivalência (se-

38 Josep M. Catalá, “Film-ensayo y vanguardia”. 39 Barbara Lemaître, “Sans soleil, le travail de l’imaginaire“ in Théoreme, nº 6 (Recherches sur Chris Marker), (Paris: Sorbonne Nouvelle) [No original: “(...) franchir l’écart entre deux motifs, deux images, deux temps, deux espaces, deux points de vue ou encore deux événements, en principe éloignés ou déconnectés radicalement. il peut être induit par un commentaire ou une parenté visuelle et il est plus ou moins explicite. Ainsi, qulque chose dans un visage japonais, un regard particulier, peut évoquer, appeler ou rappeler un autre regard, apparu sur un visage africain. (...) Le raccord de souvenir découvre l’imaginaire, non plus seulement comme possibilité pour individu de se prendre comme interlocuteur, mais comme intrsument de liaison d’éléments hétérogènes”. (tradução nossa)].40 Theodor W. Adorno, “O ensaio como forma”.41 Roman Jakobson, Linguística e comunicação.

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melhança e dessemelhança, sinonímia e antonímia) passa a contribuir para a construção

da sequência, para a montagem. A equivalência dos planos se dá por meio das relações

subjetivas encontradas nas imagens e fincadas na memória do diretor, representado pelo

personagem Sandor Krasna. Aos 28 minutos uma cerimônia em Tóquio é justaposta a uma

festa ou ritual na África. Quando monges japoneses jogam um objeto semelhante a uma hóstia

no chão, o plano que o sucede mostra confetes caindo na cabeça de crianças africanas.

Opera-se a sutura entre dois elementos inicialmente distantes, mas que encontram sua

equivalência a partir do trabalho da reminiscência, no qual uma imagem leva a outra a

partir de um laço tecido pelo imaginário.

É apropriado pensarmos na definição de Jacques Rancière sobre a ficção da memória.42 Fic-

ção não no sentido de histórias inventadas ou mentiras que se opõem à realidade. O filósofo

emprega a palavra em sua referência com o termo do qual deriva: fingere, cujo significado

não é fingir, mas forjar. A ficção é pensada por Rancière como a arte de construir um sistema

de ações representadas, relacionando formas e signos coerentes. O que Marker faz em Sem

Sol seria justamente essa criação de um sistema de signos que forja, encena os mecanismos

de associação da memória a partir da liberdade que a estrutura ensaística permite no que diz

respeito à sistematização do conteúdo e à construção de significações transversais.

A inventividade e o gosto por redescobrir as formas de expressão —seja no cinema seja

em obras multimídias— conduzem Chris Marker a um estado de criação que encontra

no ensaio a forma ideal para escrever e registrar o encontro do seu “eu” com o mundo.43

Sem Sol ocupa em sua obra um ponto essencial neste aspecto, pois a bricolagem com os

elementos audiovisuais se faz presente em diversas camadas da linguagem cinematográfi-

ca: nos comentários elaborados, na criação de personagens, nos significados oriundos da

tensão entre palavra, som e imagem, na subjetividade provinda da narrativa epistolar, na

montagem, entre outras instâncias. Dialoga-se com a tradição que vinha sendo adotada

até o momento pelo documentário e pela ficção a fim de se explorar novos terrenos. O

código transcende seu uso habitual de repertório linguístico para se tornar parte do desen-

volvimento de uma reflexão, de um pensar que se projeta sobre o cinema e o movimento

inconstante da memória.

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42 Jacques Rancière, “Documentary fiction: Marker and the Fiction of Memory” in Film fables trad. Emiliano Battista (Oxford: Berg Publishers, 2006).43 Lembramos que o realizador transita pela literatura, instalações artísticas, fotografia, etc.

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Filmografia referida

Le fond de l’air est rouge (O fundo do ar é vermelho, Chris Marker, 1977, França).

Le mystère Koumiko (O mistério Koumiko, Chris Marker, 1965).

Le tombeau d’Alexandre (O túmulo de Alexandre, Chris Marker,1993, França).

Les glaneurs et la glaneuse (Os catadores e a catadora, Agnès Varda, 2000, França).

Lettre de Sibérie (Cartas da Sibéria, Chris Marker, 1957, França) .

Level five (Nível cinco, Chris Marker, 1997, França).

Loin du Viêt-nam (Longe do Vietnã, Alain Resnais, William Klein, Joris ivens, Claude Lelouch, Chris

Marker, Jean-Luc Godard, Agnès Varda, etc., 1968, França).

Sans Soleil (Sem Sol, Chris Marker, 1982, França).

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Artículo recibido 30 de enero de 2012 y aprobado el 26 de mayo de 2012