o currÍculo de matemÁtica do estado de sÃo...

12
5442 O CURRÍCULO DE MATEMÁTICA DO ESTADO DE SÃO PAULO: FUNDAMENTOS DIDÁTICO-EPISTEMOLÓGICOS Eliane Maria Vani ORTEGA Maria Raquel Miotto MORELATTI Leny Rodrigues Martins TEIXEIRA Monica FÜRKOTTER Luiz Fernando CARVALHO Alex Ribeiro BATISTA FCT, UNESP, Univ. Estadual Paulista Eixo 05: Políticas de Formação de Professores [email protected] 1. Introdução Desde 2008, sob a coordenação da Secretaria Estadual de Educação do Estado de São Paulo (SEESP), a rede pública de ensino fundamental e médio paulista dispõe de material curricular padronizado envolvendo as diferentes áreas do conhecimento. Inicialmente denominado “Novo” Currículo, o material que vem sendo utilizado pelos professores e alunos foi elaborado por uma equipe de especialistas e tem provocado reflexões no que diz respeito às características do material e como tem sido utilizado por professores da Educação Básica. Tais reflexões deram origem a uma pesquisa que tem por objetivo analisar o processo de formação de professores de Matemática e Ciências da Natureza proposto e desenvolvido para a implementação do “novo” currículo do Estado de São Paulo, bem como seus reflexos na prática docente, tomando como referência a realidade do município de Presidente Prudente. A pesquisa se desenvolve em três eixos: análise do documento base do currículo proposto, percepções dos professores quanto à proposta e o processo de formação de professores para a sua implementação. Neste artigo, apresentamos os resultados do primeiro eixo da pesquisa, relativos à análise documental, que teve como referência o documento base do currículo e os materiais produzidos e distribuídos aos professores e alunos, com o objetivo de examinar os fundamentos didático-epistemológicos da proposta curricular. 2. Trajetória das reformas curriculares de Matemática O currículo que se pratica na escola brasileira hoje tem suas origens no movimento da Reforma e Contrarreforma ocorridos na Europa no século XVI. O movimento da Reforma Protestante, de caráter liberal, preconizava a capacidade do

Upload: lycong

Post on 02-Feb-2018

219 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: O CURRÍCULO DE MATEMÁTICA DO ESTADO DE SÃO …200.145.6.217/proceedings_arquivos/ArtigosCongress... · ... produziram mudanças significativas para o surgimento da educação

5442

O CURRÍCULO DE MATEMÁTICA DO ESTADO DE SÃO PAULO:

FUNDAMENTOS DIDÁTICO-EPISTEMOLÓGICOS

Eliane Maria Vani ORTEGAMaria Raquel Miotto MORELATTI

Leny Rodrigues Martins TEIXEIRAMonica FÜRKOTTER

Luiz Fernando CARVALHOAlex Ribeiro BATISTA

FCT, UNESP, Univ. Estadual PaulistaEixo 05: Políticas de Formação de Professores

[email protected]

1. Introdução

Desde 2008, sob a coordenação da Secretaria Estadual de Educação do Estado

de São Paulo (SEESP), a rede pública de ensino fundamental e médio paulista dispõe de

material curricular padronizado envolvendo as diferentes áreas do conhecimento.

Inicialmente denominado “Novo” Currículo, o material que vem sendo utilizado pelos

professores e alunos foi elaborado por uma equipe de especialistas e tem provocado

reflexões no que diz respeito às características do material e como tem sido utilizado por

professores da Educação Básica. Tais reflexões deram origem a uma pesquisa que tem

por objetivo analisar o processo de formação de professores de Matemática e Ciências

da Natureza proposto e desenvolvido para a implementação do “novo” currículo do

Estado de São Paulo, bem como seus reflexos na prática docente, tomando como

referência a realidade do município de Presidente Prudente. A pesquisa se desenvolve

em três eixos: análise do documento base do currículo proposto, percepções dos

professores quanto à proposta e o processo de formação de professores para a sua

implementação.

Neste artigo, apresentamos os resultados do primeiro eixo da pesquisa, relativos

à análise documental, que teve como referência o documento base do currículo e os

materiais produzidos e distribuídos aos professores e alunos, com o objetivo de examinar

os fundamentos didático-epistemológicos da proposta curricular.

2. Trajetória das reformas curriculares de Matemática

O currículo que se pratica na escola brasileira hoje tem suas origens no

movimento da Reforma e Contrarreforma ocorridos na Europa no século XVI. O

movimento da Reforma Protestante, de caráter liberal, preconizava a capacidade do

Page 2: O CURRÍCULO DE MATEMÁTICA DO ESTADO DE SÃO …200.145.6.217/proceedings_arquivos/ArtigosCongress... · ... produziram mudanças significativas para o surgimento da educação

5443

indivíduo de autoconhecimento e de pensar por si mesmo, o que passou a influenciar a

população e provocou mudanças nas escolas que estavam surgindo.

A mentalidade da Reforma Protestante foi combatida pelo movimento católico da

Contrarreforma, que estabeleceu princípios de ação para fazer frente ao protestantismo

nascente. O ensino praticado pelos jesuítas, como mostra Popkewitz (1994), utilizava-se

de textos desvinculados do seu contexto e associados aos preceitos morais do

catolicismo. Esta é apenas uma ilustração das ideias norteadoras do conceito de

currículo nas suas origens. Neste sentido, “o currículo foi basicamente inventado como

um conceito para dirigir e controlar o credenciamento de professores e sua potencial

liberdade nas salas de aula”. (GOODSON, 2007, p. 243).

Fatos históricos posteriores, como a Revolução Francesa e a Revolução

Industrial, produziram mudanças significativas para o surgimento da educação

sistemática, realizada pela instituição escolar e para a padronização do currículo que

ocorreu no final do século XIX. Até então, a educação era feita na família ou em grupos

de adultos, sobretudo operários com interesses específicos e que aprendiam com trocas

de experiências. Mesmo as escolas que existiam antes deste período não possuíam um

currículo padrão. Desta forma, tentativas de escolarização cujas iniciativas propiciassem

aprendizagens ligadas ao cotidiano cederam lugar a um currículo padrão prescrito,

baseado em textos abstratos, condizentes com os interesses de alunos de classe alta.

Como mostra Goodson (2007, p. 243), “ao longo dos anos a aliança entre

prescrição e poder foi cuidadosamente alimentada, de forma que o currículo se tornou um

mecanismo de reprodução das relações de poder existentes na sociedade”. Como

consequência, segundo o autor, o currículo prescritivo, tal como subsiste até hoje, levou à

crença de que o seu domínio e prática são a garantia de boa escolarização, o que inclui a

aceitação das “disciplinas tradicionais” e dos “exames acadêmicos”.

No Brasil, desde que se tem notícia de ensino sistematizado dos diferentes

componentes curriculares, identifica-se as características de um currículo prescritivo

organizado sob a forma de listas de conteúdos, formas de abordagem dos conceitos a

serem ensinados e, ao longo do tempo, ações voltadas para alterações nessas listas e

nas metodologias utilizadas.

A lógica equivocada que se depreende da prescrição curricular é a de que só é

possível a inclusão social de todos, através da escolarização com base em um currículo

formal, sustentado por disciplinas tradicionais. Tal currículo, por ter se desenvolvido de

forma abstrata, distanciado da vida cotidiana e aceito pelas classes mais altas, tornou-se

por força da sua natureza, excludente. Isso cria uma contradição quando se trata de

praticar uma política de ampliação de escolarização, dado que embora tal política alegue

a importância do acesso à escola, mantém o mecanismo de exclusão dos mais pobres.

Page 3: O CURRÍCULO DE MATEMÁTICA DO ESTADO DE SÃO …200.145.6.217/proceedings_arquivos/ArtigosCongress... · ... produziram mudanças significativas para o surgimento da educação

5444

Schubring (2004) afirma que, por volta do século XIX, mudanças no sistema de

empregos e no mercado de trabalho de países da Europa e nos Estados Unidos

desafiaram os sistemas educativos desses países. Mudanças sócio-econômicas, políticas

e culturais e as contradições por elas produzidas e refletidas na escola, levaram a uma

concepção de currículo mais ampla, muito além dos conteúdos disciplinares, resumida

por Moreira e Candau (2008, p.2) “como as experiências escolares que se desdobram em

torno do conhecimento, em meio a relações sociais, e que contribuem para a construção

das identidades de nossos/as estudantes”.

No caso da Matemática, no geral, uma instrução feita a partir de conteúdos

bastante elementares, utilizando métodos de ensino que enfatizavam os aspectos

formais, desligado das aplicações práticas, não atendia às demandas oriundas das

mudanças. Nesse contexto é que em 1908, em Roma, no IV Congresso Internacional de

Matemáticos, foi criada a Internationale Mathematische Unterrichtskommission, tendo

como um dos principais dirigentes o matemático Felix Klein, que se preocupava com a

forma de ensino da Matemática e considerava fundamental que se levasse em conta a

psicologia das crianças no processo de ensino-aprendizagem. (MIORIM, 1995)

Os esforços de Klein e a divulgação de suas ideias impulsionaram mudanças em

vários países, inclusive no Brasil, por volta de 1930, quando Euclides Roxo, influenciado

pelos princípios da Escola Nova e pelas ideias de Klein, tornou-se o principal autor dos

programas para o ensino de Matemática.

Carvalho (1998) afirma que os matemáticos Arlindo Vieira e Almeida Lisboa

teceram severas críticas aos programas sugeridos por Roxo e houve na década de 1930

um intenso debate entre esses três matemáticos sobre quais conteúdos deveriam ser

ensinados nas escolas. Esse embate aparece na Reforma Capanema de 1942 e de

1946, com a Reforma do Ensino Primário, na qual o Governo Federal fixou programas

unificados de Matemática para todo o país. Em 1961, a LDB prevê a possibilidade de

alterações nesses programas, que nesse período sofreram a influência do Movimento

Internacional da Matemática Moderna.

O fracasso da Matemática Moderna (KLINE, 1976) foi de extrema importância no

contexto das reformas curriculares de Matemática. Os resultados insatisfatórios quanto à

aprendizagem dos alunos e os exageros na ênfase das estruturas lógicasmotivaram o

início dos estudos mais aprofundados sobre o ensino de Matemática e dos grupos de

estudo sobre Educação Matemática, em vários países, inclusive no Brasil, na década de

1970, influenciando diretamente as reformas que viriam.

Em 1980, nos Estados Unidos, o National Council of Teachers of Mathematics

(NCTM) apresentou recomendações para o ensino de Matemática destacando a

resolução de problemas como o foco do ensino. A “compreensão da relevância de

Page 4: O CURRÍCULO DE MATEMÁTICA DO ESTADO DE SÃO …200.145.6.217/proceedings_arquivos/ArtigosCongress... · ... produziram mudanças significativas para o surgimento da educação

5445

aspectos sociais, antropológicos, linguísticos, além dos cognitivos, na aprendizagem da

Matemática, imprimiu novos rumos às discussões curriculares”. (BRASIL, 1998, p. 20)

No Brasil, teve início em 1995 a elaboração de um documento que pudesse ser

considerado referência nacional, iniciativa da Secretaria da Educação do Ensino

Fundamental do Ministério da Educação e do Desporto. Especialistas das diferentes

áreas foram convidados a escrever os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN),

tomando como referência a análise das diferentes propostas curriculares dos diferentes

estados do Brasil, inclusive a do Estado de São Paulo. (BARRETTO, 1998)

2.1 Reformas curriculares de Matemática no Estado de São Paulo

Segundo Pires (2000) e Miorim (1998), no Estado de São Paulo, a influência da

Matemática Moderna ficou evidenciada no processo de elaboração dos Guias

Curricularespara as escolas de 1º. grau. Tais guias, publicados em 1975, a partir de

orientações da Lei de Diretrizes e Bases 5692/71,traziam, além das relações de conteúdo

e objetivos de ensino, orientações de caráter metodológico.

A partir de 1985, considerando a análise crítica dos Guias Curriculares e dos

problemas vivenciados no ensino de Matemática nas escolas, iniciou-se no Estado de

São Paulo a elaboração de Proposta Curricular pela Equipe Técnica de Matemática da

CENP/SEESP, com a participação de diferentes segmentos educacionais, incluindo

professores da escola pública. A versão preliminar foi discutida com toda a rede pública

paulista em 1987 e a primeira edição, publicada em 1988. (MAGNI, 2011)

Entende-se que esse processo, dentre os já descritos, foi o mais amplo no que diz

respeito à participação dos professores e também pelo fato da proposta possuir

características que vão além do detalhamento de listas de conteúdos. Há preocupação

em definir o que é Matemática, há orientações metodológicas, não apenas de caráter

geral, mas específicas, quanto ao tratamento dos conteúdos matemáticos.

De acordo com Pires (2000), a apresentação da Proposta continha diagnóstico

dos principais problemas detectados nos Guias Curriculares: preocupação excessiva com

treino; mecanização de algoritmos; memorização de regras e de esquemas de resolução

de problemas; priorização de temas algébricos; redução ou até mesmo eliminação de

tópicos de Geometria e a preocupação com a formalização precoce do aluno, ignorando

as diferentes fases de seu desenvolvimento cognitivo.

A função da Matemática, de acordo com a Proposta de 1988, era a de

compreensão da realidade em seus aspectos quantitativos e de desenvolvimento do

raciocínio lógico, da capacidade de abstrair e de generalizar. Tratava-se de uma

abordagem espiral dos conteúdos, divididos em dois grandes temas: Números e

Page 5: O CURRÍCULO DE MATEMÁTICA DO ESTADO DE SÃO …200.145.6.217/proceedings_arquivos/ArtigosCongress... · ... produziram mudanças significativas para o surgimento da educação

5446

Geometria. As Medidas eram consideradas um tema que articulava os dois grandes

temas. Também se destacava nesta proposta a importância de se trabalhar com ideias

fundamentais como a de proporcionalidade, equivalência e semelhança, que estavam

envolvidas nos diferentes conteúdos a serem trabalhados.(SÃO PAULO, 1992)

A partir de 1997 tem-se então nesse estado, a proposta curricular de Matemática

de 1988 e os PCN de Matemática, documentos oficiais, um elaborado em nível estadual

e outro em nível nacional. Os PCN, na introdução da parte de Matemática, afirmam que

de modo geral as escolas não incorporaram as orientações curriculares anteriores e

continuam a ter problemas com o ensino de Matemática. (BRASIL, 1997)

Ao longo do tempo, diferentes documentos oficiais foram se modificando, a partir

das políticas educacionais que caracterizam cada momento histórico do país e

internamente de cada estado. Entretanto, no geral, os resultados continuam

insatisfatórios, dado que o funcionamento cotidiano das escolas parece acontecer à

margem das alterações curriculares sugeridas nos documentos oficiais.

Segundo Pires (2009), as reformas curriculares, via de regra, estão relacionadas

às alterações nos sistemas de ensino e, na maior parte delas, a participação dos

professores tem sido limitada, tanto no processo de elaboração, quanto no de discussão

e implementação das propostas. A autora destaca também que não costuma haver

preocupação das reformas em apoiar-se em experiências concretas, ou em estabelecer

formas de implementação mais adequadas, acompanhadas de avaliação deste processo.

Goodson (2007, p. 242) afirma que um dos problemas da crise curricular está no

fato deles serem prescritivos. As reformas curriculares precisam ir além dessa função. O

currículo como prescrição “sustenta a mística de que a especialização e o controle são

inerentes ao governo central, às burocracias educacionais e à comunidade universitária”

e, nesse caso, seria consequência quase natural o alijamento dos professores na

construção desse currículo. Nesse sentido, “o currículo em si está tornando-se cada vez

mais uma forma de prestar contas em vez de ser um guia para professores”. (YOUNG,

2011, p. 613)

Entende-se que esses fatores ajudam a compreender as resistências que as

escolas vivem diante do currículo prescrito. Elas praticam um currículo real, com variáveis

próprias, que se configura a partir da realidade dos alunos no momento histórico “hoje”,

bem como da formação dos docentes e de suas condições de trabalho.

É nesse contexto de reformas e de crise curricular que, em 2008, no Estado de

São Paulo, teve início uma política de reforma curricular, que analisamos a seguir.

Page 6: O CURRÍCULO DE MATEMÁTICA DO ESTADO DE SÃO …200.145.6.217/proceedings_arquivos/ArtigosCongress... · ... produziram mudanças significativas para o surgimento da educação

5447

3. Currículo do Estado de São Paulo: Matemática e suas tecnologias.

Ensino Fundamental – Ciclo II e Ensino Médio

A análise documental aqui apresentada busca identificar informações factuais nos

documentos relativos ao Currículo, “a partir de questões ou hipóteses de interesse”

(LÜDKE; ANDRÉ, 1986, p. 38). O material analisado constitui “uma fonte poderosa de

onde podem ser retiradas evidências que fundamentem afirmações e declarações”

(LÜDKE; ANDRÉ, 1986, p. 39), que nos permitirão discutir posteriormente a formação de

professores de Matemática para a implementação do “novo” currículo do estado de São

Paulo, bem como seus reflexos na prática docente, considerando a realidade do

município de Presidente Prudente. Além disso, a análise documental é importante porque

possibilita contemplar na discussão a dimensão temporal do problema estudado

(CELLARD, 2012).

A análise tem como referência o material produzido e distribuído na rede, a saber,

os textos-base do currículo, os Cadernos do Professor e os Cadernos do Aluno, com o

objetivo de examinar os fundamentos didático-epistemológicos da proposta curricular.

Neste sentido, procuramos evidenciar nos documentos a concepção de currículo, de

escola, da atividade de ensino do professor e de aprendizagem do aluno.

Ao propormos explicitar as concepções relativas a estes aspectos pretendemos

apresentar algumas inferências advindas da análise das ideias/conceitos que

comparecem na proposta, as quais estão subjacentes no conjunto de atividades

sugeridas e ou estabelecidas como orientações para a implementação do currículo

proposto, para o que tomamos como referência alguns autores.

Ponte (1992, p.185), afirma que a ideia de concepção pressupõe a existência de

“um substrato conceitual que joga um papel determinante no pensamento e na acção”.

Tal substrato está ligado à maneira de ver o mundo e de pensar. Nesse sentido, não se

reduz aos aspectos dos comportamentos observáveis, não sendo identificáveis

prontamente. Thompson (1992), por sua vez, afirma que as concepções são

organizadores implícitos dos conceitos, e como tal influenciam a nossa forma de

perceber, bem como os processos de argumentação e raciocínio que utilizamos

Em relação ao currículo, segundo a atual proposta curricular de Matemática

(SÃO PAULO, 2012), temos uma rica herança pedagógica em termos de propostas e

materiais de apoio curriculares. Em sua introdução, o documento cita os avanços na

proposta anterior (de 1988) e todos os materiais produzidos pela Coordenadoria de

Estudos e Normas Pedagógicas (CENP) e afirma que, inspirando-se nesses materiais foi

elaborada a nova proposta, destacando que esta deve substituir a anterior.

Page 7: O CURRÍCULO DE MATEMÁTICA DO ESTADO DE SÃO …200.145.6.217/proceedings_arquivos/ArtigosCongress... · ... produziram mudanças significativas para o surgimento da educação

5448

A implantação da proposta teve início em fevereiro de 2008, com a distribuição do

“Jornal do Aluno São Paulo faz escola”, edição especial da proposta curricular, utilizado

nos primeiros 42 dias de aula, até final de março, com sugestões de atividades para

serem desenvolvidas pelos alunos com o apoio dos professores. Com isso, a Secretaria

da Educação do Estado de São Paulo (SEESP) pensa contribuir para melhorar a

qualidade do ensino, partindo do conhecimento acumulado pelas escolas e da análise

dos projetos já realizados, bem como dos documentos produzidos anteriormente. (SÃO

PAULO, 2012)

A atual proposta curricular de Matemática do Estado de São Paulo considera que

“o currículo é a expressão do que existe na cultura científica, artística e humanista

transposto para uma situação de aprendizagem e ensino.” (SÃO PAULO, 2012, p. 11)

O currículo proposto tem como princípios básicos:

A escola que aprende; o currículo como espaço de cultura; ascompetências como eixo de aprendizagem; a prioridade da competênciade leitura e de escrita; a articulação das competências para aprender; ea contextualização no mundo do trabalho. (SÃO PAULO, 2012, p, 10)

É disponibilizado um material de apoio (Cadernos do Professor e Cadernos do

Aluno), organizado para orientar os professores na realização de um trabalho

interdisciplinar e contextualizado, partindo de situações de aprendizagem, considerando a

importância da tecnologia e a relevância da aprendizagem com sentido cultural.Em cada

bimestre são escolhidos um ou dois temas dominantes que funcionam como articuladores

entre os conteúdos e ilustram possibilidades de metodologias alternativas para os

professores. (SÃO PAULO, 2012)

Segundo o documento, o foco principal da atual proposta não é a modificação das

listas de conteúdos matemáticos usualmente trabalhados nos últimos anos, mas sim a

forma de abordagem, partindo de situações de aprendizagem para a capacidade de

abstrair o contexto. A estratégia utilizada para atingir esse foco é propor temas para

desenvolver as ideias de proporcionalidade, equivalência, ordem, aproximação,

problematização e otimização, presentes em diversos conteúdos usualmente

desenvolvidos nas escolas. O material optou por conservar a lista de conteúdos

conhecida pelos professores, apostando que é a forma de abordagem que pode fazer a

diferença no ensino. (SÃO PAULO, 2012)

A forma de organização de conteúdos também é diferente por considerar os

blocos Números, Geometria e Relações, diferentemente dos PCN e da Proposta

Curricular de 1988. Os formuladores da proposta reconhecem que “A aproximação entre

os conteúdos escolares e o universo da cultura, a valorização das contextualizações e a

busca permanente de uma instrumentação crítica para o mundo do trabalho não

Page 8: O CURRÍCULO DE MATEMÁTICA DO ESTADO DE SÃO …200.145.6.217/proceedings_arquivos/ArtigosCongress... · ... produziram mudanças significativas para o surgimento da educação

5449

constituem exatamente uma novidade entre nós” (SÃO PAULO, 2012, p. 30). Estas ideias

constituem, no entanto, ponto de partida para novos arranjos da prática pedagógica.

Se a novidade não está nos princípios orientadores, estaria então na

característica do material, que fornece um panorama dos conteúdos por meio de

situações de aprendizagem que incentivariam os professores a formularem outras do

mesmo tipo? Em documentos oficiais curriculares anteriores, ainda que compareçam

sugestões de como abordar diferentes conteúdos, como na Proposta Curricular Paulista

de 1988, ou orientações didáticas específicas explicitadas nos Parâmetros Curriculares

Nacionais de 1997, não temos materiais organizados sob a forma de situações de

aprendizagem envolvendo os diferentes conteúdos matemáticos.

Conforme o documento, “o currículo é a referência para ampliar, localizar e

contextualizar os conhecimentos acumulados pela humanidade ao longo do tempo”.

(SÃO PAULO, 2012, p. 12). Nesse sentido, ainda que organizado a partir de situações de

aprendizagem que estruturam o ensino, entendemos que se trata de uma proposta de

currículo bastante flexível e não linear.

É evidente que esse modelo de currículo demanda uma outra concepção de

escola, como prevê o documento, mudando de instituição que ensina para instituição que

também aprende a ensinar. Neste sentido, propõe a escola como uma comunidade

aprendente, no sentido de Hargreaves e Fullan (2000), em que a reflexão e a prática

compartilhada inerentes ao trabalho colaborativo possibilitam a construção coletiva da

proposta pedagógica.

Em relação ao professor, a análise dos textos-base da proposta e dos Cadernos

do Professor revelou uma preocupação quanto à possibilidade de autonomia em relação

ao que está proposto no material, como aponta o excerto a seguir.

Somente o professor, em sua escola, respeitando suas circunstâncias eseus projetos, pode ter o discernimento para privilegiar mais um tema doque outro, determinando seus centros de interesse e detendo-se maisem alguns deles, sem eliminar os demais. (SÃO PAULO, 2012, p. 50)

Podemos observar que, em consonância com o modelo do currículo proposto, de

natureza não linear e flexível, o trabalho do professor deve envolver um grau bastante

acentuado de decisão na medida em que cabe a ele a iniciativa/competência de decidir, a

partir das orientações básicas de conteúdos dos cadernos, que preveem oito unidades,

os conteúdos a trabalhar e o tempo destinado a cada um deles, a metodologia a ser

utilizada.

Outra indicação importante de autonomia é a possibilidade de, nesse modelo de

currículo, o professor utilizar outros recursos didáticos “exercícios complementares ou,

até mesmo, modificar as atividades propostas para adequá-las às exigências do seu

curso e às características de cada turma”. (SÃO PAULO,2014, p. 7). Em diferentes

Page 9: O CURRÍCULO DE MATEMÁTICA DO ESTADO DE SÃO …200.145.6.217/proceedings_arquivos/ArtigosCongress... · ... produziram mudanças significativas para o surgimento da educação

5450

volumes dos Cadernos do Professor há menção à necessidade de retomar conceitos,

ampliar, para além do que cada situação proposta traz.

A situação de aprendizagem é tratada como um ponto de partida do trabalho com

determinado conceito. Ela não é desenvolvida de forma a esgotar todas as relações que

aquele conceito comporta e isso está explícito no caderno do professor. Trata-se de uma

situação que tem como objetivo envolver o aluno na busca de solução para um problema

ou tarefa, utilizando um determinado conceito matemático. Nesse processo, cabe ao

professor retomar conceitos e propriedades matemáticas que não estão necessariamente

descritas no caderno do professor.

Muito embora a autonomia do professor esteja explicitada no material, há que se

considerar que a metodologia está definida a priori, dada a organização dos temas e

unidades sob a forma de situações de aprendizagem. Por outro lado, a concepção de

escola na proposta comparece como uma forma de relativizar a autonomia do professor

dado que “ninguém é detentor absoluto do conhecimento e de que o conhecimento

coletivo é maior que a soma dos conhecimentos individuais, além de ser qualitativamente

diferente” (SÃO PAULO, 2012, p. 11).

Em relação ao aluno, o documento coloca a aprendizagem como centro da

atividade escolar, aprendizagem entendida não como apreensão de conhecimentos

isolados, mas como “conhecimentos que possam ser mobilizados em competências e

habilidades que, por sua vez, instrumentalizam os alunos para enfrentar problemas do

mundo” (SÃO PAULO, 2012, p.18), no sentido de “ educar para a vida”.

As competências para aprender estão identificadas no documento como sendo as

que orientam o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e que constituem

desdobramentos da competência leitora e escritora. Dado que o objetivo da

aprendizagem é desenvolver as competências dos alunos, é necessário, como este

conceito exige, que o ponto de partida seja a situação problema, a partir da qual o aluno

é desafiado a usar e modificar seus esquemas. Neste sentido, o material está organizado

sob a forma de situações de aprendizagem, que servem de ponto de partida para a

construção dos conteúdos matemáticos subjacentes. Tais situações estão estruturadas

da mesma forma no Caderno do Aluno e no Caderno do Professor, exceto pelas

orientações sobre os temas e as diferentes unidades a serem desenvolvidas, presentes

apenas para o professor. . Há espaço para que o aluno faça exercícios durante a

realização das situações de aprendizagem ou após, como lição de casa por exemplo.

Tais exercícios estão relacionados à situação proposta inicialmente. Também há uma

preocupação de que o aluno registre o que aprendeu, ficando clara a intenção do material

em desenvolver a competência da leitura e da escrita, como também a preocupação de

induzir o aluno a pensar sobre o seu próprio processo de aprendizagem.

Page 10: O CURRÍCULO DE MATEMÁTICA DO ESTADO DE SÃO …200.145.6.217/proceedings_arquivos/ArtigosCongress... · ... produziram mudanças significativas para o surgimento da educação

5451

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da análise documental entendemos que os temas abordados nos

cadernos propostos pela SEESP não diferem daqueles que aparecem na proposta

curricular anterior do Estado de São Paulo nem dos que são indicados pelos PCN e livros

didáticos de Matemática. O diferencial é a organização dos Cadernos do Professor e do

Aluno sob a forma de situações de aprendizagem, na perspectiva de um trabalho

contextualizado e interdisciplinar. Espera-se que o professor, a partir de tal organização,

tenha um panorama sobre os temas matemáticos a serem desenvolvidos e identifique a

necessidade de utilizar outros materiais para a retomada ou aprofundamento de

conceitos necessários que estão implícitos nas situações. Fica claro que, além de uma

prescrição de currículo mínimo (temas e unidades) há também uma prescrição

metodológica (proposta de situações de aprendizagem).

Em que pesem tais prescrições, no material há indicações da importância da

autonomia do professor em relação ao trabalho com as situações de aprendizagem e da

utilização de outros materiais didáticos quando o professor sentir necessidade. Há

também uma preocupação explícita, evidenciada no Caderno do Aluno, com o registro do

seu processo de aprendizagem dos conceitos matemáticos. Tal preocupação é coerente

com um dos princípios da proposta curricular que é a prioridade para as competências da

leitura e da escrita.

Quanto aos princípios gerais do material analisado, consideramos importante

destacar, dentro dos limites da proposta, a flexibilidade, a autonomia da escola e a

preocupação com a não linearidade. O material é flexível, indica ao professor a

necessidade inclusive de considerar outros materiais. A escola tem autonomia para fazer

uso do material a partir da sua realidade e as situações de aprendizagem, organizadas

em temas, sugerem uma abordagem não linear, mais preocupada em integrar o

conhecimento matemático a outras áreas do conhecimento e incentivar o aluno a se

envolver num processo de construção de significado dos conceitos estudados.

No entanto, na tentativa de constituir um guia para o trabalho do professor o

currículo ganha um caráter prescritivo, considerando que foi elaborado por uma equipe

de especialistas com a participação mínima dos professores que atuam nas escolas.

Sabemos, como declara Sacristán (2000, p. 147), que a prescrição curricular

determinada pelo nível político administrativo tem impacto no que se refere a regular o

campo de ação, mas “a determinação da ação pedagógica nas escolas e nas aulas está

em outro nível de decisões”. O professor, ao desenvolver o currículo em suas aulas,

Page 11: O CURRÍCULO DE MATEMÁTICA DO ESTADO DE SÃO …200.145.6.217/proceedings_arquivos/ArtigosCongress... · ... produziram mudanças significativas para o surgimento da educação

5452

precisa lidar com diversas outras variáveis que vão além do trabalho com os conceitos

específicos da disciplina que leciona.

Diante deste quadro, é cabível perguntar se o material analisado, em razão das

características apresentadas, tem condições de interferir de fato na realidade das aulas

de matemática. Em que medida a proposta de trabalhar os temas e unidades por meio de

situações de aprendizagem tem força suficiente para mudar a relação que os professores

possuem com a matemática no processo de ensino e aprendizagem? Até onde um

currículo prescritivo consegue modificações significativas?

Acreditamos que esta é uma questão a ser respondida pelos professores,

personagens diretamente envolvidos neste processo. A análise destas respostas é o

objeto do próximo relatório da investigação, no qual discutiremos a recepção da proposta

pelos professores a partir do processo de implantação do currículo e da formação dos

mesmos para sua implementação.

Referências Bibliográficas

BARRETTO, E. S. de S. (Org.)Os currículos do Ensino Fundamental para as escolasbrasileiras. Campinas: Autores Associados, 1998.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais. v. 3.Brasília: MEC/SEF, 1997.

BRASIL. Lei de Diretrizes e Base de 1971 – Lei 5692/71. Fixa Diretrizes e Bases para oensino de 1º. e 2º. graus, e dá outras providências. Disponível em:http://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/128525/lei-de-diretrizes-e-base-de-1971-lei-5692-71. Acesso em: 13 jan. 2016.

CARVALHO, J. B. P. de. As propostas curriculares de Matemática. In: BARRETO,Barreto, E. S. de SÁ (Org.). Os currículos do ensino fundamental para as escolasbrasileiras (Org.).Campinas: Autores Associados, 1998, p. 91-124.

CELLARD, A. A análise documental. In: POUPARD, J. et al. A pesquisa qualitativa.Enfoques epistemológicos e metodológicos. São Paulo: ABDR, 2012, p.295-316.

GOODSON, I. Currículo, narrativa e o futuro social. Revista Brasileira de Educação. v. 12,n. 35, p. 241-252, mai./ago. 2007. Disponível em:<http://www.scielo.br/pdf/rbedu/v12n35/a05v1235.pdf>. Acesso em: 23 mai. 2013.

HARGREAVES, A.; FULLAN, M. A escola como organização aprendente: buscando umaeducação de qualidade. Porto Alegre: Artmed, 2000.

KLINE, M. O fracasso da matemática moderna. São Paulo: IBRASA, 1976.

MAGNI, R. J. M. Formação continuada de professores de matemática: concepções sobreo processo de ensino e aprendizagem de geometria. 2011. 181 p. Dissertação (Mestradoem Educação Matemática) - Universidade Bandeirante de São Paulo. São Paulo.

MIORIM, M. A.Introdução à história da educação matemática. São Paulo: Atual, 1998.

Page 12: O CURRÍCULO DE MATEMÁTICA DO ESTADO DE SÃO …200.145.6.217/proceedings_arquivos/ArtigosCongress... · ... produziram mudanças significativas para o surgimento da educação

5453

MIORIM, M.A . O ensino de Matemática: Evolução e Modernização. 1995. 218 p.Campinas, SP, 1995. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação,Universidade Estadual de Campinas. Campinas.

MOREIRA, A. F. B.; CANDAU , V. Currículo, conhecimento e cultura (versão definitiva).Brasília: Presidência da República / Ministério da Educação/ Secretaria de EducaçãoBásica, 2008 (Texto integrante de documento do Ministério da Educação).

PIRES, C. M. C. Implementação de inovações curriculares em Matemática: embates comconcepções, crenças e saberes de professores. In: MARANHÃO, C. (Org.) Educaçãomatemática nos anos finais do ensino fundamental e ensino médio: pesquisas eperspectivas. São Paulo: Musa Editora, 2009, p. 167-190.

__________. Currículos de matemática: da organização linear à idéia de rede. SãoPaulo: FTD, 2000.

PONTE, J. P. da. Concepções dos professores de Matemática e processos de formação.In: BROWN, M.; FERNANDES, D.; MATOS, J. F.; PONTE, J. P. da (Eds.) Educação eMatemática: temas de investigação. Lisboa: IIE e Secção de Educação e Matemática daSPCE, 1992, p. 186-239.

POPKEWITZ, T. S. História do currículo, regulação social e poder.In: SILVA, T. T. da(Org.). O sujeito da educação.Petrópolis: Vozes, 1994, p.173-210.

SACRISTÁN, J. G.O currículo: uma reflexão sobre a prática. Trad. Ernani F. da F. Rosa.Porto Alegre: ArtMed, 2000.

SÃO PAULO (Estado) Secretaria da Educação. Currículo do Estado de São Paulo:Matemática e suas tecnologias / Secretaria da Educação; coordenação geral, Maria InêsFini; coordenação de área, Nilson José Machado. 1. ed. atual. São Paulo: SE, 2012.72 p.

SÃO PAULO (Estado) Secretaria da Educação. Material de apoio ao currículo do Estadode São Paulo: caderno do professor; matemática, ensino fundamental – anos finais, 5ª.série/6º. ano/Secretaria da Educação; coordenação geral, Maria Inês Fini; equipe, CarlosEduardo de Souza Campos Granja, José Luiz Pastore Mello, Nílson José Machado,Roberto Perides Moisés, Walter Spinelli. São Paulo: SE, 2014.

SÃO PAULO (Estado) Secretaria da Educação. Coordenadoria de Estudos e NormasPedagógicas. Proposta curricular para o ensino de matemática:1º grau. 4. ed. São Paulo:SE/CENP, 1992, 181 p.

SCHUBRING, G. O primeiro movimento internacional de reforma curricular emMatemática e o papel da Alemanha. In: VALENTE, W. R. Euclides Roxo e amodernização do ensino da matemática. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2004.

THOMPSON, A. G. Teachers’ beliefs and conceptions: a synthesis of the research. In:GROUWS, D. A. Handbook of research on mathematics teaching and learning.New York:Macmillan, 1992, p. 127-146.

YOUNG, M. F. D. O futuro da educação em uma sociedade do conhecimento: oargumento radical em defesa de um currículo centrado em disciplinas. Revista Brasileirade Educação.v. 16, n. 48, set.– dez. 2011, p. 609-623.