o corpo utópico e o programa performativo em ambiente urbano

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Revista ARA Nº7 . Volume 7 . Primavera+Verão 2019 • Grupo Museu/Patrimônio FAU-USP O Corpo Utópico e o programa performativo em ambiente urbano El Cuerpo utópico y el programa performativo en entorno urbano The Utopian and the performative program in urban environment Luanna Jimenes 1 PGEHA-USP Programa de Pós-Graduação em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo. São Paulo-SP, Brasil. [email protected] 1 Orientador: Arthur Hunold Lara http://dx.doi.org/10.11606/issn.2525-8354.v7i7p135-151

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Revista ARA Nº7 . Volume 7 . Primavera+Verão 2019 • Grupo Museu/Patrimônio FAU-USP

OCorpoUtópicoeoprogramaperformativoemambienteurbano

ElCuerpoutópicoyelprogramaperformativoenentornourbano

TheUtopianandtheperformativeprograminurbanenvironment

LuannaJimenes1

PGEHA-USPProgramadePós-GraduaçãoemEstéticaeHistóriadaArtedaUniversidadedeSãoPaulo.SãoPaulo-SP,Brasil.

[email protected]

1Orientador:ArthurHunoldLara

http://dx.doi.org/10.11606/issn.2525-8354.v7i7p135-151

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Resumo

Comopresenteartigopretende-seaproximarasnoçõesdecorpoutópicoeheterotopia,desenhadasMichelFoucault,daspráticasperformáticasemcontextourbano.Oimaginárioqueacompanhaocorpoutópicoserárevisadoconsiderandoacirculaçãodeimagensnaculturacontemporânea,assimcomoosentidodeheterotopiadoreferidoautor,permiterefletiraexperiênciadafruiçãonacidade

Palavras-chave:performance,deriva,corpo,convívio,urbano.

Resumen

Esteartículotienecomoobjetivoreunirlasnocionesdecuerpoutópicoyheterotopía,extraídasporMichelFoucault,delasprácticasperformativasenuncontextourbano.Elimaginarioqueacompañaalcuerpoutópicoserevisaráteniendoencuentalacirculacióndeimágenesenlaculturacontemporánea,asícomoelsentidodeheterotópicodelautor,permitereflejarlaexperienciadefructificaciónenlacuidad.

Palabrasclave:Performance,deriva,cuerpo,convivencia,urbano.

Abstract

Thisarticleaimstobringtogetherthenotionsofutopianbodyandheterotopia,byMichelFoucault,fromtheperformativepracticesinanurbancontext.Theimaginarythataccompaniestheutopianbodywillbereviewedconsideringthecirculationofimagesincontemporaryculture,astheauthor’ssenseofheterotopyallowstoreflecttheexperienceoffruitiononthecity.

Keywords:performance,drift,body,conviviality,urban.

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Noentanto,acreditoquehá–eemtodasociedade–utopiasquetêmumlugarprecisoereal,umlugarquepodemossituarnomapa;utopiasquetêmumtempodeterminado,umtempoquepodemosfixaremedir

conformeocalendáriodetodososdias.

MichelFoucault(2013,p.19)

INTRODUÇÃO

Em conferência radiofônica proferida em dezembro de 1966, M. Foucault

declaraqueem todas as sociedades existemasutopias do corpo, os lugares

demarcados e mesurados para vivermos um corpo incorpóreo, idealizado,

muito próximo do perfeito ou mesmo que decrépito, um corpo que

dificilmentecoincideconsigomesmo.Ocorpoutópicoapareceedesaparece,é

habitantedeumlugar"foradetodososlugares"(2013,p.8).

Segundo os exemplos citados pelo autor, o corpo utópico surge do

deslumbramentodiantedofantástico,dopaísdasfadasoudossuperheróis,

ondeécapazdevoarporentreosimensosedifícios;ouaindaocorpoabatido

nocemitério,petrificadoeeternizadosobrea lápide.Asutopiasnarram,por

meio de imagens, lugares que não existem para um corpo incorpóreo. Pelo

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discursodas imagenspodemosreconhecernovasdemarcaçõesparaocorpo,

outrosespaçosetemporalidades.

Para refletir a experiência no cotidiano da cultura contemporânea e criar

maneiras de reinscrever a escala humana na cidade, atualizar sua natureza

corpóreaemmeioaestruturasagigantadas,faz-senecessárioumconjuntode

práticas.

Como artigo pretende-se criar diálogos entre as noções de corpo utópico e

heterotopia deM. Foucault e a arte da performance, do happening2, e dos

programasperformativoscomoderivasedeambulações.Verificartaisnoções

nos estudos de caso, descrever suas heterotopias, ou seja, notar de que

maneira os programas performativos criaram “contra espaços, utopias

situadas,esses lugaresreaisforadetodosos lugares”(2013,p.20).Ouainda,

osmodos pelos quais a performance dispara situações inesperadas, inéditas

noçõesdeterritórionoatualcontextodascidadesvigiadas.

Asperformancescitadasoperamnachavedodispositivodesociabilidadeem

queosartistasaderem“aocontextomaterial,social,políticoehistóricoparaa

articulação de suas iniciativas performativas” (Fabião, 2011, p.5). Nota-se a

ativaçãoderelaçõesdeterritórioeidentidade,“mapeamento,denegociaçãoe

dereinvençãoatravésdocorpo-emexperiência”(Fabião,2013,p.5).

EMDERIVA

A estrutura material e simbólica das cidades constituem em sua totalidade

ligações dinâmicas com experiências de comportamento. Para a arquiteta

2HappeningfoiotermousadopeloamericanoAllanKaprowem1959emNovaIorqueparanomearasaçõesqueaconteciamdemaneiraaparentementeespontânea,porémseguiamumroteiropreviamenteestabelecido.Kaprowpretendiaincluiropubliconointeriordaobradearteeperturbarafruiçãopassivadoobservador.Comoshappeningsosartistasexperimentavamdesarticularaseparaçãoentrearteevida.OcarátercríticoeprovocadordoshappeningsemNovaIorqueapartirdesegundametadedadécadade1950,sedeveàcontradiçãodasociedadeamericana,orápidocrescimentoeconômicoeaumentodoconsumoemsimultâneoàGuerradoVietnã(1955-1975).

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Paola JacquesBerenstein3,acontecenaatualidadeumaespéciedeapatiaou

empobrecimentodaexperiêncianacidade:

“A redução da ação urbana, ou seja, o empobrecimentoda experiência urbana pelo espetáculo leva a uma perdada corporeidade, os espaços urbanos se tornam simplescenários, sem corpo, espaços desencarnados. Os novosespaços públicos contemporâneos, cada vez maisprivatizadosounãoapropriados,nos levamarepensarasrelaçõesentreurbanismoecorpo,entreocorpourbanoeocorpodocidadão.”(2008).

Acríticaarticuladapelossituacionistas4semantémpertinentenaatualcidade

global.Aopermanecerporalgunsperíodosdetempoemumapraçadegrande

circulaçãodepessoasemSãoPaulosemnadaafazer,apenasobservar,nota-

sequeospassantesdemodogeralparecemausentes.Ouainda,nointeriordo

transportecoletivo,lugarconfiguradocomo“umamálgamaextraordináriode

relaçõesporqueéalgoqueatravessamos,étambémalgoquenoslevadeum

ponto a outro, e, por fim, é também algo que passa por nós” (Berenstein,

2003, p.53), podemos ver se instaurar emmeio àsmultidões em circulação,

umaespéciedepassividade.

Deambular observando o entorno desencadeia imediatamente uma

dissonância por oposição ao fluxo acelerado da cidade. Com as derivas

“devemosconstruirambiênciasnovasquesejamaomesmotempoprodutoe

instrumento de novos comportamentos” (Berenstein, 2003, p.53).Omineiro

PauloNazareth5temfeitocaminhadascomdimensõescontinentais, testando

nopercursoprogramaseperformancesemdiferentespaísesecontextos.Em

umaregiãodecirculaçãodepedestresemNovaDélhiem2006,Paulosentou-

3PaolaJacquesBerensteinédocentenaFaculdadedeArquiteturadaUFBA.4AexperiênciadedeambularpelasviasurbanasretomademaneiradiretaomovimentoInternacionalSituacionistaemParisnametadedoséculoXX,assimcomoosprocedimentosderesistênciaàcidadeespetacular.5.OartistaPauloNazareth(MinasGerais1977)criainstalações,objetoseregistrosaudiovisuaisdeperformancesqueacontecemnodecorrerdesuaslongascaminhadas.NaexposiçãoNotíciasdeAméricaem2011naArtBaseldeMiamiestavamosregistroseapropriaçõesdatravessiaquecomeçouemGovernadorValadaresemMinasGeraiseterminouemMiami,apédecaronaecanoa.Em2013foiconvidadopela12aBienaldeLyonaexporosCadernosdeÁfrica,documentaçõesnodecorrerdatravessiaportodaaÁfricadeJohannesburgaLyon.

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se sobre um tapetinho à beira de uma escadaria exibindo um papel com a

seguintemensagem:Ipayoneruppeforsomeoneguesswhereiamfrom.Nos

registrosemfotografiadisponibilizadospeloartista,vemosPaulocercadopor

dezenasdehomensindianosvisivelmenteintrigados.(Figuras1e2)

Por um rápido plano visto de cima pode-se prever a acelerada desordem

provocada pelo gesto, tão preciso quanto simples, sugerindo complexas

relaçõesdealteridadee território.Apesardo tumultoaoseu redor,Paulose

mantémsentado,apenasrespondendonegativamenteàstentativaslançadas,

numa atitude de gesto mínimo com grandes efeitos, “o gesto silencioso e

medido, desencadeando por si só a transformação de sentido de uma

situação”(Galard,1997,p.51).

A ação One Ruppe For My Country se aproxima da noção de heterotopia

quando o artista estabelece ao redor de si um espaço-temporal

“absolutamente diferente” (Foucault, 2013, p.19)6, notadamente particular e

sem comparativos. A ação chega no limite da ordem local quando o

policiamento é acionado para evitar maior descontrole. O passante

interrompidonoseucotidiano, foi convidadoaatualizar seusconhecimentos

olhandoparaoartistacolocadocomoumproblemadageopolíticaglobal.

A atmosfera é de completa indefinição para os dois lados. Paulo Nazareth,

sempresentadodepernascruzadasnumaatitudedeaparente receptividade

não deixa de expressar uma contradição pelo risco que corre com a

provocação.Podemosnotarsuacorporeidadenoregistrodisponibilizadopelo

artista,trata-sedeuma“práticadecriaçãodecorpoquesópodeacontecerno

confrontodiretocomomundo”(Fabião,2011,p.10).Naduraçãodoprograma

elocalondeseinstalou,entreocorpodoartistaedospassantes,instaurou-se

diferentesnoçõesdeespaçoeduração.

6Ogrifodadopeloautorsereferindoaradicaloposiçãoentreosespaçosheterotópicosetodososoutros,osespaçosdepassagemdacidade,circulaçãoeoespaçoprivadodaresidência…Osespaçosdeheterotopiaressignificamtodosesseslugares.

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Figuras1e2:OneRupperforMyCountry,2006.Fonte:CortesiaMendesWoodDM,SãoPaulo/NovaYork/Bruxelas

UMAUTOPIAPARAOCORPO

Foucault nos prepara para uma ciência que relaciona corpo e espaço. Nas

utopias protagonizadas pelo corpo um discurso é narrado pelas imagens,

somosdeslocadosparalugaresesituaçõesnasquaispodemosexistirinertesà

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finitudedocorpo,“parasuportaracondenaçãonascemasutopias”(2013,p.

8).

Diantedogiganteoudoclaudicante,dossuper-heróisdocinemaàsnarrativas

religiosas;especialmentenaatualidade,somosatodotempomediadospelas

imagens:aexploraçãoimagéticaparaumcorpoincorpóreoaparecenacultura

contemporâneacapturadapelatelatotal7.

Não faltam simulações para o incorpóreo em espaços espetaculares de

exaustiva simulação. O corpo incorporal desenhado por Foucault, “veloz,

colossal na sua potência, infinito na sua duração”(2013, p. 8) pode estar na

atualidadereduzidoàmeraimagem.

Seguindo os exemplos citados pelo autor, domais antigomito ocidental da

almaquenosdáexistênciaimaterialeeterna;àtatuagemeavestimenta,que

“fazemdocorpoumfragmentodeespaço imaginárioquesecomunicará (...)

comouniversodooutro”(Foucault,2013,p.12);seobservarmosospassantes

da via pública de uma cidade global como São Paulo, parece necessário

procuraroutrospreceitospararepararaquestãodaausênciaenotávelapatia.

Para Jean Baudrillard, as exaustivas imagens em circulação na tela total da

rededigitalsãoobscenas,nosentidodequenadaescondem,sãosedutorase

sem falhas, feitas de “signos permutáveis segundo a lógica da mercadoria”

(ApudFabbrini,2016,p.245).Fascinadospelasimagens“edulcoradas”(ibidem,

p.245),somosantecipadospormodelosquesubstituemaexperiênciadavida

vivida.

Hojeaabstraçãojánãoéadomapa,doduplo,doespelhoou do conceito. A simulação já não é a simulação de umterritório, de um ser referencial, de uma substância. É ageração pelos modelos de um real sem origem semrealidade:hiperreal.(1991,p.8)

7ParaJeanBaudrillardatela-totaléumjogodepalavrasconjugandoaideiadedominaçãodastelasdetelevisão,cinema,computador,etc.

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O imaginário protagonizado pelo corpo ou a utopia de um corpo que “seria

belo, límpido, transparente, luminoso, (...) sempre transfigurado” (Foucault,

1994,p.8),écapturadopelaexaustivainteraçãocomasimagensamplamente

difundidas pela tela total. Somos fascinados por imagens que substituem a

experiência.

Diante dos dispositivos virtuais comos quais convivemosno séc. XXI, vemos

comprimir a experiência da duração e das distâncias. Este fenômeno foi

precedidopelainérciadiantedesucessivaspaisagensemolduradaspelajanela

doautomóvelnasautoestradasparaaltavelocidade.Perdemosaconexãocom

o território e sua extensão desde que cruzamos grandes distâncias

confortavelmenteacomodadosnointeriordoautomóveloudoavião.

TECENDOHETEROTOPIAS

Noatualcontexto,emqueossentidosdocorpoestãocapturadosporimagens

hiper-reais em espaço-tempo comprimido, vale mobilizar a noção de

heterotopiatransmitidaporFoucault.Paraele,semdúvidanãohásociedades

sem heterotopia, é “uma constante em todo o grupo humano” (Foucault,

2013, p.8). Podemos até “classificar as sociedades, por exemplo, segundo as

heterotopias que elas preferem, segundo as heterotopias que elas

constituem”(Foucault, 2013, p.21). Os exemplos citados pelo autor para

refletirosespaçosdeheterotopia:ojardim,acolôniadeférias,oscolégiosde

rapazes,ocemitério,oteatro...nos incitaarefletiros lugaresdeheterotopia

noatualcontextourbanodacidadeglobal.

AartistaepesquisadoracariocaEleonoraFabião8experimentouemdiferentes

capitais pelo mundo suas Ações. Um catálogo com a documentação da

experiênciafoipublicadocomapoiodoprêmioRumosItaúCulturalem2015,

com imagens, anotações e textos críticos. Eleonora através de sua prática

8EleonoraédocenteligadaaoprogramadeformaçãoemArtesdaCenanaUFRJ.

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performática “desprograma a si e ao meio (...) acelera circulações,

intensidades, deflagra encontros, reconfigurações, conversas, faz coisas

acontecerem”(2013,p.5).

NasAções,compoucosmateriaismasenunciadosbemformulados,Eleonora

informa um processo estético-político, inserindo objetos do cotidiano em

tarefasaparentementesemsentido.

EmAçãocarioca#7: Jarros,Eleonorapermaneceemfrenteàestaçãocarioca

dometrôtransferindodeumjarroaoutro,umdebarroeoutrodeprata,uma

porçãodeáguaatéevaporar. “Foramnecessáriasmaisdequatrohoraspara

fazer300mldeáguadesaparecer”(2015,p.41).Emseudiárioeladescrevea

interaçãocomumapassantequeaabordaparaentenderdoque se trata.A

ação se repetiu em Fortaleza, intitulada Ação Fortalezense #5. Eleonora

descreveemseudiárioadiferençaculturaledostemperamentosnoconvívio

público nas diferentes capitais, os sentidos e associações levantados pela

mesmaaçãonosdoiscontextos.

No Rio de Janeiro, a artista na porta da estação do metrô ocupada com a

tarefaque,paraumapassantenão tinhasentido,emFortalezaogesto tinha

todo o significado e merecia ser acompanhado. Em Fortaleza um grupo de

pessoassepropõemaajudá-lanumaespéciedetrabalhocoletivorapidamente

assimilado.

“Eleonora, por via da sua performance – que invocam eativam tempos descolados de circuitos cronométricos,tempos quasematéria de tão vibráteis e que a arrastamparaumestadooutro,umpoucopara ládasincronia.Lá,num tempo- limite e num estado de existência fora doseixos,elaageefazagir.”(Lepecki,2015,p.332).

Aexperiênciadaduraçãonatarefacomas jarraspodeestarpróximodoque

Foucaultchamoutemposucrônicos.Emcontrastecomacidadeaceleradaem

contínua produtividade mercantil, um trabalho de aparente inutilidade se

instalacomduraçãoaverificar,provocaaoredoroimprevisto.

Desdeaderivasituacionistaaduração,emoposiçãoàcrescenteaceleraçãoda

cidade, é uma estratégia para novas maneira de habitar. Mover-se mais

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lentamente não significa definir uma duração objetiva como sendo devagar,

masrelativaesubjetiva,“significaumaoutraformadeapreensãoepercepção

doespaçourbano,quevaialémdarepresentaçãomeramentevisual”(Jacques,

2008);algoemoposiçãoaocorpopassivopeloexcessodevelocidade.

ParaRenatoCohen,aperformanceéumaartedefronteira“noseucontínuo

movimento de ruptura [...] tocando nos limites entre vida e arte.” (2013, p.

38).Segundoele,aperformanceestáligadaaummovimentomaior,aLiveArt,

aarteaovivoetambémaarteviva,queconsisteem“umamaneiradeencarar

a arte” (2013, p.38), em resgate de seu caráter ritual e capacidade

modificadora do instante presente pela ritualização de atos comuns da vida

cotidianacomodormir,comereandar.

Ao notar no cotidiano a adesão do corpo a aspectos imateriais, vale se

aproximardadançaporumanovaacepçãodecoreografia.“Adançaentendida

como teoria social da ação, e como teoria social em ação” (Lepecki, 2012,

p.45). Segundo Lepecki, a coreografia é essencialmente não metafórica e

puramentematerialista, não deve ser entendida como imagem, alegoria, ou

metáfora política, mas como a disposição que manipula os corpos uns em

relaçãoaosoutros.

Essa necessária antimetaforicidade requer a formação deum empirismo particular, atento aos modos comocoreografias são postas em prática, ou seja, dançadas.Antimetaforicidaderequerentendermosdequemodo,aoatualizar-se, ao entrar no concreto do mundo e dasrelações humanas, a coreografia aciona uma pluralidadede domínios virtuais diversos – sociais, políticos,econômicos, linguísticos, somáticos, raciais, estéticos, degênero – e os entrelaça a todos no seumuito particularplanodecomposição,sempreàbeiradosumiçoesemprecriandoumpor-vir.(2012,p.46)

Ao contrário da ideia de que os habitantes da cidade podem se mover

livremente, o que se percebe são rígidos limites para o corpo restrito ao

mínimo.NasruasdeSãoPaulovemosocorpodoshabitantescontroladopor

umacoreografiadesenhadaporpreceitosmateriaiseimateriaisexternosaele,

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uma espécie de “suporte necessário para conter a efemeridade, a

precariedade,odeslimitedoagir”(Lepecki,2012,p.48).

Foucault, poucos anos depois da transmissão radiofônica intitulada

heterotopias, foi convidado pelo grupo de arquitetos do círculo de estudos

arquiteturais de Paris para uma conferência. Nesse contexto o pensador

atualizousuanoçãodeheterotopiaparaheterotopologia;estavaemcursosua

genealogia dos equipamentos coletivos, uma pesquisa empírica em

equipamentos hospitalares que, segundo ele, se tornaram acima de tudo

estruturasdevigilância.

Oqueestáemrelaçãoaocorpoeoinforma,controlaevigia,sereproduziuem

outrasformasarquiteturais,nosmaisvariadosequipamentosquecompõema

cidade.PorémparaFoucault,nãosetratadeanalisarformasarquiteturaismas

tecnologiasdopoder.

Diante desta realidade o gesto do artista com seus programas de ação,

reconfigurandoporummomentooambienteeasrelações,naescaladeseu

corpo,abrequestionamentosdiantedeestruturasagigantadas.Aindaqueseja

evidente a incompatibilidade de escala, o dissenso, uma experiência, fica

impressanoscorposdoquealiestiveram.

A experiência de duração na performancePermanência para os Encarnados,

de autoria da pesquisadora que aqui escreve, permite refletir as noções de

corpoutópicoeheterotopia.Aperformanceconsistenapermanênciaporno

mínimo 5 horas caracterizada por um traje que cobre todo o corpo. A ação

teve oito horas de duração numa sexta-feira em julho de 2015 no Largo da

Batata em Pinheiro, São Paulo, região de grande circulação de pessoas em

tornodaestaçãoFariaLimadometrô.

Acorporeidadequesustentaapermanênciaéaexpansãodarespiraçãocom

dimensões e tempos orgânicos, sendo portanto um expandir e recolher até

limitesextremos,alternandouma figuragrandeaoutrapequenapróximado

chão.Aspausasnopercursopermitiammúltiplas leituras.A indumentáriade

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tecido preto encorpado e com algum brilho, por alguns momentos faz

desaparecerafigurahumanaemdetrimentodeumconstructo.

O programa atua como um dispositivo de presença e encontro e provocou

contaminaçõesnospassantes(figura3).Peladuraçãoinsistenteemsilêncio,a

performance Permanência para os Encarnados produz incômodos quando

distorceanoçãodetempoecorpocotidianos.Aaçãovemdespertandoefeitos

curiosamente diferentes em relação ao entorno, porém é unânime

questionamentosacercadanãoidentificaçãodegênero.

Cobrir-se e recusar ser identificado em convívio público produz inúmeros

desconfortos;algunssearriscarameminvestigarafigura,seaproximandopara

verpor entre as fendasdo traje.Dianteda constataçãode se tratardeuma

mulher, foramrecorrentesosataques testandoos limites.Quandoprotegida

por agentes de mediação, inserida em programações e eventos culturais,

notou-sefruiçãomaisinterrogativa,masaindaassimhouveramaglomerações

deumpúblicomasculinoàesperadotérmino.

A performance aconteceu em diferentes cidades, foi possível pôr a prova o

comportamento dos transeuntes e habitantes de diferentes procedências.

Dianteda indefiniçãodeum sujeito e umpropósito, a atmosfera ao redor é

sempre de dúvida, o que provocou inevitáveis diálogos entre pessoas

desconhecidas.(Figuras4e5).

Apermanênciaporoitohorassemintervalo,semveroentornomasouvindo,

tornava-me profundamente sensível ao ambiente, à luz do sol... Foi como

entraremcontatocomtudo,comoimediatamenteaoredor,ospassantes,as

edificações,osautomóveisemmovimento,osaviões;mastambémcomuma

duraçãoeternaedesmedidasporçõesdeterritório.

Quanto ao corpo, não existiram discursos imagéticos para um corpo forte e

resistente que me ajudasse a continuar, sua condição material se tornou

líquida fluidez. A imagem de um corpo inabalável foi substituída pela

experiência corpórea sem imagem,mas pura sensação. No que se refere ao

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espaço, na medida em que a ação durava, o ambiente deixou de ser uma

localizaçãonomapadacidade,massetornavaumaporçãodatopografia.

Afinal, a ciência preparada por Michel Foucault na década de 1960 merece

contínuasatualizações. Emdiálogocomapráticadaperformance, asnoções

de corpo utópico e heterotopia nos permite refletir o problema da cultura

contemporânea:quandoocorpoéinvariavelmentereduzidoameraimagem,

eporelasomosmediados;eaexperiênciadoespaço-tempocomprimidos.

Figuras3:PermanênciaparaosEncarnados,2015.Fonte:ÉricoMarmiroli

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Figuras4e5:PermanênciaparaosEncarnados,2015.Fonte:ÉricoMarmiroli

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BIBLIOGRAFIACITADA

Baudrillard,Jean.TelaTotal:mito-ironiasdaeradovirtualedaimagem;traduçãodeJuremirMachadodaSilva.4.Ed.PortoAlegre:Sulina;2005.

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