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UMA ATITUDE TERAPÊUTICA WITTGENSTEINIANA NOS MODOS DE
VER OS SIGNIFICADOS DE MATEMÁTICA EM PRÁTICAS DE
FORMAÇÃO INICIAL
Simone Maria Chalub Bandeira Bezerra – REAMEC/UFAC
Anna Regina Lanner de Moura – REAMEC/CAMPINAS
RESUMO
A presente pesquisa tem em vista elucidar os usos/significados que os alunos fazem da
matemática na problematização de práticas culturais no âmbito da disciplina de Estágio
Supervisionado na Extensão e na Pesquisa I e II – ESEP I e II e da Prática de Ensino de
Matemática I e II – PEM I e II na formação inicial para o ensino de matemática. Trata-
se de uma pesquisa de doutorado financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado do Acre – FAPAC/ CAPES. As disciplinas, campo da investigação, foram
organizadas, pela pesquisadora, na perspectiva da teoria da atividade. Dentre as práticas
problematizadas destacou-se o uso de enigmas, o uso dos noves-fora, problematizando o
uso do boleto de energia e a conta de água, dentre outras. A análise do corpus da
pesquisa é inspirada na terapia filosófica wittgensteiniana ao buscar compreender os
usos do termo “matemática”, mobilizados nas disciplinas, foco da pesquisa, à luz de
seus usos em diferentes contextos de práticas culturais. Este processo investigativo
caracteriza-se como um estudo qualitativo do respectivo corpus que é constituído pelas
produções escritas dos estudantes e docente das disciplinas em foco, apresentadas em
eventos de Educação Matemática, por gravações em vídeo das aulas, e pelas entrevistas
realizadas com alunos dessas mesmas disciplinas. Como resultado, pretendemos
esclarecer que as práticas realizadas, no âmbito das disciplinas, podem constituir
significados ou diferentes formas de mobilizar matemática na atividade docente de
formação inicial. Portanto, não se trata de orientar se o caminho percorrido para
solucionar o problema está certo ou errado, mas apontar outras formas, outras
significações para um mesmo problema, diferentes daquelas instituídas escolarmente.
Palavras-chave: Práticas culturais. Formação Inicial do Professor de Matemática.
Terapia filosófica wittgensteiniana.
Intodução
O Estágio Supervisionado na Extensão e na Pesquisa I e II presentes na estrutura
curricular do Curso de Licenciatura em Matemática da Universidade Federal do Acre -
UFAC procura evidenciar na formação do professor de matemática, o caráter dual-não
oposicional entre teoria e prática, ao propor, desde o primeiro semestre do estágio a
vivência desituações de extensãoe de pesquisa com o intuito de possibilitarao
licenciandoum modo de ver a prática da docência com um olhar investigativo.
Tendo assumido o Estágio Supervisionado em Matemática como contexto desta
pesquisa, optamos por organizar os discentes da disciplina em grupos de estudo e
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pesquisa que em comum acordo, com a docente/pesquisadora estariam
definindopráticas culturais escolares ou não escolares para serem problematizadas por
eles seja no âmbito da disciplina, seja na sala de aula de uma escola, práticas essas que
os levariam a aprofundar também conteúdos matemáticos escolares.
Para a organização das atividades de formação, no âmbito da disciplina, nos
inspiramos na teoria da atividade de Leontiev, e para a análise do corpus da pesquisa,
nos inspiramos na terapia filosófica de Wittgenstein.
Nosso propósito é esclarecer os usos feitos por grupos de alunos da disciplina do
Estágio Supervisionado da expressão “matemática”, em atividades de modelagem
matemática, problemas de matemática, história da matemática, nos contextos de
formação do estágio na extensão e na pesquisa, no âmbito do curso de licenciatura em
matemática.
Nesse intuito, formulou-se a seguinte questão de pesquisa: Que usos/significados
os alunos fazem da matemática ao problematizarem práticas sócio culturais no âmbito
da disciplina de estágio na formação inicial para o ensino da matemática?
Tendo como pressuposto metodológico a abordagem qualitativa, a presente
pesquisa enfocou na análise um conjunto de dados referentes às narrativas dos
alunos/artigos, aos registros videográficos das aulas, às entrevistas feitas com esses
alunos e as publicações dos mesmos em eventos de Educação Matemática.
Acreditamos que assumir nesta pesquisa uma atitude terapêutica
desconstrucionista, inspirada em Wittgenstein e Derrida, possa contribuir para
esclarecer os significados com relação a expressão “matemática” usados tanto pela
docente da disciplina de estágio quanto por alunos, de modo a percorrer outras formas
de ver a matemática ou as matemáticas na formação inicial.
Na sequência apresentaremos como é desenvolvida a disciplina de Estágio e
Prática no Curso de Licenciatura em Matemática.
O ProjetoPedagógico e
oEstágioSupervisionadonaextensãoenapesqusianaFormação
doprofessordeMatemáticadaUFAC.
O projeto pedagógico curricular - PPC do Curso de Licenciatura em Matemática
assim como a sua estrutura curricular sofreu nova reforma após vários momentos de
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discussões colegiadas a partir de 2007. A reforma pautou-se pela necessidade de
adequação dos projetos de cursos segundo exigênciado Projeto de Reunificação das
Universidades - REUNI emanado do Ministério da Educação e Cultura - MEC e pelo
debate que vinha sendo realizado no ambiente de realização do curso por alunos e
professores sobre a elevada carga horaria (3455 horas) e a falta de utilidade, na prática,
de alguns componentes curriculares ligados ao campo das Ciências da Educação. Desta
forma, algumasdisciplinas foram suprimidas e a nova estrutura curricular passou a
vigorar com 2.900 horas a partir do ano de 2012.
Nessa nova estrutura curricular as Investigações e Práticas Pedagógicas foram
substituídas pelas Práticas de Ensino de Matemática-PEM, composta pela PEM I, II, III
e IV (270 h), pela Didática Aplicada (75 h) e pela Informática Aplicada ao Ensino de
Matemática (60 h), correspondendo ao elenco de disciplinas de Prática de Ensino – PE
(totalizando 405h).
O Estágio Supervisionado – ES passou por mudanças significativas, sendo
concebido como pesquisa e constituído de quatro disciplinas, as duas primeiras, Estágio
Supervisionado na Extensão e na Pesquisa - ESEP I e II – 45 h cada /5º e 6º períodos,
sob a responsabilidade do Centro de Ciências Exatas e Tecnológicas – CCET onde parte
da investigação se desenvolve, e as outras duas, Estágio Supervisionado no Ensino de
Matemática I – 135 h/7º período e Estágio Supervisionado no Ensino de Matemática II
– 180 h/8º período, sob a responsabilidade do Centro de Educação, Letras e Artes –
CELA.
Conforme projeto do curso de licenciatura em matemática parte do componente
curricular Estágio Supervisionado, deve procurar inserir o estagiário na escola básica
através de atividades de extensão e de pesquisa, devendo ser esta última vinculada a
projetos que vem sendo desenvolvidos por professores que lecionam no curso. Desse
modo, o componente curricular Estágio Supervisionado abrange, em nossa visão, o
ensino, a pesquisa e a extensão devendo proporcionar ao estagiário a oportunidade de
vivenciar várias práticas e vários modos de ser e de se fazer professor. Conforme Cury
(2004, p. 17):
O momento do saber não está separado do momento do fazer, e vice-versa,
mas cada qual guarda sua própria dimensão epistemológica. O aprender a ser
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professor, dessa forma, é reconhecido como um saber profissional
intencionado a uma ação docente nos sistemas de ensino.
Nesse aspecto o Estágio Supervisionado na Extensão e na Pesquisa, possibilitaao
licenciando a participação na elaboração e execução de projetos de pesquisa e extensão,
vinculados a Grupos de Pesquisa e Programas de Extensão, na área de Educação
Matemática ou através de situações/práticas referenciadase elaboração de Relatórios
finalizando com a escrita de um artigo relatando a experiência vivenciada.
Uso dos termos problematização, práticas socioculturais, jogos de linguagensno
âmbito da pesquisa
A organização das atividades da disciplina de Estágio Supervisionado pautou-se
na teoria da atividade de Leontiev com o objetivo de criar condições didático-
pedagógicas para que os alunos mobilizassem seus motivos pessoais de formação para o
ensino de matemática e pudessem colocar-se em atividade de formação. Encontrando na
teoria da atividade de Leontiev, semelhanças de família à referência feita por
Wittgenstein à linguagem como atividade, pautamos as análises do corpus da pesquisa
tendo por referência a atitude terapêutica wittgensteiniana. Segundo esta atitude, olhar
para uma palavra, expressão ou fato apenas sob uma única abordagem pode projetar
sobre o que queremos esclarecer uma prolongada sombra de desconhecimentos ou de
usos essencialistas e exclusivistas da linguagem. Percorrer usos/significados
diferenciados da expressão matemática no âmbito das disciplinas de formação,
dialogicamente entrelaçados aos usos feitos na literatura, pode levar a desconstrução de
usos privilegiados dessa expressão nas práticas de formação e esclarecer outras formas
de usos não presentes ou destituídas do status científico atribuído somente aos usos
ditos curriculares. Queremos enfatizar também que o uso da expressão “semelhanças de
família” nos desobriga de estabelecer correlações de significados idênticos entre a teoria
da atividade e a visão wittgensteiniana da linguagem como sendo uma atividade. Se
para Leontiev a linguagem é elemento mediador na atividade, para Wittgenstein, a
linguagem não é nem mediadora e nem representativa do objeto, ela é a própria
atividade. Segundo Pinho (2013,p. 17), para esse filósofo, a linguagem é “[...] algo que
não corresponderia a uma essência ou representação de uma realidade”. [...] “as coisas
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são aquilo que dizemos que elas são”; aquilo que pensamos que é próprio do objeto
decorre da linguagem, ou seja, os significados estão nos usos que fazemos dela. Para
Wittgenstein a linguagem é uma atividade orientada por regras no sentido de atingir um
propósito, de modo que cada jogo de linguagem é completo em si mesmo. Para este
autor, não existe uma linguagem, mas linguagens, ou melhor, jogos de linguagem,
sendo a matemática um desses jogos. Como diz o próprio Wittgenstein (1999, p.30),
“[...] chamarei também de „jogo de linguagem‟, o conjunto da linguagem e das
atividades com as quais está interligada”. Para Leontiev, o conjunto de ações da
atividade é orientado pelo motivo no sentido de atingir o objetivo a ele intrinsecamente
articulado. Não há, portanto, identidade entre a abordagem da linguagem e a daatividade
feitas pelos dois pesquisadores, mas apenas algumas semelhanças. Neste sentido,
podemos dizer que a organização das práticas de formação na disciplina com base na
teoria da atividade não está em oposição ao fato de, ao analisar essas práticas, se
assumir uma atitude de pesquisa inspirada na terapia wittgensteiniana.
Sobre o termo “práticas socioculturais” este é utilizado por nós com a mesma
visão de Miguel et al. (2010b, p. 152-153) que discutem que, um dos usos da palavra
prática, “nos sugere vê-la como um conjunto de ações efetivas intencionais,
coordenadas e regradas, realizadas pelos sujeitos, pautadas em maneiras de agir comuns
aos homens”, ou ainda, interpretar uma prática efetiva significa expressá-la de outras
maneiras, isto é, substituir uma forma de expressão dessa prática por outra” (MIGUEL
et al., 2010b, p. 153).
Outro modo de se pensar a prática é concebê-la em constante movimento onde
toda a informação mobilizada é compartilhada por membros de uma comunidade
(comunidade de prática), sendo constituída por um conjunto de elementos que a tornam
dinâmica, segundo o uso de Wenger. Para Wenger (2001, p. 71-72apud Miguel, 2010,
p. 13), o conceito de prática é fazer algo “[...] em um contexto histórico e social que
outorga uma estrutura e um significado ao que fazemos. Em termos gerais, o emprego
que faço aqui do conceito de prática não pertence a nenhum dos lados das dicotomias
tradicionais que separam a ação do conhecimento, o manual do mental, o concreto do
abstrato”.
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Aqui são perceptíveis as semelhanças de famílias feitas por Wenger e nós
quando nos referimos ao uso que fazemos do construto práticas socioculturais. A
importância dessa reflexão está no fato de, ao mobilizarmos conhecimentos de prática
sócio culturais, tal mobilização pode ser entendida como um ato de problematizar essas
práticas. O que significa entender, no âmbito da presente pesquisa, os usos feitos pelos
discentes, no contexto da disciplina de Estágio Supervisionado, da expressão
matemática e dos saberes que lhe são associados. Isto é, entender como mobilizam
diferentes jogos de linguagem associados a práticas escolares e não escolaresque
envolvem conteúdos matemáticos.
Wittgenstein enfatiza que aprender é aprender a ver de outras maneiras, nesse
sentido podemos pensar também a problematização como problematização
„indisciplinar‟ com o intuito de questionar/transgredir o caráter disciplinar exclusivista
da escola. O indisciplinar aqui não está ligado a uma condição de comportamento, como
também não se opõe ao disciplinar, mas ao modo de pensar uma mobilização de saberes
que não necessariamente pertencem a um conjunto politicamente pré-definidos de
conteúdos programáticos. Segundo Pinho (2013, p. 53) a perspectiva da linguagem de
Wittgenstein (1980) retira a matemática de uma condição universal, essencialista e
referencial, situando seus objetos e significados em suas próprias proposições e usos.
Miguel e Vilela (2008) apontam a necessidade de se falar em matemáticas, no plural,
rompendo com o caráter homogêneo e universal atribuído à matemática como domínio
de saber pelas ciências cognitivas.
O próprio Wittgenstein (1980, p. 228) faz o seguinte questionamento: Por que eu
não deveria dizer que o que chamamos de matemática é uma família de atividades com
uma família de propósitos? [...], podemos entender as matemáticas como [...] aspectos
de atividades humanas realizadas com base em um conjunto de práticas sociais [...]
(MIGUEL E VILELA, 2008, p. 112), como as escolares, as científicas, as profissionais
e tantas outras que utilizam esses saberes e, acrescentamos, como aspectos que
mobilizam e constituem práticas culturais não escolares. Sob esta concepção,
problematizar práticas de controle de estoque pode significar a mobilização de saberes
ditos matemáticos próprios desta prática que não são alçados ao status dos saberes
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matemáticos curriculares, mas que são tão ou mais importantes nos usos que deles
fazemos para o acontecimento da vida.
Nas diferentes práticas matemáticas/jogos de linguagem é necessário entender a
gramática dos jogos de linguagem que nelas estão envolvidos. Assim, Wittgenstein
(2005, p. 44), nas suas Observações Filosóficas também nos dirá que, “uma palavra só
tem significado no contexto de uma proposição: isso é como dizer que somente em uso
um bastão é uma alavanca. Somente a aplicação a transforma em alavanca. Toda
instrução pode ser entendida como uma descrição, e toda descrição como uma
instrução”.
Assim o que propomos é olhar as práticas culturais escolares e não escolares
como jogos de linguagem, analisando sua gramática e, por conseguinte, o seu uso, nas
cenas de uma sala de aula com discentes em formação inicial e posteriormente em
momentos de extensão no Colégio de Aplicação - CAp em atividades problematizadas
por esses futuros professores.
Momentos de Atividadecenas durante o estágio no CAp e a terapia de Wittgenstein
Procurarei relatar nesse espaço algumas ações realizadas pelos discentes em
algumas atividades problematizadoras de práticas, em momentos de formação na
disciplina do Estágio Supervisionado, tais como: o uso de enigmas e o uso do boleto.
Iniciaremos pelo grupo de cinco estudantes que problematizou “o uso de
enigmas”. Este iniciou a aula instigando a turma com imagens, perguntas e exemplos
sobre as práticas de usos de enigmas encadeando um diálogo com todos os estudantes
da disciplina. Percebemos, nesse primeiro momento, que os discentes estavam muito
presos a forma tradicional de ministrar aulas tendo dificuldades em explorar o assunto a
partir da imagem apresentada instigando o aluno a falar o que sabiam sobre a temática
apresentada. Daí a importância da ação pedagógica do professor da disciplina no sentido
de ajudá-los a conduzir o processo da atividade. Em anexo, figura 01, uma das
atividades apresentadas pelo grupo de Enigmas.
Quando os discentes apresentaram essa imagem e deram as dicas levaram a
turma a refletir sobre a gramática matemática que estava sendo utilizada no contexto do
enigma e a olhar de outras formas para a atividade. Surgindo aí novas questões para
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serem respondidas, como por exemplo, como calcular a área de um cone? Quais os
elementos de um cone? Isso tudo foi conduzido num envolvimento conjunto entre aluno
e professor de maneira que todos participaram da atividade. Veja um trecho do diálogo:
Professor: Olhem para a imagem do chapéu do palhaço e
relacionem com algo de matemática.
Alunos: É aquela figura, como é o nome mesmo, acho que é
cone professora.
Professora: Como é chamado esse biquinho do chapéu?
Aluno: A união dos lados, lá em cima é o vértice né.
Professora: Que desenho forma na parte debaixo do chapéu?
Aluno 1: é uma bola. Aluno 2: é uma circunferência. Aluno
3: é um círculo.
Professora: o que eu tenho é algo semelhante a uma moeda
ou a uma aliança?
Alunos: Pensativos.
Professora: Na moeda consideramos tudo (circunferência),
na aliança somente o contorno da moeda (círculo).
Alunos: Então significa que um é círculo e o outro é a
circunferência?
Professora: sim.
Aluno: a matemática está nas pequenas coisas né professora.
Professora: Sim
Observe que os alunos chegaram a novos nomes como círculo e circunferência.
Conforme a regra estabelecida do jogo, vão surgindo novos conceitos e novos assuntos
são abordados, levando os professores a saírem de sua zona de conforto e estarem se
aprofundando nos assuntos para conduzirem a problematização. Quanto ao significado
da palavra cone: formato do chapéu, casquinha de sorvete, para sinalização. Em cada
contexto da atividade humana temos uma significação diferente da palavra, que será
estabelecida conforme Wittgenstein, de acordo com o jogo em curso. Os professores em
formação conduziram a atividade procurando levar os alunos a identificarem os
elementos de um cone em um objeto do cotidiano.
Quando o grupo problematizou a atividade com enigmas no CAp, os
licenciandos perguntaram o que eles haviam aprendido com a aula ministrada por eles.
Os alunos do 7° ano disseram ter percebido a presença da matemática ao seu redor com
respostas tais como: “que a matemática tá em tudo”; aprendemos a “descobrir a
traduzir os enigmas”, aprendemos a “fazer ligação dos acontecimentos a matemática”.
Mas teve uma resposta que nos chamou atenção, além das já citadas:“Eu aprendi que os
enigmas são como outro tipo de linguagem de símbolos que pode nos ajudar em um
mistério por isso que tem pistas para a gente poder desvendar. [...] Os professores da
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UFAC também são como ótimos professores que ajudam a desvendar o mistério da
nossa matemática de enigmas. (aluno do 7º ano do CAp, grifos nossos).
Através das gravações foi perceptível o envolvimento e a empolgação dos
alunos, ao trabalharem em grupo, para decifrarem os enigmas apresentados, e que os
conteúdos ministrados daquela forma eram mais atraentes e empolgantes, mesmo eles
tendo dificuldades na matemática.
No caso do chapéu do palhaço, o estudante orienta a classe para enxergar no
formato do chapéu a forma matemática de um cone. Este é um uso tipicamente escolar
da matemática, tentar enxergar a matemática nos objetos com o intuito de torná-la mais
significativa para o aluno. Outro modo de ver seria problematizar as práticas de fazer
chapéu de palhaço. Será que aquele que faz o chapéu de palhaço estaria preocupado em
estar construindo um cone e, ainda, preocupado se a base deste cone é um círculo ou
uma circunferência? Certamente, ele, ao fazer um chapéu de palhaço, deve apenas
seguir um modelo de como se faz este tipo de chapéu. Isto nos diz que as formas
geométricas não têm significados absolutos que transitam de um objeto para outro ou
que elas representam algum objeto. Elas tem significado no uso que se faz delas na
linguagem, como diz Wittgenstein. Para o artesão que faz o chapéu do palhaço o
formato que imprime a este pode não ter o significado que aquele formato tem para a
matemática escolar. Trata-se de jogos de linguagem diferentes, por isto, orientados por
gramáticas diferentes.
Outro grupo problematizou: como é feito o cálculo da tarifa de luz e água. A
atividade iniciou em abril de 2013, em momentos de aulas no estágio. Nos órgãos e nos
sites das empresas conseguiram materiais explicando como é feita a leitura dos
medidores de luz e água e de alguns talões de luz e água para análise. As aulas foram
gravadas e ficamos atentos na prática dos alunos para posterior reflexão.
O grupo iniciou a atividade organizando a turma em pequenos grupos e
explicando como iriam proceder na atividade utilizando a modelagem como tendência a
ser problematizada. Explicaram o que seria a modelagem utilizando o quadro a giz
numa aula tradicional. Na sequencia, distribuíram materiais para os grupos que foram
disponibilizados pelos sites da Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL,
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www.aneel.gov.br e Serviço de Água e Esgoto de Rio Branco – SAERB em
www.riobranco.ac.gov/saerb.
Envolveram os discentes nas atividades partindo de questões tais: como era
realizada a leitura de luz e água? Encontre uma fórmula para o valor (V) pago para
qualquer quantidade de água consumida em metros cúbicos. Assim, em grupo chegaram
à fórmula matemática que se encontra em anexo na figura 02. Analisaram a fórmula e
perceberam que a relação estabelecida era uma função matemática definida por mais de
uma sentença matemática, vide figura 02, anexo.
Ao realizar o cálculo da fatura de luz, não conseguiram entender o valor cobrado
da fatura analisada, pois estavam utilizando o cálculo, Valor do Consumo (VC) =
Consumo x Tarifa x Alíquota (PIS+COFINS+ICMS). Diante deste fato, o grupo
mobilizou a empresa e trouxe dois funcionários, sendo que um dos funcionários tem
formação em Direito e o outro em Geografia. Veja as explicações dos funcionários:“A
grande questão era o polêmico imposto calculado “por dentro”, discussão conhecida
no âmbito tributário, no qual o montante do próprio imposto integra a sua base de
cálculo (por força de lei, frise-se). Todavia para encontrar a Base de Cálculo dos
impostos supracitados, onde os futuros valores devidos dos impostos já estejam
embutidos nesta Base (graças a “lei indecente”, palavras do palestrante, que instituiu o
ICMS), é necessário aplicar a seguinte fórmula matemática desconhecida pelos
acadêmicos de matemática: BC= CONSUMO x TARIFA/{1-[(Alíquota PIS + COFINS
+ ICMS)/100]}. (Relatório de Estágio, maio 2013)”.
Com base nessa informação os alunos tornaram-se conhecedores do cálculo
efetuado na fatura de energia. Porém, haviam passado por momentos de incerteza e
angústia na aula anterior por não terem conseguido chegar, mediante cálculos por eles
conhecidos, ao valor cobrado no boleto da luz.
Conforme a explicação posterior dos funcionários, os cálculos utilizados pelos
estudantes, embora corretos, não eram os mesmos utilizados pela empresa
administradora dos cálculos do valor correspondentes ao consumo de luz pelos usuários.
Segundo Wittgenstein, cada jogo de linguagem é completo e sua estrutura gramatical é
intransferível sem que isto implique num novo jogo de linguagem. No caso em análise,
os estudantes se serviram dos cálculos orientados pela gramática do jogo de linguagem
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da matemática escolar, por desconhecerem a gramática do jogo de linguagem do cálculo
institucional da administradora ANEEL. Glock (1998, p. 312) contribui para a
compreensão do que Wittgenstein entende por “seguir uma regra” ao explicar que:
O papel estratégico de sua celebrada discussão acerca da atividade de seguir
uma regra é esclarecer o modo como as regras guiam o nosso comportamento
e determinam o significado das palavras. Conectando-se com os temas do
significado linguístico, da compreensão e da necessidade lógica, esse tópico é
central para sua filosofia da linguagem, para sua psicologia filosófica e para
sua filosofia da matemática.
Ao problematizar o cálculo do valor constante no boleto da luz, foi possível
esclarecer que se trata de um cálculo situado num contexto
político/econômico/administrativo que insere no valor a ser cobrado taxas que não se
referem exclusivamente ao consumo da energia. Além disto, levantou-se a questão da
formação acadêmica dos funcionários que executam o cálculo não indicar a necessidade
de ser este funcionário um matemático ou com formação análoga. A problematização
desta prática possibilita questionar a instituição disciplinar da matemática escolar como
única, verdadeira e universal, possível de ser transferida para situações práticas da vida
cotidiana tal qual é aprendida na escola.
Conclusão
Wittgenstein produziu duas filosofias distintas, uma primeira filosofia que
tomava como ponto de partida a análise lógica da linguagem e uma segunda filosofia
que tomava como ponto de partida o exame de nossa linguagem corriqueira e é nesta
segunda abordagem que nos pautamos ao fazer referências a este filósofo. Segundo esse
filósofo, a linguagem apresenta-se a nós como jogos de linguagem, formas de vida, com
o sentido de modo de vida em uma sociedade.
O conceito de jogo de linguagem vai desde os segmentos vários da linguagem
cotidiana como: comandar, pedir, perguntar, informar até as linguagens técnicas da
ciência como a linguagem da química e da matemática, sendo caracterizado como um
sistema linguístico de regras, regras estabelecidas no momento do jogo.
Nas atividades desenvolvidas tentamos desconstruir o modelo disciplinar do
ensino de matemática pautado na crença de que a matemática é única, universal e
transferível, levando o estagiário a perceber mediante a problematização de práticas não
escolares outras maneiras de se proceder em atividades de ensino para se esclarecer
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como outros saberes matemáticos são mobilizados nessas práticas condicionados a
relações de poder e valores político e econômicos aos propósitos que orientam essas
práticas.
Procuro entender, nesta tese, as atividades realizadas como múltiplas e
constitutivas de relações sociais, permeadas pelo poder, e como produtoras de práticas e
objetos culturais, as quais são realizadas em comunidades que legitimam tais relações e
práticas e as intercambiam com outras comunidades, tendo como objetivo alcançar
determinados propósitos e finalidades.
Referências
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práticas escolares e alternativas de inclusão escolar. São Paulo: DP & A Editora, 2004.
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MIGUEL, A. Percursos Indisciplinares na Atividade de Pesquisa em História (da
Educação Matemática): entre jogos discursivos como práticas e práticas como jogos
discursivos. Bolema, Rio Claro, v. 23, n. 35A, p. 1-57, abr. 2010.
MIGUEL, A.; VILELA, D. S. Práticas Escolares de Mobilização de Cultura
Matemática. Cadernos CEDES, Campinas, v. 28, n. 74, p. 97-120, jan./abr. 2008.
MIGUEL, A.; VILELA, D. S.; MOURA, A. R. L. Desconstruindo a matemática escolar
sob uma perspectiva pós-metafísica de educação. Zetetiké, Campinas, v. 18, número
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______; Problematização nas práticas escolares de mobilização de cultura matemática.
Texto integrante do PAINEL intitulado “Tensões Metodológicas na Prática Educativa e
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D.; LEAL, L. de F. V.; SANTOS, L. de C. P. (Org.). Anais do XV Encontro Nacional
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Gerais, Belo Horizonte, 20 a 23 de abril de 2010a. CD-ROM, Arquivo PDF, Subtema
16: Educação Matemática, p. 15-27. ISSN: 2177-336X.
PINHO, P. M. NUMERAMENTALIZAÇÃO: olhares sobre os usos dos números e
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Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013.
WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo:
Nova Cultural Ltda, 1999.
______. Cultura e Valor. Lisboa: Edições 70, 1980.
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______. Observações Filosóficas. São Paulo: Edições Loyola, 2005.
Quadro de Figuras
Figura 01: Imagem de um chapéu de um
palhaço.
Dicas:
Casquinha de sorvete
Para Sinalização
Fonte: Relatório do grupo, maio 2013.
EXPLICAÇÃO: Uma casquinha de sorvete muitas
vezes tem formato de cone. O chapéu do palhaço
mostrado na imagem também tem formato de cone.
Além disso, os cones são usados nas ruas para
sinalizar.
RESPOSTA: CONE
Figura 02: Fórmula do valor pago para a quantidade de água consumida em m³.
Para chegarem a essa fórmula utilizaram a
informação dada pela SAERB, onde o valor pago
para cada m³ variava de acordo com a
quantidade de água consumida, que é
estabelecido, conforme tabela:
De 0 - 10 m3 R$2,830;De 11 - 15 m
3 R$2,926;
De 16 - 25 m3 R$4,290; E ≥ a 25m
3 R$4,516.
Fórmula elabora por todos em grupo:
V = 2,830x, onde x → m3, se 0≤ x≤ 11; ou
V = 2,986x, onde x → m3, se 11 ≤ x ≤16; ou
V = 4,290x, onde x → m3, se 16 ≤ x ≤ 25; ou
V = 4,516x, onde x → m3, se x ≥ 25.
Fonte: Relatório da disciplina de ESEPII, maio 2013.
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