o curso de pedagogia da uern: espaÇo-tempo de …uece.br/endipe2014/ebooks/livro2/o curso...
TRANSCRIPT
O CURSO DE PEDAGOGIA DA UERN: ESPAÇO-TEMPO DE
PRODUÇÃO CURRICULAR
Meyre-Ester Barbosa de Oliveira (UERN/UERJ)1
RESUMO
Este trabalho amplia discussões anteriores sobre a produção de sentidos para as
políticas curriculares de formação de professores no contexto da prática. Assenta-se na
compreensão do currículo como espaço fronteiriço de enunciação cultural (MACEDO,
2006; FRANGELLA, 2009) e como um discurso que constrói sentidos (LOPES e
MACEDO, 2011). Em interlocução com autores pós-estruturais como Stephen Ball e
Ernesto Laclau e autores pós-coloniais como Bhabha tenho buscado compreender as
articulações entre currículo, política e cultura, a partir do enfoque discursivo. No
presente estudo focalizo um espaço-tempo específico de produção curricular – a
Faculdade de Educação do Campus Central da Universidade do Estado do Rio Grande
do Norte/UERN – tomado como locus produtivo de micropolíticas, traduzidas,
negociadas na e pela diferença. Parto do entendimento do Projeto Pedagógico do Curso
de Pedagogia como tentativa de representação da política para a formação do pedagogo,
na medida em que institui sentidos e projeta identidades. Entendo-o também como um
texto curricular híbrido, permeado por ambiguidades que o constituem como discurso
político, cujo fechamento da significação é sempre adiado. Com base no pressuposto de
que é no contexto da prática que as interpretações dos textos implicam disputas por
significação, me proponho a analisar a constituição discursiva sobre a formação do
pedagogo na UERN, identificando os significantes que assumem maior importância na
mudança curricular pretendida.
Palavras-chave: Política curricular. Curso de Pedagogia. Discurso.
Introdução
Quem constrói a casa não é quem a ergue mas quem nela mora.
Mia Couto
Com o presente trabalho pretendo analisar o discurso de professores do Curso de
Pedagogia da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio Grande do
Norte – FE/UERN sobre a reformulação curricular, na perspectiva de conhecer que
sentidos são atribuídos à formação no contexto da prática, identificando os significantes
que assumem maior importância. Desse modo, busco compreender no processo de
produção cíclica da política curricular a micropolítica institucional, as produções de
sentidos, enfim, as traduções para as políticas de formação de professores.
Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores
EdUECE- Livro 204447
2
Cumpre esclarecer que não é propósito deste trabalho apresentar uma análise da
proposta curricular do curso, na medida em que já foi objeto de outro estudo2, também
não busco avaliar a coerência entre proposta/implementação, visto que não compreendo
a produção curricular a partir desse binário. Ao conceber o currículo como espaço
enunciativo, prática de significação, estou assumindo que não é algo dado a priori, nem
tampouco se esgota na formulação de um documento, ou mesmo na prática docente,
mas constitui o conjunto de discursos que estabelece sentidos, sempre contingentes,
num movimento contínuo de construção/desconstrução. Nessa perspectiva, meu
interesse aqui é focalizar no discurso de professores do curso de Pedagogia as
leituras/sentidos para a formação do Pedagogo, tomando como referência o novo
currículo. Parte-se do pressuposto de que os sentidos das práticas já existentes no curso
de Pedagogia foram incorporados ao Projeto Pedagógico, hibridizando-se aos sentidos
propostos pelas Diretrizes Curriculares e às orientações institucionais.
Na perspectiva de responder a essas questões iniciais o texto está estruturado em
três partes. Na primeira, apresento de forma sumária os pressupostos teóricos que
embasam o presente estudo, entre os quais a concepção de política e de currículo,
problematizando as possiblidades de produção de políticas curriculares no contexto da
prática; a segunda parte compreende um breve esboço do processo de reformulação
curricular no curso de Pedagogia, buscando identificar as tensões, negociações e
articulações na hegemonização de determinados sentidos, e na terceira, meu interesse se
volta para a micropolítica institucional, com o intuito de compreender o discurso sobre a
formação do pedagogo na UERN, identificando os significantes que assumem maior
importância na mudança curricular pretendida. Entendo que esses sentidos são
produzidos de forma contingente e precária num fluxo contínuo de negociação e que,
portanto, estão sempre em disputa.
A política como um ciclo: articulações entre os contextos
O rompimento que Stephen Ball (2006; BALL e colaboradores 1998; 2011)
estabelece com a noção do contexto da prática como o de implementação das políticas,
subverte a lógica de polarização entre proposta/implementação e abre possibilidades
para pensar o poder como algo produtivo e inerente às relações sociais. Ao assumir a
ideia de que políticas não são simplesmente implementadas, mas resultam de processos
mais complexos, envolvendo negociações, traduções e disputas de sentidos, Ball
Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores
EdUECE- Livro 204448
3
problematiza a leitura de base estrutural e operando com enfoques pós-estruturais traz à
tona a discussão da descentralização da lógica de poder. A partir do diálogo que
estabelece com o trabalho de Foucault confere uma atenção especial à categoria poder,
concebendo-o como algo capilarizado, do que decorre uma leitura da prática para além
da lógica de dominação, reprodução e resistência.
Tudo isso conduz ao entendimento da prática como potência de participação na
constituição das políticas, que são produzidas por processos de tradução/negociação em
múltiplos contextos e por diferentes sujeitos, na tensão permanente entre o global e o
local. Nos microespaços as políticas são traduzidas, negociadas e tornam-se terreno da
diferença, o que possibilita a produção de outros sentidos, outras leituras, gestadas numa
pluralidade agonística.
Tendo em conta que os processos de significação são sempre provisórios, pode-
se pensar a política como disputa pela significação e enquanto prática de significação a
política situa-se no âmbito da cultura. Concordo com Burity quando este advoga a
indissociabilidade entre as práticas culturais e a política. De acordo com o autor “a
natureza deste vínculo aponta para a forma como os processos culturais se estruturam, e
os atos de constituição política do social se delineiam por meio de conteúdos e
processos culturais” (2010, p.18). Em relação a essa articulação Lopes e Macedo
esclarecem que “se a cultura é compreendida como processo de significação e a política
como as disputas contingentes pelo poder de hegemonizar determinadas significações, a
separação entre política e cultura não se sustenta” (2009, p.06). Para as autoras as lutas
por significação são ao mesmo tempo política e cultural.
A concepção de signo como espaço de disputa em torno do sentido/significado
implica negociação/articulação nas interações entre os sujeitos, evidenciando a natureza
dinâmica e dialógica da linguagem como espaço formativo, no qual “o embate gerado,
as negociações enfrentadas são processos produtivos que reconstroem continuamente a
linguagem e os sujeitos” (FRANGELLA, 2009, p.07). A autora se apoia em Bakthin
para afirmar que a construção dos enunciados ocorre nas redes coletivas de significação,
o que reforça o argumento dos nexos entre política e cultura. Penso que tanto a política
quanto a cultura, enquanto práticas de significação podem ser encaradas como
fechamento provisório, estancamento de fluxo e processo contínuo.
Nesses termos, a cultura como prática de significação nega o caráter apriorístico
que essencializa e determina sentidos, reconfigurando o local da cultura como espaço
ambivalente e fronteiriço, inscrevendo-a como produção híbrida e inacabada
Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores
EdUECE- Livro 204449
4
(BHABHA, 2001). Essa visão rasura a ideia de uma cultura universal, que ao perder o
sentido de repertório comum partilhado passa a ser percebida como produção
discursiva, enunciação.
O reconhecimento da realidade como construção discursiva não nega a
materialidade do objeto, mas resulta entender que não existe uma possibilidade de
interação com o objeto que não seja mediada pelo discurso. De acordo com Laclau
(2003), o termo discurso põe em evidência o fato de que toda configuração social é uma
configuração significativa. O autor rejeita a distinção clássica entre o linguístico e o
extralinguístico, advogando que o discurso é uma totalidade significativa que une e
extrapola ambas as dimensões. Assevera, ainda, que o discurso não se resume a
combinação entre fala e escrita, sendo estas apenas componentes internas das
totalidades discursivas. Não se trata apenas de linguagem, já que o discurso não se
restringe à fala, muito mais do que palavras, procura dar conta de tudo o que há.
Discurso é simultaneamente linguagem e prática, produção de sentidos, de modo que
não há prática sem discurso, não há discurso que não seja uma prática.
Discurso é sempre e já o resultado de uma articulação entre a prática e sua
significação. (LOPES e MACEDO, 2011). Para as autoras “Qualquer discurso é uma
tentativa de dominar o campo da discursividade, fixar o fluxo das diferenças e construir
um centro provisório e contingente na significação” (idem, p. 252). Enquanto o discurso
busca fechar a significação, a discursividade abre possibilidades para o imprevisto. É a
“ambivalência discursiva que torna o político possível” (BHABHA, 2001, p. 50).
A reformulação curricular do curso de Pedagogia na UERN
A proposta pedagógica atual do curso de Pedagogia da Faculdade de Educação
FE/UERN é resultante de um longo percurso de debates, estudos, reflexões e
negociações que envolveram professores, alunos e dirigentes. Vivenciado desde 2002,
esse movimento de reformulação curricular, veio a se intensificar com a aprovação das
Diretrizes Curriculares para o curso de Pedagogia, ganhando maior impulso a partir de
2007 com a adoção de uma metodologia de trabalho que pretendia integrar os
professores das unidades acadêmicas da UERN onde o curso é ofertado, a saber,
Mossoró, Patu, Pau dos Ferros e Açu. Por meio do diálogo com os representantes
destas unidades buscava-se a definição de um perfil comum para o pedagogo a ser
formado na instituição. A intenção era elaborar uma proposta que contemplasse
Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores
EdUECE- Livro 204450
5
“conteúdos de natureza universal”, mas que ao mesmo tempo, resguardasse a identidade
formativa própria às condições e demandas de cada local.
A versão oficial da proposta que passou a vigorar a partir de 2007 amplia a
formação do pedagogo para atuar na docência da educação infantil, anos iniciais do
ensino fundamental, educação de jovens e adultos e na gestão de processos educativos,
em espaços escolares e não escolares. Tal enfoque é justificado no documento como
opção político-pedagógico, que se respalda a partir de duas razões: a primeira refere-se
à demanda social/local por ampliação da formação do pedagogo para além da educação
infantil e anos iniciais e a segunda diz respeito “ao atendimento daquilo que está
convencionado para o campo epistemológico da Pedagogia - conforme a realidade
brasileira - pelas Diretrizes Curriculares Nacionais-DCN.” (PPC, 2012, p. 15).
As discussões em torno da estruturação da proposta curricular tiveram como
ponto de partida a análise das necessidades formativas3, objetivando identificar as
lacunas entre as exigências estabelecidas pelo sistema nacional e a formação oferecida
pela UERN no que se referem às finalidades do curso, princípios formativos, perfil do
aluno e organização curricular. Além da influência das Diretrizes Curriculares
Nacionais, o documento incorporou alguns dos discursos e debates suscitados por
entidades da área, notadamente as produções da Associação Nacional pela Formação de
Profissionais da Educação - ANFOPE e da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-
Graduação em Educação – ANPED, sugerindo as implicações e interconexões entre os
contextos macro e micro na produção das políticas curriculares. Esta observação
permite inferir também, que a proposta resultou numa organização curricular
hibridizada pelas influências dos diferentes contextos de produção.
Nesse sentido, parece produtivo a definição proposta por Macedo (2006) do
currículo como espaço-tempo de fronteira, no qual se entrecruzam diferentes tradições
culturais e em que se pode viver de múltiplas formas, nas quais a opção sempre estará
na nuviosa fronteira em que é necessário negociar. Com base nessa ideia advogo que a
produção curricular na UERN se dá na fronteira - campus central e campi-avançados -
sendo fronteira aqui entendida não como o que delimita, restringe e demarca os limites
geográficos, mas como espaço em que sujeitos distintos interagem, tendo por referência
seus diferentes pertencimentos e essa interação é um processo cultural que ocorre num
lugar-tempo, que é o currículo.
Concordo com a autora quando esta rejeita qualquer distinção entre currículo
formal, oculto e vivido, compreendendo-o como produção cultural cotidiana que
Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores
EdUECE- Livro 204451
6
envolve relações de poder nas dimensões macro e micro. “Em ambos são negociadas
diferenças. De ambos participam sujeitos culturais com seus múltiplos pertencimentos”
(MACEDO, 2006, p.288).
Cumpre dizer que as tensões que marcaram o processo de produção curricular
não foram realçadas no corpo do Projeto Pedagógico, mas diluídas e mesmo,
substituídas por discursos que indicavam posicionamentos consensuais e, portanto, a
fixação de sentidos hegemônicos, tomados como expressão da vontade de todos os
sujeitos envolvidos. Contrapondo-me a ideia de que o currículo possa ser fruto de um
suposto consenso recorro a Cherryholmes para realçar que “A norma do currículo,
portanto, não é o consenso, a estabilidade e o acordo, mas o conflito, a instabilidade o
desacordo, porque o processo é de construção seguida de desconstrução seguida pela
construção” (apud LOPES e MACEDO, 2011, p. 37).
Essa ausência de consenso é corroborada por Ball (2011), para quem a
complexidade das instituições educacionais e do próprio processo de produção
curricular não permite uma determinação absoluta, mas acordos e negociações
provisórias e contingenciais.
Entender o currículo como discurso que tem o poder de significar, criar sentidos
e hegemonizá-los requer, também, considerá-lo um texto político, o qual circunscreve
um repertório de opções em torno do qual se decide o que fazer, ao mesmo tempo em
que define resultados esperados. Todavia, considero que “os leitores são capazes de
produzir múltiplas leituras, limitadas pela esfera discursiva criada pelos textos”.
(OLIVEIRA et all, 2012, p.127). Diante disso interrogo: que leituras/produção de
sentidos são produzidos pelos professores no contexto da prática do curso de
pedagogia? Que significantes são privilegiados nessa formação discursiva?
O PPC do curso de Pedagogia: sentidos para a formação do professor dos anos
iniciais
Ao focalizar a produção curricular no curso de pedagogia do campus central,
estou compreendendo-a como uma prática discursiva, de significação, produção cultural
e não como algo dado. Assim, concordo com Lopes e Macedo quando estas afirmam
que o currículo é “um discurso que constrói sentidos” (2011, p. 203). Assumir o
currículo como prática discursiva implica reconhecê-lo como exercício de poder, na
Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores
EdUECE- Livro 204452
7
medida em que “Ele constrói a realidade, nos governa, constrange nosso
comportamento, projeta nossa identidade, tudo isso produzindo sentidos” (idem, p.41).
Como docente do curso de Pedagogia, tenho observado no contexto da prática,
que a proposta curricular do curso é ressignificada, ganha novos/velhos significados
que, por vezes se distanciam dos sentidos evidenciados no Projeto Pedagógico. Isso
realça a produção curricular como um processo dinâmico e contínuo, portanto,
inacabado, resultante de inúmeras interações, embates, disputas de sentidos,
ressignificações e reorientações, não se encerrando na esfera do proposto. Com efeito,
entendo que no contexto da prática, as interpretações dos textos pressupõem disputas
por significação “já que os autores não podem controlar os sentidos dos seus textos”
(BALL apud OLIVEIRA et all, 2012, p.127).
Para este trabalho tomo como material empírico o Projeto Pedagógico do Curso
de Pedagogia da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio Grande do
Norte – UERN e entrevistas realizadas no âmbito do projeto de pesquisa4 Historiando a
prática pedagógica de professores da Faculdade de Educação da UERN:
Permanências e modificações nas ideias pedagógicas (1995 – 2011), do qual participo
com colaboradora, juntamente com outros professores pesquisadores e alunos da pós-
graduação.
Dada a amplitude do projeto de pesquisa e considerando o propósito do presente
trabalho, selecionei apenas parte da entrevista, focalizando somente as questões que
remetem ao processo de reformulação curricular do curso de Pedagogia, na perspectiva
de compreender como o projeto vem sendo significado pelos professores.
A entrevista semiestruturada foi realizada em 2013, com oito professores
efetivos da Faculdade de Educação que ministram disciplinas nos períodos iniciais,
intermediários e finais. Para o presente estudo optei por trabalhar com apenas sete das
oito entrevistas, adotando como critério para esta seleção o fato de que os demais
professores trabalham na instituição há pelo menos duas décadas, tendo participado de
mais de um processo de reformulação curricular. Considero importante destacar que
duas entre as professoras entrevistadas, se afastaram da UERN para cursarem
doutorado, no período em que ocorreu a discussão e aprovação do PPC, mas considerei
importante a permanência das entrevistas de ambas com o intuito de conhecer como
significam a proposta de formação, da qual não participaram diretamente do processo de
discussão.
Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores
EdUECE- Livro 204453
8
Partindo do entendimento do currículo como prática discursiva e produção de
sentidos, opto também por entender que os discursos dos professores criam um “ser”
para o currículo, constituindo-se também em atos de poder, na medida em que esse
sentido passa a ser partilhado e aceito. Penso, ainda, que não há possibilidade de uma
interpretação e aplicação dos sentidos propostos no PPC, na media em que os sentidos
estão sempre em disputa, o fechamento é provisório e a produção curricular um
movimento contínuo.
O discurso não se restringe, porém, à fala dos sujeitos, mas se constitui na
elaboração de sentidos construídos nas interações que se estabelecem entre as pessoas.
Isso nos remete a compreensão de que “os sujeitos e os significados das práticas são
elaborados na medida em que são mencionados, posicionados e representados
discursivamente” (FRANGELLA, 2009, p.05).
Um dos sentidos que parece hegemônico no discurso dos professores em relação
ao novo PPC é a compreensão deste como agente de “mudança” na formação e
consequentemente no processo ensino-aprendizagem. Desse modo, apontam que o
projeto atual reflete a forma como os docentes da Faculdade pensam a formação do
pedagogo, reconhecendo, ainda, que algumas das propostas metodológicas apresentadas
no documento já eram vivenciadas, embora que em práticas isoladas.
Diante dessa alusão ao PPC como catalizador de mudanças, buscou-se perceber
no discurso dos professores que sentidos eram construídos sobre essa possível
transformação e a que aspectos se referia. Um dos elementos destacados como
representativos dessa mudança é a ampliação da formação, antes restrita aos anos
iniciais do ensino fundamental e agora, abrangendo além desse nível de ensino a
educação infantil, a EJA, a gestão escolar e a formação para os espaços não escolares. A
inserção do espaço não escolar é considerada por alguns professores como um aspecto
crucial da mudança, haja vista que esse novo locus de atuação possibilita o aluno à
ampliação de espaços de inserção no mundo do trabalho.
De acordo com os professores o novo currículo apresenta um leque de
possibilidades para os alunos, o que é visto como algo positivo em comparação com o
currículo anterior. Isso provavelmente se refere ao fato de que a proposta atual está
organizada em disciplinas e atividades, sendo que estas últimas permitem um formato
de trabalho mais flexível, para além do que convencionalmente se adota nas disciplinas.
Para os docentes entrevistados isso favorece a uma maior participação do aluno no
Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores
EdUECE- Livro 204454
9
ensino-aprendizagem, fato mencionado por uma professora como a principal diferença
do currículo atual, mas realçado de forma semelhante pelos demais.
Alguns docentes também referiram que a nova proposta curricular apresenta
uma preocupação com a contextualização, com a atualização histórica, com a inserção
de temas emergentes, como a educação inclusiva, a educação ambiental e a cidadania, o
que refletiria na percepção destes uma visão ampliada da formação.
Um aspecto recorrente no discurso dos professores é que este currículo
possibilita uma maior articulação teoria/prática, considerando que essa dicotomia se
fazia presente no currículo anterior, embora tal necessidade não seja algo novo. Nesse
sentido, alguns professores defendem que essa articulação, apesar de não ter sido
contemplada no currículo anterior, já era pensada e se fazia presente nas práticas de
alguns docentes.
E como se daria essa articulação teoria/prática? Os docentes consideram que o
novo currículo apresenta mais possibilidades de articulação, na medida em que ao longo
do curso são previstas várias oportunidades dos alunos irem a campo e confrontarem as
observações e desafios vivenciados com as perspectivas e estudos teóricos
proporcionados pelas disciplinas. Essa aproximação do formando com o campo de
atuação é referida pelos docentes como algo bastante relevante, fato que proporcionaria
“um movimento de mudança na relação ensinar-aprender”, pois à medida que o aluno
tem a oportunidade de se inserir mais precocemente no campo de atuação ele acaba
trazendo para a universidade informações relevantes que poderão subsidiar as
discussões e o próprio processo formativo. Esse feedback, segundo um docente
também ajudaria ao professor na universidade, “a mudar o olhar em relação e escola e
suas demandas”, possibilitando, ainda, a “ construção de novos saberes para além da
sala de aula”.
Desse modo, entendo que a questão da articulação teoria prática também é um
significante privilegiado na fala dos professores: a ideia de que o currículo pressupõe
diversas idas do aluno ao campo de atuação, é destacada quase que pela unanimidade
dos professores, que advogam como isso é importante para redimensionar a relação
ensino-aprendizagem, já que aproxima o ensino ministrado na universidade do que
ocorre nas escolas. Apesar da atuação do pedagogo também se dar em outros espaços, o
espaço escolar foi o mais citado, quando se abordava a questão da articulação teoria-
prática.
Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores
EdUECE- Livro 204455
10
Cumpre ainda, destacar que alguns dos discursos analisados remetem a uma
visão reducionista da teoria aos conteúdos abordados nas disciplinas e da prática ao que
ocorre nas escolas, terminando dessa forma, por consagrar a separação entre ambas
como algo dado, capaz de ser revertido com a integração universidade-escola,
universidade-campo de atuação, ou ainda, saber acadêmico com saber prático. É
interessante realçar que no texto do PPC se preconiza que a formação do pedagogo se
dará por meio da reflexão na e sobre a prática, todavia, esta não deverá ser entendida
como restrita “unicamente às ações em sala de aula no ambiente escolar” (PPC, 2012,
p.22). Com isso não estou defendendo que haja uma coerência entre proposta e
implementação, minha intenção é exatamente o inverso, evidenciar a multiplicidade de
sentidos que um mesmo significante pode assumir, num movimento de repetição e
diferença.
Ainda no que se refere às inovações proporcionadas pelo novo currículo é
destaca pelos professores como uma das exigências desse “novo formato” a necessidade
do trabalho em equipe, o que levaria a romper o “isolacionismo” que em geral
caracteriza o ensino na universidade. Nesse sentido, destacam que o currículo requer o
desenvolvimento de atividades que integrem diferentes áreas, o que inclui o trabalho
coletivo dos professores, suscitando assim, “maior envolvimento por parte do aluno,
maior tempo na universidade e mais estudo”.
Apesar de o PPC ter sido destacado pelo conjunto dos professores como signo de
mudança na formação do pedagogo, é possível perceber algumas ambiguidades em
relação a como os docentes percebem seus efeitos na atuação dos professores, tanto no
que diz respeito ao coletivo, quanto ao individual. Para alguns professores uma nova
proposta curricular não gera necessariamente uma modificação na forma de ensinar-
aprender. Uma professora argumenta que a nova proposta deu uma dinâmica diferente
ao processo ensino-aprendizagem, mas não acredita que isso “possa afetar a forma de
pensar dos professores e suas metodologias”. Outro professor, embora tendo
reconhecido que o projeto pedagógico tenha uma proposta diferente, foi enfático em
afirmar que sua prática não mudou, já que esta se baseia em suas opções teóricas, não
necessariamente consoantes com as subjacentes ao texto curricular.
Não obstante considerarem que o novo currículo possibilita avanços na
formação, alguns professores mencionaram que existem muitas dificuldades, o que leva
alguns a consideram que já é o momento de uma revisão5. Para alguns o currículo é
denso, o que ocasiona dificuldades para “absorvê-lo”. Entre as dificuldades citadas
Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores
EdUECE- Livro 204456
11
destaca-se a extensão da carga-horária, que teria ampliado tanto o trabalho do professor
quanto do aluno.
Cumpre destacar, que alguns professores entendem que o currículo na sua
“estrutura formal” apresenta maiores possibilidades de inovação metodológica, porém
ressaltam que esse objetivo até o momento não foi alcançado, pois consideram que “é
preciso melhorar muito”, e embora reconheçam que “não é fácil”, acreditam que “há
uma busca”. Apontam também, que algumas das inovações propostas no PPC ainda não
se concretizaram, visto que “ainda não conseguimos construir metodologias dinâmicas
que o aluno produza e tenha mais espaço na sala de aula”, desse modo consideram que
“o ensino ainda continua muito centrado no professor”.
Algumas considerações
A partir da compreensão da produção de políticas curriculares como um
processo discursivo e do contexto da prática como local de produção de políticas
curriculares e, por conseguinte, espaço de fronteira, em que múltiplos sujeitos e
discursos negociam suas diferenças, aventurei-me a buscar compreender os sentidos
construídos sobre a formação do pedagogo na Faculdade de Educação/UERN. Aventura
esta repleta de riscos, dada a minha implicação com o locus e sujeitos da pesquisa, já
que também sou professora do referido curso. Todavia, compreendendo que a pesquisa
não se separa da vida do pesquisador, assumi os riscos e empreendi minha busca.
Convém ressaltar que a partir dos discursos dos professores entrevistados
construí meus próprios sentidos sobre as possíveis leituras/produção de sentidos que os
professores fazem do PPC, entendo-as como produção curricular. Com efeito, não foi
minha intenção destacar possíveis contradições apresentadas no discurso dos
professores, nem tampouco tomá-los como se representassem a totalidade de seus
pensamentos, mas apenas realçar as ambiguidades que permeiam qualquer processo de
reformulação curricular, entendida aqui como um fluxo contínuo de produção de
sentidos.
Nos discursos analisados os significantes que apareceram com mais frequência
referiam-se a mudança; ampliação da formação; articulação teoria e prática, processo
ensino-aprendizagem, aproximação do aluno do campo de atuação e espaços escolares.
Penso que a ideia de mudança, significada por vezes como inovação, é aludida com
mais frequência quando os discursos se referem à proposta curricular do curso, mas
Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores
EdUECE- Livro 204457
12
quando se referem à prática pedagógica dos docentes, incluindo as próprias,
reconhecem que isso não é algo linear e necessariamente atrelado ao que preconiza o
documento. Presumo que permanece implícita a ideia de currículo como algo a ser
implantado, da política como orientação técnica e racional da prática, fazendo crer que
cabe ao professor “se esforçar” e “buscar cumprir” o que está “claramente” previsto no
PPC. Todavia, é essa perspectiva que ponho sob suspeita, à medida que defendo que é
por meio dos discursos, que também são práticas construídas nas lutas, que o PPC vai
sendo construído/desconstruído/construído tornando-se assim, um texto político nem
sempre coerente e claro, mas carregado de muitos limites e de possibilidades.
REFERÊNCIA
BALL, Stephen. Sociologia das políticas educacionais e pesquisa crítico-social: uma
revisão pessoal das políticas educacionais e da pesquisa em política educacional.
Currículo sem Fronteiras, v.6, n.2, pp.10-32, Jul/Dez 2006.
BALL, Stephen. J.; BOWE, R. El curriculum nacional y su “puesta en práctica”: El
papel de lós departamentos de materiais o asignaturas. Revista de Estudios Del
Curriculum, v. 1, n. 2, p. 105-131, 1998.
BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora: UFMG, 2001.
BALL, Stephen J.; MAINARDES, Jefferson.(orgs.) Políticas educacionais: questões e
dilemas. São Paulo: Cortez, 2011.
BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para o
Curso de Pedagogia. CNE/CP: Brasília, 2006.
BURITY, Joanildo. Teoria do discurso e educação: reconstruindo o vínculo entre
cultura e política. Revista Teias. vol. 11, n. 22, p. 07-29, maio/agosto 2010.
FRANGELLA, Rita de Cássia Prazeres. Currículo como local de cultura: enunciando
outras perspectivas em diálogo com Homi Babba. GT 12 Currículo. 32ª Reunião Anual
da ANPED: Caxambu, 2009. Disponível em www.anpes.org.br/reuniões
32ra/arquivos/gt12_5785. Acesso em 10 de abril de 2014.
LACLAU, Ernesto. Nuevas reflexiones sobre la revolucion de nuestro tempo.
Buenos Aires: Nova Visión, 2003.
LOPES, Alice C.; MACEDO, Elizabeth. Cultura e política: implicações para o
Currículo (Nota introdutória). Currículo sem Fronteiras, v.9, n.2, pp.5-10, Jul/Dez
2009.
______. Teorias de Currículo. São Paulo: Cortez, 2011.
MACEDO, Elizabeth. Currículo como espaço-tempo de fronteira cultural. Revista
Brasileira de Educação. v. 11 n. 32 maio/agosto, 2006.
Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores
EdUECE- Livro 204458
13
OLIVEIRA, Ana de; MATHEUS, Danielle e LOPES, Alice C. Políticas de currículo: a
luta pela significação no contexto da prática. In. FERRAÇO, Carlos Eduardo;
GABRIEL, Carmem Teresa e AMORIM, Antônio Carlos. Políticas de Currículo e
escola. Campinas, SP: FE/UNICAMP, 2012. ( E-book GT Currículo).
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN. Projeto
Pedagógico do Curso de Pedagogia. Mossoró, RN: FE/UERN, 2012.
1 Professora adjunta da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do rio Grande do Norte – UERN e aluna
do Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Educação – PROPED/UERJ, vinculada ao Grupo de Pesquisa
Currículo, Formação e Educação em Direitos Humanos. 2 OLIVEIRA, Meyre-Ester B. A produção curricular no curso de Pedagogia da UERN: sujeitos, discursos e disputas
de sentidos. VI Colóquio Internacional de Políticas e Práticas Curriculares. João Pessoa: UFPB, 2013. 3 Não pretendo aqui expor os resultados da análise das necessidades formativas do curso, apenas quis realçar esse
procedimento como uma das etapas do processo de elaboração da proposta pedagógica. 4 A pesquisa que tem como objetivo geral investigar as práticas pedagógicas de professores da FE/UERN do Campus
Central, foi aprovada pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Norte – FAPERN, para o biênio
2013/2014, sob a coordenação da Profa. Dra. Maria Antônia Teixeira da Costa.
5 As entrevistas foram realizadas antes da revisão a que foi submetido o Projeto do Curso de Pedagogia do Campus
Central para fins de renovação de reconhecimento junto ao Conselho Estadual de Educação.
Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores
EdUECE- Livro 204459