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O CURRÍCULO DE MATEMÁTICA DO ESTADO DE SÃO PAULO:
FUNDAMENTOS DIDÁTICO-EPISTEMOLÓGICOS
Eliane Maria Vani ORTEGAMaria Raquel Miotto MORELATTI
Leny Rodrigues Martins TEIXEIRAMonica FÜRKOTTER
Luiz Fernando CARVALHOAlex Ribeiro BATISTA
FCT, UNESP, Univ. Estadual PaulistaEixo 05: Políticas de Formação de Professores
1. Introdução
Desde 2008, sob a coordenação da Secretaria Estadual de Educação do Estado
de São Paulo (SEESP), a rede pública de ensino fundamental e médio paulista dispõe de
material curricular padronizado envolvendo as diferentes áreas do conhecimento.
Inicialmente denominado “Novo” Currículo, o material que vem sendo utilizado pelos
professores e alunos foi elaborado por uma equipe de especialistas e tem provocado
reflexões no que diz respeito às características do material e como tem sido utilizado por
professores da Educação Básica. Tais reflexões deram origem a uma pesquisa que tem
por objetivo analisar o processo de formação de professores de Matemática e Ciências
da Natureza proposto e desenvolvido para a implementação do “novo” currículo do
Estado de São Paulo, bem como seus reflexos na prática docente, tomando como
referência a realidade do município de Presidente Prudente. A pesquisa se desenvolve
em três eixos: análise do documento base do currículo proposto, percepções dos
professores quanto à proposta e o processo de formação de professores para a sua
implementação.
Neste artigo, apresentamos os resultados do primeiro eixo da pesquisa, relativos
à análise documental, que teve como referência o documento base do currículo e os
materiais produzidos e distribuídos aos professores e alunos, com o objetivo de examinar
os fundamentos didático-epistemológicos da proposta curricular.
2. Trajetória das reformas curriculares de Matemática
O currículo que se pratica na escola brasileira hoje tem suas origens no
movimento da Reforma e Contrarreforma ocorridos na Europa no século XVI. O
movimento da Reforma Protestante, de caráter liberal, preconizava a capacidade do
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indivíduo de autoconhecimento e de pensar por si mesmo, o que passou a influenciar a
população e provocou mudanças nas escolas que estavam surgindo.
A mentalidade da Reforma Protestante foi combatida pelo movimento católico da
Contrarreforma, que estabeleceu princípios de ação para fazer frente ao protestantismo
nascente. O ensino praticado pelos jesuítas, como mostra Popkewitz (1994), utilizava-se
de textos desvinculados do seu contexto e associados aos preceitos morais do
catolicismo. Esta é apenas uma ilustração das ideias norteadoras do conceito de
currículo nas suas origens. Neste sentido, “o currículo foi basicamente inventado como
um conceito para dirigir e controlar o credenciamento de professores e sua potencial
liberdade nas salas de aula”. (GOODSON, 2007, p. 243).
Fatos históricos posteriores, como a Revolução Francesa e a Revolução
Industrial, produziram mudanças significativas para o surgimento da educação
sistemática, realizada pela instituição escolar e para a padronização do currículo que
ocorreu no final do século XIX. Até então, a educação era feita na família ou em grupos
de adultos, sobretudo operários com interesses específicos e que aprendiam com trocas
de experiências. Mesmo as escolas que existiam antes deste período não possuíam um
currículo padrão. Desta forma, tentativas de escolarização cujas iniciativas propiciassem
aprendizagens ligadas ao cotidiano cederam lugar a um currículo padrão prescrito,
baseado em textos abstratos, condizentes com os interesses de alunos de classe alta.
Como mostra Goodson (2007, p. 243), “ao longo dos anos a aliança entre
prescrição e poder foi cuidadosamente alimentada, de forma que o currículo se tornou um
mecanismo de reprodução das relações de poder existentes na sociedade”. Como
consequência, segundo o autor, o currículo prescritivo, tal como subsiste até hoje, levou à
crença de que o seu domínio e prática são a garantia de boa escolarização, o que inclui a
aceitação das “disciplinas tradicionais” e dos “exames acadêmicos”.
No Brasil, desde que se tem notícia de ensino sistematizado dos diferentes
componentes curriculares, identifica-se as características de um currículo prescritivo
organizado sob a forma de listas de conteúdos, formas de abordagem dos conceitos a
serem ensinados e, ao longo do tempo, ações voltadas para alterações nessas listas e
nas metodologias utilizadas.
A lógica equivocada que se depreende da prescrição curricular é a de que só é
possível a inclusão social de todos, através da escolarização com base em um currículo
formal, sustentado por disciplinas tradicionais. Tal currículo, por ter se desenvolvido de
forma abstrata, distanciado da vida cotidiana e aceito pelas classes mais altas, tornou-se
por força da sua natureza, excludente. Isso cria uma contradição quando se trata de
praticar uma política de ampliação de escolarização, dado que embora tal política alegue
a importância do acesso à escola, mantém o mecanismo de exclusão dos mais pobres.
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Schubring (2004) afirma que, por volta do século XIX, mudanças no sistema de
empregos e no mercado de trabalho de países da Europa e nos Estados Unidos
desafiaram os sistemas educativos desses países. Mudanças sócio-econômicas, políticas
e culturais e as contradições por elas produzidas e refletidas na escola, levaram a uma
concepção de currículo mais ampla, muito além dos conteúdos disciplinares, resumida
por Moreira e Candau (2008, p.2) “como as experiências escolares que se desdobram em
torno do conhecimento, em meio a relações sociais, e que contribuem para a construção
das identidades de nossos/as estudantes”.
No caso da Matemática, no geral, uma instrução feita a partir de conteúdos
bastante elementares, utilizando métodos de ensino que enfatizavam os aspectos
formais, desligado das aplicações práticas, não atendia às demandas oriundas das
mudanças. Nesse contexto é que em 1908, em Roma, no IV Congresso Internacional de
Matemáticos, foi criada a Internationale Mathematische Unterrichtskommission, tendo
como um dos principais dirigentes o matemático Felix Klein, que se preocupava com a
forma de ensino da Matemática e considerava fundamental que se levasse em conta a
psicologia das crianças no processo de ensino-aprendizagem. (MIORIM, 1995)
Os esforços de Klein e a divulgação de suas ideias impulsionaram mudanças em
vários países, inclusive no Brasil, por volta de 1930, quando Euclides Roxo, influenciado
pelos princípios da Escola Nova e pelas ideias de Klein, tornou-se o principal autor dos
programas para o ensino de Matemática.
Carvalho (1998) afirma que os matemáticos Arlindo Vieira e Almeida Lisboa
teceram severas críticas aos programas sugeridos por Roxo e houve na década de 1930
um intenso debate entre esses três matemáticos sobre quais conteúdos deveriam ser
ensinados nas escolas. Esse embate aparece na Reforma Capanema de 1942 e de
1946, com a Reforma do Ensino Primário, na qual o Governo Federal fixou programas
unificados de Matemática para todo o país. Em 1961, a LDB prevê a possibilidade de
alterações nesses programas, que nesse período sofreram a influência do Movimento
Internacional da Matemática Moderna.
O fracasso da Matemática Moderna (KLINE, 1976) foi de extrema importância no
contexto das reformas curriculares de Matemática. Os resultados insatisfatórios quanto à
aprendizagem dos alunos e os exageros na ênfase das estruturas lógicasmotivaram o
início dos estudos mais aprofundados sobre o ensino de Matemática e dos grupos de
estudo sobre Educação Matemática, em vários países, inclusive no Brasil, na década de
1970, influenciando diretamente as reformas que viriam.
Em 1980, nos Estados Unidos, o National Council of Teachers of Mathematics
(NCTM) apresentou recomendações para o ensino de Matemática destacando a
resolução de problemas como o foco do ensino. A “compreensão da relevância de
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aspectos sociais, antropológicos, linguísticos, além dos cognitivos, na aprendizagem da
Matemática, imprimiu novos rumos às discussões curriculares”. (BRASIL, 1998, p. 20)
No Brasil, teve início em 1995 a elaboração de um documento que pudesse ser
considerado referência nacional, iniciativa da Secretaria da Educação do Ensino
Fundamental do Ministério da Educação e do Desporto. Especialistas das diferentes
áreas foram convidados a escrever os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN),
tomando como referência a análise das diferentes propostas curriculares dos diferentes
estados do Brasil, inclusive a do Estado de São Paulo. (BARRETTO, 1998)
2.1 Reformas curriculares de Matemática no Estado de São Paulo
Segundo Pires (2000) e Miorim (1998), no Estado de São Paulo, a influência da
Matemática Moderna ficou evidenciada no processo de elaboração dos Guias
Curricularespara as escolas de 1º. grau. Tais guias, publicados em 1975, a partir de
orientações da Lei de Diretrizes e Bases 5692/71,traziam, além das relações de conteúdo
e objetivos de ensino, orientações de caráter metodológico.
A partir de 1985, considerando a análise crítica dos Guias Curriculares e dos
problemas vivenciados no ensino de Matemática nas escolas, iniciou-se no Estado de
São Paulo a elaboração de Proposta Curricular pela Equipe Técnica de Matemática da
CENP/SEESP, com a participação de diferentes segmentos educacionais, incluindo
professores da escola pública. A versão preliminar foi discutida com toda a rede pública
paulista em 1987 e a primeira edição, publicada em 1988. (MAGNI, 2011)
Entende-se que esse processo, dentre os já descritos, foi o mais amplo no que diz
respeito à participação dos professores e também pelo fato da proposta possuir
características que vão além do detalhamento de listas de conteúdos. Há preocupação
em definir o que é Matemática, há orientações metodológicas, não apenas de caráter
geral, mas específicas, quanto ao tratamento dos conteúdos matemáticos.
De acordo com Pires (2000), a apresentação da Proposta continha diagnóstico
dos principais problemas detectados nos Guias Curriculares: preocupação excessiva com
treino; mecanização de algoritmos; memorização de regras e de esquemas de resolução
de problemas; priorização de temas algébricos; redução ou até mesmo eliminação de
tópicos de Geometria e a preocupação com a formalização precoce do aluno, ignorando
as diferentes fases de seu desenvolvimento cognitivo.
A função da Matemática, de acordo com a Proposta de 1988, era a de
compreensão da realidade em seus aspectos quantitativos e de desenvolvimento do
raciocínio lógico, da capacidade de abstrair e de generalizar. Tratava-se de uma
abordagem espiral dos conteúdos, divididos em dois grandes temas: Números e
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Geometria. As Medidas eram consideradas um tema que articulava os dois grandes
temas. Também se destacava nesta proposta a importância de se trabalhar com ideias
fundamentais como a de proporcionalidade, equivalência e semelhança, que estavam
envolvidas nos diferentes conteúdos a serem trabalhados.(SÃO PAULO, 1992)
A partir de 1997 tem-se então nesse estado, a proposta curricular de Matemática
de 1988 e os PCN de Matemática, documentos oficiais, um elaborado em nível estadual
e outro em nível nacional. Os PCN, na introdução da parte de Matemática, afirmam que
de modo geral as escolas não incorporaram as orientações curriculares anteriores e
continuam a ter problemas com o ensino de Matemática. (BRASIL, 1997)
Ao longo do tempo, diferentes documentos oficiais foram se modificando, a partir
das políticas educacionais que caracterizam cada momento histórico do país e
internamente de cada estado. Entretanto, no geral, os resultados continuam
insatisfatórios, dado que o funcionamento cotidiano das escolas parece acontecer à
margem das alterações curriculares sugeridas nos documentos oficiais.
Segundo Pires (2009), as reformas curriculares, via de regra, estão relacionadas
às alterações nos sistemas de ensino e, na maior parte delas, a participação dos
professores tem sido limitada, tanto no processo de elaboração, quanto no de discussão
e implementação das propostas. A autora destaca também que não costuma haver
preocupação das reformas em apoiar-se em experiências concretas, ou em estabelecer
formas de implementação mais adequadas, acompanhadas de avaliação deste processo.
Goodson (2007, p. 242) afirma que um dos problemas da crise curricular está no
fato deles serem prescritivos. As reformas curriculares precisam ir além dessa função. O
currículo como prescrição “sustenta a mística de que a especialização e o controle são
inerentes ao governo central, às burocracias educacionais e à comunidade universitária”
e, nesse caso, seria consequência quase natural o alijamento dos professores na
construção desse currículo. Nesse sentido, “o currículo em si está tornando-se cada vez
mais uma forma de prestar contas em vez de ser um guia para professores”. (YOUNG,
2011, p. 613)
Entende-se que esses fatores ajudam a compreender as resistências que as
escolas vivem diante do currículo prescrito. Elas praticam um currículo real, com variáveis
próprias, que se configura a partir da realidade dos alunos no momento histórico “hoje”,
bem como da formação dos docentes e de suas condições de trabalho.
É nesse contexto de reformas e de crise curricular que, em 2008, no Estado de
São Paulo, teve início uma política de reforma curricular, que analisamos a seguir.
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3. Currículo do Estado de São Paulo: Matemática e suas tecnologias.
Ensino Fundamental – Ciclo II e Ensino Médio
A análise documental aqui apresentada busca identificar informações factuais nos
documentos relativos ao Currículo, “a partir de questões ou hipóteses de interesse”
(LÜDKE; ANDRÉ, 1986, p. 38). O material analisado constitui “uma fonte poderosa de
onde podem ser retiradas evidências que fundamentem afirmações e declarações”
(LÜDKE; ANDRÉ, 1986, p. 39), que nos permitirão discutir posteriormente a formação de
professores de Matemática para a implementação do “novo” currículo do estado de São
Paulo, bem como seus reflexos na prática docente, considerando a realidade do
município de Presidente Prudente. Além disso, a análise documental é importante porque
possibilita contemplar na discussão a dimensão temporal do problema estudado
(CELLARD, 2012).
A análise tem como referência o material produzido e distribuído na rede, a saber,
os textos-base do currículo, os Cadernos do Professor e os Cadernos do Aluno, com o
objetivo de examinar os fundamentos didático-epistemológicos da proposta curricular.
Neste sentido, procuramos evidenciar nos documentos a concepção de currículo, de
escola, da atividade de ensino do professor e de aprendizagem do aluno.
Ao propormos explicitar as concepções relativas a estes aspectos pretendemos
apresentar algumas inferências advindas da análise das ideias/conceitos que
comparecem na proposta, as quais estão subjacentes no conjunto de atividades
sugeridas e ou estabelecidas como orientações para a implementação do currículo
proposto, para o que tomamos como referência alguns autores.
Ponte (1992, p.185), afirma que a ideia de concepção pressupõe a existência de
“um substrato conceitual que joga um papel determinante no pensamento e na acção”.
Tal substrato está ligado à maneira de ver o mundo e de pensar. Nesse sentido, não se
reduz aos aspectos dos comportamentos observáveis, não sendo identificáveis
prontamente. Thompson (1992), por sua vez, afirma que as concepções são
organizadores implícitos dos conceitos, e como tal influenciam a nossa forma de
perceber, bem como os processos de argumentação e raciocínio que utilizamos
Em relação ao currículo, segundo a atual proposta curricular de Matemática
(SÃO PAULO, 2012), temos uma rica herança pedagógica em termos de propostas e
materiais de apoio curriculares. Em sua introdução, o documento cita os avanços na
proposta anterior (de 1988) e todos os materiais produzidos pela Coordenadoria de
Estudos e Normas Pedagógicas (CENP) e afirma que, inspirando-se nesses materiais foi
elaborada a nova proposta, destacando que esta deve substituir a anterior.
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A implantação da proposta teve início em fevereiro de 2008, com a distribuição do
“Jornal do Aluno São Paulo faz escola”, edição especial da proposta curricular, utilizado
nos primeiros 42 dias de aula, até final de março, com sugestões de atividades para
serem desenvolvidas pelos alunos com o apoio dos professores. Com isso, a Secretaria
da Educação do Estado de São Paulo (SEESP) pensa contribuir para melhorar a
qualidade do ensino, partindo do conhecimento acumulado pelas escolas e da análise
dos projetos já realizados, bem como dos documentos produzidos anteriormente. (SÃO
PAULO, 2012)
A atual proposta curricular de Matemática do Estado de São Paulo considera que
“o currículo é a expressão do que existe na cultura científica, artística e humanista
transposto para uma situação de aprendizagem e ensino.” (SÃO PAULO, 2012, p. 11)
O currículo proposto tem como princípios básicos:
A escola que aprende; o currículo como espaço de cultura; ascompetências como eixo de aprendizagem; a prioridade da competênciade leitura e de escrita; a articulação das competências para aprender; ea contextualização no mundo do trabalho. (SÃO PAULO, 2012, p, 10)
É disponibilizado um material de apoio (Cadernos do Professor e Cadernos do
Aluno), organizado para orientar os professores na realização de um trabalho
interdisciplinar e contextualizado, partindo de situações de aprendizagem, considerando a
importância da tecnologia e a relevância da aprendizagem com sentido cultural.Em cada
bimestre são escolhidos um ou dois temas dominantes que funcionam como articuladores
entre os conteúdos e ilustram possibilidades de metodologias alternativas para os
professores. (SÃO PAULO, 2012)
Segundo o documento, o foco principal da atual proposta não é a modificação das
listas de conteúdos matemáticos usualmente trabalhados nos últimos anos, mas sim a
forma de abordagem, partindo de situações de aprendizagem para a capacidade de
abstrair o contexto. A estratégia utilizada para atingir esse foco é propor temas para
desenvolver as ideias de proporcionalidade, equivalência, ordem, aproximação,
problematização e otimização, presentes em diversos conteúdos usualmente
desenvolvidos nas escolas. O material optou por conservar a lista de conteúdos
conhecida pelos professores, apostando que é a forma de abordagem que pode fazer a
diferença no ensino. (SÃO PAULO, 2012)
A forma de organização de conteúdos também é diferente por considerar os
blocos Números, Geometria e Relações, diferentemente dos PCN e da Proposta
Curricular de 1988. Os formuladores da proposta reconhecem que “A aproximação entre
os conteúdos escolares e o universo da cultura, a valorização das contextualizações e a
busca permanente de uma instrumentação crítica para o mundo do trabalho não
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constituem exatamente uma novidade entre nós” (SÃO PAULO, 2012, p. 30). Estas ideias
constituem, no entanto, ponto de partida para novos arranjos da prática pedagógica.
Se a novidade não está nos princípios orientadores, estaria então na
característica do material, que fornece um panorama dos conteúdos por meio de
situações de aprendizagem que incentivariam os professores a formularem outras do
mesmo tipo? Em documentos oficiais curriculares anteriores, ainda que compareçam
sugestões de como abordar diferentes conteúdos, como na Proposta Curricular Paulista
de 1988, ou orientações didáticas específicas explicitadas nos Parâmetros Curriculares
Nacionais de 1997, não temos materiais organizados sob a forma de situações de
aprendizagem envolvendo os diferentes conteúdos matemáticos.
Conforme o documento, “o currículo é a referência para ampliar, localizar e
contextualizar os conhecimentos acumulados pela humanidade ao longo do tempo”.
(SÃO PAULO, 2012, p. 12). Nesse sentido, ainda que organizado a partir de situações de
aprendizagem que estruturam o ensino, entendemos que se trata de uma proposta de
currículo bastante flexível e não linear.
É evidente que esse modelo de currículo demanda uma outra concepção de
escola, como prevê o documento, mudando de instituição que ensina para instituição que
também aprende a ensinar. Neste sentido, propõe a escola como uma comunidade
aprendente, no sentido de Hargreaves e Fullan (2000), em que a reflexão e a prática
compartilhada inerentes ao trabalho colaborativo possibilitam a construção coletiva da
proposta pedagógica.
Em relação ao professor, a análise dos textos-base da proposta e dos Cadernos
do Professor revelou uma preocupação quanto à possibilidade de autonomia em relação
ao que está proposto no material, como aponta o excerto a seguir.
Somente o professor, em sua escola, respeitando suas circunstâncias eseus projetos, pode ter o discernimento para privilegiar mais um tema doque outro, determinando seus centros de interesse e detendo-se maisem alguns deles, sem eliminar os demais. (SÃO PAULO, 2012, p. 50)
Podemos observar que, em consonância com o modelo do currículo proposto, de
natureza não linear e flexível, o trabalho do professor deve envolver um grau bastante
acentuado de decisão na medida em que cabe a ele a iniciativa/competência de decidir, a
partir das orientações básicas de conteúdos dos cadernos, que preveem oito unidades,
os conteúdos a trabalhar e o tempo destinado a cada um deles, a metodologia a ser
utilizada.
Outra indicação importante de autonomia é a possibilidade de, nesse modelo de
currículo, o professor utilizar outros recursos didáticos “exercícios complementares ou,
até mesmo, modificar as atividades propostas para adequá-las às exigências do seu
curso e às características de cada turma”. (SÃO PAULO,2014, p. 7). Em diferentes
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volumes dos Cadernos do Professor há menção à necessidade de retomar conceitos,
ampliar, para além do que cada situação proposta traz.
A situação de aprendizagem é tratada como um ponto de partida do trabalho com
determinado conceito. Ela não é desenvolvida de forma a esgotar todas as relações que
aquele conceito comporta e isso está explícito no caderno do professor. Trata-se de uma
situação que tem como objetivo envolver o aluno na busca de solução para um problema
ou tarefa, utilizando um determinado conceito matemático. Nesse processo, cabe ao
professor retomar conceitos e propriedades matemáticas que não estão necessariamente
descritas no caderno do professor.
Muito embora a autonomia do professor esteja explicitada no material, há que se
considerar que a metodologia está definida a priori, dada a organização dos temas e
unidades sob a forma de situações de aprendizagem. Por outro lado, a concepção de
escola na proposta comparece como uma forma de relativizar a autonomia do professor
dado que “ninguém é detentor absoluto do conhecimento e de que o conhecimento
coletivo é maior que a soma dos conhecimentos individuais, além de ser qualitativamente
diferente” (SÃO PAULO, 2012, p. 11).
Em relação ao aluno, o documento coloca a aprendizagem como centro da
atividade escolar, aprendizagem entendida não como apreensão de conhecimentos
isolados, mas como “conhecimentos que possam ser mobilizados em competências e
habilidades que, por sua vez, instrumentalizam os alunos para enfrentar problemas do
mundo” (SÃO PAULO, 2012, p.18), no sentido de “ educar para a vida”.
As competências para aprender estão identificadas no documento como sendo as
que orientam o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e que constituem
desdobramentos da competência leitora e escritora. Dado que o objetivo da
aprendizagem é desenvolver as competências dos alunos, é necessário, como este
conceito exige, que o ponto de partida seja a situação problema, a partir da qual o aluno
é desafiado a usar e modificar seus esquemas. Neste sentido, o material está organizado
sob a forma de situações de aprendizagem, que servem de ponto de partida para a
construção dos conteúdos matemáticos subjacentes. Tais situações estão estruturadas
da mesma forma no Caderno do Aluno e no Caderno do Professor, exceto pelas
orientações sobre os temas e as diferentes unidades a serem desenvolvidas, presentes
apenas para o professor. . Há espaço para que o aluno faça exercícios durante a
realização das situações de aprendizagem ou após, como lição de casa por exemplo.
Tais exercícios estão relacionados à situação proposta inicialmente. Também há uma
preocupação de que o aluno registre o que aprendeu, ficando clara a intenção do material
em desenvolver a competência da leitura e da escrita, como também a preocupação de
induzir o aluno a pensar sobre o seu próprio processo de aprendizagem.
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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da análise documental entendemos que os temas abordados nos
cadernos propostos pela SEESP não diferem daqueles que aparecem na proposta
curricular anterior do Estado de São Paulo nem dos que são indicados pelos PCN e livros
didáticos de Matemática. O diferencial é a organização dos Cadernos do Professor e do
Aluno sob a forma de situações de aprendizagem, na perspectiva de um trabalho
contextualizado e interdisciplinar. Espera-se que o professor, a partir de tal organização,
tenha um panorama sobre os temas matemáticos a serem desenvolvidos e identifique a
necessidade de utilizar outros materiais para a retomada ou aprofundamento de
conceitos necessários que estão implícitos nas situações. Fica claro que, além de uma
prescrição de currículo mínimo (temas e unidades) há também uma prescrição
metodológica (proposta de situações de aprendizagem).
Em que pesem tais prescrições, no material há indicações da importância da
autonomia do professor em relação ao trabalho com as situações de aprendizagem e da
utilização de outros materiais didáticos quando o professor sentir necessidade. Há
também uma preocupação explícita, evidenciada no Caderno do Aluno, com o registro do
seu processo de aprendizagem dos conceitos matemáticos. Tal preocupação é coerente
com um dos princípios da proposta curricular que é a prioridade para as competências da
leitura e da escrita.
Quanto aos princípios gerais do material analisado, consideramos importante
destacar, dentro dos limites da proposta, a flexibilidade, a autonomia da escola e a
preocupação com a não linearidade. O material é flexível, indica ao professor a
necessidade inclusive de considerar outros materiais. A escola tem autonomia para fazer
uso do material a partir da sua realidade e as situações de aprendizagem, organizadas
em temas, sugerem uma abordagem não linear, mais preocupada em integrar o
conhecimento matemático a outras áreas do conhecimento e incentivar o aluno a se
envolver num processo de construção de significado dos conceitos estudados.
No entanto, na tentativa de constituir um guia para o trabalho do professor o
currículo ganha um caráter prescritivo, considerando que foi elaborado por uma equipe
de especialistas com a participação mínima dos professores que atuam nas escolas.
Sabemos, como declara Sacristán (2000, p. 147), que a prescrição curricular
determinada pelo nível político administrativo tem impacto no que se refere a regular o
campo de ação, mas “a determinação da ação pedagógica nas escolas e nas aulas está
em outro nível de decisões”. O professor, ao desenvolver o currículo em suas aulas,
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precisa lidar com diversas outras variáveis que vão além do trabalho com os conceitos
específicos da disciplina que leciona.
Diante deste quadro, é cabível perguntar se o material analisado, em razão das
características apresentadas, tem condições de interferir de fato na realidade das aulas
de matemática. Em que medida a proposta de trabalhar os temas e unidades por meio de
situações de aprendizagem tem força suficiente para mudar a relação que os professores
possuem com a matemática no processo de ensino e aprendizagem? Até onde um
currículo prescritivo consegue modificações significativas?
Acreditamos que esta é uma questão a ser respondida pelos professores,
personagens diretamente envolvidos neste processo. A análise destas respostas é o
objeto do próximo relatório da investigação, no qual discutiremos a recepção da proposta
pelos professores a partir do processo de implantação do currículo e da formação dos
mesmos para sua implementação.
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