o custo de informação como obstáculo à cidadania consciente

3
O CUSTO DE INFORMAÇÃO COMO OBSTÁCULO À CIDADANIA CONSCIENTE (Frederico Franco Alvim) “Como quem ante si vê de repente Maravilhas: que crê e duvida, E diz: Isto é... não é... ” (A Divina Comédia, Purgatório, VII, 12) Na noite de 30 de outubro de 1938, marcianos invadiram a Terra. Pousaram a espaçonave em uma fazenda de New Jersey e saíram, armados com lasers e determinados a findar a existência humana. A notícia veio pela rádio; era mentirosa. Tudo não passou de um experimento, de uma brincadeira idealizada por Orson Welles: inseriu-se, no noticiário da CBS, um relato adaptado do romance The War of Worlds, de H.G. Wells. Conquanto insólito, o informe foi crido e gerou confusão: fugas, pânico, internações. Em perspectiva anacrônica, o episódio parece absurdo, mas não é. Em qualquer sociedade expandida, informações de interesse coletivo relacionam-se com eventos ocorridos longe da vista de seus membros. O processo de comunicação, portanto, depende da obtenção de dados que chegam de fontes externas e que, isoladamente, estão isentos de rigoroso controle. Desde que minimamente críveis (pelo teor ou pela fonte), todas as ideias podem ser compradas. Eis o problema. A questão é que a comunicação tem cariz oblíquo: surge de representações. Não revela retratos insuspeitos de episódios simples, mas versões, interpretações particulares de feitos complexos, estando fatalmente sujeitas a variáveis condutoras de erro. O processo comunicativo não é absolutamente fiável porque não é – e não pode ser - unívoco e neutro. O segredo da Verdade – disse João Ubaldo – está em que “não existem fatos, só existem histórias”. Inverte-se, assim, o conto alienígena: sujeitos de verdade, somos desembarcados em pseudoambientes. Entretanto, a vida política orbita a informação. A ela se prendem todas as formas de expressão cidadã. O adequado exercício das faculdades políticas não subsiste sem amparo informativo: depende-se dele para que se filie, para que se vote, para que se cobre. E para que se pense (adequadamente). O banquete político serve-se em mesa de vasto cardápio, num café em que os maîtres são todos suspeitos.

Upload: abradep

Post on 15-Feb-2017

336 views

Category:

Education


0 download

TRANSCRIPT

O CUSTO DE INFORMAÇÃO COMO OBSTÁCULO À CIDADANIA CONSCIENTE

(Frederico Franco Alvim)

“Como quem ante si vê de repente Maravilhas: que crê e duvida, E diz: Isto é... não é... ” (A Divina Comédia, Purgatório, VII, 12)

Na noite de 30 de outubro de 1938, marcianos invadiram a Terra. Pousaram a

espaçonave em uma fazenda de New Jersey e saíram, armados com lasers e

determinados a findar a existência humana. A notícia veio pela rádio; era mentirosa.

Tudo não passou de um experimento, de uma brincadeira idealizada por Orson

Welles: inseriu-se, no noticiário da CBS, um relato adaptado do romance The War of

Worlds, de H.G. Wells. Conquanto insólito, o informe foi crido e gerou confusão:

fugas, pânico, internações.

Em perspectiva anacrônica, o episódio parece absurdo, mas não é. Em

qualquer sociedade expandida, informações de interesse coletivo relacionam-se com

eventos ocorridos longe da vista de seus membros. O processo de comunicação,

portanto, depende da obtenção de dados que chegam de fontes externas e que,

isoladamente, estão isentos de rigoroso controle. Desde que minimamente críveis

(pelo teor ou pela fonte), todas as ideias podem ser compradas. Eis o problema.

A questão é que a comunicação tem cariz oblíquo: surge de representações.

Não revela retratos insuspeitos de episódios simples, mas versões, interpretações

particulares de feitos complexos, estando fatalmente sujeitas a variáveis condutoras

de erro. O processo comunicativo não é absolutamente fiável porque não é – e não

pode ser - unívoco e neutro. O segredo da Verdade – disse João Ubaldo – está em que

“não existem fatos, só existem histórias”. Inverte-se, assim, o conto alienígena:

sujeitos de verdade, somos desembarcados em pseudoambientes.

Entretanto, a vida política orbita a informação. A ela se prendem todas as

formas de expressão cidadã. O adequado exercício das faculdades políticas não

subsiste sem amparo informativo: depende-se dele para que se filie, para que se

vote, para que se cobre. E para que se pense (adequadamente). O banquete político

serve-se em mesa de vasto cardápio, num café em que os maîtres são todos

suspeitos.

Pouco frequentes a verdade e a isenção, então, como é que se escolhe? Pondo

em marcha a pesada engrenagem crítica, com suas polias eternamente travadas por

dúvidas, hesitações e questionamentos. Exercitando, continuamente, a ponderação. 1

Em matéria política, informação adequada não é sinônimo de verdadeira. Por

razões econômicas e ideológicas, a mídia mente. Por razões puras (vide Weber) e

impuras, políticos mentem. E por razões humanas, nada mais que humanas, cidadãos

comuns absorvem mentiras que repassam como verdades. Medra a manipulação. Diz-

se que furiosos homenzinhos verdes se aproximam e... Houston, we have a problem.

Contam-se de políticos horrores e maravilhas e temos então anjos caídos e atos

expressos de canonização. Adequada, de fato, é a informação plural; informação

que, claro, expurgue inverdades, mas que, mais do que isso, abra-se a diferentes

pontos de vista. Informar corretamente é transmitir a receptores elementos

suficientes para que formulem seus próprios juízos.

Para B. Manin, o dilema da democracia reside no custo da informação política.

Um dos maiores problemas enfrentados pelo cidadão é a desproporção entre o

esforço necessário para obter informações adequadas e o peso da influência que ele

espera exercer sobre o resultado das eleições. De fato, um voto qualificado por

muitas e muitas horas de leitura e pesquisa não vale mais do que escolhas derivadas

de ações irrefletidas. Contudo, em sistemas de vivência coletiva a ação das partes é

que transforma o todo. Para o bem, como para o mal, esforços individuais

mimetizam-se por interações sociais; o exemplo difunde-se em rede. É necessário,

portanto, aprender a pensar, para então difundir. Divulgar a ideia de que refletir é

preciso, porque mudar é preciso. Esparzir a verdade de que o processo comunicativo 2

omite planos de captura, mas que, pela reflexão, é sempre possível escapar. Ao fim e

ao cabo, como disse Antonio Marina, nós é que escolhemos o idioma em que vão nos

convencer.

“O questionamento é uma prática, mas é também uma qualidade do conhecimento. É a 1

virtude do conhecimento. É essa virtude que nos faz perguntar sobre o que pensamos e assim nos permite sair do nível dogmático para o nível reflexivo de pensamento. Essa passagem da ideia pronta que recebemos da religião, do senso comum, dos meios de comunicação, para o questionamento é o segredo da inteligência humana, seja ela cognitiva, moral ou política”.(M. Tiburi)

“A publicidade é essencial à mercadoria. Vejamo-lo por meio de Marx. Que sistema de 2

produção se esconde por trás de uma publicidade de Yves Saint-Lauren? Que contrato de trabalho, que salário, que mais-valia há por trás da esplêndida imagem de Charlize Theron caminhando até a câmera despojando-se de suas joias até ficar semidesnuda, porque a única coisa que lhe importa é levar em cima seu perfume YSL? E se por trás da calcinha e do soutien que exibe Araceli em seus inebriantes cartazes de rua exista um lugar onde se realiza trabalho escravo? Sabendo-o, veríamos a propaganda da mesma maneira na próxima vez?” (J. P. Feinmann)