[foucault, michel] o corpo utópico, as heterotopias

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Este livro nasceu de um texto de Borges. Do riso que, com sua leitura, perturbatodas as familiaridades do pensamento — do nosso: daquele que tem nossa idade enossa geografia —, abalando todas as superfícies ordenadas e todos os planos quetornam sensata para nós a profusão dos seres, fazendo vacilar e inquietando, pormuito tempo, nossa prática milenar do Mesmo e do Outro. Esse texto cita “umacerta enciclopédia chinesa” onde será escrito que “os animais se dividem em: a)pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e)sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i)que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito finode pêlo de camelo, l) et cetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longeparecem moscas”. No deslumbramento dessa taxinomia, o que de súbito atingimos,o que, graças ao apólogo, nos é indicado como o encanto exótico de um outropensamento, é o limite do nosso: a impossibilidade patente de pensar isso.

TRANSCRIPT

Um outro tom de Foucault Um outro Foucault Mais confessional e mais proximo da literatura 0 CORPO UT6PICO AS HETEROTOPIAS reline duas conferencias de 1966 que permaneciam ineditas ate recentemente seguidas de um posfacio assinado por Daniel Defert

Em todo caso uma coisa e certa 0 corpo humano e 0 ator principal de todas as utopias Minai uma das mais vel has utopias que os homens contaram para si mesmos nao e 0 sonho de corpos imensos desmesurados que devorariam 0 espa~o e dominariam o mundo E a velha utopia dos gigantes que encontramos no cora~ao de tantas lendas na Europa na Africa na Oceania na Asia esta velha lenda que M tao longo tempo nutre a imaginacao ocidental de Prometeu a Gulliver (0 corpo ut6pico)

Pois bem sonho com uma cill1ncia - digo mesmo uma ci~ncia -que teria por objeto esses espa~os diferentes esses outros lugares essas contestac6es mfticas e reais do espato em que vivemos Essa cill1ncia estudaria nao as utopias po is e preciso reservar esse nome para 0 que verdadeiramente nao tem lugar algum mas as heteroshytopias espacos absolutamente outros e fortosamente a cill1ncia em questao se chama ria se chamara ja se chama heterotopologia (As heterotopias)

Dados Internacionais de Cataloga9atildeo na Publica9agraveo (CIP) (Cacircmara Brasileira do Livro SP Brasil)

13-12753

Foucault Michel 1926-1984 o corpo ut6pico As heterotopiacuteas Michel

Foucault posfaacutecio de Daniel Defert [traduccedilatildeo Salma Tannus Muchail] -- Satildeo Paulo n-l Ediccedilotildees 2013

Titulo original Les corps utopique Las heacuteteacuterotopies

Ediccedilatildeo bilingue portuguecircsfrancecircs

1 Espaccedilo (Filosofia) II Titulo IV Seacuterie

CDD-32107

fndices para cataacutelogo sistemaacutetico

1 Utopias Ciecircncia politica 321 07

lII[r~

r o CORPO UTOacutePICO AS HETEROTOPIAS com posfaacutecio de Daniel Defert LE CORPS UTOPIQUE LES HEacuteTEacuteROTOPIES postface de Daniel Defert copy Nouvelfes Eacuteditions Lignes 2009 copy n-1 ediccedilotildees 2013

Ediccedilatildeo bilrngue Portuguecircs - Francecircs ISBN 978-85-66943-07-8

O corpo utoacutepico e As heterotopias satildeo duas conferecircncias radiofoacutenicas proferidas por Michel Foucault nos dias 7 e 21 de dezembro de 1966 no France-Culture Estas conferecircncias foram objeto de uma ediccedillo em aacuteudio com o tiacutetulo de Utopias e heterotopias (lNA-Meacutemoires vives 2004) A conferecircncia As heterotoplas foi publicada em texto numa ediccedilatildeo reduzida revista pelo autor sob o tiacutetulo de Des espaces autres pela Eacuteditions Gallimard em Dits et Eacutecrits vol IV 1994

Embora adote a maioria dos usos editoriais do acircmbito brasileiro e finlandecircs n-1 ediccedilotildees natildeo segue necessariamente as convenccedilotildees das instituiccedilotildees normativas pois considera a ediccedilatildeo um trabalho de criaccedilatildeo que deve interagir com a pluralidade de linguagens e a especificidade de cada obra publicada

Projeto Graacutefico prodartbr Ecircrlco Peretta e Ricardo Munlz Fernandes Traduccedilllo Salma Tannus Muchail Revisllo Maruzia Dultra Assistente Editorial Isabela Sanches

A reproduccedilatildeo parcial deste livro sem fins lucrativos para uso privado ou coletlvo em qualquer melo Impresso ou eletr6nlco estaacute autorizada desde que citada II fonte Se for necessaacuteria a reproduccedilllo na rntegra solicita-se entrar em contato com os editores n-lpubllcatlonsorg

Este livro publicado no acircmbito do programa de auxiacutelio agrave publicaccedilatildeo 2013 Carlos Drummond de Andrade da Mediateca da Maison de France contou com o apoio do Ministeacuterio francecircs das Relaccedilotildees Exteriores e Europeias

Cet ouvrage publieacute dans le cadre du Programme dAlde agrave ia Publication 2013 Carlos Drummond de Andrade de la Meacutedlatheacuteque de la Malson de France beacuteneacuteficie du soutien du Ministeacutere franccedilais des Affawes Etrangecircres et Europeacuteennes

Libm bull tlliti bull Frrnli

REacutePUBLlQlIB FMNCcedilAISB

a MeacuteDIaTHecircQue MaisondeFrance

Este livro contou com o Progr amas de auxil ia agrave pUblicaccedilatildeo instituto francecircs

Cet ouvrage a beacuteneacuteficieacute du soutien des Programmes daide agrave la publication de IInstiacutetut franccedilais

~~c~Ts Impresso em Satildeo Paulo Novembro 2013

PaJRT

7 O CORPO UTOacutePICO

19 AS HETEROTOPIAS

33 POSFAacuteCIO

o CORPO UTOPICO

Do lugar que Proust ocupa docemente ansiosamente semshy

pre e a cada vez que desperta deste lugar se me us olhos estiveshy

rem abertos nao posso mais escapar Nao que de me paralise - pois afinal posso nao apenas mover-me e remover-me como

posso tam bern move-lo remove-lo muda-lo de localizaltao

apenas isto nao posso deslocar-me sem de nao posso deixa-Io la onde ele esta para ir-me a outro lugar Posso ate ir ao fim do mundo posso de manha sob as cobertas encolher-me fazershy

-me tao pequeno quanto possfvel posso deixar-me derreter na praia sob 0 sol e ele estara sempre comigo onde eu estiver Esta

aqui irreparavdmente jamais em outro lugar Meu corpo e 0

contrario de uma utopia e 0 que jamais se encontra sob outro

ceu lugar absoluto pequeno fragmento de espacyo com 0 qual no sentido estrito fao corpo

Meu corpo topia implaclveI Ese por sorte eu vivesse com

ele em uma especie de familiaridade gasta como se com uma sombra ou com as coisas de todos os dias que no fim das contas

nao enxergo mais e que a vida embacyou como as chamines os tetos que todas as tardes se ondulam diante de minha janela

No entanto todas as manhas a mesma presenlta a mesma ferida desenha-se aos meus olhos a inevitavel imagem imposta pelo espelho rosto magro ombros arcados olhar mfope sem cabeshy

los realmente nada belo E e nesta desprezivel concha da minha cabelta nesta gaiola de que nao gosto que sera preciso mostrarshy-me e caminhar e atraves desta grade que sera precisa falar alhar

CORPO UTOPICO

7

8 9 ser olhado sob esta pele deteriorar Meu corpo eacute o lugar sem

recurso ao qual estou condenado Penso afinal que eacute contra ele

e como que para apagaacute-lo que fizemos nascer todas as utopias

A que se deve o prestiacutegio da utopia a beleza o deslumbramento

da utopia A utopia eacute um lugar fora de todos os lugares mas um

lugar onde eu teria um corpo sem corpo um corpo que seria belo

llmpido transparente luminoso veloz colossal na sua potecircncia

infinito na sua duraccedilatildeo solto invisiacutevel protegido sempre transshy

figurado pode bem ser que a utopia primeira a mais inextirpaacuteshy

vel no coraccedilatildeo dos homens consista precisamente na utopia de

um corpo incorporal O paiacutes das fadas o paiacutes dos duendes dos

gecircnios dos maacutegicos este eacute o paiacutes onde os corpos se transportam

tatildeo raacutepido quanto a luz o paiacutes onde as feridas se curam com um

baacutelsamo maravilhoso na duraccedilatildeo de um relacircmpago o paiacutes onde

se pode cair de uma montanha e reerguer-se vivo o paiacutes onde se eacute visiacutevel quando se quiser invisiacutevel quando se desejar Se existir

um paiacutes feeacuterico eacute justamente para que eu seja priacutencipe encanshy

tado e que todos os janotas graciosos tornem-se peludos e vilotildees coccedilno pequenos ursos

bull Mas haacute tambeacutem uma utopia que eacute feita para apagar os corpos

Essa utopia eacute o paiacutes dos mortos satildeo as grandes cidades utoacutepicas

que nos foram deixadas pela civilizaccedilatildeo egiacutepcia Afinal o que satildeo as muacutemias Elas satildeo a utopia do corpo negado e transfigurado A

muacutemia eacute o grande corpo utoacutepico que persiste atraveacutes do tempo Existiram tambeacutem as maacutescaras de ouro que a civilizaccedilatildeo micecircnica

colocava sobre os rostos dos reis defuntos utopia de seus corpos gloriosos possantes solares terror dos exeacutercitos Existiram as

o CORPO UTOacutePICO

pinturas e as esculturas dos tuacutemulos onde jazem os que desde a

Idade Meacutedia prolongam na imobilidade uma juventude que natildeo

mais passaraacute Existem agora em nossos dias os simples cubos

de maacutermore corpos geometrizados pela pedra figuras regulares e brancas sobre o grande quadro negro dos cemiteacuterios E nessa

cidade de utopia dos mortos eis que meu corpo torna-se soacutelido

como uma coisa eterno como um deus

Poreacutem a mais obstinada talvez a mais possante dessas utopias

pelas quais apagamos a triste topologia do corpo nos eacute fornecida

desde os confins da histoacuteria ocidental pelo grande mito da alma

A alma funciona no meu corpo de maneira maravilhosa Nele

se aloja certamente mas sabe bem dele escapar escapa para ver

as coisas atraveacutes das janelas dos meus olhos escapa para sonhar

quando durmo para sobreviver quando morro Minha alma eacute

bela eacute pura eacute branca e se meu corpo lamacento - de todo modo

natildeo muito limpo - vier a sujaacute-la haveraacute sempre uma virtude

haveraacute uma potecircncia haveraacute mil gestos sagrados que a restabeleshy

ceratildeo na sua pureza primeira Minha alma duraraacute muito tempo

e mais que muito tempo quando meu corpo vier a apodrecer

Viva minha alma Eacute meu corpo luminoso purificado virtuoso

aacutegil moacutevel teacutepido viccediloso eacute meu corpo liso castrado arredonshy

dado como uma bolha de sabatildeo Eis entatildeo que em virtude de todas essas utopias meu corpo

desapareceu Desapareceu como a chama de uma vela que se

assopra A alma os tuacutemulos os gecircnios e as fadas o massacraram fizeram-no desaparecer num aacutetimo sopraram sobre seu peso e

sua fealdade e o restituiacuteram a mim deslumbrante e perpeacutetuo

o CORPO UTOacuteP1CO

10 11

r Mas na verdade meu corpo natildeo se deixa reduzir tatildeo facilshy

mente Afinal ele tem suas fontes proacuteprias de fantaacutestico possui

tambeacutem ele lugares sem lugar e lugares mais profundos mais

obstinados ainda que a alma que o tuacutemulo que o encantamento

dos maacutegicos Possui tambeacutem ele suas caves e seus celeiros tem

abrigos obscuros e plagas luminosas Minha cabeccedila por exemshy

plo ah minha cabeccedila estranha caverna aberta para o mundo

exterior por duas janelas duas aberturas sei disso pois as vejo

no espelho ademais posso fechar uma ou outra separadamente

E no entanto essas aberturas natildeo satildeo senatildeo uma soacute pois natildeo

vejo diante de mim senatildeo uma soacute paisagem contiacutenua sem divishy

saacuteo nem corte E dentro desta cabeccedila como se passam as coisas

Elas entram laacute - e estou muito seguro de que as coisas entram

na minha cabeccedila quando eu olho pois o sol se for demasiado

forte e me ofuscar dilacera ateacute o fundo do meu ceacuterebro - e no

entanto essas coisas que entram dentro da minha cabeccedila permashy

necem no exterior pois vejo-as diante de mim e eu por minha

vez devo me adiantar para alcanccedilaacute-las

Corpo incompreensiacutevel corpo penetraacutevel e opaco corpo

aberto e fechado corpo utoacutepico Corpo absolutamente visiacutevel

em um sentido sei muito bem o que eacute ser olhado por algueacutem da

cabeccedila aos peacutes sei o que eacute ser espiado por traacutes vigiado por cima

do ombro surpreso quando percebo isso sei o que eacute estar nu no

entanto este mesmo corpo que eacute tatildeo visiacutevel eacute afastado captado

por uma espeacutecie de invisibilidade da qual jamais posso desvenshy

cUh-lo Este meu crilnio atraacutes do meu cracircnio que posso tocar

com meUl dedal mas nunca ver este dorso que sinto apoiado

OCO~POU~

na pressatildeo do colchatildeo sobre o divaacute quando me deito mas que

somente surpreenderei pelo ardil de um espelho e o que eacute este

ombro cujos movimentos e posiccedilotildees conheccedilo com precisatildeo

mas que jamais poderei ver sem me contorcer terrivelmente

O corpo fantasma que soacute aparece na miragem dos espelhos e

ainda assim de maneira fragmentaacuteria Preciso verdadeiramente

dos gecircnios e das fadas da morte e da alma para ser ao mesmo

tempo indissociavelmente visiacutevel e invisiacutevel Ademais este corpo

eacute leve eacute transparente eacute imponderaacutevel nada eacute menos coisa que

ele ele corre age vive deseja deixa-se atravessar sem resistecircncia

por todas as minhas intenccedilotildees Eacute verdade Mas somente ateacute o

dia em que adoeccedilo em que se rompe a caverna de meu ventre

em que meu peito e minha garganta se bloqueiam se entopem

se fecham Ateacute o dia em que a dor de dentes estrala no fundo da

minha boca Entatildeo aiacute entatildeo deixo de ser leve imponderaacutevel etc

torno-me coisa arquitetura fantaacutestica e arruinada

Natildeo verdadeiramente natildeo haacute necessidade da maacutegica nem

do feeacuterico natildeo haacute necessidade de uma alma nem de uma morte

para que eu seja ao mesmo tempo opaco e transparente visiacutevel

e invisiacutevel vida e coisa para que eu seja utopia basta que eu

seja um corpo Todas aquelas utopias pelas quais eu esquivava

meu corpo encontravam muito simplesmente seu modelo e seu

ponto primeiro de aplicaccedilatildeo encontravam seu lugar de origem

no meu proacuteprio corpo Enganara-me haacute pouco ao dizer que as

utopias eram voltadas contra o corpo e destinadas a apagaacute-lo

elas nascem do proacuteprio corpo e em seguida talvez retornem

contra ele

o CORPO UTOacutePICO

12 13 Em todo caso uma coisa eacute certa o corpo humano eacute o ator

principal de todas as utopias Afinal uma das mais velhas utopias

que os homens contaram para si mesmos natildeo eacute o sonho de corpos

imensos desmesurados que devorariam o espaccedilo e dominariam

o mundo Eacute a velha utopia dos gigantes que encontramos no

coraccedilatildeo de tantas lendas na Europa na Aacutefrica na Oceania na

Aacutesia essa velha lenda que haacute taacuteo longo tempo nutre a imaginaccedilatildeo

ocidental de Prometeu a Gulliver

O corpo eacute tambeacutem um grande ator utoacutepico quando se trata de

maacutescaras da maquiagem e da tatuagem Mascarar-se maquiar-se

tatuar-se natildeo eacute exatamente como se poderia imaginar adquirir

outro corpo simplesmente um pouco mais belo melhor decorado

mais facilmente reconheciacutevel tatuar-se maquiar-se mascarar-se

eacute sem duacutevida algo muito diferente eacute fazer com que o corpo entre

em comunicaccedilatildeo com poderes secretos e forccedilas invisiacuteveis Maacutescara

signo tatuado pintura depositam no corpo toda uma linguagem

toda uma linguagem enigmaacutetica toda uma linguagem cifrada

secreta sagrada que evoca para este mesmo corpo a violecircncia do

deus a potecircncia surda do sagrado ou a vivacidade do desejo A

maacutescara a tatuagem a pintura instalam o corpo em outro espaccedilo

fazem-no entrar em um lugar que natildeo tem lugar diretamente no

mundo fazem deste corpo um fragmento de espaccedilo imaginaacuterio

que se comunicaraacute com o universo das divindades ou com o unishy

verso do outro Por ele seremos tomados pelos deuses ou seremos

tomados pela pessoa que acabamos de seduzir De todo modo a

maacutescara a tatuagem a pintura satildeo operaccedilotildees pelas quais o corpo eacute arrancado de seu espaccedilo proacuteprio e projetado em um espaccedilo outro

o CORPO UTOacutePICO

Ouccedilamos por exemplo este conto japonecircs e a maneira com

que um tatuador faz passar para um universo que natildeo eacute o nosso

o corpo da jovem que ele deseja O sol dardejava seus raios sobre

o rio e incendiav~ o quarto de sete esteiras Seus raios refletidos

na superfiacutecie da aacutegua formavam um desenho de ondas douradas

sobre o papel dos biombos e sobre o rosto da jovem profundashy

mente adormecida Seikichi apoacutes puxar a divisoacuteria tomou nas

matildeos seus instrumentos de tatuagem Durante alguns instantes

permaneceu mergulhado em uma espeacutecie de ecircxtase Era entatildeo que

ele saboreava plenamente a estranha beleza da jovem Parecia-lhe

poder ficar sentando diante desse rosto imoacutevel durante dezenas

e centenas de anos sem jamais sentir cansaccedilo nem fastio Como

outrora o povo de Mecircnfis embelezava a magniacutefica terra do Egito

com piracircmides e esfinges assim Seikichi com todo amor queshy

ria embelezar com seu desenho a pele viccedilosa da jovem Aplicoushy

-lhe entatildeo a ponta de seus pinceacuteis coloridos que segurava entre o

polegar o anular e o pequeno dedo da matildeo esquerda e agrave medida

em que as linhas eram desenhadas picava-as com a agulha que

segurava na matildeo direita

E se considerarmos que a vestimenta sagrada ou profana relishy

giosa ou civil faz com que o indiviacuteduo entre no espaccedilo fechado

do religioso ou na rede invisiacutevel da sociedade veremos entatildeo que

tudo o que concerne ao corpo - desenho cor coroa tiara vestishy

menta uniforme tudo isso faz desabrochar de forma sensiacutevel

e matizada as utopias seladas no corpo

Mas talvez fosse preciso descer mais por baixo da vestimenta

talvez fosse preciso atingir a proacutepria carne e veriacuteamos entatildeo que

o CORPO UTOcircPICO

14 15 em certos casos no limite eacute o proacuteprio corpo que retorna seu

poder utoacutepico contra si e faz entrar todo o espaccedilo do religioso

e do sagrado todo o espaccedilo do outro mundo todo o espaccedilo do

contramundo no interior mesmo do espaccedilo que lhe eacute reservado

Entatildeo o corpo na sua materialidade na sua carne seria como o

produto de seus proacuteprios fantasmas Afinal o corpo do danccedilarino

natildeo eacute justamente um corpo dilatado segundo um espaccedilo que lhe

eacute ao mesmo tempo interior e exterior E os drogados tambeacutem e

os possuiacutedos os possuiacutedos cujo corpo torna-se inferno os estigshy

matizados cujo corpo torna-se sofrimento resgate e salvaccedilatildeo

ensanguentado paraiacuteso

Verdadeiramente enganara-me haacute pouco ao crer que o

corpo jamais estivesse em outro lugar que era um aqui irremeshy

diaacutevel e que se opunha a toda utopia

Meu corpo estaacute de fato sempre em outro lugar ligado a todos

os outros lugares do mundo e na verdade estaacute em outro lugar

que natildeo o mundo Pois eacute em torno dele que as coisas estatildeo disshy

postas eacute em relaccedilatildeo a ele - e em relaccedilatildeo a ele como em relaccedilatildeo a

um soberano - que haacute um acima um abaixo uma direita uma

esquerda um diante um atraacutes um proacuteximo um longiacutenquo O

corpo eacute o ponto zero do mundo laacute onde os caminhos e os espaccedilos

se cruzam o corpo estaacute em parte alguma ele estaacute no coraccedilatildeo do

mundo este pequeno fulcro utoacutepico a partir do qual eu sonho

falo avanccedilo imagino percebo as coisas em seu lugar e tambeacutem

as nego pelo poder indefinido das utopias que imagino Meu

corpo eacute como a Cidade do Sol naacuteo tem lugar mas eacute dele que

saem e se irradiam todos os lugares possiacuteveis reais ou utoacutepicos

CORPO UTOacutePICO

As crianccedilas afinal levam muito tempo para saber que tecircm

um corpo Durante meses durante mais de um ano elas tecircm

apenas um corpo disperso membros cavidades orifiacutecios e tudo

isso soacute se organiza tudo isso literalmente toma corpo somente

na imagem do espelho De modo mais estranho ainda os gregos

de Homero natildeo tinham uma palavra para designar a unidade do

corpo Por paradoxal que seja diante de Troacuteia abaixo dos muros

defendidos por Heitor e seus companheiros natildeo havia corpos

mas braccedilos erguidos peitos intreacutepidos pernas aacutegeis capacetes

cintilantes em cima de cabeccedilas natildeo havia corpo A palavra grega

para dizer corpo soacute aparece em Homero para designar cadaacutever

Eacute o cadaacutever portanto o cadaacutever e o espelho que nos ensinam

(enfim que ensinaram aos gregos e agora ensinam agraves crianccedilas)

que temos um corpo que este corpo tem uma forma que esta

forma tem um contorno que no contorno haacute uma espessura um

peso em suma que o corpo ocupa um lugar Espelho e cadaacutever

eacute que asseguram um espaccedilo para a experiecircncia profundamente e

originariamente utoacutepica do corpo espelho e cadaacutever eacute que silenshy

ciam e serenizam encerrando em uma clausura - que para noacutes

hoje eacute selada esta grande coacutelera utoacutepica que corroacutei e volatiliza

nosso corpo a todo instante Graccedilas a eles graccedilas ao espelho e

ao cadaacutever eacute que nosso corpo natildeo eacute pura e simples utopia Ora

se considerarmos que a imagem do espelho estaacute alojada para

noacutes em um espaccedilo inacessiacutevel e que jamais poderemos estar laacute

onde estaraacute nosso cadaacutever se considerarmos que o espelho e o

cadaacutever estatildeo eles proacuteprios em um inatingiacutevel outro lugar desshy

cobrimos entatildeo que unicamente as utopias podem fazer refluir

o CORPO UTOacutePICO

16 nelas mesmas e esconder por um instante a utopia profunda e

soberana de nosso corpo

Seria talvez necessaacuterio dizer tambeacutem que fazer amor eacute senshy

tir o corpo refluir sobre si eacute existir enfim fora de toda utopia

com toda densidade entre as matildeos do outro Sob os dedos do

outro que nos percorrem todas as partes invisiacuteveis de nosso

corpo potildeem-se a existir contra os laacutebios do outro os nossos se

tornam sensiacuteveis diante de seus olhos semicerrados nosso rosto

adquire uma certeza existe um olhar enfim para ver nossas paacutelshy

pebras fechadas O amor tambeacutem ele como o espelho e como

a morte sereniza a utopia de nosso corpo silencia-a acalma-a

fecha-a como se numa caixa tranca-a e a sela Eacute por isso que ele eacute

parente tatildeo proacuteximo da ilusatildeo do espelho e da ameaccedila da morte

e se apesar dessas duas figuras perigosas que o cercam amamos

tanto fazer amor eacute porque no amor o corpo estaacute aqui

33 HETEROTOPIA TRIBULACcedilOtildeES DE UM CONCEITO ENTRE VENEZA BERLIM E LOS ANGELESl

No dia 14 de marccedilo de 1967) o Ciacuterculo de estudos arquiacuteteturais de Paris convidara Foucault a pronunciar uma conferecircncia sobre

() espaccedilo para a qual ele propocircs uma analiacutetica nova que batizou

de heterotopologia O texto desta conferecircncia teve circulaccedilatildeo

restrita reservada aos membros daquele ciacuterculo em forma datishy

lografada com exceccedilatildeo de extratos publicados em francecircs em

1968 na revista italiana LArchittetura2 ateacute sua publicaccedilatildeo em

Berlim no outono de 1984 no quadro da exposiccedilatildeo ldeacutee proshymsus reacutesultats no Martin-Gropius-Bau3bull

Essa exposiccedilatildeo foi a principal dentre as dezessete manifestashy

ccedilotildees com as quais a Internationale Bauausstellung (IBN) apreshy

sentou ao mundo o balanccedilo de suas atividades de reconstruccedilatildeo

e renovaccedilatildeo de Berlim Imaginava-se a reunificaccedilatildeo da cidadeshy

-capital que parecia estranhamente ilustrar os espaccedilos outros do

texto de Foucault de 1967 Autorizando sua publicaccedilatildeo pouco

antes da sua morte ocorrida em 25 de junho de 1984 o fi16sofo

a introduzira in extremis no corpus de seus escritos autorizados

I Oucra versatildeo deste texto fui publicada em 1997 no caraacutelogo de Dccummta X em Kassd 2 M Foucault Des espaces aurres EArthinura mJtlltck stvria vol XIII n 150 1968 pp 822-823 M Foucault Des espaces aurres AMes ~ darrhitt(lUrt ourubrofll984 pp 46-49 Eacute esla versatildeo t 1984 signincatiacuteVllmente diferente da que reproduzimos no presente volume que estaacute incluiacuteda cm IJIIiS et Eacutecrits Paris Gallimard t Iv texto n 360 (Martin-Gropius-Bau museu localizado em Berlim Inaugurado em 1881 - N da T) 4 IBA Exposiccedilatildeo internacional de consrruccedilatildeo sigla retomada mais adiante (N da T)

POSFAacuteCIO

34 Desde enrao () lCx ro f()i thlilldantllllllltl trad uzido e comenshy

tado C omo podl prrt na IICLt1 i1I(xplo rlllu d II ranrc vitae anos

Olllo nail c lO l llpn( nd clI Icrgll l1 tl t Edward Soja entushy

sia ~t1 IrolliOl OI l tl illlllli 1I 11I d 1 rmfflpIIf1fJI a Illlporrancia

1l0V(1 d(1 tp t1I t d1 (PH Itlld ldt I I dlvl III )dcrllmos intershy

pretl r 1 di qlIlCl1 ( IIII(~ I _I~ 111 dIIW 1)(1 7 II)IH e a hist6ria

dcs~c -i ltlIli ll 111111 1 h i~I( 1 ti l h 11I 1 11 IlIlp~o1(t A~ nocoes

dt nIt IIO ti t 11111 IllI l ln fU(IAII11I1 Utl l IIVO dc analise

suficic ll lc rnlc J ( fino plI dl 1t1lh lr IIl1n I lit I t trw sfOrmashy

coes tanto d le) diM lI 1m (I ~k~ PII 11101111 c politicos

dos arquitctos t lIIhalli tl 11(11 1 II I Ulll ~ IIJII UItlS quan to da

problematica do cspao 11 11 I ~llll( de 1 -(~~ IIc1I

Linguagem e espa~o

Voce se lembra daqude l(k~I III I1 1111 Ihl III I ir l1nro em

que urn arquiteto via uma nova Ltl JlU~lIj I 11III1~mo Mas

isto nao estava em urn livro Cst I VI 1 111111 I ~ I I 1111111 nll1fcrencia

radiofonica sobre a utopia Pedt lll li lt pw II l( nll~1 1111 dia J3 ou 14 de marco

Esta carta escrita em Sidi BOil ~ai 1 1I1I di1 2 dt lIlano de

1967 e 0 testemunho mais antigo do ( I ll II II I IIJ d f~ FI)lllluJrcom

os arquitetos Em 7 de dezembro dt I )h h li e tll ~ld lll de uma

serie radiofonica chamada de Cuhlll1 rI( I tlllsagrada a 5 amp1 Soja Rembrance of ocher spaces in [he ciradd LA 114(rO Jrftj

Politics 3 1990 p 1 39 Art igo dcscnvolvulo em Ed Soja Ij Rral Imagined Plam Cambridg~ (Mss) Blockwell 1996

6 P Bou rJi cu Quesr-cc q Ut fai l e parler urn ) U[lur A prop d Mit Ii t l I --I ~ ~~h III f~r n

plitmtlltions n especial tlSureiUcr er punic vingt aIl~ pres II Iltl T ~lI ltI L ~middotIIn II t IH

lgto~AClO

35 u topia ele fora convidado a falar sobre Utopia e Literatural

Pactindo de uma evocacao bachelardiana daqueles espacos que

encantam os jogos infantis como os celeiros 0 fundo do jardim

a tenda de Indios ou a cama dos pais verdadeiras utopias localishy

zadas sonhou com uma ciencia que teria por objeto estes espashy

cos diferentes que sao a contestacao dos espaltos onde vivemos

nao uma ciencia das utopias mas das heterotopias cie ncia dos

espacos absolutamente ourros Esta ciencia 011 hecerotopologia

que esta em vias de nascer que ji cxistc c cujos prindpios ele

enunciara naquele dia

As emissoes radiofonicas de Foucault - nas quais de se reveshy

lava urn maravilhoso contista - respondiam aenorme curiosishy

dade suscitada desde a primavera de 1966 pela publicacao de

As Palavras e as coisas 8bull 0 livro se abria com a descricao de uma

improvavd enciclopedia chinesa inventada por Borges segundo

a qual os animais se distribufam em quatorze classes do seguinte

tipo a) pertencenres ao imperador b) embalsamados c) domesshy

ticados k) desenhados com urn pincel muito fino de pelo de

cameoj I) et cetera m) que acabam de quebrar a biJha Esta

desordem que faz cintilar os fragmentos de urn grande numero

de ordens possiveis fora batizada por Foucault de heterotopia

o termo se opunha a utopia etimologicamente nao lugar e nao

eu-topia como se tende a crer Mas se as utopias narram urn lugar

7 M Foucault Uwpi( bem opi quivo sonora de 7 e 2 1 de dczombro de 19(6 CCOIrc Midd Foucaul t DibLioth~uc dc IIM EC-Cacn (eeditad em diso pdo INA em 2004 (rNA In iw Ntiorul de IAudinvisucl - Nd T)

8 M Foucault Ln Mots a Choses Paris Gallimard 1966 (TC3d u~() b silt ira de S T Muchail As PaiArdH as coilas Sao Paulo Martins Fontes 1981 - N da n

POSFAClO

36 37 que natildeo existe desabrocham contudo em um espaccedilo imaginaacuteshy

rio e por isso situam-se na linha reta do discurso pois desde

o fundo dos tempos a linguagem se entrecruza com o espaccedilo A lista de Borges ao contraacuterio estanca as palavras nelas proacuteprias pois a heterotopia arruiacutena natildeo somente a sintaxe das frases como

tambeacutem aquela menos manifesta que autoriza manter juntas as palavras e as coisas9

A impossibilidade em que se encontra nosso pensamento para pensar esse heteroacuteclito radical da classificaccedilatildeo de Borges tesshytemunha um limite do pensamento o mesmo limite que ainda

experimentamos diante das classificaccedilotildees proacuteprias agraves culturas que nos satildeo radicalmente estranhas Quando Victor TurnerlO descreve como os Ndembu da Zacircmbia reuacutenem em uma mesma

classe os caccediladores as viuacutevas os doentes e os guerreiros isto

natildeo implica um espaccedilo de pertenci menta concebido como tershyritoacuterio comum nem um espaccedilo de pertencimento concebido

como ramificaccedilotildees definidas por propriedades formais como

aquele no qual n6s distribuiacutemos os reinos da natureza nem a linearidade arbitraacuteria de uma ordem alfabeacutetica com a qual nosshy

sos dicionaacuterios ordenam o heteroclito no espaccedilo Ele descreve um sistema de analogias de similitudes entre propriedades simshyboacutelicas cujas interconexotildees precisamos traccedilar em uma paacutegina em branco a fim de compreender esse sistema ou o espaccedilo de similitudes Natildeo se pode pensar sem o suporte de um espaccedilo de ordem sem esta zona mediana que Foucault qualifica

9 M FOUaacutelulr Les MolJ ks Choses op dto prefaacutecio p 9 (Ar Plarmu l1li cow pp 5-8 _ N d T) 10 Victor Turner (1920-1983) antropoacutelogo britilnico (N da T)

de arqueoloacutegica por sob nossas percepccedilotildees nossos discursos nossos saberes onde se articulam o visiacutevel e o enunciaacutevel a linshy

guagem o olhar e o espaccedilo

Na emissatildeo radiofocircnica de 7 de dezembro de 1966 Foucault fez um uso totalmente diferente de sua noccedilaacuteo de heterotopia Primeiro ela eacute pertinente natildeo mais a uma anaacutelise dos discursos

mas dos espaccedilos Lugares tatildeo heteroacuteclitos como o espelho o cemiteacuterio a casa de toleracircncia ou a colocircnia polineacutesia de feacuterias em

Djerba entram em uma categoria especiacutefica de espaccedilos-tempos quer este tempo seja provisoacuterio como o tempo uacutenico da defloshy

raccedilatildeo no espaccedilo da viagem de nuacutepcias quer este tempo seja ao contraacuterio cumulativo de temporalidades - atemporal- no lugar da biblioteca ou do museu

Essas unidades espaccedilo-temporais esses espaccedilos-tempos tecircm em comum serem lugares onde estou e natildeo estou como o espeshy

lho ou o cemiteacuterio ou onde sou outro como na casa de toleracircnshy

cia na colocircnia de feacuterias ou na festa carnavalizaccedilotildees da existecircncia

ordinaacuteria Eles ritualizam cortes limiares desvios e os localizam As normas humanas natildeo satildeo todas universalizaacuteveis as da

disciplinarizaccedilatildeo do trabalho e as da transfiguraccedilatildeo pela festa

naacuteo podem desenrolar-se na linearidade de um mesmo espaccedilo ou de um mesmo tempo eacute preciso uma forte ritualizaccedilaacuteo das rupturas dos limiares das crises Estes contraespaccedilos poreacutem saacuteo

Interpenetrados por todos os outros espaccedilos que eles contestam o espelho onde natildeo estou reflete o contexto onde estou o cemishyteacuterio eacute planejado como a cidade haacute reverberaccedilatildeo dos espaccedilos uns nos outros e contudo descontinuidades e rupturas Haacute

POSlACIO

POSFACIO

38 39 enfim como que um eterno retorno desses rituais espaccedilo-temshy

porais e se natildeo universalizaccedilatildeo das mesmas formas ao menos

uma universalidade de sua existecircncia Eles satildeo apreendidos em

uma sincronia e uma diacronia especiacuteficas que fazem deles um

sistema significante entre os sistemas da arquitetura Natildeo refleshy

tem a estrutura social nem a da produccedilatildeo natildeo satildeo um sistema

soacutecio-histoacuterico nem uma ideologia mas rupturas da vida ordishy

naacuteria imaginaacuterios representaccedilotildees polifocircnicas da vida da morte

do amor de Eacuteros e Taacutenatos

A carta de Foucault de 2 de marccedilo de 1967 deixa vazar um

Utopias e heterotopias O Ciacuterculo de estudos arquiteturais era animado entre 1960 e

1970 por Jean Dubuisson seu presidente arquiteto do Museu

(te Artes e Tradiccedilotildees Populares do Bosque de Boulogne e Ionel

Schein que indicava os conferencistas a serem convidados ao

Boulevard Raspail nuacutemero 38 Era um dos raros ciacuterculos de

reflexatildeo de arquitetos sem corporativismo no qual nos anos

cinquenta e sessenta Ionel Schein gozava da lisonjeira reputaccedilatildeo

de agitador de ideias e de radicalismo em arquitetura I I Foi ele

segundo Jean Dubuisson quem convidou Foucault As confeshy

recircncias eram anotadas em estenografia e depois datilografadas e

do arquiteto Natildeo natildeo fora o livro (As Palavras e as coisas) que

desapontamento a arqueologia do olhar natildeo retivera o olhar entregues aos membros do Ciacuterculo Pierre Riboulet - arquiteto

trouxera em germe uma nova concepccedilatildeo do urbanismo livro do entre outros do hospital Robert-Debreacute - conservou sua coacutepia

qual o filoacutesofo esperava a provocaccedilatildeo de rupturas no pensamento Ele se lembra das precauccedilotildees oratoacuterias do filoacutesofo para introduzir

No entanto estas rupturas foram suficientemente ruidosas pelo seu propoacutesito a insistecircncia sobre sua ignoracircncia quanto agraves preshy

menos ateacute o ruiacutedo de 1968 para que Foucault viesse a deixar ocupaccedilotildees dos arquitetos As referecircncias -satildeo tomadas da histoacuteria

tanto o tumulto da gloacuteria quanto o das polecircmicas pela serenidade das ciecircncias (Koyreacute Bachelard) da criacutetica literaacuteria a-p Richard

da luminosa vila de Sidi Bou Sald no alto do golfo de Cartago e Ianchot) da psicanaacutelise existencial (Binswanger) assuntos

a paz - sempre difiacutecil - da escritura Heterotopia vivida O que todos eles sobre os quais Foucault jaacute havia desenvolvido suas

chegara aos ouvidos do arquiteto era uma linguagem menor obsessotildees do espaccedilo12

um daqueles jogos literaacuterios nos quais Foucault tinha um prazer Para marcar seu entusiasmo agrave saiacuteda dessa conferecircncia Robert

guloso juacutebilo incessantemente decepado pela ascese da escrishy Auzelle um dos pensadores da reconstruccedilatildeo da Franccedila a partir

tura contenccedilatildeo que se lecirc na didaacutetica da conferecircncia reescrita d()s anos cinquenta lhe entregou sua histoacuteria da arquitetura

esta para os arquitetos certamente mas os jogos literaacuterios ficam II ltuklt tas infOrmaccedilotildees sobre o Circulo de tstutIos arqumlumis me foram fOrnecidas por P Riboulet

aqui finalmente retranscritos com todo respeito agrave integralidade Illxprcssatildeo utilizada por Fouault in Quesdons agrave Michel Fouault sur la geacuteographie HiroIIote n I 1lt)76 pp 71-85 retomada em Diu et Eacutecriu t m n 169 Paris Gallimard 1994 p 33 (Trad bras de

sonora da qual nasceram K Machado e A L de Souza Sobre a geografia in Microflsica do potUacuter Rio de Janeiro Graal 1979 1IIU-165-N daT)

POSFAacuteCIOPOSFAco

40 41 funeraacuteria e dos cemiteacuterios13 uma das heterotopias de Foucault

Em O Nascimento da cllnica14 Foucault descrevera como a anatoshy

mopatologia havia integrado a morte no conhecimento da vida

oferecer-lhe a hist6ria da integraccedilatildeo dos cemiteacuterios na planificashy

ccedilatildeo urbana provava a perfeita cumplicidade entre seus ouvintes

e o conferencista a negatividade estava no cerne da racionalishy

dade Ela estava no cerne das anaacutelises de Foucault pelo menos ateacute Vigiar epunit5

Foi no final deste mesmo ano de 1967 que Jean-Luc Godard

em A Chinesa fez sua heroiacutena a estudante pr6-chinesa interpreshy

tada por Alme Wiazemsky jogar tomates em um exemplar de As Palavras eas coisas entio um livro siacutembolo por suas descontinuishy

dades abruptas do pensamento no tempo da negaccedilatildeo da hist6ria e portanto da negaccedillo da revoluccedilatildeo

A confercncia de 1967 poderia ter outra circulaccedilatildeo aleacutem da

c6pia datHografada entre os membros do Circulo O pr6prio

Circulo natildeo possuiacutea uma revista e nlo editava nenhuma de suas

conferecircncias Por outro lado as concepccedilotildees que entatildeo partilhashy

vam os arquitetos deviam muito a Le Corbusier e agrave Bauhaus agrave

racionalizaccedilatildeo das formas e agrave legibilidade do espaccedilo urbano

concebido como um texto pontuado com referecircncias espaccedilos

ou edifiacutecios Franccediloise Choay que Foucault frequentara nos anos

13 R AuzeUe Derniim Dmlnlm Paris ed do autor 13 PIace du Panrlleacuteon 1965 14 M Foucault Naissanct de la ClitlUacuteJue Paris PUF 1963(Trad bru de R Machado ONtUCimentIJ da clnCIt ruo d Janeiro Forense-Universitaacuteria 1977 - N da T) 15 M Foucaul Survdlkr tIPunir Paris Gallimard 1975 A obra apresenta o panoacuteptico de Benthrun como um acontecimento na histoacuteria do esplrito humanomiddot epropotildee uma anill1sc do poder em termos d produccedilatildeo e natildeo de repressatildeo (Trad bras de R Ramalhete VIgiar11mr Pett6poliacutes Vous 1987 _ N da T)

ttenta reconstitui essas problemaacuteticas em Urbanisme utopies et rtaiteacutesl6

Um urbanismo progressista humanista que se sustentava

111amp carta de Atenas l7 e em uma racionalidade crescente ou um

urbanismo culturalista para o qual cada forma eacute siacutembolo e que

(Ilha com nostalgia para a harmonia das cidades passadas estas

tmm as ideias reguladoras da razatildeo urbaniacutestica Estas ideias

rCguladoras jaacute natildeo talhavam em pontilhado o espaccedilo da utopia

em que viria a desdobrar-se ap6s 1968 o discurso arquitetural e

urbano em uma dissoluccedilatildeo do objeto cidade no seio das relaccedilotildees

udais capitalistas A cidade como totalidade formal ou racional

I1Ao foi deslocada pelo capitalismo O espaccedilo natildeo eacute uma imensa

paacutegina em branco onde se escreve desde cerca de dois seacuteculos a

Illetanarraccedilaacuteo do capital Naacuteo estaacute aiacute o impensado geral o natildeo

dito de todas essas divisoacuterias construiacutedas entre as classes os sexos

C as geraccedilotildees

O fasciacutenio das escolas de arquitetura pela visita a cidades

patronais estas utopias realizadas como o familisteacuterio de Guise

unstruiacuteda por Godin ou a cidade Menier de Noisiell8 testeshy

munha que o discurso arquitetural e urbaniacutestico francecircs dos anos

etenta se desdobrava no espaccedilo da utopia Os promotores dessas

cidades natildeo estariam entre os primeiros a inventar o consumo

em massa Um reduzia as dimensotildees da milenar e dispendiosa

1111( Choay UrbanisIM UtIJpits tt rlaitis Paris Seuil 1965 17 Carta de Atenas manifesto do IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (Ciam) Atn 1933 (N da T) I Pamllisteacuterio de Guise espeacutecie de comunidade ou cidade operaacuteria inspirada em Charles Fourier IIl1nmulda em 1846 por J-BGodln para habitaccedilatildeo de operaacuterios de sua induacutestria Menler de Noisiel IDmunldade de operaacuterios da ptoduccedilatildeo de chocolates fundada por A B Menier em 1925 nas imediaccedilotildees bull arl (N da T)

POSFAtildeCIO POSFAacuteCIO

42 43 lareira a um aquecedor domeacutestico outro um medicamento dos

exeacutercitos napoleocircnicos a um complemento alimentar industrial

o tablete de chocolate Natildeo teriam eles articulado da maneira

mais restrita a racionalizaccedilatildeo do consumo com a da ocupaccedilatildeo do

espaccedilo A racionalizaccedilatildeo da cidade patronal como a fragmentaccedilatildeo

do espaccedilo urbano o homog~neo como o heterogecircneo conduziam

a um mesmo crivo de leitura infalsificaacutevel a espacializaccedilatildeo do

capital O arquiteto tornava-se o teacutecnico passivo da operacionashy

lizaccedilatildeo das estrateacutegias e das normas do capital

Mostra-se uacutetil falar indiferentemente das utopias preacute-urshy

banistas das cidades operaacuterias de Haussmann da Bauhaus do

funcionalismo dos Shakers dos grandes conjuntos das cidades

novas por toda parte afirma-se perigosamente uma racionalishy

zaccedilatildeo do espaccedilo inerente agrave extensatildeo universal do capital uma

propensatildeo de sua ordem de troca ou da ordem simplesmente podia-se ler na revista Traverse19bull

Genealogia dos equipamento coletivol Eacute a partir de 1972 que Foucault desenvolve pesquishy

sas em equipe sobre a histoacuteria dos equipamentos coletivos

Primeiramente com o Centro de estudos pesquisas eformaccedilatildeo instishytucional- ou Cerfi - animado pelo psiquiatra Feacutelix Guattari que

conclui entatildeo com Gilles Deleuze a redaccedilatildeo do seu Anti-Eacutediptldeg

19 B Eizykman Urbanismo Travme n 4 1976 citado por A Thalamy in PolltilJues tk lhabitat Corda

1977 p 14 (o nome Shaker designa um movimento de grupos religiosos fundado na Inglaterra no seacuteculo XVIII que - agrave semelhanccedila dos Amish- vivem em suas proacuteprias comunidades _ N da T) 20 G Deleuze F Guattari LAnti-CEdipe Paris Minuit 1972 (Trad bras de L B L Orlandi O Antishy-Eacutedipo Satildeo Paulo 34 2010 - N da T)

( rliacuteldo em 1965 com pesquisadores em ciecircncias sociais dissidenshy

trN do Partido Comunista Francecircs (PCF) o Cerfi apoacutes 1970 I()( em questatildeo sua cultura marxista submetendo-a a uma dupla

Inova 1) a do procedimento genealoacutegico praticado em Histoacuteria Ioucura e O Nascimento da cliacutenica 2) a de uma clarificaccedilatildeo

IIlN relaccedilotildees libidinais que todo pesquisador manteacutem com o

uhjeto de sua pesquisa (a ambivalecircncia da reflexatildeo urbaniacutestica

frente agrave racionalidade capitalista natildeo escapava a ningueacutem) e que

UIe pesquisadores mantecircm entre si como grupo social hierarquishy

uto e sexuado

O relato da realizaccedilatildeo dessa dupla prova publicada na revista

do Cerfi21 eacute provavelmente um dos mais interessantes diaacuterios de

hordo da travessia ideoloacutegica daqueles anos Ali se assiste como

lue em um laboratoacuterio agrave desagregaccedilatildeo da anaacutelise marxista e

~ emergecircncia daquilo que logo seraacute batizado de atitude poacutesshy

-moderna O empreendimento eacute descrito por seus autores como

uma estranha maacutequina feita de peccedilas e pedaccedilos emprestados do

Ilenealogista Foucault surrupiadas do depoacutesito do cientista biceacuteshy

falo Deleuze-Guattari

O genealogista Foucault eacute de fato uma nova imagem social

do filoacutesofo o procedimento genealoacutegico soacute estaraacute francamente

c()nfirmado a partir de seu ensino no Colge de France inaugurado

em dezembro de 1970 Ademais a partir de 1971 juntamente

com Deleuze ele anima um movimento militante o Grupo de

JI (eacuteneacutealogie du capital- I Les eacutequipements du pouvoir Recherches n 13 dezembro1973 Um s6 bullbullbullmplo de uma retomada das hettrotopias por H umre a propoacutesito de La Pensuuml marxiste de la vilte IIrlbullbull Casterman 1972

POSFAacuteCJO POSFAacuteCIO

44 45 informarao sobre as prisoes (GIP) enraizado na extrema esquerda

Foucault disc ute com 0 Cedi que trabalha sobre a cidade22

a abordagem genealogica dos equipamemos coletivos e a poe

em pritica sobretudo no seu seminario do College de France 0

seminario e consagrado aemergencia do medico como perito

no seculo XIX atraves da pericla psiquiatrica em medicina legal

por urn lado e por outro como engenheiro que comribui para

a definicao das normas e formas da arquitetura hospitalar Urn

arquiteto Bruno Fortier responsavel pelo Centro de estudos epesshy

quisas em arquitetura (Cera) participa doravame dos trabalhos

de pesquisa desse seminario

Se a expressao equipamemo coletivo nao figura nos textos

do seculo XVIII a maquina de curar definida pelo medico

Tenon como ideal do hospital moderno neles tern lugar A

arquitetura hospitalar escreve Tenon2 nao pode mais constishy

tuir-se de rotina c tateamemos devendo responder a multiplas

prcocupacentes estancar 0 contagio pela distribuicao das salas e

dns leiros a circuhlltao do ar tavorecer a diss()cia~ao dos doemes

c das d()cn~as a vigilancia dos dotntcs e do pessoal manifestar

a hierarquia do olhar medico ter em coma as necessidades da

populacao 0 que serve para curar nao e a regularidade do trashy

cado mas a justeza da arquitetura 0 modelo deve ser perfeito

- nao se podendo mais em nada muda-Io - acabado repetivel

Pela primeira vez em 1788 escreve Bruno Fortier propoe-se

22 Ruhhl1 n 13 op cir pp 27middot31 (Dits ~I fcrit n 129 n 130) 23 J-R Tenon M moirs sur It~middot api fl llX tie P1ris Paris 1788

aos arquitetos a imitacao como urn dever24 as tipologias norshy

mativas seguem os exemplos oferecidos pela historia A justeza

da arquitetura nasce do tratamemo de uma rede de questoes disshy

timas - c1imaticas demogdficas estatisticas higienicas medicas

disciplinares - que tern cada qual seu lugar de emergencia sua

racionalidade seus promotores que respondcm a uma multiplishy

cidade de taticas - tecnicas de vigilancia de producao de saber

de efetuacao de poderes de medica l iza~lo c de saude publica

Elas podem ser descritas como segmemos analogos Oll repetidos

ao infinito de urn so texto de um escrevcnrc unico Illitico e

unitario 0 capital

Certamente esses novos edificios incorporam dticas de

vigil an cia encomradas fora sob outras formas arquiteturais shy

colegios casernas - taticas e formas que puderam preceder e

sustemar a emergencia da organizacao capitalista do trabalho e

que poderao proliferar para alem dela por exemplo nos vast os

arquipelagos do socialismo siberiano Eque fundamemalmeme

nao estamos Iidando nem com formas arquiteturais nem com

modos de producao mas com tecnologias de poder Foi na busca

destas arquiteturas maquinas tao ajustadas aos seus objetishy

vos que Foucault veio a redescobrir 0 que logo tornou-se parashy

digma de sua obra 0 panoptico de Bcntham2 do qual Poyet26

24 M Fo ucault D Barrer-Kriegel A Thahmy F Btgllin B tllrlicr L-IVIi(Jilln II X4lrir (m4JI l)rigill ~1

de OJOpilil modnrl~) Paris lnsri ru[ de J cnvi ronncm cnt 1976 rccd Hruu lOl) Iirc M~rda8Q J~79

25 J Bcmham Le Panoptiqui p rcccdido de Loeil du pouI-vir cnrrcmiddotvisru Om Michel Fou~ult P~ ri s

Bdfond 1977 (faC-ltimik da cdjao franccsa de 179 1) (Trod bras d bullbullm rvi 0 Ih do poder por A L de S OU-1 in Microfli ra tQ pokr op Ci l pp209-227 - N d 1)

26 B Poyet M h noiu sur a niassili d( Iransera lt u collsrlli r tIf-fj rd-lhrm w ill dull pm)lmiddotr It

traminlioll k eel hopil4l Paris 1785

IOSFACIO pOSFAeiO

46

47 desenhara uma interpretaccedilatildeo para a reconstruccedilatildeo da Santa Casa de Misericoacuterdia Os trabalhos do seminaacuterio do College de Frante sobre a arquitetura hospitalar no final do seacuteculo XVIII recebeshy

ram duas ediccedilotildees uma em Paris em 1976 outra em Bruxelas em 1979 Les Machints agravegutrir27

O segundo estudo coletivo dirigido por Foucault teve por objeto o habitatentre 1800 e 185018 Foi conduzido por Franccedilois

Beacuteguin hoje historiador da paisagem e da arquitetura colonial29bull

Ametodologia ~ a mesma que a precedente no lugar de partir de

uma histoacuteria das formas da habitaccedilAo ou da cidade os pesquisashydores inventariaram as pr~tlcllll discursivas que circunscreveram e

codificaram o habitat como obJero de intervenccedilatildeo administrativa e politica entre 1800 e 1850 - a doenccedila o emprego a domestishycaccedilatildeo de equipamentos como a ~gua a iluminaccedilatildeo a ventilaccedilatildeo

e o desenvolvimento de uma crescente jurisdiccedilatildeo sobre o espaccedilo

puacuteblico em cuja intersecccedillo se connroacutei o habitat Eacute preciso prishy

meiramente desfazer-se da pregnAncla da casa desmineralizaacute-la desconstruiacute-la escreve F B6guln

Poder saber es~

Eacute a partir de vtgiar t punir (1975) e de sua raacutepida circulaccedilatildeo Iacutemernacional- traduzido rapidamente em cerca de vinte liacutenguas - que as anaacutelises foucaultianas do espaccedilo recebem uma visibilishy

dade nova como lugar de uma dupla articulaccedilio do poder sobre

27 M fucault B Barrer-Kriegd A Thalamy F Beacutepdn B fIorllr ln MtIthllltt 4 gubir op cit 28 ]-M A1Haume B Barret-Kriegcl F Seguin D Ranclere A lhalamy PDitifUtt tk lhabitat 18()() 1850 Paris Corda 1977 (estudo realizado sob a direccedilAo de M Poucaull)

29 De F Beacuteguin citemos principalmente ArabIacuteSlUlett dko illChlmhI4 ubitill Afoque du Norri 1830-1850 Paris Dunod 1983 e Paysagtt Paris Flammarlon 19

o corpo do indiviacuteduo e do saber ao poder Seguem-se numerosos estudos sobre a arquitetura da vigilacircncia publicados na Itaacutelia e na Gratilde-Bretanha principalmente3deg De modo mais geral socioacuteshy

logos e planificadores urbanos comeccedilam a referir-se a Foucault

A Leaman escreveu em Environment and Plannintl que a obra de Foucault eacute doravante importante para os urbanistas planifishy

cadores e arquitetos por sua anaacutelise das qualidades normativas

das estruturas e das instituiccedilotildees Sharon Zukin considera que a cidade estaacute doravante incluiacuteda nas anaacutelises de uma economia

do poder segundo o meacutetodo desenvolvido em vtgiar e punir32bull

Esse eacute o contexto em que reaparecem as heterotopias na escola de arquitetura de Veneza em dezembro de 1977 prishymeiro estudo sobre seu uso possiacutevel em uma histoacuteria dos espashyccedilos II dispositivo Foucault 33 que reuacutene ensaios de M Cacciari

F RelIa M Tafuri G Teyssot A capa como a de Machines agrave gueacuterir reproduz um plano de arquitetura panoacuteptico para um

hospital inglecircs Os autores se referem essencialmente a Vtgiar e punir e exceto T eyssot a uma reuniatildeo de textos de Foucault sobre o poder publicado neste mesmo ano pela editora Einaudi

Microfisica deipotert4 a incidecircncia poliacutetica desta uacuteltima coletacircnea

lO Ver especialmente HinmJmd primeiro ano n 3 maio-junho1978 n triliacutengue intitulado Segrtgazione corpo sociak consagrado agraves atquitetuta de vigilanda jl A Leaman in Environmmtand Planning n 111979 pp 1079-1082 H Sh Zukin Adecade cfilie new urban sociology 1heoryand Society 91980 pp 575-601 H M Cacdari F Relia M Tafuri G Teyssor II dispositillO Foucaut Veneza Cluva 1977 4 M Iltlucaullt MimfoIacuteCIJ rktpoYrt inkrUtntipoitici editado por Iltlnrana e Pasquino Turin Einudi 1977 retomado e completado pelo movimento alternativo berlinense Dispositive tkr Macht Betlin Merve 1978 (A reuniaacuteo d textos que compotildecm a ediccedilatildeo italiana a=sdda de oUtros textos reltebeu traduccedilaacuteo brasileira de R Machado e OUrtOS Micrufisica do potkr Rio de Janeiro Graal 1979 Foi publicada tambeacutem uma ediccedilaacuteo espanhola com algumas alteraccedilotildees dos tcxtos sdeclonados trad por J Varela e F A1varez-UrIacutell Madri La Piquem 1978 - N da T)

POSFAacuteCIO

POSFAclO

48 49 foi imediata logo reforccedilada pela traduccedilatildeo de Rhizome de Deleuze

e GuattarP livros que se tornaram referecircncias teoacuterico-poliacutetishy

cas do movimento chamado Autonomie (do poliacutetico subenshytenda-se) que incomodava a esquerda do PCI engajado na

estrateacutegia do compromisso histoacuterico ~ esta incidecircncia poliacutetica

que os italianos batizaram de leffeto Foucault36 que eacute o alvo de 1 dispositivo Poucault

A introduccedilatildeo agrave coletAnea escrita por F Rella eacute perfeitamente expliacutecita desde Jogo travare as anaacutelises foucaultianas da pluralishy

dade das relaccedilotildees de poder em uma metafisica do poder de um poder abstrato imaterial supostamente em toda parte e portanto

politicamente em parte alguma liA uacutenica histoacuteria dos poderes eacute

uma histoacuteria dos espaccedilos atraveacutes dos quais o poder se mostra E

apoiando-se no artigo de Teyssot como uacutenica fonte de conhecishy

mento das heterotopias prossegue O nlo lugar do poder situashy

-se no centro de uma infinidade de localizaccedilotildees heterotoacutepicas

A heterotopia torna-se entatildeo um dado central em Foucault

e a hetero topologia a fenomenologia da dlspersio anaacuterquica do

poder A conclusatildeo desta interpretaccedilatildeo eacute previsiacutevel Natildeo se comshy

bate mais o poder doravante investidp em uma miriacuteade de locashylizaccedilotildees [ou dispositivos] mas a tirania das teorias globalizantesraquo

Teorias que Rella explicita precisando em nota leffeto Marx37 Na verdade Teyssot38 natildeo comenta a confer~ncia de 1967

35 G Deleuu F Guattari Rhizo1M Paris Minuit 1976 Rizoma ParrnalL~uea Pradche 1977 36 Em italiano no original (N da T)

37 Em italiano no original (N da T)

38middotG Teyssot Eterotopia e storiadegli spazi II displJlitirm FOllcault pp 83-86 e HelerolOpies and the historyofspaccs Arcbiacutetlctureandurbaniacutesm 121 1980 pp 79-100

mas o uso taxinocircmico do prefaacutecio de As Palavras eas coisas aplishy

cando-o a um projeto de hospital do seacuteculo XVIII descrito pelo

historiador J-c Perrot39bull Seu plano distribui como uma grade

em oiro construccedilotildees distintas oito classes de pensionaacuterios tatildeo

heterogecircneos quanto as categorias de animais da enciclopeacutedia de

Borges a) os prisioneiros a pedido de suas famiacutelias b) os loucos

os prisioneiros por edito real c) as crianccedilas pobres e legiacutetimas

dedois a nove anos os idosos os mendigos as prostitutas acoshy

metidas de doenccedilas veneacutereas d) as crianccedilas bastardas de mais

de nove anos etc Eacute a incongruecircncia do conteuacutedo que designa

a arquitetura como heterotopia e naacuteo o jogo de oposiccedilatildeo ou de contestaccedilaacuteo qualitativa ou simboacutelica dos outros espaccedilos que este

uacuteltimo institui por sua funccedilaacuteo sua forma suas rupturas

O uso da heteroropia feito por T eyssot de modo algum transshy

creve a inscriccedilaacuteo profunda da espacialidade na ttalidade da

existecircncia humana a heterogeneidade e a descontinuidade dos

tempos vividos os limiares da vida as crises bioloacutegicas (iniciashy

ccedilatildeo puberdade defloraccedilatildeo) Eacuteros e Taacutenatos As espacializaccedilotildees

da subjetividade sob todas as suas formas da casa de toleracircncia agrave

sauna e natildeo somente as grandes funccedilotildees da carta de Atenas receshy

beram em todas as culturas uma inscriccedilatildeo especiacutefica no espaccedilo

em espaccedilos que entretecircm entre si natildeo uma relaccedilatildeo de divisatildeo como interioridadeexterioridade margemcentro puacuteblicol prishy

vado mas um jogo formal de diferenciaccedilatildeo e de reverberaccedilatildeo

em suma no registro da comunicaccedilatildeo Tanto Relia que faz do

W J-C Perrot Genes du vilk mo Cam ali XVII sdele Paris Mouton 1975

POSFAacuteCIO

POSgtAClO

51

50 espaccedilo foucaultiano o receptaacuteculo neutro e contiacutenuo das hetero- topias do poder - concepccedilatildeo globalizante - quanto T eyssot que

faz da heterotopia a articulaccedilatildeo arquitetural das incongruecircncias

do mundo - concepccedilatildeo loealista - carecem ambos da terceira dimensatildeo aquela propriedade do espaccedilo de se remeter a si mesmo

na espessura de um jogo formal e simboacutelico de contestaccedilatildeo e de

reverberaccedilatildeo em uma fragmentaccedilatildeo que natildeo eacute segmentaccedilatildeo este Thirding que E Soja assim teoriza no Instituto de urbanismo de LosAngtlts na UeLA the Thirding as othering40

Essa primeira recepccedilatildeo das heterotopias pela escola de arquitetura de Veneza representada por II dispositivo Foucault mostra a ambiguidade da noccedilatildeo de recepccedilatildeo natildeo se trata de uma compreensatildeo exata nem de uma real instrumentalizaccedilatildeo mas de uma reimplantaccedillo poUss~mica e poMmica em uma rede de

debates poJJticos por um lado e de um questionamento episteshymoloacutegico por outro

Em julho de 1976 Foucault relembra pela primeira vez sua confercncia de 1967 em uma entrevista sobre o panoacuteptico de

Bentham publicada em 1977 mencionada aliaacutes por Teyssot Seria necessaacuterio escrever toda uma histoacuteria dos espaccedilos que fosse

ao mesmo tempo uma histoacuteria dos poderes desde as grandes estrateacutegias da geopoliacutetica ateacute as pequenas taacuteticas do habitat da arquitetura institucional da sala de aula ou da organizaccedilatildeo hosshy

pitalar passando pelas implantaccedilotildees econOacutemico-poliacuteticas Eacute surshypreendente ver quanto o problema dos espaccedilos levou tanto tempo

40 Bd Soja 7huacutelspact Journeys to Los Angks a11( Othtr lUa11( ltilM Ptampts Cambridge (Mass)Blackdl 1996

para aparecer como um problema histoacuterico-poliacutetico Lembro-me que haacute cerca de dez anos falei destes problemas de uma poliacutetica

dos espaccedilos e de me terem respondido que era bastante readoshy

naacuterio insistir tanto sobre o espaccedilo e que o tempo o projeto era a vida e o progresso 41

Uma histoacuteria foucaultiana dos espaccedilos mais precisamente

da espacializaccedilatildeo do poder mais precisamente ainda da inscriccedilatildeo

no espaccedilo colonial- heterot6pico - desse regime de poder partishycular que se desenvolve a partir do seacuteculo XVIII e que Foucault designa de biopoder42 a partir do qual os problemas de espaccedilo tornam-se politicamente diferentes eacute o projeto que no comeccedilo dos anos oitenta empreendem o antropoacutelogo Paul Rabinow43 e a historiadora do habitat americano Gwendolyn Wright44bull Nem

eles nem Franccedilois Beacuteguin conheciam a conferecircncia de 1967

Em uma entrevista que Rabinow e Wright fizeram com

Foucault em 198245 publicada em Skyline46 revista americana de

arquitetura o filoacutesofo lembra suas obsessotildees pelo espaccedilo e como

atraveacutes destas obsessotildees cheguei ao que eacute fundamental para mim as relaccedilotildees que satildeo possiacuteveis entre o poder e o saber

41 MFoucault J Bentham Lotil pouvoir in L Panoptiacuteque Opcil (Veja-se em traduccedilaacuteo brasileira de A L de SOU7 O olho do poder in Microfiacutesica b podtr op cit- N da T) 42 M Foucaull La Volon tk savoir Paris Gallimard 1976 cap V Droil de mort et pouvoir SUl I vie (Trad bras de M T da C Albuquerque e J A Guilhon Albuquerque A Vontade tk saber Rio de Janeiro Graal 1977 - N d T) 43 P Rabinow Biopower in lhe Frrnch Coloits conferecircncia interdisciplinar sobr Foucault Knowledge Power HislOry Los Angeles 29-31 de oUlubrol1981 Frrneh Modn Norms and Forms of th SfJCial Enviacuteronmmt Cambridge (M) MIT Press 1989 44 G Wright 7he Poliacutetics ofDltsigns in the Frrnch Colonial Urbanism Chicago University Preso 1991 45F B~n Arabisanm op cil 46 M Foucaull Space knowledge power entrerien avec P Rabinow Skyline marccedilo11982 pp 16-20 retomada em Dits tt Eacutecrits t N n 340 pp 270-285

POSFAacuteCIO

POSFAacuteCIO

53

52

A arquitetUra e o urbanismo naacuteo constituem diz ele um campo isoshylaacutevel Misturam-se com muacuteltiplas praacuteticas e discursos mas o espaccedilo

eacute o lugar privilegiado de compreensatildeo de como o poder opera

Inversamente ele bane da praacutetica do arquiteto toda esperanccedila

utoacutepica Os homens sonharam com maacutequinas libertadoras Mas por definiccedilatildeo natildeo existem maacutequinas de liberdade Jamais

a estrutura das coisas tem competecircncia para garantir a liberdade Nada eacute funcionalmente libertador A liberdade eacute o que se deve exercer a garantia da liberdade eacute a liberdade

Mestre doravante de um discurso poliacutetico e epistemoloacutegico sobre o espaccedilo Foucault deixa entatildeo ressurgir seu antigo conceito de heterotopia Diga-se entre parecircnteses lembro-me de ter sido

convidado por um grupo de arquitetos em 1966 para realizar um estudo do espaccediloi tratava-se do que na eacutepoca chamei de heterotopias espaccedilos singulares que encontramos em alguns

espaccedilos sociais cujas funccedilOes satildeo diferentes das dos outros ou tershy

minantemente opostas Os arquitetos trabalhavam neste projeto e no final do estudo algueacutem tomou a palavra _ um psicoacutelogo

sanreano - para me bombardear que o espaccedilo era reacionaacuterio e capitalista enquanto a histoacuteria e o devir eram revolucionaacuterios

Agravequela eacutepoca este discurso absurdo de modo algum era inabitual Hoje em dia qualquer um se dobraria de rir ouvindo aquilo

Natildeo haacute como natildeo se impressionar com esta longa anamnese em dois tempos primeiro em 1976 relativamente agrave objeccedilatildeo poliacuteshy

tica feita em 1967 e em 1982 enfim relativamente ao proacuteprio conceito de heterotopia em 1984 Foucault podia acolher favoshy

ravelmente a reutilizaccedilatildeo de sua conferecircncia pelo IBA de Berlim

Os dois organizadores da exposiccedilatildeo o alematildeo Johannes Gachnang e o italiano Marco de Michelis conheciam esse texto

em sua publicaccedilatildeo de 1968 em Architteturri7bull Ele sintonizava

estranhamente com a estrateacutegia do IBA tal como foi exposta por

um de seus dois responsaacuteveis J-P Kleihues48 executar a ideia

de uma cidade por fragmentos falar de arquitetur~ urbana sem traccedilar primeiramente um plano global de urbanismo respeitar

a variedade histoacuterica e topograacutefica berlinense pensar a composhysiccedilatildeo da cidade por ilhotas e ateacute confiar a diversos arquitetos a

reconstruccedilatildeo das residecircncias em uma mesma ilhota E por ocashy

siatildeo de uma reunificaccedilatildeo eventual justificar a conservaccedilatildeo da arquitetura staliniana

Sua traduccedilatildeo americana ocorreu em 1986 publicada prishy

meiramente na revista interdisciplinar de ComeU Diacriticis depois na revista de arquitetura LOtu9 Inaugurava-se uma carshy

reira nova para a interpretaccedilatildeo qualitativa dos espaccedilos outros

Natildeo se compreenderia esta carreira sem a simultaneidade da trashy

duccedilatildeo dos volumes II e III de Histoacuteria da sexualidaJe5deg a partir

dos quais Foucault torna-se uma referecircncia para aquilo que os americanos denominam poliacuteticas da identidade Movimentos

feministas movimento gay grupos eacutetnicos constituem a nova

47 Infurmaccedilaacuteo obtida com e1cs e concedida por Franccediloise Jolr 48 J-r Kleihues Agrave propos de I viUe europeacuteenne entreVista com M Bourdeau AMeS outubroI984

pp 95-99 49 M Foucault Ofother spaces Diacritieacuteiacutes 16 n I 1986 pp 22-27 e Lotushmnational 1986 50 M Foucaulr lUage tUacutes pIAis Paris Gallimaa 1984 uacute Souci Je soi Paris Gtlimn 1984 trad

1ht Use ofPlrasU Harmondsworth Penguin 1985 1ht Ca Dfthe sg Harmondsworth Penguin 1986 (Trad bras de M T da C Albuquerque O USQ dos p e O CuiJmJo Je si Rio de Janeiro Graal 1984 e 1985 - N da T)

POSFAacuteCIO

POSFAacuteCIO

54 rede de inscriccedilatildeo e a nova avaliaccedilatildeo das heterotopias A histoacuteshy

ria dos modos de subjetivaccedilatildeo realizada por Foucault atravessa

textos como lhe spaces that diferences make do urbanista Ed

Soja51 Gendered Spaces da feminista Daphne Spain52 lhe New Cultural Politics ofDijforence de Cornel West53 ou Geographical lmaginations do geoacutegrafo Derek Gregory54

Lugar de emergecircncia da heterotopia a anaacutelise literaacuteria dela

se apropria com Brian McHale Michel de Certeau5S a anaacutelise

fiacutelmica com Giuliana Bruno56bull Foucault torna-se passagem obrishy

gatoacuteria para toda anaacutelise do espaccedilo constata Soja

O mesmo se passa com as artes plaacutesticas Apresentando as

obras do artista plaacutestico cubano Felix Gonzalez-Torres Nancy

Spector descreve uma experiecircncia de ambiente heterotoacutepico

realizada em Manhattan57bull Em vinte e quatro paineacuteis de anuacutencio

publicitaacuterio das instalaccedilotildees urbanas de Manhattan Gonzalezshy

-Torres afixou o contraespaccedilo constituiacutedo por imensa foto em preto

e branco da intimidade de uma cama exposta Desnudamento

absoluto de um puro roccedilar de lenccediloacuteis leve traccedilado de duas cabeshy

ccedilas no vaacuteo entre os dois travesseiros onde cada qual pode proshy

jetar ou a interrupccedilatildeo do sono ou o amor consumado ou mais

51 Ed Soja The spa= that dlfenna makc ln M Kelm e S PIlbullbull PI4u iI1III lhe Politics olidmtiacutety NQVlI Iorque Roudedge 1993 pp 183middot205 52 D Spain Glt1JIUacutertaacute Spam Chapei Ht11 Unlverlty ofCarolIna Pras 1992 53 CWest 1M Ntw Cultural Politict oIDifimut ot h 1M Dilm_ ofrJu BIa lnttlkcttuuacute Ferguson 1994 54 D Gregory Gtographicalmaginatiacuteons citado ln Ed Soj hitrlspace Carobridge Bladltwell 1994 55 B McHale Post Moaacuteernist Fietion Nova Iorque Routledge 1988~ M de Certeau HettrologitS Discouffl 01tlu Otbtr Manchester Manchester University Presa 1986 56 G Bruno Bodlly ArchirecturesAltrtmblag 19 dezembro1992 57 N Spector Ptilt GonzakzmiddotTorres The Solamon R Guggenheim Museum Nova Iorque 1995

radicalmente a advertecircncia do artista uma decisatildeo de 1986 da

Corte suprema autoriza doravante a justiccedila em todo Estado em

que a sodomia eacute ainda um crime a persegui-la mesmo quando consentida entre adultos em suma a intimidade do espaccedilo prishy

vado da cama acaba de entrar no espaccedilo puacuteblico Esta articulashy

ccedilatildeo entre o puacuteblico e o privado poderia criar segundo Spector uma histoacuteria mais silenciosa a marca vazia do companheiro do

artista morto de aids

Maravilhosa intuiccedilatildeo no comeccedilo da confer~ncia radiofocircnica

de Foucault em 1966 daquela passagem inexistente na conferecircnshy

cia para os arquitetos em 1967 em que o fil6sofo evocava como

primeira figura da heterotopia a cama dos pais que as crianccedilas

gostam de invadir com um prazer de transgressatildeo e de sonho das origens Naacuteo poderiacuteamos concluir que aqui a longa seacuterie de

rein~riccedilotildees do texto em muacuteltiplas redes e estrateacutegias que a longa

seacuterie de transformaccedilotildees da figura social de seu autor encontram

neste instante de sua trajetoacuteria a mais completa forma de recepshyccedilatilde0 58 Foucault natildeo declarara tantas vezes que almejava menos

leitores que utilizadores59

58 Ed Soja Heterotopies remembrance Df other spaccs in me citadd LAraquo Strattgies a jIJurna 01 tbeory culturt anaacute poines 3 1990 pp 1middot39 Post metropolis Critiacutecal Stuties 01 Ctti naacute Rtglgtnt Londle$ Blackwdl 2000 59 Em 200I uma associaccedilatildeo cultural italiana denominada EttrotpirJ publicou uma releitura de textos de Foucaulr sobre o espaccedilo sob o titulo Spnialtri

POSFAacuteCIO POSFAacuteCIO

Dados Internacionais de Cataloga9atildeo na Publica9agraveo (CIP) (Cacircmara Brasileira do Livro SP Brasil)

13-12753

Foucault Michel 1926-1984 o corpo ut6pico As heterotopiacuteas Michel

Foucault posfaacutecio de Daniel Defert [traduccedilatildeo Salma Tannus Muchail] -- Satildeo Paulo n-l Ediccedilotildees 2013

Titulo original Les corps utopique Las heacuteteacuterotopies

Ediccedilatildeo bilingue portuguecircsfrancecircs

1 Espaccedilo (Filosofia) II Titulo IV Seacuterie

CDD-32107

fndices para cataacutelogo sistemaacutetico

1 Utopias Ciecircncia politica 321 07

lII[r~

r o CORPO UTOacutePICO AS HETEROTOPIAS com posfaacutecio de Daniel Defert LE CORPS UTOPIQUE LES HEacuteTEacuteROTOPIES postface de Daniel Defert copy Nouvelfes Eacuteditions Lignes 2009 copy n-1 ediccedilotildees 2013

Ediccedilatildeo bilrngue Portuguecircs - Francecircs ISBN 978-85-66943-07-8

O corpo utoacutepico e As heterotopias satildeo duas conferecircncias radiofoacutenicas proferidas por Michel Foucault nos dias 7 e 21 de dezembro de 1966 no France-Culture Estas conferecircncias foram objeto de uma ediccedillo em aacuteudio com o tiacutetulo de Utopias e heterotopias (lNA-Meacutemoires vives 2004) A conferecircncia As heterotoplas foi publicada em texto numa ediccedilatildeo reduzida revista pelo autor sob o tiacutetulo de Des espaces autres pela Eacuteditions Gallimard em Dits et Eacutecrits vol IV 1994

Embora adote a maioria dos usos editoriais do acircmbito brasileiro e finlandecircs n-1 ediccedilotildees natildeo segue necessariamente as convenccedilotildees das instituiccedilotildees normativas pois considera a ediccedilatildeo um trabalho de criaccedilatildeo que deve interagir com a pluralidade de linguagens e a especificidade de cada obra publicada

Projeto Graacutefico prodartbr Ecircrlco Peretta e Ricardo Munlz Fernandes Traduccedilllo Salma Tannus Muchail Revisllo Maruzia Dultra Assistente Editorial Isabela Sanches

A reproduccedilatildeo parcial deste livro sem fins lucrativos para uso privado ou coletlvo em qualquer melo Impresso ou eletr6nlco estaacute autorizada desde que citada II fonte Se for necessaacuteria a reproduccedilllo na rntegra solicita-se entrar em contato com os editores n-lpubllcatlonsorg

Este livro publicado no acircmbito do programa de auxiacutelio agrave publicaccedilatildeo 2013 Carlos Drummond de Andrade da Mediateca da Maison de France contou com o apoio do Ministeacuterio francecircs das Relaccedilotildees Exteriores e Europeias

Cet ouvrage publieacute dans le cadre du Programme dAlde agrave ia Publication 2013 Carlos Drummond de Andrade de la Meacutedlatheacuteque de la Malson de France beacuteneacuteficie du soutien du Ministeacutere franccedilais des Affawes Etrangecircres et Europeacuteennes

Libm bull tlliti bull Frrnli

REacutePUBLlQlIB FMNCcedilAISB

a MeacuteDIaTHecircQue MaisondeFrance

Este livro contou com o Progr amas de auxil ia agrave pUblicaccedilatildeo instituto francecircs

Cet ouvrage a beacuteneacuteficieacute du soutien des Programmes daide agrave la publication de IInstiacutetut franccedilais

~~c~Ts Impresso em Satildeo Paulo Novembro 2013

PaJRT

7 O CORPO UTOacutePICO

19 AS HETEROTOPIAS

33 POSFAacuteCIO

o CORPO UTOPICO

Do lugar que Proust ocupa docemente ansiosamente semshy

pre e a cada vez que desperta deste lugar se me us olhos estiveshy

rem abertos nao posso mais escapar Nao que de me paralise - pois afinal posso nao apenas mover-me e remover-me como

posso tam bern move-lo remove-lo muda-lo de localizaltao

apenas isto nao posso deslocar-me sem de nao posso deixa-Io la onde ele esta para ir-me a outro lugar Posso ate ir ao fim do mundo posso de manha sob as cobertas encolher-me fazershy

-me tao pequeno quanto possfvel posso deixar-me derreter na praia sob 0 sol e ele estara sempre comigo onde eu estiver Esta

aqui irreparavdmente jamais em outro lugar Meu corpo e 0

contrario de uma utopia e 0 que jamais se encontra sob outro

ceu lugar absoluto pequeno fragmento de espacyo com 0 qual no sentido estrito fao corpo

Meu corpo topia implaclveI Ese por sorte eu vivesse com

ele em uma especie de familiaridade gasta como se com uma sombra ou com as coisas de todos os dias que no fim das contas

nao enxergo mais e que a vida embacyou como as chamines os tetos que todas as tardes se ondulam diante de minha janela

No entanto todas as manhas a mesma presenlta a mesma ferida desenha-se aos meus olhos a inevitavel imagem imposta pelo espelho rosto magro ombros arcados olhar mfope sem cabeshy

los realmente nada belo E e nesta desprezivel concha da minha cabelta nesta gaiola de que nao gosto que sera preciso mostrarshy-me e caminhar e atraves desta grade que sera precisa falar alhar

CORPO UTOPICO

7

8 9 ser olhado sob esta pele deteriorar Meu corpo eacute o lugar sem

recurso ao qual estou condenado Penso afinal que eacute contra ele

e como que para apagaacute-lo que fizemos nascer todas as utopias

A que se deve o prestiacutegio da utopia a beleza o deslumbramento

da utopia A utopia eacute um lugar fora de todos os lugares mas um

lugar onde eu teria um corpo sem corpo um corpo que seria belo

llmpido transparente luminoso veloz colossal na sua potecircncia

infinito na sua duraccedilatildeo solto invisiacutevel protegido sempre transshy

figurado pode bem ser que a utopia primeira a mais inextirpaacuteshy

vel no coraccedilatildeo dos homens consista precisamente na utopia de

um corpo incorporal O paiacutes das fadas o paiacutes dos duendes dos

gecircnios dos maacutegicos este eacute o paiacutes onde os corpos se transportam

tatildeo raacutepido quanto a luz o paiacutes onde as feridas se curam com um

baacutelsamo maravilhoso na duraccedilatildeo de um relacircmpago o paiacutes onde

se pode cair de uma montanha e reerguer-se vivo o paiacutes onde se eacute visiacutevel quando se quiser invisiacutevel quando se desejar Se existir

um paiacutes feeacuterico eacute justamente para que eu seja priacutencipe encanshy

tado e que todos os janotas graciosos tornem-se peludos e vilotildees coccedilno pequenos ursos

bull Mas haacute tambeacutem uma utopia que eacute feita para apagar os corpos

Essa utopia eacute o paiacutes dos mortos satildeo as grandes cidades utoacutepicas

que nos foram deixadas pela civilizaccedilatildeo egiacutepcia Afinal o que satildeo as muacutemias Elas satildeo a utopia do corpo negado e transfigurado A

muacutemia eacute o grande corpo utoacutepico que persiste atraveacutes do tempo Existiram tambeacutem as maacutescaras de ouro que a civilizaccedilatildeo micecircnica

colocava sobre os rostos dos reis defuntos utopia de seus corpos gloriosos possantes solares terror dos exeacutercitos Existiram as

o CORPO UTOacutePICO

pinturas e as esculturas dos tuacutemulos onde jazem os que desde a

Idade Meacutedia prolongam na imobilidade uma juventude que natildeo

mais passaraacute Existem agora em nossos dias os simples cubos

de maacutermore corpos geometrizados pela pedra figuras regulares e brancas sobre o grande quadro negro dos cemiteacuterios E nessa

cidade de utopia dos mortos eis que meu corpo torna-se soacutelido

como uma coisa eterno como um deus

Poreacutem a mais obstinada talvez a mais possante dessas utopias

pelas quais apagamos a triste topologia do corpo nos eacute fornecida

desde os confins da histoacuteria ocidental pelo grande mito da alma

A alma funciona no meu corpo de maneira maravilhosa Nele

se aloja certamente mas sabe bem dele escapar escapa para ver

as coisas atraveacutes das janelas dos meus olhos escapa para sonhar

quando durmo para sobreviver quando morro Minha alma eacute

bela eacute pura eacute branca e se meu corpo lamacento - de todo modo

natildeo muito limpo - vier a sujaacute-la haveraacute sempre uma virtude

haveraacute uma potecircncia haveraacute mil gestos sagrados que a restabeleshy

ceratildeo na sua pureza primeira Minha alma duraraacute muito tempo

e mais que muito tempo quando meu corpo vier a apodrecer

Viva minha alma Eacute meu corpo luminoso purificado virtuoso

aacutegil moacutevel teacutepido viccediloso eacute meu corpo liso castrado arredonshy

dado como uma bolha de sabatildeo Eis entatildeo que em virtude de todas essas utopias meu corpo

desapareceu Desapareceu como a chama de uma vela que se

assopra A alma os tuacutemulos os gecircnios e as fadas o massacraram fizeram-no desaparecer num aacutetimo sopraram sobre seu peso e

sua fealdade e o restituiacuteram a mim deslumbrante e perpeacutetuo

o CORPO UTOacuteP1CO

10 11

r Mas na verdade meu corpo natildeo se deixa reduzir tatildeo facilshy

mente Afinal ele tem suas fontes proacuteprias de fantaacutestico possui

tambeacutem ele lugares sem lugar e lugares mais profundos mais

obstinados ainda que a alma que o tuacutemulo que o encantamento

dos maacutegicos Possui tambeacutem ele suas caves e seus celeiros tem

abrigos obscuros e plagas luminosas Minha cabeccedila por exemshy

plo ah minha cabeccedila estranha caverna aberta para o mundo

exterior por duas janelas duas aberturas sei disso pois as vejo

no espelho ademais posso fechar uma ou outra separadamente

E no entanto essas aberturas natildeo satildeo senatildeo uma soacute pois natildeo

vejo diante de mim senatildeo uma soacute paisagem contiacutenua sem divishy

saacuteo nem corte E dentro desta cabeccedila como se passam as coisas

Elas entram laacute - e estou muito seguro de que as coisas entram

na minha cabeccedila quando eu olho pois o sol se for demasiado

forte e me ofuscar dilacera ateacute o fundo do meu ceacuterebro - e no

entanto essas coisas que entram dentro da minha cabeccedila permashy

necem no exterior pois vejo-as diante de mim e eu por minha

vez devo me adiantar para alcanccedilaacute-las

Corpo incompreensiacutevel corpo penetraacutevel e opaco corpo

aberto e fechado corpo utoacutepico Corpo absolutamente visiacutevel

em um sentido sei muito bem o que eacute ser olhado por algueacutem da

cabeccedila aos peacutes sei o que eacute ser espiado por traacutes vigiado por cima

do ombro surpreso quando percebo isso sei o que eacute estar nu no

entanto este mesmo corpo que eacute tatildeo visiacutevel eacute afastado captado

por uma espeacutecie de invisibilidade da qual jamais posso desvenshy

cUh-lo Este meu crilnio atraacutes do meu cracircnio que posso tocar

com meUl dedal mas nunca ver este dorso que sinto apoiado

OCO~POU~

na pressatildeo do colchatildeo sobre o divaacute quando me deito mas que

somente surpreenderei pelo ardil de um espelho e o que eacute este

ombro cujos movimentos e posiccedilotildees conheccedilo com precisatildeo

mas que jamais poderei ver sem me contorcer terrivelmente

O corpo fantasma que soacute aparece na miragem dos espelhos e

ainda assim de maneira fragmentaacuteria Preciso verdadeiramente

dos gecircnios e das fadas da morte e da alma para ser ao mesmo

tempo indissociavelmente visiacutevel e invisiacutevel Ademais este corpo

eacute leve eacute transparente eacute imponderaacutevel nada eacute menos coisa que

ele ele corre age vive deseja deixa-se atravessar sem resistecircncia

por todas as minhas intenccedilotildees Eacute verdade Mas somente ateacute o

dia em que adoeccedilo em que se rompe a caverna de meu ventre

em que meu peito e minha garganta se bloqueiam se entopem

se fecham Ateacute o dia em que a dor de dentes estrala no fundo da

minha boca Entatildeo aiacute entatildeo deixo de ser leve imponderaacutevel etc

torno-me coisa arquitetura fantaacutestica e arruinada

Natildeo verdadeiramente natildeo haacute necessidade da maacutegica nem

do feeacuterico natildeo haacute necessidade de uma alma nem de uma morte

para que eu seja ao mesmo tempo opaco e transparente visiacutevel

e invisiacutevel vida e coisa para que eu seja utopia basta que eu

seja um corpo Todas aquelas utopias pelas quais eu esquivava

meu corpo encontravam muito simplesmente seu modelo e seu

ponto primeiro de aplicaccedilatildeo encontravam seu lugar de origem

no meu proacuteprio corpo Enganara-me haacute pouco ao dizer que as

utopias eram voltadas contra o corpo e destinadas a apagaacute-lo

elas nascem do proacuteprio corpo e em seguida talvez retornem

contra ele

o CORPO UTOacutePICO

12 13 Em todo caso uma coisa eacute certa o corpo humano eacute o ator

principal de todas as utopias Afinal uma das mais velhas utopias

que os homens contaram para si mesmos natildeo eacute o sonho de corpos

imensos desmesurados que devorariam o espaccedilo e dominariam

o mundo Eacute a velha utopia dos gigantes que encontramos no

coraccedilatildeo de tantas lendas na Europa na Aacutefrica na Oceania na

Aacutesia essa velha lenda que haacute taacuteo longo tempo nutre a imaginaccedilatildeo

ocidental de Prometeu a Gulliver

O corpo eacute tambeacutem um grande ator utoacutepico quando se trata de

maacutescaras da maquiagem e da tatuagem Mascarar-se maquiar-se

tatuar-se natildeo eacute exatamente como se poderia imaginar adquirir

outro corpo simplesmente um pouco mais belo melhor decorado

mais facilmente reconheciacutevel tatuar-se maquiar-se mascarar-se

eacute sem duacutevida algo muito diferente eacute fazer com que o corpo entre

em comunicaccedilatildeo com poderes secretos e forccedilas invisiacuteveis Maacutescara

signo tatuado pintura depositam no corpo toda uma linguagem

toda uma linguagem enigmaacutetica toda uma linguagem cifrada

secreta sagrada que evoca para este mesmo corpo a violecircncia do

deus a potecircncia surda do sagrado ou a vivacidade do desejo A

maacutescara a tatuagem a pintura instalam o corpo em outro espaccedilo

fazem-no entrar em um lugar que natildeo tem lugar diretamente no

mundo fazem deste corpo um fragmento de espaccedilo imaginaacuterio

que se comunicaraacute com o universo das divindades ou com o unishy

verso do outro Por ele seremos tomados pelos deuses ou seremos

tomados pela pessoa que acabamos de seduzir De todo modo a

maacutescara a tatuagem a pintura satildeo operaccedilotildees pelas quais o corpo eacute arrancado de seu espaccedilo proacuteprio e projetado em um espaccedilo outro

o CORPO UTOacutePICO

Ouccedilamos por exemplo este conto japonecircs e a maneira com

que um tatuador faz passar para um universo que natildeo eacute o nosso

o corpo da jovem que ele deseja O sol dardejava seus raios sobre

o rio e incendiav~ o quarto de sete esteiras Seus raios refletidos

na superfiacutecie da aacutegua formavam um desenho de ondas douradas

sobre o papel dos biombos e sobre o rosto da jovem profundashy

mente adormecida Seikichi apoacutes puxar a divisoacuteria tomou nas

matildeos seus instrumentos de tatuagem Durante alguns instantes

permaneceu mergulhado em uma espeacutecie de ecircxtase Era entatildeo que

ele saboreava plenamente a estranha beleza da jovem Parecia-lhe

poder ficar sentando diante desse rosto imoacutevel durante dezenas

e centenas de anos sem jamais sentir cansaccedilo nem fastio Como

outrora o povo de Mecircnfis embelezava a magniacutefica terra do Egito

com piracircmides e esfinges assim Seikichi com todo amor queshy

ria embelezar com seu desenho a pele viccedilosa da jovem Aplicoushy

-lhe entatildeo a ponta de seus pinceacuteis coloridos que segurava entre o

polegar o anular e o pequeno dedo da matildeo esquerda e agrave medida

em que as linhas eram desenhadas picava-as com a agulha que

segurava na matildeo direita

E se considerarmos que a vestimenta sagrada ou profana relishy

giosa ou civil faz com que o indiviacuteduo entre no espaccedilo fechado

do religioso ou na rede invisiacutevel da sociedade veremos entatildeo que

tudo o que concerne ao corpo - desenho cor coroa tiara vestishy

menta uniforme tudo isso faz desabrochar de forma sensiacutevel

e matizada as utopias seladas no corpo

Mas talvez fosse preciso descer mais por baixo da vestimenta

talvez fosse preciso atingir a proacutepria carne e veriacuteamos entatildeo que

o CORPO UTOcircPICO

14 15 em certos casos no limite eacute o proacuteprio corpo que retorna seu

poder utoacutepico contra si e faz entrar todo o espaccedilo do religioso

e do sagrado todo o espaccedilo do outro mundo todo o espaccedilo do

contramundo no interior mesmo do espaccedilo que lhe eacute reservado

Entatildeo o corpo na sua materialidade na sua carne seria como o

produto de seus proacuteprios fantasmas Afinal o corpo do danccedilarino

natildeo eacute justamente um corpo dilatado segundo um espaccedilo que lhe

eacute ao mesmo tempo interior e exterior E os drogados tambeacutem e

os possuiacutedos os possuiacutedos cujo corpo torna-se inferno os estigshy

matizados cujo corpo torna-se sofrimento resgate e salvaccedilatildeo

ensanguentado paraiacuteso

Verdadeiramente enganara-me haacute pouco ao crer que o

corpo jamais estivesse em outro lugar que era um aqui irremeshy

diaacutevel e que se opunha a toda utopia

Meu corpo estaacute de fato sempre em outro lugar ligado a todos

os outros lugares do mundo e na verdade estaacute em outro lugar

que natildeo o mundo Pois eacute em torno dele que as coisas estatildeo disshy

postas eacute em relaccedilatildeo a ele - e em relaccedilatildeo a ele como em relaccedilatildeo a

um soberano - que haacute um acima um abaixo uma direita uma

esquerda um diante um atraacutes um proacuteximo um longiacutenquo O

corpo eacute o ponto zero do mundo laacute onde os caminhos e os espaccedilos

se cruzam o corpo estaacute em parte alguma ele estaacute no coraccedilatildeo do

mundo este pequeno fulcro utoacutepico a partir do qual eu sonho

falo avanccedilo imagino percebo as coisas em seu lugar e tambeacutem

as nego pelo poder indefinido das utopias que imagino Meu

corpo eacute como a Cidade do Sol naacuteo tem lugar mas eacute dele que

saem e se irradiam todos os lugares possiacuteveis reais ou utoacutepicos

CORPO UTOacutePICO

As crianccedilas afinal levam muito tempo para saber que tecircm

um corpo Durante meses durante mais de um ano elas tecircm

apenas um corpo disperso membros cavidades orifiacutecios e tudo

isso soacute se organiza tudo isso literalmente toma corpo somente

na imagem do espelho De modo mais estranho ainda os gregos

de Homero natildeo tinham uma palavra para designar a unidade do

corpo Por paradoxal que seja diante de Troacuteia abaixo dos muros

defendidos por Heitor e seus companheiros natildeo havia corpos

mas braccedilos erguidos peitos intreacutepidos pernas aacutegeis capacetes

cintilantes em cima de cabeccedilas natildeo havia corpo A palavra grega

para dizer corpo soacute aparece em Homero para designar cadaacutever

Eacute o cadaacutever portanto o cadaacutever e o espelho que nos ensinam

(enfim que ensinaram aos gregos e agora ensinam agraves crianccedilas)

que temos um corpo que este corpo tem uma forma que esta

forma tem um contorno que no contorno haacute uma espessura um

peso em suma que o corpo ocupa um lugar Espelho e cadaacutever

eacute que asseguram um espaccedilo para a experiecircncia profundamente e

originariamente utoacutepica do corpo espelho e cadaacutever eacute que silenshy

ciam e serenizam encerrando em uma clausura - que para noacutes

hoje eacute selada esta grande coacutelera utoacutepica que corroacutei e volatiliza

nosso corpo a todo instante Graccedilas a eles graccedilas ao espelho e

ao cadaacutever eacute que nosso corpo natildeo eacute pura e simples utopia Ora

se considerarmos que a imagem do espelho estaacute alojada para

noacutes em um espaccedilo inacessiacutevel e que jamais poderemos estar laacute

onde estaraacute nosso cadaacutever se considerarmos que o espelho e o

cadaacutever estatildeo eles proacuteprios em um inatingiacutevel outro lugar desshy

cobrimos entatildeo que unicamente as utopias podem fazer refluir

o CORPO UTOacutePICO

16 nelas mesmas e esconder por um instante a utopia profunda e

soberana de nosso corpo

Seria talvez necessaacuterio dizer tambeacutem que fazer amor eacute senshy

tir o corpo refluir sobre si eacute existir enfim fora de toda utopia

com toda densidade entre as matildeos do outro Sob os dedos do

outro que nos percorrem todas as partes invisiacuteveis de nosso

corpo potildeem-se a existir contra os laacutebios do outro os nossos se

tornam sensiacuteveis diante de seus olhos semicerrados nosso rosto

adquire uma certeza existe um olhar enfim para ver nossas paacutelshy

pebras fechadas O amor tambeacutem ele como o espelho e como

a morte sereniza a utopia de nosso corpo silencia-a acalma-a

fecha-a como se numa caixa tranca-a e a sela Eacute por isso que ele eacute

parente tatildeo proacuteximo da ilusatildeo do espelho e da ameaccedila da morte

e se apesar dessas duas figuras perigosas que o cercam amamos

tanto fazer amor eacute porque no amor o corpo estaacute aqui

33 HETEROTOPIA TRIBULACcedilOtildeES DE UM CONCEITO ENTRE VENEZA BERLIM E LOS ANGELESl

No dia 14 de marccedilo de 1967) o Ciacuterculo de estudos arquiacuteteturais de Paris convidara Foucault a pronunciar uma conferecircncia sobre

() espaccedilo para a qual ele propocircs uma analiacutetica nova que batizou

de heterotopologia O texto desta conferecircncia teve circulaccedilatildeo

restrita reservada aos membros daquele ciacuterculo em forma datishy

lografada com exceccedilatildeo de extratos publicados em francecircs em

1968 na revista italiana LArchittetura2 ateacute sua publicaccedilatildeo em

Berlim no outono de 1984 no quadro da exposiccedilatildeo ldeacutee proshymsus reacutesultats no Martin-Gropius-Bau3bull

Essa exposiccedilatildeo foi a principal dentre as dezessete manifestashy

ccedilotildees com as quais a Internationale Bauausstellung (IBN) apreshy

sentou ao mundo o balanccedilo de suas atividades de reconstruccedilatildeo

e renovaccedilatildeo de Berlim Imaginava-se a reunificaccedilatildeo da cidadeshy

-capital que parecia estranhamente ilustrar os espaccedilos outros do

texto de Foucault de 1967 Autorizando sua publicaccedilatildeo pouco

antes da sua morte ocorrida em 25 de junho de 1984 o fi16sofo

a introduzira in extremis no corpus de seus escritos autorizados

I Oucra versatildeo deste texto fui publicada em 1997 no caraacutelogo de Dccummta X em Kassd 2 M Foucault Des espaces aurres EArthinura mJtlltck stvria vol XIII n 150 1968 pp 822-823 M Foucault Des espaces aurres AMes ~ darrhitt(lUrt ourubrofll984 pp 46-49 Eacute esla versatildeo t 1984 signincatiacuteVllmente diferente da que reproduzimos no presente volume que estaacute incluiacuteda cm IJIIiS et Eacutecrits Paris Gallimard t Iv texto n 360 (Martin-Gropius-Bau museu localizado em Berlim Inaugurado em 1881 - N da T) 4 IBA Exposiccedilatildeo internacional de consrruccedilatildeo sigla retomada mais adiante (N da T)

POSFAacuteCIO

34 Desde enrao () lCx ro f()i thlilldantllllllltl trad uzido e comenshy

tado C omo podl prrt na IICLt1 i1I(xplo rlllu d II ranrc vitae anos

Olllo nail c lO l llpn( nd clI Icrgll l1 tl t Edward Soja entushy

sia ~t1 IrolliOl OI l tl illlllli 1I 11I d 1 rmfflpIIf1fJI a Illlporrancia

1l0V(1 d(1 tp t1I t d1 (PH Itlld ldt I I dlvl III )dcrllmos intershy

pretl r 1 di qlIlCl1 ( IIII(~ I _I~ 111 dIIW 1)(1 7 II)IH e a hist6ria

dcs~c -i ltlIli ll 111111 1 h i~I( 1 ti l h 11I 1 11 IlIlp~o1(t A~ nocoes

dt nIt IIO ti t 11111 IllI l ln fU(IAII11I1 Utl l IIVO dc analise

suficic ll lc rnlc J ( fino plI dl 1t1lh lr IIl1n I lit I t trw sfOrmashy

coes tanto d le) diM lI 1m (I ~k~ PII 11101111 c politicos

dos arquitctos t lIIhalli tl 11(11 1 II I Ulll ~ IIJII UItlS quan to da

problematica do cspao 11 11 I ~llll( de 1 -(~~ IIc1I

Linguagem e espa~o

Voce se lembra daqude l(k~I III I1 1111 Ihl III I ir l1nro em

que urn arquiteto via uma nova Ltl JlU~lIj I 11III1~mo Mas

isto nao estava em urn livro Cst I VI 1 111111 I ~ I I 1111111 nll1fcrencia

radiofonica sobre a utopia Pedt lll li lt pw II l( nll~1 1111 dia J3 ou 14 de marco

Esta carta escrita em Sidi BOil ~ai 1 1I1I di1 2 dt lIlano de

1967 e 0 testemunho mais antigo do ( I ll II II I IIJ d f~ FI)lllluJrcom

os arquitetos Em 7 de dezembro dt I )h h li e tll ~ld lll de uma

serie radiofonica chamada de Cuhlll1 rI( I tlllsagrada a 5 amp1 Soja Rembrance of ocher spaces in [he ciradd LA 114(rO Jrftj

Politics 3 1990 p 1 39 Art igo dcscnvolvulo em Ed Soja Ij Rral Imagined Plam Cambridg~ (Mss) Blockwell 1996

6 P Bou rJi cu Quesr-cc q Ut fai l e parler urn ) U[lur A prop d Mit Ii t l I --I ~ ~~h III f~r n

plitmtlltions n especial tlSureiUcr er punic vingt aIl~ pres II Iltl T ~lI ltI L ~middotIIn II t IH

lgto~AClO

35 u topia ele fora convidado a falar sobre Utopia e Literatural

Pactindo de uma evocacao bachelardiana daqueles espacos que

encantam os jogos infantis como os celeiros 0 fundo do jardim

a tenda de Indios ou a cama dos pais verdadeiras utopias localishy

zadas sonhou com uma ciencia que teria por objeto estes espashy

cos diferentes que sao a contestacao dos espaltos onde vivemos

nao uma ciencia das utopias mas das heterotopias cie ncia dos

espacos absolutamente ourros Esta ciencia 011 hecerotopologia

que esta em vias de nascer que ji cxistc c cujos prindpios ele

enunciara naquele dia

As emissoes radiofonicas de Foucault - nas quais de se reveshy

lava urn maravilhoso contista - respondiam aenorme curiosishy

dade suscitada desde a primavera de 1966 pela publicacao de

As Palavras e as coisas 8bull 0 livro se abria com a descricao de uma

improvavd enciclopedia chinesa inventada por Borges segundo

a qual os animais se distribufam em quatorze classes do seguinte

tipo a) pertencenres ao imperador b) embalsamados c) domesshy

ticados k) desenhados com urn pincel muito fino de pelo de

cameoj I) et cetera m) que acabam de quebrar a biJha Esta

desordem que faz cintilar os fragmentos de urn grande numero

de ordens possiveis fora batizada por Foucault de heterotopia

o termo se opunha a utopia etimologicamente nao lugar e nao

eu-topia como se tende a crer Mas se as utopias narram urn lugar

7 M Foucault Uwpi( bem opi quivo sonora de 7 e 2 1 de dczombro de 19(6 CCOIrc Midd Foucaul t DibLioth~uc dc IIM EC-Cacn (eeditad em diso pdo INA em 2004 (rNA In iw Ntiorul de IAudinvisucl - Nd T)

8 M Foucault Ln Mots a Choses Paris Gallimard 1966 (TC3d u~() b silt ira de S T Muchail As PaiArdH as coilas Sao Paulo Martins Fontes 1981 - N da n

POSFAClO

36 37 que natildeo existe desabrocham contudo em um espaccedilo imaginaacuteshy

rio e por isso situam-se na linha reta do discurso pois desde

o fundo dos tempos a linguagem se entrecruza com o espaccedilo A lista de Borges ao contraacuterio estanca as palavras nelas proacuteprias pois a heterotopia arruiacutena natildeo somente a sintaxe das frases como

tambeacutem aquela menos manifesta que autoriza manter juntas as palavras e as coisas9

A impossibilidade em que se encontra nosso pensamento para pensar esse heteroacuteclito radical da classificaccedilatildeo de Borges tesshytemunha um limite do pensamento o mesmo limite que ainda

experimentamos diante das classificaccedilotildees proacuteprias agraves culturas que nos satildeo radicalmente estranhas Quando Victor TurnerlO descreve como os Ndembu da Zacircmbia reuacutenem em uma mesma

classe os caccediladores as viuacutevas os doentes e os guerreiros isto

natildeo implica um espaccedilo de pertenci menta concebido como tershyritoacuterio comum nem um espaccedilo de pertencimento concebido

como ramificaccedilotildees definidas por propriedades formais como

aquele no qual n6s distribuiacutemos os reinos da natureza nem a linearidade arbitraacuteria de uma ordem alfabeacutetica com a qual nosshy

sos dicionaacuterios ordenam o heteroclito no espaccedilo Ele descreve um sistema de analogias de similitudes entre propriedades simshyboacutelicas cujas interconexotildees precisamos traccedilar em uma paacutegina em branco a fim de compreender esse sistema ou o espaccedilo de similitudes Natildeo se pode pensar sem o suporte de um espaccedilo de ordem sem esta zona mediana que Foucault qualifica

9 M FOUaacutelulr Les MolJ ks Choses op dto prefaacutecio p 9 (Ar Plarmu l1li cow pp 5-8 _ N d T) 10 Victor Turner (1920-1983) antropoacutelogo britilnico (N da T)

de arqueoloacutegica por sob nossas percepccedilotildees nossos discursos nossos saberes onde se articulam o visiacutevel e o enunciaacutevel a linshy

guagem o olhar e o espaccedilo

Na emissatildeo radiofocircnica de 7 de dezembro de 1966 Foucault fez um uso totalmente diferente de sua noccedilaacuteo de heterotopia Primeiro ela eacute pertinente natildeo mais a uma anaacutelise dos discursos

mas dos espaccedilos Lugares tatildeo heteroacuteclitos como o espelho o cemiteacuterio a casa de toleracircncia ou a colocircnia polineacutesia de feacuterias em

Djerba entram em uma categoria especiacutefica de espaccedilos-tempos quer este tempo seja provisoacuterio como o tempo uacutenico da defloshy

raccedilatildeo no espaccedilo da viagem de nuacutepcias quer este tempo seja ao contraacuterio cumulativo de temporalidades - atemporal- no lugar da biblioteca ou do museu

Essas unidades espaccedilo-temporais esses espaccedilos-tempos tecircm em comum serem lugares onde estou e natildeo estou como o espeshy

lho ou o cemiteacuterio ou onde sou outro como na casa de toleracircnshy

cia na colocircnia de feacuterias ou na festa carnavalizaccedilotildees da existecircncia

ordinaacuteria Eles ritualizam cortes limiares desvios e os localizam As normas humanas natildeo satildeo todas universalizaacuteveis as da

disciplinarizaccedilatildeo do trabalho e as da transfiguraccedilatildeo pela festa

naacuteo podem desenrolar-se na linearidade de um mesmo espaccedilo ou de um mesmo tempo eacute preciso uma forte ritualizaccedilaacuteo das rupturas dos limiares das crises Estes contraespaccedilos poreacutem saacuteo

Interpenetrados por todos os outros espaccedilos que eles contestam o espelho onde natildeo estou reflete o contexto onde estou o cemishyteacuterio eacute planejado como a cidade haacute reverberaccedilatildeo dos espaccedilos uns nos outros e contudo descontinuidades e rupturas Haacute

POSlACIO

POSFACIO

38 39 enfim como que um eterno retorno desses rituais espaccedilo-temshy

porais e se natildeo universalizaccedilatildeo das mesmas formas ao menos

uma universalidade de sua existecircncia Eles satildeo apreendidos em

uma sincronia e uma diacronia especiacuteficas que fazem deles um

sistema significante entre os sistemas da arquitetura Natildeo refleshy

tem a estrutura social nem a da produccedilatildeo natildeo satildeo um sistema

soacutecio-histoacuterico nem uma ideologia mas rupturas da vida ordishy

naacuteria imaginaacuterios representaccedilotildees polifocircnicas da vida da morte

do amor de Eacuteros e Taacutenatos

A carta de Foucault de 2 de marccedilo de 1967 deixa vazar um

Utopias e heterotopias O Ciacuterculo de estudos arquiteturais era animado entre 1960 e

1970 por Jean Dubuisson seu presidente arquiteto do Museu

(te Artes e Tradiccedilotildees Populares do Bosque de Boulogne e Ionel

Schein que indicava os conferencistas a serem convidados ao

Boulevard Raspail nuacutemero 38 Era um dos raros ciacuterculos de

reflexatildeo de arquitetos sem corporativismo no qual nos anos

cinquenta e sessenta Ionel Schein gozava da lisonjeira reputaccedilatildeo

de agitador de ideias e de radicalismo em arquitetura I I Foi ele

segundo Jean Dubuisson quem convidou Foucault As confeshy

recircncias eram anotadas em estenografia e depois datilografadas e

do arquiteto Natildeo natildeo fora o livro (As Palavras e as coisas) que

desapontamento a arqueologia do olhar natildeo retivera o olhar entregues aos membros do Ciacuterculo Pierre Riboulet - arquiteto

trouxera em germe uma nova concepccedilatildeo do urbanismo livro do entre outros do hospital Robert-Debreacute - conservou sua coacutepia

qual o filoacutesofo esperava a provocaccedilatildeo de rupturas no pensamento Ele se lembra das precauccedilotildees oratoacuterias do filoacutesofo para introduzir

No entanto estas rupturas foram suficientemente ruidosas pelo seu propoacutesito a insistecircncia sobre sua ignoracircncia quanto agraves preshy

menos ateacute o ruiacutedo de 1968 para que Foucault viesse a deixar ocupaccedilotildees dos arquitetos As referecircncias -satildeo tomadas da histoacuteria

tanto o tumulto da gloacuteria quanto o das polecircmicas pela serenidade das ciecircncias (Koyreacute Bachelard) da criacutetica literaacuteria a-p Richard

da luminosa vila de Sidi Bou Sald no alto do golfo de Cartago e Ianchot) da psicanaacutelise existencial (Binswanger) assuntos

a paz - sempre difiacutecil - da escritura Heterotopia vivida O que todos eles sobre os quais Foucault jaacute havia desenvolvido suas

chegara aos ouvidos do arquiteto era uma linguagem menor obsessotildees do espaccedilo12

um daqueles jogos literaacuterios nos quais Foucault tinha um prazer Para marcar seu entusiasmo agrave saiacuteda dessa conferecircncia Robert

guloso juacutebilo incessantemente decepado pela ascese da escrishy Auzelle um dos pensadores da reconstruccedilatildeo da Franccedila a partir

tura contenccedilatildeo que se lecirc na didaacutetica da conferecircncia reescrita d()s anos cinquenta lhe entregou sua histoacuteria da arquitetura

esta para os arquitetos certamente mas os jogos literaacuterios ficam II ltuklt tas infOrmaccedilotildees sobre o Circulo de tstutIos arqumlumis me foram fOrnecidas por P Riboulet

aqui finalmente retranscritos com todo respeito agrave integralidade Illxprcssatildeo utilizada por Fouault in Quesdons agrave Michel Fouault sur la geacuteographie HiroIIote n I 1lt)76 pp 71-85 retomada em Diu et Eacutecriu t m n 169 Paris Gallimard 1994 p 33 (Trad bras de

sonora da qual nasceram K Machado e A L de Souza Sobre a geografia in Microflsica do potUacuter Rio de Janeiro Graal 1979 1IIU-165-N daT)

POSFAacuteCIOPOSFAco

40 41 funeraacuteria e dos cemiteacuterios13 uma das heterotopias de Foucault

Em O Nascimento da cllnica14 Foucault descrevera como a anatoshy

mopatologia havia integrado a morte no conhecimento da vida

oferecer-lhe a hist6ria da integraccedilatildeo dos cemiteacuterios na planificashy

ccedilatildeo urbana provava a perfeita cumplicidade entre seus ouvintes

e o conferencista a negatividade estava no cerne da racionalishy

dade Ela estava no cerne das anaacutelises de Foucault pelo menos ateacute Vigiar epunit5

Foi no final deste mesmo ano de 1967 que Jean-Luc Godard

em A Chinesa fez sua heroiacutena a estudante pr6-chinesa interpreshy

tada por Alme Wiazemsky jogar tomates em um exemplar de As Palavras eas coisas entio um livro siacutembolo por suas descontinuishy

dades abruptas do pensamento no tempo da negaccedilatildeo da hist6ria e portanto da negaccedillo da revoluccedilatildeo

A confercncia de 1967 poderia ter outra circulaccedilatildeo aleacutem da

c6pia datHografada entre os membros do Circulo O pr6prio

Circulo natildeo possuiacutea uma revista e nlo editava nenhuma de suas

conferecircncias Por outro lado as concepccedilotildees que entatildeo partilhashy

vam os arquitetos deviam muito a Le Corbusier e agrave Bauhaus agrave

racionalizaccedilatildeo das formas e agrave legibilidade do espaccedilo urbano

concebido como um texto pontuado com referecircncias espaccedilos

ou edifiacutecios Franccediloise Choay que Foucault frequentara nos anos

13 R AuzeUe Derniim Dmlnlm Paris ed do autor 13 PIace du Panrlleacuteon 1965 14 M Foucault Naissanct de la ClitlUacuteJue Paris PUF 1963(Trad bru de R Machado ONtUCimentIJ da clnCIt ruo d Janeiro Forense-Universitaacuteria 1977 - N da T) 15 M Foucaul Survdlkr tIPunir Paris Gallimard 1975 A obra apresenta o panoacuteptico de Benthrun como um acontecimento na histoacuteria do esplrito humanomiddot epropotildee uma anill1sc do poder em termos d produccedilatildeo e natildeo de repressatildeo (Trad bras de R Ramalhete VIgiar11mr Pett6poliacutes Vous 1987 _ N da T)

ttenta reconstitui essas problemaacuteticas em Urbanisme utopies et rtaiteacutesl6

Um urbanismo progressista humanista que se sustentava

111amp carta de Atenas l7 e em uma racionalidade crescente ou um

urbanismo culturalista para o qual cada forma eacute siacutembolo e que

(Ilha com nostalgia para a harmonia das cidades passadas estas

tmm as ideias reguladoras da razatildeo urbaniacutestica Estas ideias

rCguladoras jaacute natildeo talhavam em pontilhado o espaccedilo da utopia

em que viria a desdobrar-se ap6s 1968 o discurso arquitetural e

urbano em uma dissoluccedilatildeo do objeto cidade no seio das relaccedilotildees

udais capitalistas A cidade como totalidade formal ou racional

I1Ao foi deslocada pelo capitalismo O espaccedilo natildeo eacute uma imensa

paacutegina em branco onde se escreve desde cerca de dois seacuteculos a

Illetanarraccedilaacuteo do capital Naacuteo estaacute aiacute o impensado geral o natildeo

dito de todas essas divisoacuterias construiacutedas entre as classes os sexos

C as geraccedilotildees

O fasciacutenio das escolas de arquitetura pela visita a cidades

patronais estas utopias realizadas como o familisteacuterio de Guise

unstruiacuteda por Godin ou a cidade Menier de Noisiell8 testeshy

munha que o discurso arquitetural e urbaniacutestico francecircs dos anos

etenta se desdobrava no espaccedilo da utopia Os promotores dessas

cidades natildeo estariam entre os primeiros a inventar o consumo

em massa Um reduzia as dimensotildees da milenar e dispendiosa

1111( Choay UrbanisIM UtIJpits tt rlaitis Paris Seuil 1965 17 Carta de Atenas manifesto do IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (Ciam) Atn 1933 (N da T) I Pamllisteacuterio de Guise espeacutecie de comunidade ou cidade operaacuteria inspirada em Charles Fourier IIl1nmulda em 1846 por J-BGodln para habitaccedilatildeo de operaacuterios de sua induacutestria Menler de Noisiel IDmunldade de operaacuterios da ptoduccedilatildeo de chocolates fundada por A B Menier em 1925 nas imediaccedilotildees bull arl (N da T)

POSFAtildeCIO POSFAacuteCIO

42 43 lareira a um aquecedor domeacutestico outro um medicamento dos

exeacutercitos napoleocircnicos a um complemento alimentar industrial

o tablete de chocolate Natildeo teriam eles articulado da maneira

mais restrita a racionalizaccedilatildeo do consumo com a da ocupaccedilatildeo do

espaccedilo A racionalizaccedilatildeo da cidade patronal como a fragmentaccedilatildeo

do espaccedilo urbano o homog~neo como o heterogecircneo conduziam

a um mesmo crivo de leitura infalsificaacutevel a espacializaccedilatildeo do

capital O arquiteto tornava-se o teacutecnico passivo da operacionashy

lizaccedilatildeo das estrateacutegias e das normas do capital

Mostra-se uacutetil falar indiferentemente das utopias preacute-urshy

banistas das cidades operaacuterias de Haussmann da Bauhaus do

funcionalismo dos Shakers dos grandes conjuntos das cidades

novas por toda parte afirma-se perigosamente uma racionalishy

zaccedilatildeo do espaccedilo inerente agrave extensatildeo universal do capital uma

propensatildeo de sua ordem de troca ou da ordem simplesmente podia-se ler na revista Traverse19bull

Genealogia dos equipamento coletivol Eacute a partir de 1972 que Foucault desenvolve pesquishy

sas em equipe sobre a histoacuteria dos equipamentos coletivos

Primeiramente com o Centro de estudos pesquisas eformaccedilatildeo instishytucional- ou Cerfi - animado pelo psiquiatra Feacutelix Guattari que

conclui entatildeo com Gilles Deleuze a redaccedilatildeo do seu Anti-Eacutediptldeg

19 B Eizykman Urbanismo Travme n 4 1976 citado por A Thalamy in PolltilJues tk lhabitat Corda

1977 p 14 (o nome Shaker designa um movimento de grupos religiosos fundado na Inglaterra no seacuteculo XVIII que - agrave semelhanccedila dos Amish- vivem em suas proacuteprias comunidades _ N da T) 20 G Deleuze F Guattari LAnti-CEdipe Paris Minuit 1972 (Trad bras de L B L Orlandi O Antishy-Eacutedipo Satildeo Paulo 34 2010 - N da T)

( rliacuteldo em 1965 com pesquisadores em ciecircncias sociais dissidenshy

trN do Partido Comunista Francecircs (PCF) o Cerfi apoacutes 1970 I()( em questatildeo sua cultura marxista submetendo-a a uma dupla

Inova 1) a do procedimento genealoacutegico praticado em Histoacuteria Ioucura e O Nascimento da cliacutenica 2) a de uma clarificaccedilatildeo

IIlN relaccedilotildees libidinais que todo pesquisador manteacutem com o

uhjeto de sua pesquisa (a ambivalecircncia da reflexatildeo urbaniacutestica

frente agrave racionalidade capitalista natildeo escapava a ningueacutem) e que

UIe pesquisadores mantecircm entre si como grupo social hierarquishy

uto e sexuado

O relato da realizaccedilatildeo dessa dupla prova publicada na revista

do Cerfi21 eacute provavelmente um dos mais interessantes diaacuterios de

hordo da travessia ideoloacutegica daqueles anos Ali se assiste como

lue em um laboratoacuterio agrave desagregaccedilatildeo da anaacutelise marxista e

~ emergecircncia daquilo que logo seraacute batizado de atitude poacutesshy

-moderna O empreendimento eacute descrito por seus autores como

uma estranha maacutequina feita de peccedilas e pedaccedilos emprestados do

Ilenealogista Foucault surrupiadas do depoacutesito do cientista biceacuteshy

falo Deleuze-Guattari

O genealogista Foucault eacute de fato uma nova imagem social

do filoacutesofo o procedimento genealoacutegico soacute estaraacute francamente

c()nfirmado a partir de seu ensino no Colge de France inaugurado

em dezembro de 1970 Ademais a partir de 1971 juntamente

com Deleuze ele anima um movimento militante o Grupo de

JI (eacuteneacutealogie du capital- I Les eacutequipements du pouvoir Recherches n 13 dezembro1973 Um s6 bullbullbullmplo de uma retomada das hettrotopias por H umre a propoacutesito de La Pensuuml marxiste de la vilte IIrlbullbull Casterman 1972

POSFAacuteCJO POSFAacuteCIO

44 45 informarao sobre as prisoes (GIP) enraizado na extrema esquerda

Foucault disc ute com 0 Cedi que trabalha sobre a cidade22

a abordagem genealogica dos equipamemos coletivos e a poe

em pritica sobretudo no seu seminario do College de France 0

seminario e consagrado aemergencia do medico como perito

no seculo XIX atraves da pericla psiquiatrica em medicina legal

por urn lado e por outro como engenheiro que comribui para

a definicao das normas e formas da arquitetura hospitalar Urn

arquiteto Bruno Fortier responsavel pelo Centro de estudos epesshy

quisas em arquitetura (Cera) participa doravame dos trabalhos

de pesquisa desse seminario

Se a expressao equipamemo coletivo nao figura nos textos

do seculo XVIII a maquina de curar definida pelo medico

Tenon como ideal do hospital moderno neles tern lugar A

arquitetura hospitalar escreve Tenon2 nao pode mais constishy

tuir-se de rotina c tateamemos devendo responder a multiplas

prcocupacentes estancar 0 contagio pela distribuicao das salas e

dns leiros a circuhlltao do ar tavorecer a diss()cia~ao dos doemes

c das d()cn~as a vigilancia dos dotntcs e do pessoal manifestar

a hierarquia do olhar medico ter em coma as necessidades da

populacao 0 que serve para curar nao e a regularidade do trashy

cado mas a justeza da arquitetura 0 modelo deve ser perfeito

- nao se podendo mais em nada muda-Io - acabado repetivel

Pela primeira vez em 1788 escreve Bruno Fortier propoe-se

22 Ruhhl1 n 13 op cir pp 27middot31 (Dits ~I fcrit n 129 n 130) 23 J-R Tenon M moirs sur It~middot api fl llX tie P1ris Paris 1788

aos arquitetos a imitacao como urn dever24 as tipologias norshy

mativas seguem os exemplos oferecidos pela historia A justeza

da arquitetura nasce do tratamemo de uma rede de questoes disshy

timas - c1imaticas demogdficas estatisticas higienicas medicas

disciplinares - que tern cada qual seu lugar de emergencia sua

racionalidade seus promotores que respondcm a uma multiplishy

cidade de taticas - tecnicas de vigilancia de producao de saber

de efetuacao de poderes de medica l iza~lo c de saude publica

Elas podem ser descritas como segmemos analogos Oll repetidos

ao infinito de urn so texto de um escrevcnrc unico Illitico e

unitario 0 capital

Certamente esses novos edificios incorporam dticas de

vigil an cia encomradas fora sob outras formas arquiteturais shy

colegios casernas - taticas e formas que puderam preceder e

sustemar a emergencia da organizacao capitalista do trabalho e

que poderao proliferar para alem dela por exemplo nos vast os

arquipelagos do socialismo siberiano Eque fundamemalmeme

nao estamos Iidando nem com formas arquiteturais nem com

modos de producao mas com tecnologias de poder Foi na busca

destas arquiteturas maquinas tao ajustadas aos seus objetishy

vos que Foucault veio a redescobrir 0 que logo tornou-se parashy

digma de sua obra 0 panoptico de Bcntham2 do qual Poyet26

24 M Fo ucault D Barrer-Kriegel A Thahmy F Btgllin B tllrlicr L-IVIi(Jilln II X4lrir (m4JI l)rigill ~1

de OJOpilil modnrl~) Paris lnsri ru[ de J cnvi ronncm cnt 1976 rccd Hruu lOl) Iirc M~rda8Q J~79

25 J Bcmham Le Panoptiqui p rcccdido de Loeil du pouI-vir cnrrcmiddotvisru Om Michel Fou~ult P~ ri s

Bdfond 1977 (faC-ltimik da cdjao franccsa de 179 1) (Trod bras d bullbullm rvi 0 Ih do poder por A L de S OU-1 in Microfli ra tQ pokr op Ci l pp209-227 - N d 1)

26 B Poyet M h noiu sur a niassili d( Iransera lt u collsrlli r tIf-fj rd-lhrm w ill dull pm)lmiddotr It

traminlioll k eel hopil4l Paris 1785

IOSFACIO pOSFAeiO

46

47 desenhara uma interpretaccedilatildeo para a reconstruccedilatildeo da Santa Casa de Misericoacuterdia Os trabalhos do seminaacuterio do College de Frante sobre a arquitetura hospitalar no final do seacuteculo XVIII recebeshy

ram duas ediccedilotildees uma em Paris em 1976 outra em Bruxelas em 1979 Les Machints agravegutrir27

O segundo estudo coletivo dirigido por Foucault teve por objeto o habitatentre 1800 e 185018 Foi conduzido por Franccedilois

Beacuteguin hoje historiador da paisagem e da arquitetura colonial29bull

Ametodologia ~ a mesma que a precedente no lugar de partir de

uma histoacuteria das formas da habitaccedilAo ou da cidade os pesquisashydores inventariaram as pr~tlcllll discursivas que circunscreveram e

codificaram o habitat como obJero de intervenccedilatildeo administrativa e politica entre 1800 e 1850 - a doenccedila o emprego a domestishycaccedilatildeo de equipamentos como a ~gua a iluminaccedilatildeo a ventilaccedilatildeo

e o desenvolvimento de uma crescente jurisdiccedilatildeo sobre o espaccedilo

puacuteblico em cuja intersecccedillo se connroacutei o habitat Eacute preciso prishy

meiramente desfazer-se da pregnAncla da casa desmineralizaacute-la desconstruiacute-la escreve F B6guln

Poder saber es~

Eacute a partir de vtgiar t punir (1975) e de sua raacutepida circulaccedilatildeo Iacutemernacional- traduzido rapidamente em cerca de vinte liacutenguas - que as anaacutelises foucaultianas do espaccedilo recebem uma visibilishy

dade nova como lugar de uma dupla articulaccedilio do poder sobre

27 M fucault B Barrer-Kriegd A Thalamy F Beacutepdn B fIorllr ln MtIthllltt 4 gubir op cit 28 ]-M A1Haume B Barret-Kriegcl F Seguin D Ranclere A lhalamy PDitifUtt tk lhabitat 18()() 1850 Paris Corda 1977 (estudo realizado sob a direccedilAo de M Poucaull)

29 De F Beacuteguin citemos principalmente ArabIacuteSlUlett dko illChlmhI4 ubitill Afoque du Norri 1830-1850 Paris Dunod 1983 e Paysagtt Paris Flammarlon 19

o corpo do indiviacuteduo e do saber ao poder Seguem-se numerosos estudos sobre a arquitetura da vigilacircncia publicados na Itaacutelia e na Gratilde-Bretanha principalmente3deg De modo mais geral socioacuteshy

logos e planificadores urbanos comeccedilam a referir-se a Foucault

A Leaman escreveu em Environment and Plannintl que a obra de Foucault eacute doravante importante para os urbanistas planifishy

cadores e arquitetos por sua anaacutelise das qualidades normativas

das estruturas e das instituiccedilotildees Sharon Zukin considera que a cidade estaacute doravante incluiacuteda nas anaacutelises de uma economia

do poder segundo o meacutetodo desenvolvido em vtgiar e punir32bull

Esse eacute o contexto em que reaparecem as heterotopias na escola de arquitetura de Veneza em dezembro de 1977 prishymeiro estudo sobre seu uso possiacutevel em uma histoacuteria dos espashyccedilos II dispositivo Foucault 33 que reuacutene ensaios de M Cacciari

F RelIa M Tafuri G Teyssot A capa como a de Machines agrave gueacuterir reproduz um plano de arquitetura panoacuteptico para um

hospital inglecircs Os autores se referem essencialmente a Vtgiar e punir e exceto T eyssot a uma reuniatildeo de textos de Foucault sobre o poder publicado neste mesmo ano pela editora Einaudi

Microfisica deipotert4 a incidecircncia poliacutetica desta uacuteltima coletacircnea

lO Ver especialmente HinmJmd primeiro ano n 3 maio-junho1978 n triliacutengue intitulado Segrtgazione corpo sociak consagrado agraves atquitetuta de vigilanda jl A Leaman in Environmmtand Planning n 111979 pp 1079-1082 H Sh Zukin Adecade cfilie new urban sociology 1heoryand Society 91980 pp 575-601 H M Cacdari F Relia M Tafuri G Teyssor II dispositillO Foucaut Veneza Cluva 1977 4 M Iltlucaullt MimfoIacuteCIJ rktpoYrt inkrUtntipoitici editado por Iltlnrana e Pasquino Turin Einudi 1977 retomado e completado pelo movimento alternativo berlinense Dispositive tkr Macht Betlin Merve 1978 (A reuniaacuteo d textos que compotildecm a ediccedilatildeo italiana a=sdda de oUtros textos reltebeu traduccedilaacuteo brasileira de R Machado e OUrtOS Micrufisica do potkr Rio de Janeiro Graal 1979 Foi publicada tambeacutem uma ediccedilaacuteo espanhola com algumas alteraccedilotildees dos tcxtos sdeclonados trad por J Varela e F A1varez-UrIacutell Madri La Piquem 1978 - N da T)

POSFAacuteCIO

POSFAclO

48 49 foi imediata logo reforccedilada pela traduccedilatildeo de Rhizome de Deleuze

e GuattarP livros que se tornaram referecircncias teoacuterico-poliacutetishy

cas do movimento chamado Autonomie (do poliacutetico subenshytenda-se) que incomodava a esquerda do PCI engajado na

estrateacutegia do compromisso histoacuterico ~ esta incidecircncia poliacutetica

que os italianos batizaram de leffeto Foucault36 que eacute o alvo de 1 dispositivo Poucault

A introduccedilatildeo agrave coletAnea escrita por F Rella eacute perfeitamente expliacutecita desde Jogo travare as anaacutelises foucaultianas da pluralishy

dade das relaccedilotildees de poder em uma metafisica do poder de um poder abstrato imaterial supostamente em toda parte e portanto

politicamente em parte alguma liA uacutenica histoacuteria dos poderes eacute

uma histoacuteria dos espaccedilos atraveacutes dos quais o poder se mostra E

apoiando-se no artigo de Teyssot como uacutenica fonte de conhecishy

mento das heterotopias prossegue O nlo lugar do poder situashy

-se no centro de uma infinidade de localizaccedilotildees heterotoacutepicas

A heterotopia torna-se entatildeo um dado central em Foucault

e a hetero topologia a fenomenologia da dlspersio anaacuterquica do

poder A conclusatildeo desta interpretaccedilatildeo eacute previsiacutevel Natildeo se comshy

bate mais o poder doravante investidp em uma miriacuteade de locashylizaccedilotildees [ou dispositivos] mas a tirania das teorias globalizantesraquo

Teorias que Rella explicita precisando em nota leffeto Marx37 Na verdade Teyssot38 natildeo comenta a confer~ncia de 1967

35 G Deleuu F Guattari Rhizo1M Paris Minuit 1976 Rizoma ParrnalL~uea Pradche 1977 36 Em italiano no original (N da T)

37 Em italiano no original (N da T)

38middotG Teyssot Eterotopia e storiadegli spazi II displJlitirm FOllcault pp 83-86 e HelerolOpies and the historyofspaccs Arcbiacutetlctureandurbaniacutesm 121 1980 pp 79-100

mas o uso taxinocircmico do prefaacutecio de As Palavras eas coisas aplishy

cando-o a um projeto de hospital do seacuteculo XVIII descrito pelo

historiador J-c Perrot39bull Seu plano distribui como uma grade

em oiro construccedilotildees distintas oito classes de pensionaacuterios tatildeo

heterogecircneos quanto as categorias de animais da enciclopeacutedia de

Borges a) os prisioneiros a pedido de suas famiacutelias b) os loucos

os prisioneiros por edito real c) as crianccedilas pobres e legiacutetimas

dedois a nove anos os idosos os mendigos as prostitutas acoshy

metidas de doenccedilas veneacutereas d) as crianccedilas bastardas de mais

de nove anos etc Eacute a incongruecircncia do conteuacutedo que designa

a arquitetura como heterotopia e naacuteo o jogo de oposiccedilatildeo ou de contestaccedilaacuteo qualitativa ou simboacutelica dos outros espaccedilos que este

uacuteltimo institui por sua funccedilaacuteo sua forma suas rupturas

O uso da heteroropia feito por T eyssot de modo algum transshy

creve a inscriccedilaacuteo profunda da espacialidade na ttalidade da

existecircncia humana a heterogeneidade e a descontinuidade dos

tempos vividos os limiares da vida as crises bioloacutegicas (iniciashy

ccedilatildeo puberdade defloraccedilatildeo) Eacuteros e Taacutenatos As espacializaccedilotildees

da subjetividade sob todas as suas formas da casa de toleracircncia agrave

sauna e natildeo somente as grandes funccedilotildees da carta de Atenas receshy

beram em todas as culturas uma inscriccedilatildeo especiacutefica no espaccedilo

em espaccedilos que entretecircm entre si natildeo uma relaccedilatildeo de divisatildeo como interioridadeexterioridade margemcentro puacuteblicol prishy

vado mas um jogo formal de diferenciaccedilatildeo e de reverberaccedilatildeo

em suma no registro da comunicaccedilatildeo Tanto Relia que faz do

W J-C Perrot Genes du vilk mo Cam ali XVII sdele Paris Mouton 1975

POSFAacuteCIO

POSgtAClO

51

50 espaccedilo foucaultiano o receptaacuteculo neutro e contiacutenuo das hetero- topias do poder - concepccedilatildeo globalizante - quanto T eyssot que

faz da heterotopia a articulaccedilatildeo arquitetural das incongruecircncias

do mundo - concepccedilatildeo loealista - carecem ambos da terceira dimensatildeo aquela propriedade do espaccedilo de se remeter a si mesmo

na espessura de um jogo formal e simboacutelico de contestaccedilatildeo e de

reverberaccedilatildeo em uma fragmentaccedilatildeo que natildeo eacute segmentaccedilatildeo este Thirding que E Soja assim teoriza no Instituto de urbanismo de LosAngtlts na UeLA the Thirding as othering40

Essa primeira recepccedilatildeo das heterotopias pela escola de arquitetura de Veneza representada por II dispositivo Foucault mostra a ambiguidade da noccedilatildeo de recepccedilatildeo natildeo se trata de uma compreensatildeo exata nem de uma real instrumentalizaccedilatildeo mas de uma reimplantaccedillo poUss~mica e poMmica em uma rede de

debates poJJticos por um lado e de um questionamento episteshymoloacutegico por outro

Em julho de 1976 Foucault relembra pela primeira vez sua confercncia de 1967 em uma entrevista sobre o panoacuteptico de

Bentham publicada em 1977 mencionada aliaacutes por Teyssot Seria necessaacuterio escrever toda uma histoacuteria dos espaccedilos que fosse

ao mesmo tempo uma histoacuteria dos poderes desde as grandes estrateacutegias da geopoliacutetica ateacute as pequenas taacuteticas do habitat da arquitetura institucional da sala de aula ou da organizaccedilatildeo hosshy

pitalar passando pelas implantaccedilotildees econOacutemico-poliacuteticas Eacute surshypreendente ver quanto o problema dos espaccedilos levou tanto tempo

40 Bd Soja 7huacutelspact Journeys to Los Angks a11( Othtr lUa11( ltilM Ptampts Cambridge (Mass)Blackdl 1996

para aparecer como um problema histoacuterico-poliacutetico Lembro-me que haacute cerca de dez anos falei destes problemas de uma poliacutetica

dos espaccedilos e de me terem respondido que era bastante readoshy

naacuterio insistir tanto sobre o espaccedilo e que o tempo o projeto era a vida e o progresso 41

Uma histoacuteria foucaultiana dos espaccedilos mais precisamente

da espacializaccedilatildeo do poder mais precisamente ainda da inscriccedilatildeo

no espaccedilo colonial- heterot6pico - desse regime de poder partishycular que se desenvolve a partir do seacuteculo XVIII e que Foucault designa de biopoder42 a partir do qual os problemas de espaccedilo tornam-se politicamente diferentes eacute o projeto que no comeccedilo dos anos oitenta empreendem o antropoacutelogo Paul Rabinow43 e a historiadora do habitat americano Gwendolyn Wright44bull Nem

eles nem Franccedilois Beacuteguin conheciam a conferecircncia de 1967

Em uma entrevista que Rabinow e Wright fizeram com

Foucault em 198245 publicada em Skyline46 revista americana de

arquitetura o filoacutesofo lembra suas obsessotildees pelo espaccedilo e como

atraveacutes destas obsessotildees cheguei ao que eacute fundamental para mim as relaccedilotildees que satildeo possiacuteveis entre o poder e o saber

41 MFoucault J Bentham Lotil pouvoir in L Panoptiacuteque Opcil (Veja-se em traduccedilaacuteo brasileira de A L de SOU7 O olho do poder in Microfiacutesica b podtr op cit- N da T) 42 M Foucaull La Volon tk savoir Paris Gallimard 1976 cap V Droil de mort et pouvoir SUl I vie (Trad bras de M T da C Albuquerque e J A Guilhon Albuquerque A Vontade tk saber Rio de Janeiro Graal 1977 - N d T) 43 P Rabinow Biopower in lhe Frrnch Coloits conferecircncia interdisciplinar sobr Foucault Knowledge Power HislOry Los Angeles 29-31 de oUlubrol1981 Frrneh Modn Norms and Forms of th SfJCial Enviacuteronmmt Cambridge (M) MIT Press 1989 44 G Wright 7he Poliacutetics ofDltsigns in the Frrnch Colonial Urbanism Chicago University Preso 1991 45F B~n Arabisanm op cil 46 M Foucaull Space knowledge power entrerien avec P Rabinow Skyline marccedilo11982 pp 16-20 retomada em Dits tt Eacutecrits t N n 340 pp 270-285

POSFAacuteCIO

POSFAacuteCIO

53

52

A arquitetUra e o urbanismo naacuteo constituem diz ele um campo isoshylaacutevel Misturam-se com muacuteltiplas praacuteticas e discursos mas o espaccedilo

eacute o lugar privilegiado de compreensatildeo de como o poder opera

Inversamente ele bane da praacutetica do arquiteto toda esperanccedila

utoacutepica Os homens sonharam com maacutequinas libertadoras Mas por definiccedilatildeo natildeo existem maacutequinas de liberdade Jamais

a estrutura das coisas tem competecircncia para garantir a liberdade Nada eacute funcionalmente libertador A liberdade eacute o que se deve exercer a garantia da liberdade eacute a liberdade

Mestre doravante de um discurso poliacutetico e epistemoloacutegico sobre o espaccedilo Foucault deixa entatildeo ressurgir seu antigo conceito de heterotopia Diga-se entre parecircnteses lembro-me de ter sido

convidado por um grupo de arquitetos em 1966 para realizar um estudo do espaccediloi tratava-se do que na eacutepoca chamei de heterotopias espaccedilos singulares que encontramos em alguns

espaccedilos sociais cujas funccedilOes satildeo diferentes das dos outros ou tershy

minantemente opostas Os arquitetos trabalhavam neste projeto e no final do estudo algueacutem tomou a palavra _ um psicoacutelogo

sanreano - para me bombardear que o espaccedilo era reacionaacuterio e capitalista enquanto a histoacuteria e o devir eram revolucionaacuterios

Agravequela eacutepoca este discurso absurdo de modo algum era inabitual Hoje em dia qualquer um se dobraria de rir ouvindo aquilo

Natildeo haacute como natildeo se impressionar com esta longa anamnese em dois tempos primeiro em 1976 relativamente agrave objeccedilatildeo poliacuteshy

tica feita em 1967 e em 1982 enfim relativamente ao proacuteprio conceito de heterotopia em 1984 Foucault podia acolher favoshy

ravelmente a reutilizaccedilatildeo de sua conferecircncia pelo IBA de Berlim

Os dois organizadores da exposiccedilatildeo o alematildeo Johannes Gachnang e o italiano Marco de Michelis conheciam esse texto

em sua publicaccedilatildeo de 1968 em Architteturri7bull Ele sintonizava

estranhamente com a estrateacutegia do IBA tal como foi exposta por

um de seus dois responsaacuteveis J-P Kleihues48 executar a ideia

de uma cidade por fragmentos falar de arquitetur~ urbana sem traccedilar primeiramente um plano global de urbanismo respeitar

a variedade histoacuterica e topograacutefica berlinense pensar a composhysiccedilatildeo da cidade por ilhotas e ateacute confiar a diversos arquitetos a

reconstruccedilatildeo das residecircncias em uma mesma ilhota E por ocashy

siatildeo de uma reunificaccedilatildeo eventual justificar a conservaccedilatildeo da arquitetura staliniana

Sua traduccedilatildeo americana ocorreu em 1986 publicada prishy

meiramente na revista interdisciplinar de ComeU Diacriticis depois na revista de arquitetura LOtu9 Inaugurava-se uma carshy

reira nova para a interpretaccedilatildeo qualitativa dos espaccedilos outros

Natildeo se compreenderia esta carreira sem a simultaneidade da trashy

duccedilatildeo dos volumes II e III de Histoacuteria da sexualidaJe5deg a partir

dos quais Foucault torna-se uma referecircncia para aquilo que os americanos denominam poliacuteticas da identidade Movimentos

feministas movimento gay grupos eacutetnicos constituem a nova

47 Infurmaccedilaacuteo obtida com e1cs e concedida por Franccediloise Jolr 48 J-r Kleihues Agrave propos de I viUe europeacuteenne entreVista com M Bourdeau AMeS outubroI984

pp 95-99 49 M Foucault Ofother spaces Diacritieacuteiacutes 16 n I 1986 pp 22-27 e Lotushmnational 1986 50 M Foucaulr lUage tUacutes pIAis Paris Gallimaa 1984 uacute Souci Je soi Paris Gtlimn 1984 trad

1ht Use ofPlrasU Harmondsworth Penguin 1985 1ht Ca Dfthe sg Harmondsworth Penguin 1986 (Trad bras de M T da C Albuquerque O USQ dos p e O CuiJmJo Je si Rio de Janeiro Graal 1984 e 1985 - N da T)

POSFAacuteCIO

POSFAacuteCIO

54 rede de inscriccedilatildeo e a nova avaliaccedilatildeo das heterotopias A histoacuteshy

ria dos modos de subjetivaccedilatildeo realizada por Foucault atravessa

textos como lhe spaces that diferences make do urbanista Ed

Soja51 Gendered Spaces da feminista Daphne Spain52 lhe New Cultural Politics ofDijforence de Cornel West53 ou Geographical lmaginations do geoacutegrafo Derek Gregory54

Lugar de emergecircncia da heterotopia a anaacutelise literaacuteria dela

se apropria com Brian McHale Michel de Certeau5S a anaacutelise

fiacutelmica com Giuliana Bruno56bull Foucault torna-se passagem obrishy

gatoacuteria para toda anaacutelise do espaccedilo constata Soja

O mesmo se passa com as artes plaacutesticas Apresentando as

obras do artista plaacutestico cubano Felix Gonzalez-Torres Nancy

Spector descreve uma experiecircncia de ambiente heterotoacutepico

realizada em Manhattan57bull Em vinte e quatro paineacuteis de anuacutencio

publicitaacuterio das instalaccedilotildees urbanas de Manhattan Gonzalezshy

-Torres afixou o contraespaccedilo constituiacutedo por imensa foto em preto

e branco da intimidade de uma cama exposta Desnudamento

absoluto de um puro roccedilar de lenccediloacuteis leve traccedilado de duas cabeshy

ccedilas no vaacuteo entre os dois travesseiros onde cada qual pode proshy

jetar ou a interrupccedilatildeo do sono ou o amor consumado ou mais

51 Ed Soja The spa= that dlfenna makc ln M Kelm e S PIlbullbull PI4u iI1III lhe Politics olidmtiacutety NQVlI Iorque Roudedge 1993 pp 183middot205 52 D Spain Glt1JIUacutertaacute Spam Chapei Ht11 Unlverlty ofCarolIna Pras 1992 53 CWest 1M Ntw Cultural Politict oIDifimut ot h 1M Dilm_ ofrJu BIa lnttlkcttuuacute Ferguson 1994 54 D Gregory Gtographicalmaginatiacuteons citado ln Ed Soj hitrlspace Carobridge Bladltwell 1994 55 B McHale Post Moaacuteernist Fietion Nova Iorque Routledge 1988~ M de Certeau HettrologitS Discouffl 01tlu Otbtr Manchester Manchester University Presa 1986 56 G Bruno Bodlly ArchirecturesAltrtmblag 19 dezembro1992 57 N Spector Ptilt GonzakzmiddotTorres The Solamon R Guggenheim Museum Nova Iorque 1995

radicalmente a advertecircncia do artista uma decisatildeo de 1986 da

Corte suprema autoriza doravante a justiccedila em todo Estado em

que a sodomia eacute ainda um crime a persegui-la mesmo quando consentida entre adultos em suma a intimidade do espaccedilo prishy

vado da cama acaba de entrar no espaccedilo puacuteblico Esta articulashy

ccedilatildeo entre o puacuteblico e o privado poderia criar segundo Spector uma histoacuteria mais silenciosa a marca vazia do companheiro do

artista morto de aids

Maravilhosa intuiccedilatildeo no comeccedilo da confer~ncia radiofocircnica

de Foucault em 1966 daquela passagem inexistente na conferecircnshy

cia para os arquitetos em 1967 em que o fil6sofo evocava como

primeira figura da heterotopia a cama dos pais que as crianccedilas

gostam de invadir com um prazer de transgressatildeo e de sonho das origens Naacuteo poderiacuteamos concluir que aqui a longa seacuterie de

rein~riccedilotildees do texto em muacuteltiplas redes e estrateacutegias que a longa

seacuterie de transformaccedilotildees da figura social de seu autor encontram

neste instante de sua trajetoacuteria a mais completa forma de recepshyccedilatilde0 58 Foucault natildeo declarara tantas vezes que almejava menos

leitores que utilizadores59

58 Ed Soja Heterotopies remembrance Df other spaccs in me citadd LAraquo Strattgies a jIJurna 01 tbeory culturt anaacute poines 3 1990 pp 1middot39 Post metropolis Critiacutecal Stuties 01 Ctti naacute Rtglgtnt Londle$ Blackwdl 2000 59 Em 200I uma associaccedilatildeo cultural italiana denominada EttrotpirJ publicou uma releitura de textos de Foucaulr sobre o espaccedilo sob o titulo Spnialtri

POSFAacuteCIO POSFAacuteCIO

r o CORPO UTOacutePICO AS HETEROTOPIAS com posfaacutecio de Daniel Defert LE CORPS UTOPIQUE LES HEacuteTEacuteROTOPIES postface de Daniel Defert copy Nouvelfes Eacuteditions Lignes 2009 copy n-1 ediccedilotildees 2013

Ediccedilatildeo bilrngue Portuguecircs - Francecircs ISBN 978-85-66943-07-8

O corpo utoacutepico e As heterotopias satildeo duas conferecircncias radiofoacutenicas proferidas por Michel Foucault nos dias 7 e 21 de dezembro de 1966 no France-Culture Estas conferecircncias foram objeto de uma ediccedillo em aacuteudio com o tiacutetulo de Utopias e heterotopias (lNA-Meacutemoires vives 2004) A conferecircncia As heterotoplas foi publicada em texto numa ediccedilatildeo reduzida revista pelo autor sob o tiacutetulo de Des espaces autres pela Eacuteditions Gallimard em Dits et Eacutecrits vol IV 1994

Embora adote a maioria dos usos editoriais do acircmbito brasileiro e finlandecircs n-1 ediccedilotildees natildeo segue necessariamente as convenccedilotildees das instituiccedilotildees normativas pois considera a ediccedilatildeo um trabalho de criaccedilatildeo que deve interagir com a pluralidade de linguagens e a especificidade de cada obra publicada

Projeto Graacutefico prodartbr Ecircrlco Peretta e Ricardo Munlz Fernandes Traduccedilllo Salma Tannus Muchail Revisllo Maruzia Dultra Assistente Editorial Isabela Sanches

A reproduccedilatildeo parcial deste livro sem fins lucrativos para uso privado ou coletlvo em qualquer melo Impresso ou eletr6nlco estaacute autorizada desde que citada II fonte Se for necessaacuteria a reproduccedilllo na rntegra solicita-se entrar em contato com os editores n-lpubllcatlonsorg

Este livro publicado no acircmbito do programa de auxiacutelio agrave publicaccedilatildeo 2013 Carlos Drummond de Andrade da Mediateca da Maison de France contou com o apoio do Ministeacuterio francecircs das Relaccedilotildees Exteriores e Europeias

Cet ouvrage publieacute dans le cadre du Programme dAlde agrave ia Publication 2013 Carlos Drummond de Andrade de la Meacutedlatheacuteque de la Malson de France beacuteneacuteficie du soutien du Ministeacutere franccedilais des Affawes Etrangecircres et Europeacuteennes

Libm bull tlliti bull Frrnli

REacutePUBLlQlIB FMNCcedilAISB

a MeacuteDIaTHecircQue MaisondeFrance

Este livro contou com o Progr amas de auxil ia agrave pUblicaccedilatildeo instituto francecircs

Cet ouvrage a beacuteneacuteficieacute du soutien des Programmes daide agrave la publication de IInstiacutetut franccedilais

~~c~Ts Impresso em Satildeo Paulo Novembro 2013

PaJRT

7 O CORPO UTOacutePICO

19 AS HETEROTOPIAS

33 POSFAacuteCIO

o CORPO UTOPICO

Do lugar que Proust ocupa docemente ansiosamente semshy

pre e a cada vez que desperta deste lugar se me us olhos estiveshy

rem abertos nao posso mais escapar Nao que de me paralise - pois afinal posso nao apenas mover-me e remover-me como

posso tam bern move-lo remove-lo muda-lo de localizaltao

apenas isto nao posso deslocar-me sem de nao posso deixa-Io la onde ele esta para ir-me a outro lugar Posso ate ir ao fim do mundo posso de manha sob as cobertas encolher-me fazershy

-me tao pequeno quanto possfvel posso deixar-me derreter na praia sob 0 sol e ele estara sempre comigo onde eu estiver Esta

aqui irreparavdmente jamais em outro lugar Meu corpo e 0

contrario de uma utopia e 0 que jamais se encontra sob outro

ceu lugar absoluto pequeno fragmento de espacyo com 0 qual no sentido estrito fao corpo

Meu corpo topia implaclveI Ese por sorte eu vivesse com

ele em uma especie de familiaridade gasta como se com uma sombra ou com as coisas de todos os dias que no fim das contas

nao enxergo mais e que a vida embacyou como as chamines os tetos que todas as tardes se ondulam diante de minha janela

No entanto todas as manhas a mesma presenlta a mesma ferida desenha-se aos meus olhos a inevitavel imagem imposta pelo espelho rosto magro ombros arcados olhar mfope sem cabeshy

los realmente nada belo E e nesta desprezivel concha da minha cabelta nesta gaiola de que nao gosto que sera preciso mostrarshy-me e caminhar e atraves desta grade que sera precisa falar alhar

CORPO UTOPICO

7

8 9 ser olhado sob esta pele deteriorar Meu corpo eacute o lugar sem

recurso ao qual estou condenado Penso afinal que eacute contra ele

e como que para apagaacute-lo que fizemos nascer todas as utopias

A que se deve o prestiacutegio da utopia a beleza o deslumbramento

da utopia A utopia eacute um lugar fora de todos os lugares mas um

lugar onde eu teria um corpo sem corpo um corpo que seria belo

llmpido transparente luminoso veloz colossal na sua potecircncia

infinito na sua duraccedilatildeo solto invisiacutevel protegido sempre transshy

figurado pode bem ser que a utopia primeira a mais inextirpaacuteshy

vel no coraccedilatildeo dos homens consista precisamente na utopia de

um corpo incorporal O paiacutes das fadas o paiacutes dos duendes dos

gecircnios dos maacutegicos este eacute o paiacutes onde os corpos se transportam

tatildeo raacutepido quanto a luz o paiacutes onde as feridas se curam com um

baacutelsamo maravilhoso na duraccedilatildeo de um relacircmpago o paiacutes onde

se pode cair de uma montanha e reerguer-se vivo o paiacutes onde se eacute visiacutevel quando se quiser invisiacutevel quando se desejar Se existir

um paiacutes feeacuterico eacute justamente para que eu seja priacutencipe encanshy

tado e que todos os janotas graciosos tornem-se peludos e vilotildees coccedilno pequenos ursos

bull Mas haacute tambeacutem uma utopia que eacute feita para apagar os corpos

Essa utopia eacute o paiacutes dos mortos satildeo as grandes cidades utoacutepicas

que nos foram deixadas pela civilizaccedilatildeo egiacutepcia Afinal o que satildeo as muacutemias Elas satildeo a utopia do corpo negado e transfigurado A

muacutemia eacute o grande corpo utoacutepico que persiste atraveacutes do tempo Existiram tambeacutem as maacutescaras de ouro que a civilizaccedilatildeo micecircnica

colocava sobre os rostos dos reis defuntos utopia de seus corpos gloriosos possantes solares terror dos exeacutercitos Existiram as

o CORPO UTOacutePICO

pinturas e as esculturas dos tuacutemulos onde jazem os que desde a

Idade Meacutedia prolongam na imobilidade uma juventude que natildeo

mais passaraacute Existem agora em nossos dias os simples cubos

de maacutermore corpos geometrizados pela pedra figuras regulares e brancas sobre o grande quadro negro dos cemiteacuterios E nessa

cidade de utopia dos mortos eis que meu corpo torna-se soacutelido

como uma coisa eterno como um deus

Poreacutem a mais obstinada talvez a mais possante dessas utopias

pelas quais apagamos a triste topologia do corpo nos eacute fornecida

desde os confins da histoacuteria ocidental pelo grande mito da alma

A alma funciona no meu corpo de maneira maravilhosa Nele

se aloja certamente mas sabe bem dele escapar escapa para ver

as coisas atraveacutes das janelas dos meus olhos escapa para sonhar

quando durmo para sobreviver quando morro Minha alma eacute

bela eacute pura eacute branca e se meu corpo lamacento - de todo modo

natildeo muito limpo - vier a sujaacute-la haveraacute sempre uma virtude

haveraacute uma potecircncia haveraacute mil gestos sagrados que a restabeleshy

ceratildeo na sua pureza primeira Minha alma duraraacute muito tempo

e mais que muito tempo quando meu corpo vier a apodrecer

Viva minha alma Eacute meu corpo luminoso purificado virtuoso

aacutegil moacutevel teacutepido viccediloso eacute meu corpo liso castrado arredonshy

dado como uma bolha de sabatildeo Eis entatildeo que em virtude de todas essas utopias meu corpo

desapareceu Desapareceu como a chama de uma vela que se

assopra A alma os tuacutemulos os gecircnios e as fadas o massacraram fizeram-no desaparecer num aacutetimo sopraram sobre seu peso e

sua fealdade e o restituiacuteram a mim deslumbrante e perpeacutetuo

o CORPO UTOacuteP1CO

10 11

r Mas na verdade meu corpo natildeo se deixa reduzir tatildeo facilshy

mente Afinal ele tem suas fontes proacuteprias de fantaacutestico possui

tambeacutem ele lugares sem lugar e lugares mais profundos mais

obstinados ainda que a alma que o tuacutemulo que o encantamento

dos maacutegicos Possui tambeacutem ele suas caves e seus celeiros tem

abrigos obscuros e plagas luminosas Minha cabeccedila por exemshy

plo ah minha cabeccedila estranha caverna aberta para o mundo

exterior por duas janelas duas aberturas sei disso pois as vejo

no espelho ademais posso fechar uma ou outra separadamente

E no entanto essas aberturas natildeo satildeo senatildeo uma soacute pois natildeo

vejo diante de mim senatildeo uma soacute paisagem contiacutenua sem divishy

saacuteo nem corte E dentro desta cabeccedila como se passam as coisas

Elas entram laacute - e estou muito seguro de que as coisas entram

na minha cabeccedila quando eu olho pois o sol se for demasiado

forte e me ofuscar dilacera ateacute o fundo do meu ceacuterebro - e no

entanto essas coisas que entram dentro da minha cabeccedila permashy

necem no exterior pois vejo-as diante de mim e eu por minha

vez devo me adiantar para alcanccedilaacute-las

Corpo incompreensiacutevel corpo penetraacutevel e opaco corpo

aberto e fechado corpo utoacutepico Corpo absolutamente visiacutevel

em um sentido sei muito bem o que eacute ser olhado por algueacutem da

cabeccedila aos peacutes sei o que eacute ser espiado por traacutes vigiado por cima

do ombro surpreso quando percebo isso sei o que eacute estar nu no

entanto este mesmo corpo que eacute tatildeo visiacutevel eacute afastado captado

por uma espeacutecie de invisibilidade da qual jamais posso desvenshy

cUh-lo Este meu crilnio atraacutes do meu cracircnio que posso tocar

com meUl dedal mas nunca ver este dorso que sinto apoiado

OCO~POU~

na pressatildeo do colchatildeo sobre o divaacute quando me deito mas que

somente surpreenderei pelo ardil de um espelho e o que eacute este

ombro cujos movimentos e posiccedilotildees conheccedilo com precisatildeo

mas que jamais poderei ver sem me contorcer terrivelmente

O corpo fantasma que soacute aparece na miragem dos espelhos e

ainda assim de maneira fragmentaacuteria Preciso verdadeiramente

dos gecircnios e das fadas da morte e da alma para ser ao mesmo

tempo indissociavelmente visiacutevel e invisiacutevel Ademais este corpo

eacute leve eacute transparente eacute imponderaacutevel nada eacute menos coisa que

ele ele corre age vive deseja deixa-se atravessar sem resistecircncia

por todas as minhas intenccedilotildees Eacute verdade Mas somente ateacute o

dia em que adoeccedilo em que se rompe a caverna de meu ventre

em que meu peito e minha garganta se bloqueiam se entopem

se fecham Ateacute o dia em que a dor de dentes estrala no fundo da

minha boca Entatildeo aiacute entatildeo deixo de ser leve imponderaacutevel etc

torno-me coisa arquitetura fantaacutestica e arruinada

Natildeo verdadeiramente natildeo haacute necessidade da maacutegica nem

do feeacuterico natildeo haacute necessidade de uma alma nem de uma morte

para que eu seja ao mesmo tempo opaco e transparente visiacutevel

e invisiacutevel vida e coisa para que eu seja utopia basta que eu

seja um corpo Todas aquelas utopias pelas quais eu esquivava

meu corpo encontravam muito simplesmente seu modelo e seu

ponto primeiro de aplicaccedilatildeo encontravam seu lugar de origem

no meu proacuteprio corpo Enganara-me haacute pouco ao dizer que as

utopias eram voltadas contra o corpo e destinadas a apagaacute-lo

elas nascem do proacuteprio corpo e em seguida talvez retornem

contra ele

o CORPO UTOacutePICO

12 13 Em todo caso uma coisa eacute certa o corpo humano eacute o ator

principal de todas as utopias Afinal uma das mais velhas utopias

que os homens contaram para si mesmos natildeo eacute o sonho de corpos

imensos desmesurados que devorariam o espaccedilo e dominariam

o mundo Eacute a velha utopia dos gigantes que encontramos no

coraccedilatildeo de tantas lendas na Europa na Aacutefrica na Oceania na

Aacutesia essa velha lenda que haacute taacuteo longo tempo nutre a imaginaccedilatildeo

ocidental de Prometeu a Gulliver

O corpo eacute tambeacutem um grande ator utoacutepico quando se trata de

maacutescaras da maquiagem e da tatuagem Mascarar-se maquiar-se

tatuar-se natildeo eacute exatamente como se poderia imaginar adquirir

outro corpo simplesmente um pouco mais belo melhor decorado

mais facilmente reconheciacutevel tatuar-se maquiar-se mascarar-se

eacute sem duacutevida algo muito diferente eacute fazer com que o corpo entre

em comunicaccedilatildeo com poderes secretos e forccedilas invisiacuteveis Maacutescara

signo tatuado pintura depositam no corpo toda uma linguagem

toda uma linguagem enigmaacutetica toda uma linguagem cifrada

secreta sagrada que evoca para este mesmo corpo a violecircncia do

deus a potecircncia surda do sagrado ou a vivacidade do desejo A

maacutescara a tatuagem a pintura instalam o corpo em outro espaccedilo

fazem-no entrar em um lugar que natildeo tem lugar diretamente no

mundo fazem deste corpo um fragmento de espaccedilo imaginaacuterio

que se comunicaraacute com o universo das divindades ou com o unishy

verso do outro Por ele seremos tomados pelos deuses ou seremos

tomados pela pessoa que acabamos de seduzir De todo modo a

maacutescara a tatuagem a pintura satildeo operaccedilotildees pelas quais o corpo eacute arrancado de seu espaccedilo proacuteprio e projetado em um espaccedilo outro

o CORPO UTOacutePICO

Ouccedilamos por exemplo este conto japonecircs e a maneira com

que um tatuador faz passar para um universo que natildeo eacute o nosso

o corpo da jovem que ele deseja O sol dardejava seus raios sobre

o rio e incendiav~ o quarto de sete esteiras Seus raios refletidos

na superfiacutecie da aacutegua formavam um desenho de ondas douradas

sobre o papel dos biombos e sobre o rosto da jovem profundashy

mente adormecida Seikichi apoacutes puxar a divisoacuteria tomou nas

matildeos seus instrumentos de tatuagem Durante alguns instantes

permaneceu mergulhado em uma espeacutecie de ecircxtase Era entatildeo que

ele saboreava plenamente a estranha beleza da jovem Parecia-lhe

poder ficar sentando diante desse rosto imoacutevel durante dezenas

e centenas de anos sem jamais sentir cansaccedilo nem fastio Como

outrora o povo de Mecircnfis embelezava a magniacutefica terra do Egito

com piracircmides e esfinges assim Seikichi com todo amor queshy

ria embelezar com seu desenho a pele viccedilosa da jovem Aplicoushy

-lhe entatildeo a ponta de seus pinceacuteis coloridos que segurava entre o

polegar o anular e o pequeno dedo da matildeo esquerda e agrave medida

em que as linhas eram desenhadas picava-as com a agulha que

segurava na matildeo direita

E se considerarmos que a vestimenta sagrada ou profana relishy

giosa ou civil faz com que o indiviacuteduo entre no espaccedilo fechado

do religioso ou na rede invisiacutevel da sociedade veremos entatildeo que

tudo o que concerne ao corpo - desenho cor coroa tiara vestishy

menta uniforme tudo isso faz desabrochar de forma sensiacutevel

e matizada as utopias seladas no corpo

Mas talvez fosse preciso descer mais por baixo da vestimenta

talvez fosse preciso atingir a proacutepria carne e veriacuteamos entatildeo que

o CORPO UTOcircPICO

14 15 em certos casos no limite eacute o proacuteprio corpo que retorna seu

poder utoacutepico contra si e faz entrar todo o espaccedilo do religioso

e do sagrado todo o espaccedilo do outro mundo todo o espaccedilo do

contramundo no interior mesmo do espaccedilo que lhe eacute reservado

Entatildeo o corpo na sua materialidade na sua carne seria como o

produto de seus proacuteprios fantasmas Afinal o corpo do danccedilarino

natildeo eacute justamente um corpo dilatado segundo um espaccedilo que lhe

eacute ao mesmo tempo interior e exterior E os drogados tambeacutem e

os possuiacutedos os possuiacutedos cujo corpo torna-se inferno os estigshy

matizados cujo corpo torna-se sofrimento resgate e salvaccedilatildeo

ensanguentado paraiacuteso

Verdadeiramente enganara-me haacute pouco ao crer que o

corpo jamais estivesse em outro lugar que era um aqui irremeshy

diaacutevel e que se opunha a toda utopia

Meu corpo estaacute de fato sempre em outro lugar ligado a todos

os outros lugares do mundo e na verdade estaacute em outro lugar

que natildeo o mundo Pois eacute em torno dele que as coisas estatildeo disshy

postas eacute em relaccedilatildeo a ele - e em relaccedilatildeo a ele como em relaccedilatildeo a

um soberano - que haacute um acima um abaixo uma direita uma

esquerda um diante um atraacutes um proacuteximo um longiacutenquo O

corpo eacute o ponto zero do mundo laacute onde os caminhos e os espaccedilos

se cruzam o corpo estaacute em parte alguma ele estaacute no coraccedilatildeo do

mundo este pequeno fulcro utoacutepico a partir do qual eu sonho

falo avanccedilo imagino percebo as coisas em seu lugar e tambeacutem

as nego pelo poder indefinido das utopias que imagino Meu

corpo eacute como a Cidade do Sol naacuteo tem lugar mas eacute dele que

saem e se irradiam todos os lugares possiacuteveis reais ou utoacutepicos

CORPO UTOacutePICO

As crianccedilas afinal levam muito tempo para saber que tecircm

um corpo Durante meses durante mais de um ano elas tecircm

apenas um corpo disperso membros cavidades orifiacutecios e tudo

isso soacute se organiza tudo isso literalmente toma corpo somente

na imagem do espelho De modo mais estranho ainda os gregos

de Homero natildeo tinham uma palavra para designar a unidade do

corpo Por paradoxal que seja diante de Troacuteia abaixo dos muros

defendidos por Heitor e seus companheiros natildeo havia corpos

mas braccedilos erguidos peitos intreacutepidos pernas aacutegeis capacetes

cintilantes em cima de cabeccedilas natildeo havia corpo A palavra grega

para dizer corpo soacute aparece em Homero para designar cadaacutever

Eacute o cadaacutever portanto o cadaacutever e o espelho que nos ensinam

(enfim que ensinaram aos gregos e agora ensinam agraves crianccedilas)

que temos um corpo que este corpo tem uma forma que esta

forma tem um contorno que no contorno haacute uma espessura um

peso em suma que o corpo ocupa um lugar Espelho e cadaacutever

eacute que asseguram um espaccedilo para a experiecircncia profundamente e

originariamente utoacutepica do corpo espelho e cadaacutever eacute que silenshy

ciam e serenizam encerrando em uma clausura - que para noacutes

hoje eacute selada esta grande coacutelera utoacutepica que corroacutei e volatiliza

nosso corpo a todo instante Graccedilas a eles graccedilas ao espelho e

ao cadaacutever eacute que nosso corpo natildeo eacute pura e simples utopia Ora

se considerarmos que a imagem do espelho estaacute alojada para

noacutes em um espaccedilo inacessiacutevel e que jamais poderemos estar laacute

onde estaraacute nosso cadaacutever se considerarmos que o espelho e o

cadaacutever estatildeo eles proacuteprios em um inatingiacutevel outro lugar desshy

cobrimos entatildeo que unicamente as utopias podem fazer refluir

o CORPO UTOacutePICO

16 nelas mesmas e esconder por um instante a utopia profunda e

soberana de nosso corpo

Seria talvez necessaacuterio dizer tambeacutem que fazer amor eacute senshy

tir o corpo refluir sobre si eacute existir enfim fora de toda utopia

com toda densidade entre as matildeos do outro Sob os dedos do

outro que nos percorrem todas as partes invisiacuteveis de nosso

corpo potildeem-se a existir contra os laacutebios do outro os nossos se

tornam sensiacuteveis diante de seus olhos semicerrados nosso rosto

adquire uma certeza existe um olhar enfim para ver nossas paacutelshy

pebras fechadas O amor tambeacutem ele como o espelho e como

a morte sereniza a utopia de nosso corpo silencia-a acalma-a

fecha-a como se numa caixa tranca-a e a sela Eacute por isso que ele eacute

parente tatildeo proacuteximo da ilusatildeo do espelho e da ameaccedila da morte

e se apesar dessas duas figuras perigosas que o cercam amamos

tanto fazer amor eacute porque no amor o corpo estaacute aqui

33 HETEROTOPIA TRIBULACcedilOtildeES DE UM CONCEITO ENTRE VENEZA BERLIM E LOS ANGELESl

No dia 14 de marccedilo de 1967) o Ciacuterculo de estudos arquiacuteteturais de Paris convidara Foucault a pronunciar uma conferecircncia sobre

() espaccedilo para a qual ele propocircs uma analiacutetica nova que batizou

de heterotopologia O texto desta conferecircncia teve circulaccedilatildeo

restrita reservada aos membros daquele ciacuterculo em forma datishy

lografada com exceccedilatildeo de extratos publicados em francecircs em

1968 na revista italiana LArchittetura2 ateacute sua publicaccedilatildeo em

Berlim no outono de 1984 no quadro da exposiccedilatildeo ldeacutee proshymsus reacutesultats no Martin-Gropius-Bau3bull

Essa exposiccedilatildeo foi a principal dentre as dezessete manifestashy

ccedilotildees com as quais a Internationale Bauausstellung (IBN) apreshy

sentou ao mundo o balanccedilo de suas atividades de reconstruccedilatildeo

e renovaccedilatildeo de Berlim Imaginava-se a reunificaccedilatildeo da cidadeshy

-capital que parecia estranhamente ilustrar os espaccedilos outros do

texto de Foucault de 1967 Autorizando sua publicaccedilatildeo pouco

antes da sua morte ocorrida em 25 de junho de 1984 o fi16sofo

a introduzira in extremis no corpus de seus escritos autorizados

I Oucra versatildeo deste texto fui publicada em 1997 no caraacutelogo de Dccummta X em Kassd 2 M Foucault Des espaces aurres EArthinura mJtlltck stvria vol XIII n 150 1968 pp 822-823 M Foucault Des espaces aurres AMes ~ darrhitt(lUrt ourubrofll984 pp 46-49 Eacute esla versatildeo t 1984 signincatiacuteVllmente diferente da que reproduzimos no presente volume que estaacute incluiacuteda cm IJIIiS et Eacutecrits Paris Gallimard t Iv texto n 360 (Martin-Gropius-Bau museu localizado em Berlim Inaugurado em 1881 - N da T) 4 IBA Exposiccedilatildeo internacional de consrruccedilatildeo sigla retomada mais adiante (N da T)

POSFAacuteCIO

34 Desde enrao () lCx ro f()i thlilldantllllllltl trad uzido e comenshy

tado C omo podl prrt na IICLt1 i1I(xplo rlllu d II ranrc vitae anos

Olllo nail c lO l llpn( nd clI Icrgll l1 tl t Edward Soja entushy

sia ~t1 IrolliOl OI l tl illlllli 1I 11I d 1 rmfflpIIf1fJI a Illlporrancia

1l0V(1 d(1 tp t1I t d1 (PH Itlld ldt I I dlvl III )dcrllmos intershy

pretl r 1 di qlIlCl1 ( IIII(~ I _I~ 111 dIIW 1)(1 7 II)IH e a hist6ria

dcs~c -i ltlIli ll 111111 1 h i~I( 1 ti l h 11I 1 11 IlIlp~o1(t A~ nocoes

dt nIt IIO ti t 11111 IllI l ln fU(IAII11I1 Utl l IIVO dc analise

suficic ll lc rnlc J ( fino plI dl 1t1lh lr IIl1n I lit I t trw sfOrmashy

coes tanto d le) diM lI 1m (I ~k~ PII 11101111 c politicos

dos arquitctos t lIIhalli tl 11(11 1 II I Ulll ~ IIJII UItlS quan to da

problematica do cspao 11 11 I ~llll( de 1 -(~~ IIc1I

Linguagem e espa~o

Voce se lembra daqude l(k~I III I1 1111 Ihl III I ir l1nro em

que urn arquiteto via uma nova Ltl JlU~lIj I 11III1~mo Mas

isto nao estava em urn livro Cst I VI 1 111111 I ~ I I 1111111 nll1fcrencia

radiofonica sobre a utopia Pedt lll li lt pw II l( nll~1 1111 dia J3 ou 14 de marco

Esta carta escrita em Sidi BOil ~ai 1 1I1I di1 2 dt lIlano de

1967 e 0 testemunho mais antigo do ( I ll II II I IIJ d f~ FI)lllluJrcom

os arquitetos Em 7 de dezembro dt I )h h li e tll ~ld lll de uma

serie radiofonica chamada de Cuhlll1 rI( I tlllsagrada a 5 amp1 Soja Rembrance of ocher spaces in [he ciradd LA 114(rO Jrftj

Politics 3 1990 p 1 39 Art igo dcscnvolvulo em Ed Soja Ij Rral Imagined Plam Cambridg~ (Mss) Blockwell 1996

6 P Bou rJi cu Quesr-cc q Ut fai l e parler urn ) U[lur A prop d Mit Ii t l I --I ~ ~~h III f~r n

plitmtlltions n especial tlSureiUcr er punic vingt aIl~ pres II Iltl T ~lI ltI L ~middotIIn II t IH

lgto~AClO

35 u topia ele fora convidado a falar sobre Utopia e Literatural

Pactindo de uma evocacao bachelardiana daqueles espacos que

encantam os jogos infantis como os celeiros 0 fundo do jardim

a tenda de Indios ou a cama dos pais verdadeiras utopias localishy

zadas sonhou com uma ciencia que teria por objeto estes espashy

cos diferentes que sao a contestacao dos espaltos onde vivemos

nao uma ciencia das utopias mas das heterotopias cie ncia dos

espacos absolutamente ourros Esta ciencia 011 hecerotopologia

que esta em vias de nascer que ji cxistc c cujos prindpios ele

enunciara naquele dia

As emissoes radiofonicas de Foucault - nas quais de se reveshy

lava urn maravilhoso contista - respondiam aenorme curiosishy

dade suscitada desde a primavera de 1966 pela publicacao de

As Palavras e as coisas 8bull 0 livro se abria com a descricao de uma

improvavd enciclopedia chinesa inventada por Borges segundo

a qual os animais se distribufam em quatorze classes do seguinte

tipo a) pertencenres ao imperador b) embalsamados c) domesshy

ticados k) desenhados com urn pincel muito fino de pelo de

cameoj I) et cetera m) que acabam de quebrar a biJha Esta

desordem que faz cintilar os fragmentos de urn grande numero

de ordens possiveis fora batizada por Foucault de heterotopia

o termo se opunha a utopia etimologicamente nao lugar e nao

eu-topia como se tende a crer Mas se as utopias narram urn lugar

7 M Foucault Uwpi( bem opi quivo sonora de 7 e 2 1 de dczombro de 19(6 CCOIrc Midd Foucaul t DibLioth~uc dc IIM EC-Cacn (eeditad em diso pdo INA em 2004 (rNA In iw Ntiorul de IAudinvisucl - Nd T)

8 M Foucault Ln Mots a Choses Paris Gallimard 1966 (TC3d u~() b silt ira de S T Muchail As PaiArdH as coilas Sao Paulo Martins Fontes 1981 - N da n

POSFAClO

36 37 que natildeo existe desabrocham contudo em um espaccedilo imaginaacuteshy

rio e por isso situam-se na linha reta do discurso pois desde

o fundo dos tempos a linguagem se entrecruza com o espaccedilo A lista de Borges ao contraacuterio estanca as palavras nelas proacuteprias pois a heterotopia arruiacutena natildeo somente a sintaxe das frases como

tambeacutem aquela menos manifesta que autoriza manter juntas as palavras e as coisas9

A impossibilidade em que se encontra nosso pensamento para pensar esse heteroacuteclito radical da classificaccedilatildeo de Borges tesshytemunha um limite do pensamento o mesmo limite que ainda

experimentamos diante das classificaccedilotildees proacuteprias agraves culturas que nos satildeo radicalmente estranhas Quando Victor TurnerlO descreve como os Ndembu da Zacircmbia reuacutenem em uma mesma

classe os caccediladores as viuacutevas os doentes e os guerreiros isto

natildeo implica um espaccedilo de pertenci menta concebido como tershyritoacuterio comum nem um espaccedilo de pertencimento concebido

como ramificaccedilotildees definidas por propriedades formais como

aquele no qual n6s distribuiacutemos os reinos da natureza nem a linearidade arbitraacuteria de uma ordem alfabeacutetica com a qual nosshy

sos dicionaacuterios ordenam o heteroclito no espaccedilo Ele descreve um sistema de analogias de similitudes entre propriedades simshyboacutelicas cujas interconexotildees precisamos traccedilar em uma paacutegina em branco a fim de compreender esse sistema ou o espaccedilo de similitudes Natildeo se pode pensar sem o suporte de um espaccedilo de ordem sem esta zona mediana que Foucault qualifica

9 M FOUaacutelulr Les MolJ ks Choses op dto prefaacutecio p 9 (Ar Plarmu l1li cow pp 5-8 _ N d T) 10 Victor Turner (1920-1983) antropoacutelogo britilnico (N da T)

de arqueoloacutegica por sob nossas percepccedilotildees nossos discursos nossos saberes onde se articulam o visiacutevel e o enunciaacutevel a linshy

guagem o olhar e o espaccedilo

Na emissatildeo radiofocircnica de 7 de dezembro de 1966 Foucault fez um uso totalmente diferente de sua noccedilaacuteo de heterotopia Primeiro ela eacute pertinente natildeo mais a uma anaacutelise dos discursos

mas dos espaccedilos Lugares tatildeo heteroacuteclitos como o espelho o cemiteacuterio a casa de toleracircncia ou a colocircnia polineacutesia de feacuterias em

Djerba entram em uma categoria especiacutefica de espaccedilos-tempos quer este tempo seja provisoacuterio como o tempo uacutenico da defloshy

raccedilatildeo no espaccedilo da viagem de nuacutepcias quer este tempo seja ao contraacuterio cumulativo de temporalidades - atemporal- no lugar da biblioteca ou do museu

Essas unidades espaccedilo-temporais esses espaccedilos-tempos tecircm em comum serem lugares onde estou e natildeo estou como o espeshy

lho ou o cemiteacuterio ou onde sou outro como na casa de toleracircnshy

cia na colocircnia de feacuterias ou na festa carnavalizaccedilotildees da existecircncia

ordinaacuteria Eles ritualizam cortes limiares desvios e os localizam As normas humanas natildeo satildeo todas universalizaacuteveis as da

disciplinarizaccedilatildeo do trabalho e as da transfiguraccedilatildeo pela festa

naacuteo podem desenrolar-se na linearidade de um mesmo espaccedilo ou de um mesmo tempo eacute preciso uma forte ritualizaccedilaacuteo das rupturas dos limiares das crises Estes contraespaccedilos poreacutem saacuteo

Interpenetrados por todos os outros espaccedilos que eles contestam o espelho onde natildeo estou reflete o contexto onde estou o cemishyteacuterio eacute planejado como a cidade haacute reverberaccedilatildeo dos espaccedilos uns nos outros e contudo descontinuidades e rupturas Haacute

POSlACIO

POSFACIO

38 39 enfim como que um eterno retorno desses rituais espaccedilo-temshy

porais e se natildeo universalizaccedilatildeo das mesmas formas ao menos

uma universalidade de sua existecircncia Eles satildeo apreendidos em

uma sincronia e uma diacronia especiacuteficas que fazem deles um

sistema significante entre os sistemas da arquitetura Natildeo refleshy

tem a estrutura social nem a da produccedilatildeo natildeo satildeo um sistema

soacutecio-histoacuterico nem uma ideologia mas rupturas da vida ordishy

naacuteria imaginaacuterios representaccedilotildees polifocircnicas da vida da morte

do amor de Eacuteros e Taacutenatos

A carta de Foucault de 2 de marccedilo de 1967 deixa vazar um

Utopias e heterotopias O Ciacuterculo de estudos arquiteturais era animado entre 1960 e

1970 por Jean Dubuisson seu presidente arquiteto do Museu

(te Artes e Tradiccedilotildees Populares do Bosque de Boulogne e Ionel

Schein que indicava os conferencistas a serem convidados ao

Boulevard Raspail nuacutemero 38 Era um dos raros ciacuterculos de

reflexatildeo de arquitetos sem corporativismo no qual nos anos

cinquenta e sessenta Ionel Schein gozava da lisonjeira reputaccedilatildeo

de agitador de ideias e de radicalismo em arquitetura I I Foi ele

segundo Jean Dubuisson quem convidou Foucault As confeshy

recircncias eram anotadas em estenografia e depois datilografadas e

do arquiteto Natildeo natildeo fora o livro (As Palavras e as coisas) que

desapontamento a arqueologia do olhar natildeo retivera o olhar entregues aos membros do Ciacuterculo Pierre Riboulet - arquiteto

trouxera em germe uma nova concepccedilatildeo do urbanismo livro do entre outros do hospital Robert-Debreacute - conservou sua coacutepia

qual o filoacutesofo esperava a provocaccedilatildeo de rupturas no pensamento Ele se lembra das precauccedilotildees oratoacuterias do filoacutesofo para introduzir

No entanto estas rupturas foram suficientemente ruidosas pelo seu propoacutesito a insistecircncia sobre sua ignoracircncia quanto agraves preshy

menos ateacute o ruiacutedo de 1968 para que Foucault viesse a deixar ocupaccedilotildees dos arquitetos As referecircncias -satildeo tomadas da histoacuteria

tanto o tumulto da gloacuteria quanto o das polecircmicas pela serenidade das ciecircncias (Koyreacute Bachelard) da criacutetica literaacuteria a-p Richard

da luminosa vila de Sidi Bou Sald no alto do golfo de Cartago e Ianchot) da psicanaacutelise existencial (Binswanger) assuntos

a paz - sempre difiacutecil - da escritura Heterotopia vivida O que todos eles sobre os quais Foucault jaacute havia desenvolvido suas

chegara aos ouvidos do arquiteto era uma linguagem menor obsessotildees do espaccedilo12

um daqueles jogos literaacuterios nos quais Foucault tinha um prazer Para marcar seu entusiasmo agrave saiacuteda dessa conferecircncia Robert

guloso juacutebilo incessantemente decepado pela ascese da escrishy Auzelle um dos pensadores da reconstruccedilatildeo da Franccedila a partir

tura contenccedilatildeo que se lecirc na didaacutetica da conferecircncia reescrita d()s anos cinquenta lhe entregou sua histoacuteria da arquitetura

esta para os arquitetos certamente mas os jogos literaacuterios ficam II ltuklt tas infOrmaccedilotildees sobre o Circulo de tstutIos arqumlumis me foram fOrnecidas por P Riboulet

aqui finalmente retranscritos com todo respeito agrave integralidade Illxprcssatildeo utilizada por Fouault in Quesdons agrave Michel Fouault sur la geacuteographie HiroIIote n I 1lt)76 pp 71-85 retomada em Diu et Eacutecriu t m n 169 Paris Gallimard 1994 p 33 (Trad bras de

sonora da qual nasceram K Machado e A L de Souza Sobre a geografia in Microflsica do potUacuter Rio de Janeiro Graal 1979 1IIU-165-N daT)

POSFAacuteCIOPOSFAco

40 41 funeraacuteria e dos cemiteacuterios13 uma das heterotopias de Foucault

Em O Nascimento da cllnica14 Foucault descrevera como a anatoshy

mopatologia havia integrado a morte no conhecimento da vida

oferecer-lhe a hist6ria da integraccedilatildeo dos cemiteacuterios na planificashy

ccedilatildeo urbana provava a perfeita cumplicidade entre seus ouvintes

e o conferencista a negatividade estava no cerne da racionalishy

dade Ela estava no cerne das anaacutelises de Foucault pelo menos ateacute Vigiar epunit5

Foi no final deste mesmo ano de 1967 que Jean-Luc Godard

em A Chinesa fez sua heroiacutena a estudante pr6-chinesa interpreshy

tada por Alme Wiazemsky jogar tomates em um exemplar de As Palavras eas coisas entio um livro siacutembolo por suas descontinuishy

dades abruptas do pensamento no tempo da negaccedilatildeo da hist6ria e portanto da negaccedillo da revoluccedilatildeo

A confercncia de 1967 poderia ter outra circulaccedilatildeo aleacutem da

c6pia datHografada entre os membros do Circulo O pr6prio

Circulo natildeo possuiacutea uma revista e nlo editava nenhuma de suas

conferecircncias Por outro lado as concepccedilotildees que entatildeo partilhashy

vam os arquitetos deviam muito a Le Corbusier e agrave Bauhaus agrave

racionalizaccedilatildeo das formas e agrave legibilidade do espaccedilo urbano

concebido como um texto pontuado com referecircncias espaccedilos

ou edifiacutecios Franccediloise Choay que Foucault frequentara nos anos

13 R AuzeUe Derniim Dmlnlm Paris ed do autor 13 PIace du Panrlleacuteon 1965 14 M Foucault Naissanct de la ClitlUacuteJue Paris PUF 1963(Trad bru de R Machado ONtUCimentIJ da clnCIt ruo d Janeiro Forense-Universitaacuteria 1977 - N da T) 15 M Foucaul Survdlkr tIPunir Paris Gallimard 1975 A obra apresenta o panoacuteptico de Benthrun como um acontecimento na histoacuteria do esplrito humanomiddot epropotildee uma anill1sc do poder em termos d produccedilatildeo e natildeo de repressatildeo (Trad bras de R Ramalhete VIgiar11mr Pett6poliacutes Vous 1987 _ N da T)

ttenta reconstitui essas problemaacuteticas em Urbanisme utopies et rtaiteacutesl6

Um urbanismo progressista humanista que se sustentava

111amp carta de Atenas l7 e em uma racionalidade crescente ou um

urbanismo culturalista para o qual cada forma eacute siacutembolo e que

(Ilha com nostalgia para a harmonia das cidades passadas estas

tmm as ideias reguladoras da razatildeo urbaniacutestica Estas ideias

rCguladoras jaacute natildeo talhavam em pontilhado o espaccedilo da utopia

em que viria a desdobrar-se ap6s 1968 o discurso arquitetural e

urbano em uma dissoluccedilatildeo do objeto cidade no seio das relaccedilotildees

udais capitalistas A cidade como totalidade formal ou racional

I1Ao foi deslocada pelo capitalismo O espaccedilo natildeo eacute uma imensa

paacutegina em branco onde se escreve desde cerca de dois seacuteculos a

Illetanarraccedilaacuteo do capital Naacuteo estaacute aiacute o impensado geral o natildeo

dito de todas essas divisoacuterias construiacutedas entre as classes os sexos

C as geraccedilotildees

O fasciacutenio das escolas de arquitetura pela visita a cidades

patronais estas utopias realizadas como o familisteacuterio de Guise

unstruiacuteda por Godin ou a cidade Menier de Noisiell8 testeshy

munha que o discurso arquitetural e urbaniacutestico francecircs dos anos

etenta se desdobrava no espaccedilo da utopia Os promotores dessas

cidades natildeo estariam entre os primeiros a inventar o consumo

em massa Um reduzia as dimensotildees da milenar e dispendiosa

1111( Choay UrbanisIM UtIJpits tt rlaitis Paris Seuil 1965 17 Carta de Atenas manifesto do IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (Ciam) Atn 1933 (N da T) I Pamllisteacuterio de Guise espeacutecie de comunidade ou cidade operaacuteria inspirada em Charles Fourier IIl1nmulda em 1846 por J-BGodln para habitaccedilatildeo de operaacuterios de sua induacutestria Menler de Noisiel IDmunldade de operaacuterios da ptoduccedilatildeo de chocolates fundada por A B Menier em 1925 nas imediaccedilotildees bull arl (N da T)

POSFAtildeCIO POSFAacuteCIO

42 43 lareira a um aquecedor domeacutestico outro um medicamento dos

exeacutercitos napoleocircnicos a um complemento alimentar industrial

o tablete de chocolate Natildeo teriam eles articulado da maneira

mais restrita a racionalizaccedilatildeo do consumo com a da ocupaccedilatildeo do

espaccedilo A racionalizaccedilatildeo da cidade patronal como a fragmentaccedilatildeo

do espaccedilo urbano o homog~neo como o heterogecircneo conduziam

a um mesmo crivo de leitura infalsificaacutevel a espacializaccedilatildeo do

capital O arquiteto tornava-se o teacutecnico passivo da operacionashy

lizaccedilatildeo das estrateacutegias e das normas do capital

Mostra-se uacutetil falar indiferentemente das utopias preacute-urshy

banistas das cidades operaacuterias de Haussmann da Bauhaus do

funcionalismo dos Shakers dos grandes conjuntos das cidades

novas por toda parte afirma-se perigosamente uma racionalishy

zaccedilatildeo do espaccedilo inerente agrave extensatildeo universal do capital uma

propensatildeo de sua ordem de troca ou da ordem simplesmente podia-se ler na revista Traverse19bull

Genealogia dos equipamento coletivol Eacute a partir de 1972 que Foucault desenvolve pesquishy

sas em equipe sobre a histoacuteria dos equipamentos coletivos

Primeiramente com o Centro de estudos pesquisas eformaccedilatildeo instishytucional- ou Cerfi - animado pelo psiquiatra Feacutelix Guattari que

conclui entatildeo com Gilles Deleuze a redaccedilatildeo do seu Anti-Eacutediptldeg

19 B Eizykman Urbanismo Travme n 4 1976 citado por A Thalamy in PolltilJues tk lhabitat Corda

1977 p 14 (o nome Shaker designa um movimento de grupos religiosos fundado na Inglaterra no seacuteculo XVIII que - agrave semelhanccedila dos Amish- vivem em suas proacuteprias comunidades _ N da T) 20 G Deleuze F Guattari LAnti-CEdipe Paris Minuit 1972 (Trad bras de L B L Orlandi O Antishy-Eacutedipo Satildeo Paulo 34 2010 - N da T)

( rliacuteldo em 1965 com pesquisadores em ciecircncias sociais dissidenshy

trN do Partido Comunista Francecircs (PCF) o Cerfi apoacutes 1970 I()( em questatildeo sua cultura marxista submetendo-a a uma dupla

Inova 1) a do procedimento genealoacutegico praticado em Histoacuteria Ioucura e O Nascimento da cliacutenica 2) a de uma clarificaccedilatildeo

IIlN relaccedilotildees libidinais que todo pesquisador manteacutem com o

uhjeto de sua pesquisa (a ambivalecircncia da reflexatildeo urbaniacutestica

frente agrave racionalidade capitalista natildeo escapava a ningueacutem) e que

UIe pesquisadores mantecircm entre si como grupo social hierarquishy

uto e sexuado

O relato da realizaccedilatildeo dessa dupla prova publicada na revista

do Cerfi21 eacute provavelmente um dos mais interessantes diaacuterios de

hordo da travessia ideoloacutegica daqueles anos Ali se assiste como

lue em um laboratoacuterio agrave desagregaccedilatildeo da anaacutelise marxista e

~ emergecircncia daquilo que logo seraacute batizado de atitude poacutesshy

-moderna O empreendimento eacute descrito por seus autores como

uma estranha maacutequina feita de peccedilas e pedaccedilos emprestados do

Ilenealogista Foucault surrupiadas do depoacutesito do cientista biceacuteshy

falo Deleuze-Guattari

O genealogista Foucault eacute de fato uma nova imagem social

do filoacutesofo o procedimento genealoacutegico soacute estaraacute francamente

c()nfirmado a partir de seu ensino no Colge de France inaugurado

em dezembro de 1970 Ademais a partir de 1971 juntamente

com Deleuze ele anima um movimento militante o Grupo de

JI (eacuteneacutealogie du capital- I Les eacutequipements du pouvoir Recherches n 13 dezembro1973 Um s6 bullbullbullmplo de uma retomada das hettrotopias por H umre a propoacutesito de La Pensuuml marxiste de la vilte IIrlbullbull Casterman 1972

POSFAacuteCJO POSFAacuteCIO

44 45 informarao sobre as prisoes (GIP) enraizado na extrema esquerda

Foucault disc ute com 0 Cedi que trabalha sobre a cidade22

a abordagem genealogica dos equipamemos coletivos e a poe

em pritica sobretudo no seu seminario do College de France 0

seminario e consagrado aemergencia do medico como perito

no seculo XIX atraves da pericla psiquiatrica em medicina legal

por urn lado e por outro como engenheiro que comribui para

a definicao das normas e formas da arquitetura hospitalar Urn

arquiteto Bruno Fortier responsavel pelo Centro de estudos epesshy

quisas em arquitetura (Cera) participa doravame dos trabalhos

de pesquisa desse seminario

Se a expressao equipamemo coletivo nao figura nos textos

do seculo XVIII a maquina de curar definida pelo medico

Tenon como ideal do hospital moderno neles tern lugar A

arquitetura hospitalar escreve Tenon2 nao pode mais constishy

tuir-se de rotina c tateamemos devendo responder a multiplas

prcocupacentes estancar 0 contagio pela distribuicao das salas e

dns leiros a circuhlltao do ar tavorecer a diss()cia~ao dos doemes

c das d()cn~as a vigilancia dos dotntcs e do pessoal manifestar

a hierarquia do olhar medico ter em coma as necessidades da

populacao 0 que serve para curar nao e a regularidade do trashy

cado mas a justeza da arquitetura 0 modelo deve ser perfeito

- nao se podendo mais em nada muda-Io - acabado repetivel

Pela primeira vez em 1788 escreve Bruno Fortier propoe-se

22 Ruhhl1 n 13 op cir pp 27middot31 (Dits ~I fcrit n 129 n 130) 23 J-R Tenon M moirs sur It~middot api fl llX tie P1ris Paris 1788

aos arquitetos a imitacao como urn dever24 as tipologias norshy

mativas seguem os exemplos oferecidos pela historia A justeza

da arquitetura nasce do tratamemo de uma rede de questoes disshy

timas - c1imaticas demogdficas estatisticas higienicas medicas

disciplinares - que tern cada qual seu lugar de emergencia sua

racionalidade seus promotores que respondcm a uma multiplishy

cidade de taticas - tecnicas de vigilancia de producao de saber

de efetuacao de poderes de medica l iza~lo c de saude publica

Elas podem ser descritas como segmemos analogos Oll repetidos

ao infinito de urn so texto de um escrevcnrc unico Illitico e

unitario 0 capital

Certamente esses novos edificios incorporam dticas de

vigil an cia encomradas fora sob outras formas arquiteturais shy

colegios casernas - taticas e formas que puderam preceder e

sustemar a emergencia da organizacao capitalista do trabalho e

que poderao proliferar para alem dela por exemplo nos vast os

arquipelagos do socialismo siberiano Eque fundamemalmeme

nao estamos Iidando nem com formas arquiteturais nem com

modos de producao mas com tecnologias de poder Foi na busca

destas arquiteturas maquinas tao ajustadas aos seus objetishy

vos que Foucault veio a redescobrir 0 que logo tornou-se parashy

digma de sua obra 0 panoptico de Bcntham2 do qual Poyet26

24 M Fo ucault D Barrer-Kriegel A Thahmy F Btgllin B tllrlicr L-IVIi(Jilln II X4lrir (m4JI l)rigill ~1

de OJOpilil modnrl~) Paris lnsri ru[ de J cnvi ronncm cnt 1976 rccd Hruu lOl) Iirc M~rda8Q J~79

25 J Bcmham Le Panoptiqui p rcccdido de Loeil du pouI-vir cnrrcmiddotvisru Om Michel Fou~ult P~ ri s

Bdfond 1977 (faC-ltimik da cdjao franccsa de 179 1) (Trod bras d bullbullm rvi 0 Ih do poder por A L de S OU-1 in Microfli ra tQ pokr op Ci l pp209-227 - N d 1)

26 B Poyet M h noiu sur a niassili d( Iransera lt u collsrlli r tIf-fj rd-lhrm w ill dull pm)lmiddotr It

traminlioll k eel hopil4l Paris 1785

IOSFACIO pOSFAeiO

46

47 desenhara uma interpretaccedilatildeo para a reconstruccedilatildeo da Santa Casa de Misericoacuterdia Os trabalhos do seminaacuterio do College de Frante sobre a arquitetura hospitalar no final do seacuteculo XVIII recebeshy

ram duas ediccedilotildees uma em Paris em 1976 outra em Bruxelas em 1979 Les Machints agravegutrir27

O segundo estudo coletivo dirigido por Foucault teve por objeto o habitatentre 1800 e 185018 Foi conduzido por Franccedilois

Beacuteguin hoje historiador da paisagem e da arquitetura colonial29bull

Ametodologia ~ a mesma que a precedente no lugar de partir de

uma histoacuteria das formas da habitaccedilAo ou da cidade os pesquisashydores inventariaram as pr~tlcllll discursivas que circunscreveram e

codificaram o habitat como obJero de intervenccedilatildeo administrativa e politica entre 1800 e 1850 - a doenccedila o emprego a domestishycaccedilatildeo de equipamentos como a ~gua a iluminaccedilatildeo a ventilaccedilatildeo

e o desenvolvimento de uma crescente jurisdiccedilatildeo sobre o espaccedilo

puacuteblico em cuja intersecccedillo se connroacutei o habitat Eacute preciso prishy

meiramente desfazer-se da pregnAncla da casa desmineralizaacute-la desconstruiacute-la escreve F B6guln

Poder saber es~

Eacute a partir de vtgiar t punir (1975) e de sua raacutepida circulaccedilatildeo Iacutemernacional- traduzido rapidamente em cerca de vinte liacutenguas - que as anaacutelises foucaultianas do espaccedilo recebem uma visibilishy

dade nova como lugar de uma dupla articulaccedilio do poder sobre

27 M fucault B Barrer-Kriegd A Thalamy F Beacutepdn B fIorllr ln MtIthllltt 4 gubir op cit 28 ]-M A1Haume B Barret-Kriegcl F Seguin D Ranclere A lhalamy PDitifUtt tk lhabitat 18()() 1850 Paris Corda 1977 (estudo realizado sob a direccedilAo de M Poucaull)

29 De F Beacuteguin citemos principalmente ArabIacuteSlUlett dko illChlmhI4 ubitill Afoque du Norri 1830-1850 Paris Dunod 1983 e Paysagtt Paris Flammarlon 19

o corpo do indiviacuteduo e do saber ao poder Seguem-se numerosos estudos sobre a arquitetura da vigilacircncia publicados na Itaacutelia e na Gratilde-Bretanha principalmente3deg De modo mais geral socioacuteshy

logos e planificadores urbanos comeccedilam a referir-se a Foucault

A Leaman escreveu em Environment and Plannintl que a obra de Foucault eacute doravante importante para os urbanistas planifishy

cadores e arquitetos por sua anaacutelise das qualidades normativas

das estruturas e das instituiccedilotildees Sharon Zukin considera que a cidade estaacute doravante incluiacuteda nas anaacutelises de uma economia

do poder segundo o meacutetodo desenvolvido em vtgiar e punir32bull

Esse eacute o contexto em que reaparecem as heterotopias na escola de arquitetura de Veneza em dezembro de 1977 prishymeiro estudo sobre seu uso possiacutevel em uma histoacuteria dos espashyccedilos II dispositivo Foucault 33 que reuacutene ensaios de M Cacciari

F RelIa M Tafuri G Teyssot A capa como a de Machines agrave gueacuterir reproduz um plano de arquitetura panoacuteptico para um

hospital inglecircs Os autores se referem essencialmente a Vtgiar e punir e exceto T eyssot a uma reuniatildeo de textos de Foucault sobre o poder publicado neste mesmo ano pela editora Einaudi

Microfisica deipotert4 a incidecircncia poliacutetica desta uacuteltima coletacircnea

lO Ver especialmente HinmJmd primeiro ano n 3 maio-junho1978 n triliacutengue intitulado Segrtgazione corpo sociak consagrado agraves atquitetuta de vigilanda jl A Leaman in Environmmtand Planning n 111979 pp 1079-1082 H Sh Zukin Adecade cfilie new urban sociology 1heoryand Society 91980 pp 575-601 H M Cacdari F Relia M Tafuri G Teyssor II dispositillO Foucaut Veneza Cluva 1977 4 M Iltlucaullt MimfoIacuteCIJ rktpoYrt inkrUtntipoitici editado por Iltlnrana e Pasquino Turin Einudi 1977 retomado e completado pelo movimento alternativo berlinense Dispositive tkr Macht Betlin Merve 1978 (A reuniaacuteo d textos que compotildecm a ediccedilatildeo italiana a=sdda de oUtros textos reltebeu traduccedilaacuteo brasileira de R Machado e OUrtOS Micrufisica do potkr Rio de Janeiro Graal 1979 Foi publicada tambeacutem uma ediccedilaacuteo espanhola com algumas alteraccedilotildees dos tcxtos sdeclonados trad por J Varela e F A1varez-UrIacutell Madri La Piquem 1978 - N da T)

POSFAacuteCIO

POSFAclO

48 49 foi imediata logo reforccedilada pela traduccedilatildeo de Rhizome de Deleuze

e GuattarP livros que se tornaram referecircncias teoacuterico-poliacutetishy

cas do movimento chamado Autonomie (do poliacutetico subenshytenda-se) que incomodava a esquerda do PCI engajado na

estrateacutegia do compromisso histoacuterico ~ esta incidecircncia poliacutetica

que os italianos batizaram de leffeto Foucault36 que eacute o alvo de 1 dispositivo Poucault

A introduccedilatildeo agrave coletAnea escrita por F Rella eacute perfeitamente expliacutecita desde Jogo travare as anaacutelises foucaultianas da pluralishy

dade das relaccedilotildees de poder em uma metafisica do poder de um poder abstrato imaterial supostamente em toda parte e portanto

politicamente em parte alguma liA uacutenica histoacuteria dos poderes eacute

uma histoacuteria dos espaccedilos atraveacutes dos quais o poder se mostra E

apoiando-se no artigo de Teyssot como uacutenica fonte de conhecishy

mento das heterotopias prossegue O nlo lugar do poder situashy

-se no centro de uma infinidade de localizaccedilotildees heterotoacutepicas

A heterotopia torna-se entatildeo um dado central em Foucault

e a hetero topologia a fenomenologia da dlspersio anaacuterquica do

poder A conclusatildeo desta interpretaccedilatildeo eacute previsiacutevel Natildeo se comshy

bate mais o poder doravante investidp em uma miriacuteade de locashylizaccedilotildees [ou dispositivos] mas a tirania das teorias globalizantesraquo

Teorias que Rella explicita precisando em nota leffeto Marx37 Na verdade Teyssot38 natildeo comenta a confer~ncia de 1967

35 G Deleuu F Guattari Rhizo1M Paris Minuit 1976 Rizoma ParrnalL~uea Pradche 1977 36 Em italiano no original (N da T)

37 Em italiano no original (N da T)

38middotG Teyssot Eterotopia e storiadegli spazi II displJlitirm FOllcault pp 83-86 e HelerolOpies and the historyofspaccs Arcbiacutetlctureandurbaniacutesm 121 1980 pp 79-100

mas o uso taxinocircmico do prefaacutecio de As Palavras eas coisas aplishy

cando-o a um projeto de hospital do seacuteculo XVIII descrito pelo

historiador J-c Perrot39bull Seu plano distribui como uma grade

em oiro construccedilotildees distintas oito classes de pensionaacuterios tatildeo

heterogecircneos quanto as categorias de animais da enciclopeacutedia de

Borges a) os prisioneiros a pedido de suas famiacutelias b) os loucos

os prisioneiros por edito real c) as crianccedilas pobres e legiacutetimas

dedois a nove anos os idosos os mendigos as prostitutas acoshy

metidas de doenccedilas veneacutereas d) as crianccedilas bastardas de mais

de nove anos etc Eacute a incongruecircncia do conteuacutedo que designa

a arquitetura como heterotopia e naacuteo o jogo de oposiccedilatildeo ou de contestaccedilaacuteo qualitativa ou simboacutelica dos outros espaccedilos que este

uacuteltimo institui por sua funccedilaacuteo sua forma suas rupturas

O uso da heteroropia feito por T eyssot de modo algum transshy

creve a inscriccedilaacuteo profunda da espacialidade na ttalidade da

existecircncia humana a heterogeneidade e a descontinuidade dos

tempos vividos os limiares da vida as crises bioloacutegicas (iniciashy

ccedilatildeo puberdade defloraccedilatildeo) Eacuteros e Taacutenatos As espacializaccedilotildees

da subjetividade sob todas as suas formas da casa de toleracircncia agrave

sauna e natildeo somente as grandes funccedilotildees da carta de Atenas receshy

beram em todas as culturas uma inscriccedilatildeo especiacutefica no espaccedilo

em espaccedilos que entretecircm entre si natildeo uma relaccedilatildeo de divisatildeo como interioridadeexterioridade margemcentro puacuteblicol prishy

vado mas um jogo formal de diferenciaccedilatildeo e de reverberaccedilatildeo

em suma no registro da comunicaccedilatildeo Tanto Relia que faz do

W J-C Perrot Genes du vilk mo Cam ali XVII sdele Paris Mouton 1975

POSFAacuteCIO

POSgtAClO

51

50 espaccedilo foucaultiano o receptaacuteculo neutro e contiacutenuo das hetero- topias do poder - concepccedilatildeo globalizante - quanto T eyssot que

faz da heterotopia a articulaccedilatildeo arquitetural das incongruecircncias

do mundo - concepccedilatildeo loealista - carecem ambos da terceira dimensatildeo aquela propriedade do espaccedilo de se remeter a si mesmo

na espessura de um jogo formal e simboacutelico de contestaccedilatildeo e de

reverberaccedilatildeo em uma fragmentaccedilatildeo que natildeo eacute segmentaccedilatildeo este Thirding que E Soja assim teoriza no Instituto de urbanismo de LosAngtlts na UeLA the Thirding as othering40

Essa primeira recepccedilatildeo das heterotopias pela escola de arquitetura de Veneza representada por II dispositivo Foucault mostra a ambiguidade da noccedilatildeo de recepccedilatildeo natildeo se trata de uma compreensatildeo exata nem de uma real instrumentalizaccedilatildeo mas de uma reimplantaccedillo poUss~mica e poMmica em uma rede de

debates poJJticos por um lado e de um questionamento episteshymoloacutegico por outro

Em julho de 1976 Foucault relembra pela primeira vez sua confercncia de 1967 em uma entrevista sobre o panoacuteptico de

Bentham publicada em 1977 mencionada aliaacutes por Teyssot Seria necessaacuterio escrever toda uma histoacuteria dos espaccedilos que fosse

ao mesmo tempo uma histoacuteria dos poderes desde as grandes estrateacutegias da geopoliacutetica ateacute as pequenas taacuteticas do habitat da arquitetura institucional da sala de aula ou da organizaccedilatildeo hosshy

pitalar passando pelas implantaccedilotildees econOacutemico-poliacuteticas Eacute surshypreendente ver quanto o problema dos espaccedilos levou tanto tempo

40 Bd Soja 7huacutelspact Journeys to Los Angks a11( Othtr lUa11( ltilM Ptampts Cambridge (Mass)Blackdl 1996

para aparecer como um problema histoacuterico-poliacutetico Lembro-me que haacute cerca de dez anos falei destes problemas de uma poliacutetica

dos espaccedilos e de me terem respondido que era bastante readoshy

naacuterio insistir tanto sobre o espaccedilo e que o tempo o projeto era a vida e o progresso 41

Uma histoacuteria foucaultiana dos espaccedilos mais precisamente

da espacializaccedilatildeo do poder mais precisamente ainda da inscriccedilatildeo

no espaccedilo colonial- heterot6pico - desse regime de poder partishycular que se desenvolve a partir do seacuteculo XVIII e que Foucault designa de biopoder42 a partir do qual os problemas de espaccedilo tornam-se politicamente diferentes eacute o projeto que no comeccedilo dos anos oitenta empreendem o antropoacutelogo Paul Rabinow43 e a historiadora do habitat americano Gwendolyn Wright44bull Nem

eles nem Franccedilois Beacuteguin conheciam a conferecircncia de 1967

Em uma entrevista que Rabinow e Wright fizeram com

Foucault em 198245 publicada em Skyline46 revista americana de

arquitetura o filoacutesofo lembra suas obsessotildees pelo espaccedilo e como

atraveacutes destas obsessotildees cheguei ao que eacute fundamental para mim as relaccedilotildees que satildeo possiacuteveis entre o poder e o saber

41 MFoucault J Bentham Lotil pouvoir in L Panoptiacuteque Opcil (Veja-se em traduccedilaacuteo brasileira de A L de SOU7 O olho do poder in Microfiacutesica b podtr op cit- N da T) 42 M Foucaull La Volon tk savoir Paris Gallimard 1976 cap V Droil de mort et pouvoir SUl I vie (Trad bras de M T da C Albuquerque e J A Guilhon Albuquerque A Vontade tk saber Rio de Janeiro Graal 1977 - N d T) 43 P Rabinow Biopower in lhe Frrnch Coloits conferecircncia interdisciplinar sobr Foucault Knowledge Power HislOry Los Angeles 29-31 de oUlubrol1981 Frrneh Modn Norms and Forms of th SfJCial Enviacuteronmmt Cambridge (M) MIT Press 1989 44 G Wright 7he Poliacutetics ofDltsigns in the Frrnch Colonial Urbanism Chicago University Preso 1991 45F B~n Arabisanm op cil 46 M Foucaull Space knowledge power entrerien avec P Rabinow Skyline marccedilo11982 pp 16-20 retomada em Dits tt Eacutecrits t N n 340 pp 270-285

POSFAacuteCIO

POSFAacuteCIO

53

52

A arquitetUra e o urbanismo naacuteo constituem diz ele um campo isoshylaacutevel Misturam-se com muacuteltiplas praacuteticas e discursos mas o espaccedilo

eacute o lugar privilegiado de compreensatildeo de como o poder opera

Inversamente ele bane da praacutetica do arquiteto toda esperanccedila

utoacutepica Os homens sonharam com maacutequinas libertadoras Mas por definiccedilatildeo natildeo existem maacutequinas de liberdade Jamais

a estrutura das coisas tem competecircncia para garantir a liberdade Nada eacute funcionalmente libertador A liberdade eacute o que se deve exercer a garantia da liberdade eacute a liberdade

Mestre doravante de um discurso poliacutetico e epistemoloacutegico sobre o espaccedilo Foucault deixa entatildeo ressurgir seu antigo conceito de heterotopia Diga-se entre parecircnteses lembro-me de ter sido

convidado por um grupo de arquitetos em 1966 para realizar um estudo do espaccediloi tratava-se do que na eacutepoca chamei de heterotopias espaccedilos singulares que encontramos em alguns

espaccedilos sociais cujas funccedilOes satildeo diferentes das dos outros ou tershy

minantemente opostas Os arquitetos trabalhavam neste projeto e no final do estudo algueacutem tomou a palavra _ um psicoacutelogo

sanreano - para me bombardear que o espaccedilo era reacionaacuterio e capitalista enquanto a histoacuteria e o devir eram revolucionaacuterios

Agravequela eacutepoca este discurso absurdo de modo algum era inabitual Hoje em dia qualquer um se dobraria de rir ouvindo aquilo

Natildeo haacute como natildeo se impressionar com esta longa anamnese em dois tempos primeiro em 1976 relativamente agrave objeccedilatildeo poliacuteshy

tica feita em 1967 e em 1982 enfim relativamente ao proacuteprio conceito de heterotopia em 1984 Foucault podia acolher favoshy

ravelmente a reutilizaccedilatildeo de sua conferecircncia pelo IBA de Berlim

Os dois organizadores da exposiccedilatildeo o alematildeo Johannes Gachnang e o italiano Marco de Michelis conheciam esse texto

em sua publicaccedilatildeo de 1968 em Architteturri7bull Ele sintonizava

estranhamente com a estrateacutegia do IBA tal como foi exposta por

um de seus dois responsaacuteveis J-P Kleihues48 executar a ideia

de uma cidade por fragmentos falar de arquitetur~ urbana sem traccedilar primeiramente um plano global de urbanismo respeitar

a variedade histoacuterica e topograacutefica berlinense pensar a composhysiccedilatildeo da cidade por ilhotas e ateacute confiar a diversos arquitetos a

reconstruccedilatildeo das residecircncias em uma mesma ilhota E por ocashy

siatildeo de uma reunificaccedilatildeo eventual justificar a conservaccedilatildeo da arquitetura staliniana

Sua traduccedilatildeo americana ocorreu em 1986 publicada prishy

meiramente na revista interdisciplinar de ComeU Diacriticis depois na revista de arquitetura LOtu9 Inaugurava-se uma carshy

reira nova para a interpretaccedilatildeo qualitativa dos espaccedilos outros

Natildeo se compreenderia esta carreira sem a simultaneidade da trashy

duccedilatildeo dos volumes II e III de Histoacuteria da sexualidaJe5deg a partir

dos quais Foucault torna-se uma referecircncia para aquilo que os americanos denominam poliacuteticas da identidade Movimentos

feministas movimento gay grupos eacutetnicos constituem a nova

47 Infurmaccedilaacuteo obtida com e1cs e concedida por Franccediloise Jolr 48 J-r Kleihues Agrave propos de I viUe europeacuteenne entreVista com M Bourdeau AMeS outubroI984

pp 95-99 49 M Foucault Ofother spaces Diacritieacuteiacutes 16 n I 1986 pp 22-27 e Lotushmnational 1986 50 M Foucaulr lUage tUacutes pIAis Paris Gallimaa 1984 uacute Souci Je soi Paris Gtlimn 1984 trad

1ht Use ofPlrasU Harmondsworth Penguin 1985 1ht Ca Dfthe sg Harmondsworth Penguin 1986 (Trad bras de M T da C Albuquerque O USQ dos p e O CuiJmJo Je si Rio de Janeiro Graal 1984 e 1985 - N da T)

POSFAacuteCIO

POSFAacuteCIO

54 rede de inscriccedilatildeo e a nova avaliaccedilatildeo das heterotopias A histoacuteshy

ria dos modos de subjetivaccedilatildeo realizada por Foucault atravessa

textos como lhe spaces that diferences make do urbanista Ed

Soja51 Gendered Spaces da feminista Daphne Spain52 lhe New Cultural Politics ofDijforence de Cornel West53 ou Geographical lmaginations do geoacutegrafo Derek Gregory54

Lugar de emergecircncia da heterotopia a anaacutelise literaacuteria dela

se apropria com Brian McHale Michel de Certeau5S a anaacutelise

fiacutelmica com Giuliana Bruno56bull Foucault torna-se passagem obrishy

gatoacuteria para toda anaacutelise do espaccedilo constata Soja

O mesmo se passa com as artes plaacutesticas Apresentando as

obras do artista plaacutestico cubano Felix Gonzalez-Torres Nancy

Spector descreve uma experiecircncia de ambiente heterotoacutepico

realizada em Manhattan57bull Em vinte e quatro paineacuteis de anuacutencio

publicitaacuterio das instalaccedilotildees urbanas de Manhattan Gonzalezshy

-Torres afixou o contraespaccedilo constituiacutedo por imensa foto em preto

e branco da intimidade de uma cama exposta Desnudamento

absoluto de um puro roccedilar de lenccediloacuteis leve traccedilado de duas cabeshy

ccedilas no vaacuteo entre os dois travesseiros onde cada qual pode proshy

jetar ou a interrupccedilatildeo do sono ou o amor consumado ou mais

51 Ed Soja The spa= that dlfenna makc ln M Kelm e S PIlbullbull PI4u iI1III lhe Politics olidmtiacutety NQVlI Iorque Roudedge 1993 pp 183middot205 52 D Spain Glt1JIUacutertaacute Spam Chapei Ht11 Unlverlty ofCarolIna Pras 1992 53 CWest 1M Ntw Cultural Politict oIDifimut ot h 1M Dilm_ ofrJu BIa lnttlkcttuuacute Ferguson 1994 54 D Gregory Gtographicalmaginatiacuteons citado ln Ed Soj hitrlspace Carobridge Bladltwell 1994 55 B McHale Post Moaacuteernist Fietion Nova Iorque Routledge 1988~ M de Certeau HettrologitS Discouffl 01tlu Otbtr Manchester Manchester University Presa 1986 56 G Bruno Bodlly ArchirecturesAltrtmblag 19 dezembro1992 57 N Spector Ptilt GonzakzmiddotTorres The Solamon R Guggenheim Museum Nova Iorque 1995

radicalmente a advertecircncia do artista uma decisatildeo de 1986 da

Corte suprema autoriza doravante a justiccedila em todo Estado em

que a sodomia eacute ainda um crime a persegui-la mesmo quando consentida entre adultos em suma a intimidade do espaccedilo prishy

vado da cama acaba de entrar no espaccedilo puacuteblico Esta articulashy

ccedilatildeo entre o puacuteblico e o privado poderia criar segundo Spector uma histoacuteria mais silenciosa a marca vazia do companheiro do

artista morto de aids

Maravilhosa intuiccedilatildeo no comeccedilo da confer~ncia radiofocircnica

de Foucault em 1966 daquela passagem inexistente na conferecircnshy

cia para os arquitetos em 1967 em que o fil6sofo evocava como

primeira figura da heterotopia a cama dos pais que as crianccedilas

gostam de invadir com um prazer de transgressatildeo e de sonho das origens Naacuteo poderiacuteamos concluir que aqui a longa seacuterie de

rein~riccedilotildees do texto em muacuteltiplas redes e estrateacutegias que a longa

seacuterie de transformaccedilotildees da figura social de seu autor encontram

neste instante de sua trajetoacuteria a mais completa forma de recepshyccedilatilde0 58 Foucault natildeo declarara tantas vezes que almejava menos

leitores que utilizadores59

58 Ed Soja Heterotopies remembrance Df other spaccs in me citadd LAraquo Strattgies a jIJurna 01 tbeory culturt anaacute poines 3 1990 pp 1middot39 Post metropolis Critiacutecal Stuties 01 Ctti naacute Rtglgtnt Londle$ Blackwdl 2000 59 Em 200I uma associaccedilatildeo cultural italiana denominada EttrotpirJ publicou uma releitura de textos de Foucaulr sobre o espaccedilo sob o titulo Spnialtri

POSFAacuteCIO POSFAacuteCIO

o CORPO UTOPICO

Do lugar que Proust ocupa docemente ansiosamente semshy

pre e a cada vez que desperta deste lugar se me us olhos estiveshy

rem abertos nao posso mais escapar Nao que de me paralise - pois afinal posso nao apenas mover-me e remover-me como

posso tam bern move-lo remove-lo muda-lo de localizaltao

apenas isto nao posso deslocar-me sem de nao posso deixa-Io la onde ele esta para ir-me a outro lugar Posso ate ir ao fim do mundo posso de manha sob as cobertas encolher-me fazershy

-me tao pequeno quanto possfvel posso deixar-me derreter na praia sob 0 sol e ele estara sempre comigo onde eu estiver Esta

aqui irreparavdmente jamais em outro lugar Meu corpo e 0

contrario de uma utopia e 0 que jamais se encontra sob outro

ceu lugar absoluto pequeno fragmento de espacyo com 0 qual no sentido estrito fao corpo

Meu corpo topia implaclveI Ese por sorte eu vivesse com

ele em uma especie de familiaridade gasta como se com uma sombra ou com as coisas de todos os dias que no fim das contas

nao enxergo mais e que a vida embacyou como as chamines os tetos que todas as tardes se ondulam diante de minha janela

No entanto todas as manhas a mesma presenlta a mesma ferida desenha-se aos meus olhos a inevitavel imagem imposta pelo espelho rosto magro ombros arcados olhar mfope sem cabeshy

los realmente nada belo E e nesta desprezivel concha da minha cabelta nesta gaiola de que nao gosto que sera preciso mostrarshy-me e caminhar e atraves desta grade que sera precisa falar alhar

CORPO UTOPICO

7

8 9 ser olhado sob esta pele deteriorar Meu corpo eacute o lugar sem

recurso ao qual estou condenado Penso afinal que eacute contra ele

e como que para apagaacute-lo que fizemos nascer todas as utopias

A que se deve o prestiacutegio da utopia a beleza o deslumbramento

da utopia A utopia eacute um lugar fora de todos os lugares mas um

lugar onde eu teria um corpo sem corpo um corpo que seria belo

llmpido transparente luminoso veloz colossal na sua potecircncia

infinito na sua duraccedilatildeo solto invisiacutevel protegido sempre transshy

figurado pode bem ser que a utopia primeira a mais inextirpaacuteshy

vel no coraccedilatildeo dos homens consista precisamente na utopia de

um corpo incorporal O paiacutes das fadas o paiacutes dos duendes dos

gecircnios dos maacutegicos este eacute o paiacutes onde os corpos se transportam

tatildeo raacutepido quanto a luz o paiacutes onde as feridas se curam com um

baacutelsamo maravilhoso na duraccedilatildeo de um relacircmpago o paiacutes onde

se pode cair de uma montanha e reerguer-se vivo o paiacutes onde se eacute visiacutevel quando se quiser invisiacutevel quando se desejar Se existir

um paiacutes feeacuterico eacute justamente para que eu seja priacutencipe encanshy

tado e que todos os janotas graciosos tornem-se peludos e vilotildees coccedilno pequenos ursos

bull Mas haacute tambeacutem uma utopia que eacute feita para apagar os corpos

Essa utopia eacute o paiacutes dos mortos satildeo as grandes cidades utoacutepicas

que nos foram deixadas pela civilizaccedilatildeo egiacutepcia Afinal o que satildeo as muacutemias Elas satildeo a utopia do corpo negado e transfigurado A

muacutemia eacute o grande corpo utoacutepico que persiste atraveacutes do tempo Existiram tambeacutem as maacutescaras de ouro que a civilizaccedilatildeo micecircnica

colocava sobre os rostos dos reis defuntos utopia de seus corpos gloriosos possantes solares terror dos exeacutercitos Existiram as

o CORPO UTOacutePICO

pinturas e as esculturas dos tuacutemulos onde jazem os que desde a

Idade Meacutedia prolongam na imobilidade uma juventude que natildeo

mais passaraacute Existem agora em nossos dias os simples cubos

de maacutermore corpos geometrizados pela pedra figuras regulares e brancas sobre o grande quadro negro dos cemiteacuterios E nessa

cidade de utopia dos mortos eis que meu corpo torna-se soacutelido

como uma coisa eterno como um deus

Poreacutem a mais obstinada talvez a mais possante dessas utopias

pelas quais apagamos a triste topologia do corpo nos eacute fornecida

desde os confins da histoacuteria ocidental pelo grande mito da alma

A alma funciona no meu corpo de maneira maravilhosa Nele

se aloja certamente mas sabe bem dele escapar escapa para ver

as coisas atraveacutes das janelas dos meus olhos escapa para sonhar

quando durmo para sobreviver quando morro Minha alma eacute

bela eacute pura eacute branca e se meu corpo lamacento - de todo modo

natildeo muito limpo - vier a sujaacute-la haveraacute sempre uma virtude

haveraacute uma potecircncia haveraacute mil gestos sagrados que a restabeleshy

ceratildeo na sua pureza primeira Minha alma duraraacute muito tempo

e mais que muito tempo quando meu corpo vier a apodrecer

Viva minha alma Eacute meu corpo luminoso purificado virtuoso

aacutegil moacutevel teacutepido viccediloso eacute meu corpo liso castrado arredonshy

dado como uma bolha de sabatildeo Eis entatildeo que em virtude de todas essas utopias meu corpo

desapareceu Desapareceu como a chama de uma vela que se

assopra A alma os tuacutemulos os gecircnios e as fadas o massacraram fizeram-no desaparecer num aacutetimo sopraram sobre seu peso e

sua fealdade e o restituiacuteram a mim deslumbrante e perpeacutetuo

o CORPO UTOacuteP1CO

10 11

r Mas na verdade meu corpo natildeo se deixa reduzir tatildeo facilshy

mente Afinal ele tem suas fontes proacuteprias de fantaacutestico possui

tambeacutem ele lugares sem lugar e lugares mais profundos mais

obstinados ainda que a alma que o tuacutemulo que o encantamento

dos maacutegicos Possui tambeacutem ele suas caves e seus celeiros tem

abrigos obscuros e plagas luminosas Minha cabeccedila por exemshy

plo ah minha cabeccedila estranha caverna aberta para o mundo

exterior por duas janelas duas aberturas sei disso pois as vejo

no espelho ademais posso fechar uma ou outra separadamente

E no entanto essas aberturas natildeo satildeo senatildeo uma soacute pois natildeo

vejo diante de mim senatildeo uma soacute paisagem contiacutenua sem divishy

saacuteo nem corte E dentro desta cabeccedila como se passam as coisas

Elas entram laacute - e estou muito seguro de que as coisas entram

na minha cabeccedila quando eu olho pois o sol se for demasiado

forte e me ofuscar dilacera ateacute o fundo do meu ceacuterebro - e no

entanto essas coisas que entram dentro da minha cabeccedila permashy

necem no exterior pois vejo-as diante de mim e eu por minha

vez devo me adiantar para alcanccedilaacute-las

Corpo incompreensiacutevel corpo penetraacutevel e opaco corpo

aberto e fechado corpo utoacutepico Corpo absolutamente visiacutevel

em um sentido sei muito bem o que eacute ser olhado por algueacutem da

cabeccedila aos peacutes sei o que eacute ser espiado por traacutes vigiado por cima

do ombro surpreso quando percebo isso sei o que eacute estar nu no

entanto este mesmo corpo que eacute tatildeo visiacutevel eacute afastado captado

por uma espeacutecie de invisibilidade da qual jamais posso desvenshy

cUh-lo Este meu crilnio atraacutes do meu cracircnio que posso tocar

com meUl dedal mas nunca ver este dorso que sinto apoiado

OCO~POU~

na pressatildeo do colchatildeo sobre o divaacute quando me deito mas que

somente surpreenderei pelo ardil de um espelho e o que eacute este

ombro cujos movimentos e posiccedilotildees conheccedilo com precisatildeo

mas que jamais poderei ver sem me contorcer terrivelmente

O corpo fantasma que soacute aparece na miragem dos espelhos e

ainda assim de maneira fragmentaacuteria Preciso verdadeiramente

dos gecircnios e das fadas da morte e da alma para ser ao mesmo

tempo indissociavelmente visiacutevel e invisiacutevel Ademais este corpo

eacute leve eacute transparente eacute imponderaacutevel nada eacute menos coisa que

ele ele corre age vive deseja deixa-se atravessar sem resistecircncia

por todas as minhas intenccedilotildees Eacute verdade Mas somente ateacute o

dia em que adoeccedilo em que se rompe a caverna de meu ventre

em que meu peito e minha garganta se bloqueiam se entopem

se fecham Ateacute o dia em que a dor de dentes estrala no fundo da

minha boca Entatildeo aiacute entatildeo deixo de ser leve imponderaacutevel etc

torno-me coisa arquitetura fantaacutestica e arruinada

Natildeo verdadeiramente natildeo haacute necessidade da maacutegica nem

do feeacuterico natildeo haacute necessidade de uma alma nem de uma morte

para que eu seja ao mesmo tempo opaco e transparente visiacutevel

e invisiacutevel vida e coisa para que eu seja utopia basta que eu

seja um corpo Todas aquelas utopias pelas quais eu esquivava

meu corpo encontravam muito simplesmente seu modelo e seu

ponto primeiro de aplicaccedilatildeo encontravam seu lugar de origem

no meu proacuteprio corpo Enganara-me haacute pouco ao dizer que as

utopias eram voltadas contra o corpo e destinadas a apagaacute-lo

elas nascem do proacuteprio corpo e em seguida talvez retornem

contra ele

o CORPO UTOacutePICO

12 13 Em todo caso uma coisa eacute certa o corpo humano eacute o ator

principal de todas as utopias Afinal uma das mais velhas utopias

que os homens contaram para si mesmos natildeo eacute o sonho de corpos

imensos desmesurados que devorariam o espaccedilo e dominariam

o mundo Eacute a velha utopia dos gigantes que encontramos no

coraccedilatildeo de tantas lendas na Europa na Aacutefrica na Oceania na

Aacutesia essa velha lenda que haacute taacuteo longo tempo nutre a imaginaccedilatildeo

ocidental de Prometeu a Gulliver

O corpo eacute tambeacutem um grande ator utoacutepico quando se trata de

maacutescaras da maquiagem e da tatuagem Mascarar-se maquiar-se

tatuar-se natildeo eacute exatamente como se poderia imaginar adquirir

outro corpo simplesmente um pouco mais belo melhor decorado

mais facilmente reconheciacutevel tatuar-se maquiar-se mascarar-se

eacute sem duacutevida algo muito diferente eacute fazer com que o corpo entre

em comunicaccedilatildeo com poderes secretos e forccedilas invisiacuteveis Maacutescara

signo tatuado pintura depositam no corpo toda uma linguagem

toda uma linguagem enigmaacutetica toda uma linguagem cifrada

secreta sagrada que evoca para este mesmo corpo a violecircncia do

deus a potecircncia surda do sagrado ou a vivacidade do desejo A

maacutescara a tatuagem a pintura instalam o corpo em outro espaccedilo

fazem-no entrar em um lugar que natildeo tem lugar diretamente no

mundo fazem deste corpo um fragmento de espaccedilo imaginaacuterio

que se comunicaraacute com o universo das divindades ou com o unishy

verso do outro Por ele seremos tomados pelos deuses ou seremos

tomados pela pessoa que acabamos de seduzir De todo modo a

maacutescara a tatuagem a pintura satildeo operaccedilotildees pelas quais o corpo eacute arrancado de seu espaccedilo proacuteprio e projetado em um espaccedilo outro

o CORPO UTOacutePICO

Ouccedilamos por exemplo este conto japonecircs e a maneira com

que um tatuador faz passar para um universo que natildeo eacute o nosso

o corpo da jovem que ele deseja O sol dardejava seus raios sobre

o rio e incendiav~ o quarto de sete esteiras Seus raios refletidos

na superfiacutecie da aacutegua formavam um desenho de ondas douradas

sobre o papel dos biombos e sobre o rosto da jovem profundashy

mente adormecida Seikichi apoacutes puxar a divisoacuteria tomou nas

matildeos seus instrumentos de tatuagem Durante alguns instantes

permaneceu mergulhado em uma espeacutecie de ecircxtase Era entatildeo que

ele saboreava plenamente a estranha beleza da jovem Parecia-lhe

poder ficar sentando diante desse rosto imoacutevel durante dezenas

e centenas de anos sem jamais sentir cansaccedilo nem fastio Como

outrora o povo de Mecircnfis embelezava a magniacutefica terra do Egito

com piracircmides e esfinges assim Seikichi com todo amor queshy

ria embelezar com seu desenho a pele viccedilosa da jovem Aplicoushy

-lhe entatildeo a ponta de seus pinceacuteis coloridos que segurava entre o

polegar o anular e o pequeno dedo da matildeo esquerda e agrave medida

em que as linhas eram desenhadas picava-as com a agulha que

segurava na matildeo direita

E se considerarmos que a vestimenta sagrada ou profana relishy

giosa ou civil faz com que o indiviacuteduo entre no espaccedilo fechado

do religioso ou na rede invisiacutevel da sociedade veremos entatildeo que

tudo o que concerne ao corpo - desenho cor coroa tiara vestishy

menta uniforme tudo isso faz desabrochar de forma sensiacutevel

e matizada as utopias seladas no corpo

Mas talvez fosse preciso descer mais por baixo da vestimenta

talvez fosse preciso atingir a proacutepria carne e veriacuteamos entatildeo que

o CORPO UTOcircPICO

14 15 em certos casos no limite eacute o proacuteprio corpo que retorna seu

poder utoacutepico contra si e faz entrar todo o espaccedilo do religioso

e do sagrado todo o espaccedilo do outro mundo todo o espaccedilo do

contramundo no interior mesmo do espaccedilo que lhe eacute reservado

Entatildeo o corpo na sua materialidade na sua carne seria como o

produto de seus proacuteprios fantasmas Afinal o corpo do danccedilarino

natildeo eacute justamente um corpo dilatado segundo um espaccedilo que lhe

eacute ao mesmo tempo interior e exterior E os drogados tambeacutem e

os possuiacutedos os possuiacutedos cujo corpo torna-se inferno os estigshy

matizados cujo corpo torna-se sofrimento resgate e salvaccedilatildeo

ensanguentado paraiacuteso

Verdadeiramente enganara-me haacute pouco ao crer que o

corpo jamais estivesse em outro lugar que era um aqui irremeshy

diaacutevel e que se opunha a toda utopia

Meu corpo estaacute de fato sempre em outro lugar ligado a todos

os outros lugares do mundo e na verdade estaacute em outro lugar

que natildeo o mundo Pois eacute em torno dele que as coisas estatildeo disshy

postas eacute em relaccedilatildeo a ele - e em relaccedilatildeo a ele como em relaccedilatildeo a

um soberano - que haacute um acima um abaixo uma direita uma

esquerda um diante um atraacutes um proacuteximo um longiacutenquo O

corpo eacute o ponto zero do mundo laacute onde os caminhos e os espaccedilos

se cruzam o corpo estaacute em parte alguma ele estaacute no coraccedilatildeo do

mundo este pequeno fulcro utoacutepico a partir do qual eu sonho

falo avanccedilo imagino percebo as coisas em seu lugar e tambeacutem

as nego pelo poder indefinido das utopias que imagino Meu

corpo eacute como a Cidade do Sol naacuteo tem lugar mas eacute dele que

saem e se irradiam todos os lugares possiacuteveis reais ou utoacutepicos

CORPO UTOacutePICO

As crianccedilas afinal levam muito tempo para saber que tecircm

um corpo Durante meses durante mais de um ano elas tecircm

apenas um corpo disperso membros cavidades orifiacutecios e tudo

isso soacute se organiza tudo isso literalmente toma corpo somente

na imagem do espelho De modo mais estranho ainda os gregos

de Homero natildeo tinham uma palavra para designar a unidade do

corpo Por paradoxal que seja diante de Troacuteia abaixo dos muros

defendidos por Heitor e seus companheiros natildeo havia corpos

mas braccedilos erguidos peitos intreacutepidos pernas aacutegeis capacetes

cintilantes em cima de cabeccedilas natildeo havia corpo A palavra grega

para dizer corpo soacute aparece em Homero para designar cadaacutever

Eacute o cadaacutever portanto o cadaacutever e o espelho que nos ensinam

(enfim que ensinaram aos gregos e agora ensinam agraves crianccedilas)

que temos um corpo que este corpo tem uma forma que esta

forma tem um contorno que no contorno haacute uma espessura um

peso em suma que o corpo ocupa um lugar Espelho e cadaacutever

eacute que asseguram um espaccedilo para a experiecircncia profundamente e

originariamente utoacutepica do corpo espelho e cadaacutever eacute que silenshy

ciam e serenizam encerrando em uma clausura - que para noacutes

hoje eacute selada esta grande coacutelera utoacutepica que corroacutei e volatiliza

nosso corpo a todo instante Graccedilas a eles graccedilas ao espelho e

ao cadaacutever eacute que nosso corpo natildeo eacute pura e simples utopia Ora

se considerarmos que a imagem do espelho estaacute alojada para

noacutes em um espaccedilo inacessiacutevel e que jamais poderemos estar laacute

onde estaraacute nosso cadaacutever se considerarmos que o espelho e o

cadaacutever estatildeo eles proacuteprios em um inatingiacutevel outro lugar desshy

cobrimos entatildeo que unicamente as utopias podem fazer refluir

o CORPO UTOacutePICO

16 nelas mesmas e esconder por um instante a utopia profunda e

soberana de nosso corpo

Seria talvez necessaacuterio dizer tambeacutem que fazer amor eacute senshy

tir o corpo refluir sobre si eacute existir enfim fora de toda utopia

com toda densidade entre as matildeos do outro Sob os dedos do

outro que nos percorrem todas as partes invisiacuteveis de nosso

corpo potildeem-se a existir contra os laacutebios do outro os nossos se

tornam sensiacuteveis diante de seus olhos semicerrados nosso rosto

adquire uma certeza existe um olhar enfim para ver nossas paacutelshy

pebras fechadas O amor tambeacutem ele como o espelho e como

a morte sereniza a utopia de nosso corpo silencia-a acalma-a

fecha-a como se numa caixa tranca-a e a sela Eacute por isso que ele eacute

parente tatildeo proacuteximo da ilusatildeo do espelho e da ameaccedila da morte

e se apesar dessas duas figuras perigosas que o cercam amamos

tanto fazer amor eacute porque no amor o corpo estaacute aqui

33 HETEROTOPIA TRIBULACcedilOtildeES DE UM CONCEITO ENTRE VENEZA BERLIM E LOS ANGELESl

No dia 14 de marccedilo de 1967) o Ciacuterculo de estudos arquiacuteteturais de Paris convidara Foucault a pronunciar uma conferecircncia sobre

() espaccedilo para a qual ele propocircs uma analiacutetica nova que batizou

de heterotopologia O texto desta conferecircncia teve circulaccedilatildeo

restrita reservada aos membros daquele ciacuterculo em forma datishy

lografada com exceccedilatildeo de extratos publicados em francecircs em

1968 na revista italiana LArchittetura2 ateacute sua publicaccedilatildeo em

Berlim no outono de 1984 no quadro da exposiccedilatildeo ldeacutee proshymsus reacutesultats no Martin-Gropius-Bau3bull

Essa exposiccedilatildeo foi a principal dentre as dezessete manifestashy

ccedilotildees com as quais a Internationale Bauausstellung (IBN) apreshy

sentou ao mundo o balanccedilo de suas atividades de reconstruccedilatildeo

e renovaccedilatildeo de Berlim Imaginava-se a reunificaccedilatildeo da cidadeshy

-capital que parecia estranhamente ilustrar os espaccedilos outros do

texto de Foucault de 1967 Autorizando sua publicaccedilatildeo pouco

antes da sua morte ocorrida em 25 de junho de 1984 o fi16sofo

a introduzira in extremis no corpus de seus escritos autorizados

I Oucra versatildeo deste texto fui publicada em 1997 no caraacutelogo de Dccummta X em Kassd 2 M Foucault Des espaces aurres EArthinura mJtlltck stvria vol XIII n 150 1968 pp 822-823 M Foucault Des espaces aurres AMes ~ darrhitt(lUrt ourubrofll984 pp 46-49 Eacute esla versatildeo t 1984 signincatiacuteVllmente diferente da que reproduzimos no presente volume que estaacute incluiacuteda cm IJIIiS et Eacutecrits Paris Gallimard t Iv texto n 360 (Martin-Gropius-Bau museu localizado em Berlim Inaugurado em 1881 - N da T) 4 IBA Exposiccedilatildeo internacional de consrruccedilatildeo sigla retomada mais adiante (N da T)

POSFAacuteCIO

34 Desde enrao () lCx ro f()i thlilldantllllllltl trad uzido e comenshy

tado C omo podl prrt na IICLt1 i1I(xplo rlllu d II ranrc vitae anos

Olllo nail c lO l llpn( nd clI Icrgll l1 tl t Edward Soja entushy

sia ~t1 IrolliOl OI l tl illlllli 1I 11I d 1 rmfflpIIf1fJI a Illlporrancia

1l0V(1 d(1 tp t1I t d1 (PH Itlld ldt I I dlvl III )dcrllmos intershy

pretl r 1 di qlIlCl1 ( IIII(~ I _I~ 111 dIIW 1)(1 7 II)IH e a hist6ria

dcs~c -i ltlIli ll 111111 1 h i~I( 1 ti l h 11I 1 11 IlIlp~o1(t A~ nocoes

dt nIt IIO ti t 11111 IllI l ln fU(IAII11I1 Utl l IIVO dc analise

suficic ll lc rnlc J ( fino plI dl 1t1lh lr IIl1n I lit I t trw sfOrmashy

coes tanto d le) diM lI 1m (I ~k~ PII 11101111 c politicos

dos arquitctos t lIIhalli tl 11(11 1 II I Ulll ~ IIJII UItlS quan to da

problematica do cspao 11 11 I ~llll( de 1 -(~~ IIc1I

Linguagem e espa~o

Voce se lembra daqude l(k~I III I1 1111 Ihl III I ir l1nro em

que urn arquiteto via uma nova Ltl JlU~lIj I 11III1~mo Mas

isto nao estava em urn livro Cst I VI 1 111111 I ~ I I 1111111 nll1fcrencia

radiofonica sobre a utopia Pedt lll li lt pw II l( nll~1 1111 dia J3 ou 14 de marco

Esta carta escrita em Sidi BOil ~ai 1 1I1I di1 2 dt lIlano de

1967 e 0 testemunho mais antigo do ( I ll II II I IIJ d f~ FI)lllluJrcom

os arquitetos Em 7 de dezembro dt I )h h li e tll ~ld lll de uma

serie radiofonica chamada de Cuhlll1 rI( I tlllsagrada a 5 amp1 Soja Rembrance of ocher spaces in [he ciradd LA 114(rO Jrftj

Politics 3 1990 p 1 39 Art igo dcscnvolvulo em Ed Soja Ij Rral Imagined Plam Cambridg~ (Mss) Blockwell 1996

6 P Bou rJi cu Quesr-cc q Ut fai l e parler urn ) U[lur A prop d Mit Ii t l I --I ~ ~~h III f~r n

plitmtlltions n especial tlSureiUcr er punic vingt aIl~ pres II Iltl T ~lI ltI L ~middotIIn II t IH

lgto~AClO

35 u topia ele fora convidado a falar sobre Utopia e Literatural

Pactindo de uma evocacao bachelardiana daqueles espacos que

encantam os jogos infantis como os celeiros 0 fundo do jardim

a tenda de Indios ou a cama dos pais verdadeiras utopias localishy

zadas sonhou com uma ciencia que teria por objeto estes espashy

cos diferentes que sao a contestacao dos espaltos onde vivemos

nao uma ciencia das utopias mas das heterotopias cie ncia dos

espacos absolutamente ourros Esta ciencia 011 hecerotopologia

que esta em vias de nascer que ji cxistc c cujos prindpios ele

enunciara naquele dia

As emissoes radiofonicas de Foucault - nas quais de se reveshy

lava urn maravilhoso contista - respondiam aenorme curiosishy

dade suscitada desde a primavera de 1966 pela publicacao de

As Palavras e as coisas 8bull 0 livro se abria com a descricao de uma

improvavd enciclopedia chinesa inventada por Borges segundo

a qual os animais se distribufam em quatorze classes do seguinte

tipo a) pertencenres ao imperador b) embalsamados c) domesshy

ticados k) desenhados com urn pincel muito fino de pelo de

cameoj I) et cetera m) que acabam de quebrar a biJha Esta

desordem que faz cintilar os fragmentos de urn grande numero

de ordens possiveis fora batizada por Foucault de heterotopia

o termo se opunha a utopia etimologicamente nao lugar e nao

eu-topia como se tende a crer Mas se as utopias narram urn lugar

7 M Foucault Uwpi( bem opi quivo sonora de 7 e 2 1 de dczombro de 19(6 CCOIrc Midd Foucaul t DibLioth~uc dc IIM EC-Cacn (eeditad em diso pdo INA em 2004 (rNA In iw Ntiorul de IAudinvisucl - Nd T)

8 M Foucault Ln Mots a Choses Paris Gallimard 1966 (TC3d u~() b silt ira de S T Muchail As PaiArdH as coilas Sao Paulo Martins Fontes 1981 - N da n

POSFAClO

36 37 que natildeo existe desabrocham contudo em um espaccedilo imaginaacuteshy

rio e por isso situam-se na linha reta do discurso pois desde

o fundo dos tempos a linguagem se entrecruza com o espaccedilo A lista de Borges ao contraacuterio estanca as palavras nelas proacuteprias pois a heterotopia arruiacutena natildeo somente a sintaxe das frases como

tambeacutem aquela menos manifesta que autoriza manter juntas as palavras e as coisas9

A impossibilidade em que se encontra nosso pensamento para pensar esse heteroacuteclito radical da classificaccedilatildeo de Borges tesshytemunha um limite do pensamento o mesmo limite que ainda

experimentamos diante das classificaccedilotildees proacuteprias agraves culturas que nos satildeo radicalmente estranhas Quando Victor TurnerlO descreve como os Ndembu da Zacircmbia reuacutenem em uma mesma

classe os caccediladores as viuacutevas os doentes e os guerreiros isto

natildeo implica um espaccedilo de pertenci menta concebido como tershyritoacuterio comum nem um espaccedilo de pertencimento concebido

como ramificaccedilotildees definidas por propriedades formais como

aquele no qual n6s distribuiacutemos os reinos da natureza nem a linearidade arbitraacuteria de uma ordem alfabeacutetica com a qual nosshy

sos dicionaacuterios ordenam o heteroclito no espaccedilo Ele descreve um sistema de analogias de similitudes entre propriedades simshyboacutelicas cujas interconexotildees precisamos traccedilar em uma paacutegina em branco a fim de compreender esse sistema ou o espaccedilo de similitudes Natildeo se pode pensar sem o suporte de um espaccedilo de ordem sem esta zona mediana que Foucault qualifica

9 M FOUaacutelulr Les MolJ ks Choses op dto prefaacutecio p 9 (Ar Plarmu l1li cow pp 5-8 _ N d T) 10 Victor Turner (1920-1983) antropoacutelogo britilnico (N da T)

de arqueoloacutegica por sob nossas percepccedilotildees nossos discursos nossos saberes onde se articulam o visiacutevel e o enunciaacutevel a linshy

guagem o olhar e o espaccedilo

Na emissatildeo radiofocircnica de 7 de dezembro de 1966 Foucault fez um uso totalmente diferente de sua noccedilaacuteo de heterotopia Primeiro ela eacute pertinente natildeo mais a uma anaacutelise dos discursos

mas dos espaccedilos Lugares tatildeo heteroacuteclitos como o espelho o cemiteacuterio a casa de toleracircncia ou a colocircnia polineacutesia de feacuterias em

Djerba entram em uma categoria especiacutefica de espaccedilos-tempos quer este tempo seja provisoacuterio como o tempo uacutenico da defloshy

raccedilatildeo no espaccedilo da viagem de nuacutepcias quer este tempo seja ao contraacuterio cumulativo de temporalidades - atemporal- no lugar da biblioteca ou do museu

Essas unidades espaccedilo-temporais esses espaccedilos-tempos tecircm em comum serem lugares onde estou e natildeo estou como o espeshy

lho ou o cemiteacuterio ou onde sou outro como na casa de toleracircnshy

cia na colocircnia de feacuterias ou na festa carnavalizaccedilotildees da existecircncia

ordinaacuteria Eles ritualizam cortes limiares desvios e os localizam As normas humanas natildeo satildeo todas universalizaacuteveis as da

disciplinarizaccedilatildeo do trabalho e as da transfiguraccedilatildeo pela festa

naacuteo podem desenrolar-se na linearidade de um mesmo espaccedilo ou de um mesmo tempo eacute preciso uma forte ritualizaccedilaacuteo das rupturas dos limiares das crises Estes contraespaccedilos poreacutem saacuteo

Interpenetrados por todos os outros espaccedilos que eles contestam o espelho onde natildeo estou reflete o contexto onde estou o cemishyteacuterio eacute planejado como a cidade haacute reverberaccedilatildeo dos espaccedilos uns nos outros e contudo descontinuidades e rupturas Haacute

POSlACIO

POSFACIO

38 39 enfim como que um eterno retorno desses rituais espaccedilo-temshy

porais e se natildeo universalizaccedilatildeo das mesmas formas ao menos

uma universalidade de sua existecircncia Eles satildeo apreendidos em

uma sincronia e uma diacronia especiacuteficas que fazem deles um

sistema significante entre os sistemas da arquitetura Natildeo refleshy

tem a estrutura social nem a da produccedilatildeo natildeo satildeo um sistema

soacutecio-histoacuterico nem uma ideologia mas rupturas da vida ordishy

naacuteria imaginaacuterios representaccedilotildees polifocircnicas da vida da morte

do amor de Eacuteros e Taacutenatos

A carta de Foucault de 2 de marccedilo de 1967 deixa vazar um

Utopias e heterotopias O Ciacuterculo de estudos arquiteturais era animado entre 1960 e

1970 por Jean Dubuisson seu presidente arquiteto do Museu

(te Artes e Tradiccedilotildees Populares do Bosque de Boulogne e Ionel

Schein que indicava os conferencistas a serem convidados ao

Boulevard Raspail nuacutemero 38 Era um dos raros ciacuterculos de

reflexatildeo de arquitetos sem corporativismo no qual nos anos

cinquenta e sessenta Ionel Schein gozava da lisonjeira reputaccedilatildeo

de agitador de ideias e de radicalismo em arquitetura I I Foi ele

segundo Jean Dubuisson quem convidou Foucault As confeshy

recircncias eram anotadas em estenografia e depois datilografadas e

do arquiteto Natildeo natildeo fora o livro (As Palavras e as coisas) que

desapontamento a arqueologia do olhar natildeo retivera o olhar entregues aos membros do Ciacuterculo Pierre Riboulet - arquiteto

trouxera em germe uma nova concepccedilatildeo do urbanismo livro do entre outros do hospital Robert-Debreacute - conservou sua coacutepia

qual o filoacutesofo esperava a provocaccedilatildeo de rupturas no pensamento Ele se lembra das precauccedilotildees oratoacuterias do filoacutesofo para introduzir

No entanto estas rupturas foram suficientemente ruidosas pelo seu propoacutesito a insistecircncia sobre sua ignoracircncia quanto agraves preshy

menos ateacute o ruiacutedo de 1968 para que Foucault viesse a deixar ocupaccedilotildees dos arquitetos As referecircncias -satildeo tomadas da histoacuteria

tanto o tumulto da gloacuteria quanto o das polecircmicas pela serenidade das ciecircncias (Koyreacute Bachelard) da criacutetica literaacuteria a-p Richard

da luminosa vila de Sidi Bou Sald no alto do golfo de Cartago e Ianchot) da psicanaacutelise existencial (Binswanger) assuntos

a paz - sempre difiacutecil - da escritura Heterotopia vivida O que todos eles sobre os quais Foucault jaacute havia desenvolvido suas

chegara aos ouvidos do arquiteto era uma linguagem menor obsessotildees do espaccedilo12

um daqueles jogos literaacuterios nos quais Foucault tinha um prazer Para marcar seu entusiasmo agrave saiacuteda dessa conferecircncia Robert

guloso juacutebilo incessantemente decepado pela ascese da escrishy Auzelle um dos pensadores da reconstruccedilatildeo da Franccedila a partir

tura contenccedilatildeo que se lecirc na didaacutetica da conferecircncia reescrita d()s anos cinquenta lhe entregou sua histoacuteria da arquitetura

esta para os arquitetos certamente mas os jogos literaacuterios ficam II ltuklt tas infOrmaccedilotildees sobre o Circulo de tstutIos arqumlumis me foram fOrnecidas por P Riboulet

aqui finalmente retranscritos com todo respeito agrave integralidade Illxprcssatildeo utilizada por Fouault in Quesdons agrave Michel Fouault sur la geacuteographie HiroIIote n I 1lt)76 pp 71-85 retomada em Diu et Eacutecriu t m n 169 Paris Gallimard 1994 p 33 (Trad bras de

sonora da qual nasceram K Machado e A L de Souza Sobre a geografia in Microflsica do potUacuter Rio de Janeiro Graal 1979 1IIU-165-N daT)

POSFAacuteCIOPOSFAco

40 41 funeraacuteria e dos cemiteacuterios13 uma das heterotopias de Foucault

Em O Nascimento da cllnica14 Foucault descrevera como a anatoshy

mopatologia havia integrado a morte no conhecimento da vida

oferecer-lhe a hist6ria da integraccedilatildeo dos cemiteacuterios na planificashy

ccedilatildeo urbana provava a perfeita cumplicidade entre seus ouvintes

e o conferencista a negatividade estava no cerne da racionalishy

dade Ela estava no cerne das anaacutelises de Foucault pelo menos ateacute Vigiar epunit5

Foi no final deste mesmo ano de 1967 que Jean-Luc Godard

em A Chinesa fez sua heroiacutena a estudante pr6-chinesa interpreshy

tada por Alme Wiazemsky jogar tomates em um exemplar de As Palavras eas coisas entio um livro siacutembolo por suas descontinuishy

dades abruptas do pensamento no tempo da negaccedilatildeo da hist6ria e portanto da negaccedillo da revoluccedilatildeo

A confercncia de 1967 poderia ter outra circulaccedilatildeo aleacutem da

c6pia datHografada entre os membros do Circulo O pr6prio

Circulo natildeo possuiacutea uma revista e nlo editava nenhuma de suas

conferecircncias Por outro lado as concepccedilotildees que entatildeo partilhashy

vam os arquitetos deviam muito a Le Corbusier e agrave Bauhaus agrave

racionalizaccedilatildeo das formas e agrave legibilidade do espaccedilo urbano

concebido como um texto pontuado com referecircncias espaccedilos

ou edifiacutecios Franccediloise Choay que Foucault frequentara nos anos

13 R AuzeUe Derniim Dmlnlm Paris ed do autor 13 PIace du Panrlleacuteon 1965 14 M Foucault Naissanct de la ClitlUacuteJue Paris PUF 1963(Trad bru de R Machado ONtUCimentIJ da clnCIt ruo d Janeiro Forense-Universitaacuteria 1977 - N da T) 15 M Foucaul Survdlkr tIPunir Paris Gallimard 1975 A obra apresenta o panoacuteptico de Benthrun como um acontecimento na histoacuteria do esplrito humanomiddot epropotildee uma anill1sc do poder em termos d produccedilatildeo e natildeo de repressatildeo (Trad bras de R Ramalhete VIgiar11mr Pett6poliacutes Vous 1987 _ N da T)

ttenta reconstitui essas problemaacuteticas em Urbanisme utopies et rtaiteacutesl6

Um urbanismo progressista humanista que se sustentava

111amp carta de Atenas l7 e em uma racionalidade crescente ou um

urbanismo culturalista para o qual cada forma eacute siacutembolo e que

(Ilha com nostalgia para a harmonia das cidades passadas estas

tmm as ideias reguladoras da razatildeo urbaniacutestica Estas ideias

rCguladoras jaacute natildeo talhavam em pontilhado o espaccedilo da utopia

em que viria a desdobrar-se ap6s 1968 o discurso arquitetural e

urbano em uma dissoluccedilatildeo do objeto cidade no seio das relaccedilotildees

udais capitalistas A cidade como totalidade formal ou racional

I1Ao foi deslocada pelo capitalismo O espaccedilo natildeo eacute uma imensa

paacutegina em branco onde se escreve desde cerca de dois seacuteculos a

Illetanarraccedilaacuteo do capital Naacuteo estaacute aiacute o impensado geral o natildeo

dito de todas essas divisoacuterias construiacutedas entre as classes os sexos

C as geraccedilotildees

O fasciacutenio das escolas de arquitetura pela visita a cidades

patronais estas utopias realizadas como o familisteacuterio de Guise

unstruiacuteda por Godin ou a cidade Menier de Noisiell8 testeshy

munha que o discurso arquitetural e urbaniacutestico francecircs dos anos

etenta se desdobrava no espaccedilo da utopia Os promotores dessas

cidades natildeo estariam entre os primeiros a inventar o consumo

em massa Um reduzia as dimensotildees da milenar e dispendiosa

1111( Choay UrbanisIM UtIJpits tt rlaitis Paris Seuil 1965 17 Carta de Atenas manifesto do IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (Ciam) Atn 1933 (N da T) I Pamllisteacuterio de Guise espeacutecie de comunidade ou cidade operaacuteria inspirada em Charles Fourier IIl1nmulda em 1846 por J-BGodln para habitaccedilatildeo de operaacuterios de sua induacutestria Menler de Noisiel IDmunldade de operaacuterios da ptoduccedilatildeo de chocolates fundada por A B Menier em 1925 nas imediaccedilotildees bull arl (N da T)

POSFAtildeCIO POSFAacuteCIO

42 43 lareira a um aquecedor domeacutestico outro um medicamento dos

exeacutercitos napoleocircnicos a um complemento alimentar industrial

o tablete de chocolate Natildeo teriam eles articulado da maneira

mais restrita a racionalizaccedilatildeo do consumo com a da ocupaccedilatildeo do

espaccedilo A racionalizaccedilatildeo da cidade patronal como a fragmentaccedilatildeo

do espaccedilo urbano o homog~neo como o heterogecircneo conduziam

a um mesmo crivo de leitura infalsificaacutevel a espacializaccedilatildeo do

capital O arquiteto tornava-se o teacutecnico passivo da operacionashy

lizaccedilatildeo das estrateacutegias e das normas do capital

Mostra-se uacutetil falar indiferentemente das utopias preacute-urshy

banistas das cidades operaacuterias de Haussmann da Bauhaus do

funcionalismo dos Shakers dos grandes conjuntos das cidades

novas por toda parte afirma-se perigosamente uma racionalishy

zaccedilatildeo do espaccedilo inerente agrave extensatildeo universal do capital uma

propensatildeo de sua ordem de troca ou da ordem simplesmente podia-se ler na revista Traverse19bull

Genealogia dos equipamento coletivol Eacute a partir de 1972 que Foucault desenvolve pesquishy

sas em equipe sobre a histoacuteria dos equipamentos coletivos

Primeiramente com o Centro de estudos pesquisas eformaccedilatildeo instishytucional- ou Cerfi - animado pelo psiquiatra Feacutelix Guattari que

conclui entatildeo com Gilles Deleuze a redaccedilatildeo do seu Anti-Eacutediptldeg

19 B Eizykman Urbanismo Travme n 4 1976 citado por A Thalamy in PolltilJues tk lhabitat Corda

1977 p 14 (o nome Shaker designa um movimento de grupos religiosos fundado na Inglaterra no seacuteculo XVIII que - agrave semelhanccedila dos Amish- vivem em suas proacuteprias comunidades _ N da T) 20 G Deleuze F Guattari LAnti-CEdipe Paris Minuit 1972 (Trad bras de L B L Orlandi O Antishy-Eacutedipo Satildeo Paulo 34 2010 - N da T)

( rliacuteldo em 1965 com pesquisadores em ciecircncias sociais dissidenshy

trN do Partido Comunista Francecircs (PCF) o Cerfi apoacutes 1970 I()( em questatildeo sua cultura marxista submetendo-a a uma dupla

Inova 1) a do procedimento genealoacutegico praticado em Histoacuteria Ioucura e O Nascimento da cliacutenica 2) a de uma clarificaccedilatildeo

IIlN relaccedilotildees libidinais que todo pesquisador manteacutem com o

uhjeto de sua pesquisa (a ambivalecircncia da reflexatildeo urbaniacutestica

frente agrave racionalidade capitalista natildeo escapava a ningueacutem) e que

UIe pesquisadores mantecircm entre si como grupo social hierarquishy

uto e sexuado

O relato da realizaccedilatildeo dessa dupla prova publicada na revista

do Cerfi21 eacute provavelmente um dos mais interessantes diaacuterios de

hordo da travessia ideoloacutegica daqueles anos Ali se assiste como

lue em um laboratoacuterio agrave desagregaccedilatildeo da anaacutelise marxista e

~ emergecircncia daquilo que logo seraacute batizado de atitude poacutesshy

-moderna O empreendimento eacute descrito por seus autores como

uma estranha maacutequina feita de peccedilas e pedaccedilos emprestados do

Ilenealogista Foucault surrupiadas do depoacutesito do cientista biceacuteshy

falo Deleuze-Guattari

O genealogista Foucault eacute de fato uma nova imagem social

do filoacutesofo o procedimento genealoacutegico soacute estaraacute francamente

c()nfirmado a partir de seu ensino no Colge de France inaugurado

em dezembro de 1970 Ademais a partir de 1971 juntamente

com Deleuze ele anima um movimento militante o Grupo de

JI (eacuteneacutealogie du capital- I Les eacutequipements du pouvoir Recherches n 13 dezembro1973 Um s6 bullbullbullmplo de uma retomada das hettrotopias por H umre a propoacutesito de La Pensuuml marxiste de la vilte IIrlbullbull Casterman 1972

POSFAacuteCJO POSFAacuteCIO

44 45 informarao sobre as prisoes (GIP) enraizado na extrema esquerda

Foucault disc ute com 0 Cedi que trabalha sobre a cidade22

a abordagem genealogica dos equipamemos coletivos e a poe

em pritica sobretudo no seu seminario do College de France 0

seminario e consagrado aemergencia do medico como perito

no seculo XIX atraves da pericla psiquiatrica em medicina legal

por urn lado e por outro como engenheiro que comribui para

a definicao das normas e formas da arquitetura hospitalar Urn

arquiteto Bruno Fortier responsavel pelo Centro de estudos epesshy

quisas em arquitetura (Cera) participa doravame dos trabalhos

de pesquisa desse seminario

Se a expressao equipamemo coletivo nao figura nos textos

do seculo XVIII a maquina de curar definida pelo medico

Tenon como ideal do hospital moderno neles tern lugar A

arquitetura hospitalar escreve Tenon2 nao pode mais constishy

tuir-se de rotina c tateamemos devendo responder a multiplas

prcocupacentes estancar 0 contagio pela distribuicao das salas e

dns leiros a circuhlltao do ar tavorecer a diss()cia~ao dos doemes

c das d()cn~as a vigilancia dos dotntcs e do pessoal manifestar

a hierarquia do olhar medico ter em coma as necessidades da

populacao 0 que serve para curar nao e a regularidade do trashy

cado mas a justeza da arquitetura 0 modelo deve ser perfeito

- nao se podendo mais em nada muda-Io - acabado repetivel

Pela primeira vez em 1788 escreve Bruno Fortier propoe-se

22 Ruhhl1 n 13 op cir pp 27middot31 (Dits ~I fcrit n 129 n 130) 23 J-R Tenon M moirs sur It~middot api fl llX tie P1ris Paris 1788

aos arquitetos a imitacao como urn dever24 as tipologias norshy

mativas seguem os exemplos oferecidos pela historia A justeza

da arquitetura nasce do tratamemo de uma rede de questoes disshy

timas - c1imaticas demogdficas estatisticas higienicas medicas

disciplinares - que tern cada qual seu lugar de emergencia sua

racionalidade seus promotores que respondcm a uma multiplishy

cidade de taticas - tecnicas de vigilancia de producao de saber

de efetuacao de poderes de medica l iza~lo c de saude publica

Elas podem ser descritas como segmemos analogos Oll repetidos

ao infinito de urn so texto de um escrevcnrc unico Illitico e

unitario 0 capital

Certamente esses novos edificios incorporam dticas de

vigil an cia encomradas fora sob outras formas arquiteturais shy

colegios casernas - taticas e formas que puderam preceder e

sustemar a emergencia da organizacao capitalista do trabalho e

que poderao proliferar para alem dela por exemplo nos vast os

arquipelagos do socialismo siberiano Eque fundamemalmeme

nao estamos Iidando nem com formas arquiteturais nem com

modos de producao mas com tecnologias de poder Foi na busca

destas arquiteturas maquinas tao ajustadas aos seus objetishy

vos que Foucault veio a redescobrir 0 que logo tornou-se parashy

digma de sua obra 0 panoptico de Bcntham2 do qual Poyet26

24 M Fo ucault D Barrer-Kriegel A Thahmy F Btgllin B tllrlicr L-IVIi(Jilln II X4lrir (m4JI l)rigill ~1

de OJOpilil modnrl~) Paris lnsri ru[ de J cnvi ronncm cnt 1976 rccd Hruu lOl) Iirc M~rda8Q J~79

25 J Bcmham Le Panoptiqui p rcccdido de Loeil du pouI-vir cnrrcmiddotvisru Om Michel Fou~ult P~ ri s

Bdfond 1977 (faC-ltimik da cdjao franccsa de 179 1) (Trod bras d bullbullm rvi 0 Ih do poder por A L de S OU-1 in Microfli ra tQ pokr op Ci l pp209-227 - N d 1)

26 B Poyet M h noiu sur a niassili d( Iransera lt u collsrlli r tIf-fj rd-lhrm w ill dull pm)lmiddotr It

traminlioll k eel hopil4l Paris 1785

IOSFACIO pOSFAeiO

46

47 desenhara uma interpretaccedilatildeo para a reconstruccedilatildeo da Santa Casa de Misericoacuterdia Os trabalhos do seminaacuterio do College de Frante sobre a arquitetura hospitalar no final do seacuteculo XVIII recebeshy

ram duas ediccedilotildees uma em Paris em 1976 outra em Bruxelas em 1979 Les Machints agravegutrir27

O segundo estudo coletivo dirigido por Foucault teve por objeto o habitatentre 1800 e 185018 Foi conduzido por Franccedilois

Beacuteguin hoje historiador da paisagem e da arquitetura colonial29bull

Ametodologia ~ a mesma que a precedente no lugar de partir de

uma histoacuteria das formas da habitaccedilAo ou da cidade os pesquisashydores inventariaram as pr~tlcllll discursivas que circunscreveram e

codificaram o habitat como obJero de intervenccedilatildeo administrativa e politica entre 1800 e 1850 - a doenccedila o emprego a domestishycaccedilatildeo de equipamentos como a ~gua a iluminaccedilatildeo a ventilaccedilatildeo

e o desenvolvimento de uma crescente jurisdiccedilatildeo sobre o espaccedilo

puacuteblico em cuja intersecccedillo se connroacutei o habitat Eacute preciso prishy

meiramente desfazer-se da pregnAncla da casa desmineralizaacute-la desconstruiacute-la escreve F B6guln

Poder saber es~

Eacute a partir de vtgiar t punir (1975) e de sua raacutepida circulaccedilatildeo Iacutemernacional- traduzido rapidamente em cerca de vinte liacutenguas - que as anaacutelises foucaultianas do espaccedilo recebem uma visibilishy

dade nova como lugar de uma dupla articulaccedilio do poder sobre

27 M fucault B Barrer-Kriegd A Thalamy F Beacutepdn B fIorllr ln MtIthllltt 4 gubir op cit 28 ]-M A1Haume B Barret-Kriegcl F Seguin D Ranclere A lhalamy PDitifUtt tk lhabitat 18()() 1850 Paris Corda 1977 (estudo realizado sob a direccedilAo de M Poucaull)

29 De F Beacuteguin citemos principalmente ArabIacuteSlUlett dko illChlmhI4 ubitill Afoque du Norri 1830-1850 Paris Dunod 1983 e Paysagtt Paris Flammarlon 19

o corpo do indiviacuteduo e do saber ao poder Seguem-se numerosos estudos sobre a arquitetura da vigilacircncia publicados na Itaacutelia e na Gratilde-Bretanha principalmente3deg De modo mais geral socioacuteshy

logos e planificadores urbanos comeccedilam a referir-se a Foucault

A Leaman escreveu em Environment and Plannintl que a obra de Foucault eacute doravante importante para os urbanistas planifishy

cadores e arquitetos por sua anaacutelise das qualidades normativas

das estruturas e das instituiccedilotildees Sharon Zukin considera que a cidade estaacute doravante incluiacuteda nas anaacutelises de uma economia

do poder segundo o meacutetodo desenvolvido em vtgiar e punir32bull

Esse eacute o contexto em que reaparecem as heterotopias na escola de arquitetura de Veneza em dezembro de 1977 prishymeiro estudo sobre seu uso possiacutevel em uma histoacuteria dos espashyccedilos II dispositivo Foucault 33 que reuacutene ensaios de M Cacciari

F RelIa M Tafuri G Teyssot A capa como a de Machines agrave gueacuterir reproduz um plano de arquitetura panoacuteptico para um

hospital inglecircs Os autores se referem essencialmente a Vtgiar e punir e exceto T eyssot a uma reuniatildeo de textos de Foucault sobre o poder publicado neste mesmo ano pela editora Einaudi

Microfisica deipotert4 a incidecircncia poliacutetica desta uacuteltima coletacircnea

lO Ver especialmente HinmJmd primeiro ano n 3 maio-junho1978 n triliacutengue intitulado Segrtgazione corpo sociak consagrado agraves atquitetuta de vigilanda jl A Leaman in Environmmtand Planning n 111979 pp 1079-1082 H Sh Zukin Adecade cfilie new urban sociology 1heoryand Society 91980 pp 575-601 H M Cacdari F Relia M Tafuri G Teyssor II dispositillO Foucaut Veneza Cluva 1977 4 M Iltlucaullt MimfoIacuteCIJ rktpoYrt inkrUtntipoitici editado por Iltlnrana e Pasquino Turin Einudi 1977 retomado e completado pelo movimento alternativo berlinense Dispositive tkr Macht Betlin Merve 1978 (A reuniaacuteo d textos que compotildecm a ediccedilatildeo italiana a=sdda de oUtros textos reltebeu traduccedilaacuteo brasileira de R Machado e OUrtOS Micrufisica do potkr Rio de Janeiro Graal 1979 Foi publicada tambeacutem uma ediccedilaacuteo espanhola com algumas alteraccedilotildees dos tcxtos sdeclonados trad por J Varela e F A1varez-UrIacutell Madri La Piquem 1978 - N da T)

POSFAacuteCIO

POSFAclO

48 49 foi imediata logo reforccedilada pela traduccedilatildeo de Rhizome de Deleuze

e GuattarP livros que se tornaram referecircncias teoacuterico-poliacutetishy

cas do movimento chamado Autonomie (do poliacutetico subenshytenda-se) que incomodava a esquerda do PCI engajado na

estrateacutegia do compromisso histoacuterico ~ esta incidecircncia poliacutetica

que os italianos batizaram de leffeto Foucault36 que eacute o alvo de 1 dispositivo Poucault

A introduccedilatildeo agrave coletAnea escrita por F Rella eacute perfeitamente expliacutecita desde Jogo travare as anaacutelises foucaultianas da pluralishy

dade das relaccedilotildees de poder em uma metafisica do poder de um poder abstrato imaterial supostamente em toda parte e portanto

politicamente em parte alguma liA uacutenica histoacuteria dos poderes eacute

uma histoacuteria dos espaccedilos atraveacutes dos quais o poder se mostra E

apoiando-se no artigo de Teyssot como uacutenica fonte de conhecishy

mento das heterotopias prossegue O nlo lugar do poder situashy

-se no centro de uma infinidade de localizaccedilotildees heterotoacutepicas

A heterotopia torna-se entatildeo um dado central em Foucault

e a hetero topologia a fenomenologia da dlspersio anaacuterquica do

poder A conclusatildeo desta interpretaccedilatildeo eacute previsiacutevel Natildeo se comshy

bate mais o poder doravante investidp em uma miriacuteade de locashylizaccedilotildees [ou dispositivos] mas a tirania das teorias globalizantesraquo

Teorias que Rella explicita precisando em nota leffeto Marx37 Na verdade Teyssot38 natildeo comenta a confer~ncia de 1967

35 G Deleuu F Guattari Rhizo1M Paris Minuit 1976 Rizoma ParrnalL~uea Pradche 1977 36 Em italiano no original (N da T)

37 Em italiano no original (N da T)

38middotG Teyssot Eterotopia e storiadegli spazi II displJlitirm FOllcault pp 83-86 e HelerolOpies and the historyofspaccs Arcbiacutetlctureandurbaniacutesm 121 1980 pp 79-100

mas o uso taxinocircmico do prefaacutecio de As Palavras eas coisas aplishy

cando-o a um projeto de hospital do seacuteculo XVIII descrito pelo

historiador J-c Perrot39bull Seu plano distribui como uma grade

em oiro construccedilotildees distintas oito classes de pensionaacuterios tatildeo

heterogecircneos quanto as categorias de animais da enciclopeacutedia de

Borges a) os prisioneiros a pedido de suas famiacutelias b) os loucos

os prisioneiros por edito real c) as crianccedilas pobres e legiacutetimas

dedois a nove anos os idosos os mendigos as prostitutas acoshy

metidas de doenccedilas veneacutereas d) as crianccedilas bastardas de mais

de nove anos etc Eacute a incongruecircncia do conteuacutedo que designa

a arquitetura como heterotopia e naacuteo o jogo de oposiccedilatildeo ou de contestaccedilaacuteo qualitativa ou simboacutelica dos outros espaccedilos que este

uacuteltimo institui por sua funccedilaacuteo sua forma suas rupturas

O uso da heteroropia feito por T eyssot de modo algum transshy

creve a inscriccedilaacuteo profunda da espacialidade na ttalidade da

existecircncia humana a heterogeneidade e a descontinuidade dos

tempos vividos os limiares da vida as crises bioloacutegicas (iniciashy

ccedilatildeo puberdade defloraccedilatildeo) Eacuteros e Taacutenatos As espacializaccedilotildees

da subjetividade sob todas as suas formas da casa de toleracircncia agrave

sauna e natildeo somente as grandes funccedilotildees da carta de Atenas receshy

beram em todas as culturas uma inscriccedilatildeo especiacutefica no espaccedilo

em espaccedilos que entretecircm entre si natildeo uma relaccedilatildeo de divisatildeo como interioridadeexterioridade margemcentro puacuteblicol prishy

vado mas um jogo formal de diferenciaccedilatildeo e de reverberaccedilatildeo

em suma no registro da comunicaccedilatildeo Tanto Relia que faz do

W J-C Perrot Genes du vilk mo Cam ali XVII sdele Paris Mouton 1975

POSFAacuteCIO

POSgtAClO

51

50 espaccedilo foucaultiano o receptaacuteculo neutro e contiacutenuo das hetero- topias do poder - concepccedilatildeo globalizante - quanto T eyssot que

faz da heterotopia a articulaccedilatildeo arquitetural das incongruecircncias

do mundo - concepccedilatildeo loealista - carecem ambos da terceira dimensatildeo aquela propriedade do espaccedilo de se remeter a si mesmo

na espessura de um jogo formal e simboacutelico de contestaccedilatildeo e de

reverberaccedilatildeo em uma fragmentaccedilatildeo que natildeo eacute segmentaccedilatildeo este Thirding que E Soja assim teoriza no Instituto de urbanismo de LosAngtlts na UeLA the Thirding as othering40

Essa primeira recepccedilatildeo das heterotopias pela escola de arquitetura de Veneza representada por II dispositivo Foucault mostra a ambiguidade da noccedilatildeo de recepccedilatildeo natildeo se trata de uma compreensatildeo exata nem de uma real instrumentalizaccedilatildeo mas de uma reimplantaccedillo poUss~mica e poMmica em uma rede de

debates poJJticos por um lado e de um questionamento episteshymoloacutegico por outro

Em julho de 1976 Foucault relembra pela primeira vez sua confercncia de 1967 em uma entrevista sobre o panoacuteptico de

Bentham publicada em 1977 mencionada aliaacutes por Teyssot Seria necessaacuterio escrever toda uma histoacuteria dos espaccedilos que fosse

ao mesmo tempo uma histoacuteria dos poderes desde as grandes estrateacutegias da geopoliacutetica ateacute as pequenas taacuteticas do habitat da arquitetura institucional da sala de aula ou da organizaccedilatildeo hosshy

pitalar passando pelas implantaccedilotildees econOacutemico-poliacuteticas Eacute surshypreendente ver quanto o problema dos espaccedilos levou tanto tempo

40 Bd Soja 7huacutelspact Journeys to Los Angks a11( Othtr lUa11( ltilM Ptampts Cambridge (Mass)Blackdl 1996

para aparecer como um problema histoacuterico-poliacutetico Lembro-me que haacute cerca de dez anos falei destes problemas de uma poliacutetica

dos espaccedilos e de me terem respondido que era bastante readoshy

naacuterio insistir tanto sobre o espaccedilo e que o tempo o projeto era a vida e o progresso 41

Uma histoacuteria foucaultiana dos espaccedilos mais precisamente

da espacializaccedilatildeo do poder mais precisamente ainda da inscriccedilatildeo

no espaccedilo colonial- heterot6pico - desse regime de poder partishycular que se desenvolve a partir do seacuteculo XVIII e que Foucault designa de biopoder42 a partir do qual os problemas de espaccedilo tornam-se politicamente diferentes eacute o projeto que no comeccedilo dos anos oitenta empreendem o antropoacutelogo Paul Rabinow43 e a historiadora do habitat americano Gwendolyn Wright44bull Nem

eles nem Franccedilois Beacuteguin conheciam a conferecircncia de 1967

Em uma entrevista que Rabinow e Wright fizeram com

Foucault em 198245 publicada em Skyline46 revista americana de

arquitetura o filoacutesofo lembra suas obsessotildees pelo espaccedilo e como

atraveacutes destas obsessotildees cheguei ao que eacute fundamental para mim as relaccedilotildees que satildeo possiacuteveis entre o poder e o saber

41 MFoucault J Bentham Lotil pouvoir in L Panoptiacuteque Opcil (Veja-se em traduccedilaacuteo brasileira de A L de SOU7 O olho do poder in Microfiacutesica b podtr op cit- N da T) 42 M Foucaull La Volon tk savoir Paris Gallimard 1976 cap V Droil de mort et pouvoir SUl I vie (Trad bras de M T da C Albuquerque e J A Guilhon Albuquerque A Vontade tk saber Rio de Janeiro Graal 1977 - N d T) 43 P Rabinow Biopower in lhe Frrnch Coloits conferecircncia interdisciplinar sobr Foucault Knowledge Power HislOry Los Angeles 29-31 de oUlubrol1981 Frrneh Modn Norms and Forms of th SfJCial Enviacuteronmmt Cambridge (M) MIT Press 1989 44 G Wright 7he Poliacutetics ofDltsigns in the Frrnch Colonial Urbanism Chicago University Preso 1991 45F B~n Arabisanm op cil 46 M Foucaull Space knowledge power entrerien avec P Rabinow Skyline marccedilo11982 pp 16-20 retomada em Dits tt Eacutecrits t N n 340 pp 270-285

POSFAacuteCIO

POSFAacuteCIO

53

52

A arquitetUra e o urbanismo naacuteo constituem diz ele um campo isoshylaacutevel Misturam-se com muacuteltiplas praacuteticas e discursos mas o espaccedilo

eacute o lugar privilegiado de compreensatildeo de como o poder opera

Inversamente ele bane da praacutetica do arquiteto toda esperanccedila

utoacutepica Os homens sonharam com maacutequinas libertadoras Mas por definiccedilatildeo natildeo existem maacutequinas de liberdade Jamais

a estrutura das coisas tem competecircncia para garantir a liberdade Nada eacute funcionalmente libertador A liberdade eacute o que se deve exercer a garantia da liberdade eacute a liberdade

Mestre doravante de um discurso poliacutetico e epistemoloacutegico sobre o espaccedilo Foucault deixa entatildeo ressurgir seu antigo conceito de heterotopia Diga-se entre parecircnteses lembro-me de ter sido

convidado por um grupo de arquitetos em 1966 para realizar um estudo do espaccediloi tratava-se do que na eacutepoca chamei de heterotopias espaccedilos singulares que encontramos em alguns

espaccedilos sociais cujas funccedilOes satildeo diferentes das dos outros ou tershy

minantemente opostas Os arquitetos trabalhavam neste projeto e no final do estudo algueacutem tomou a palavra _ um psicoacutelogo

sanreano - para me bombardear que o espaccedilo era reacionaacuterio e capitalista enquanto a histoacuteria e o devir eram revolucionaacuterios

Agravequela eacutepoca este discurso absurdo de modo algum era inabitual Hoje em dia qualquer um se dobraria de rir ouvindo aquilo

Natildeo haacute como natildeo se impressionar com esta longa anamnese em dois tempos primeiro em 1976 relativamente agrave objeccedilatildeo poliacuteshy

tica feita em 1967 e em 1982 enfim relativamente ao proacuteprio conceito de heterotopia em 1984 Foucault podia acolher favoshy

ravelmente a reutilizaccedilatildeo de sua conferecircncia pelo IBA de Berlim

Os dois organizadores da exposiccedilatildeo o alematildeo Johannes Gachnang e o italiano Marco de Michelis conheciam esse texto

em sua publicaccedilatildeo de 1968 em Architteturri7bull Ele sintonizava

estranhamente com a estrateacutegia do IBA tal como foi exposta por

um de seus dois responsaacuteveis J-P Kleihues48 executar a ideia

de uma cidade por fragmentos falar de arquitetur~ urbana sem traccedilar primeiramente um plano global de urbanismo respeitar

a variedade histoacuterica e topograacutefica berlinense pensar a composhysiccedilatildeo da cidade por ilhotas e ateacute confiar a diversos arquitetos a

reconstruccedilatildeo das residecircncias em uma mesma ilhota E por ocashy

siatildeo de uma reunificaccedilatildeo eventual justificar a conservaccedilatildeo da arquitetura staliniana

Sua traduccedilatildeo americana ocorreu em 1986 publicada prishy

meiramente na revista interdisciplinar de ComeU Diacriticis depois na revista de arquitetura LOtu9 Inaugurava-se uma carshy

reira nova para a interpretaccedilatildeo qualitativa dos espaccedilos outros

Natildeo se compreenderia esta carreira sem a simultaneidade da trashy

duccedilatildeo dos volumes II e III de Histoacuteria da sexualidaJe5deg a partir

dos quais Foucault torna-se uma referecircncia para aquilo que os americanos denominam poliacuteticas da identidade Movimentos

feministas movimento gay grupos eacutetnicos constituem a nova

47 Infurmaccedilaacuteo obtida com e1cs e concedida por Franccediloise Jolr 48 J-r Kleihues Agrave propos de I viUe europeacuteenne entreVista com M Bourdeau AMeS outubroI984

pp 95-99 49 M Foucault Ofother spaces Diacritieacuteiacutes 16 n I 1986 pp 22-27 e Lotushmnational 1986 50 M Foucaulr lUage tUacutes pIAis Paris Gallimaa 1984 uacute Souci Je soi Paris Gtlimn 1984 trad

1ht Use ofPlrasU Harmondsworth Penguin 1985 1ht Ca Dfthe sg Harmondsworth Penguin 1986 (Trad bras de M T da C Albuquerque O USQ dos p e O CuiJmJo Je si Rio de Janeiro Graal 1984 e 1985 - N da T)

POSFAacuteCIO

POSFAacuteCIO

54 rede de inscriccedilatildeo e a nova avaliaccedilatildeo das heterotopias A histoacuteshy

ria dos modos de subjetivaccedilatildeo realizada por Foucault atravessa

textos como lhe spaces that diferences make do urbanista Ed

Soja51 Gendered Spaces da feminista Daphne Spain52 lhe New Cultural Politics ofDijforence de Cornel West53 ou Geographical lmaginations do geoacutegrafo Derek Gregory54

Lugar de emergecircncia da heterotopia a anaacutelise literaacuteria dela

se apropria com Brian McHale Michel de Certeau5S a anaacutelise

fiacutelmica com Giuliana Bruno56bull Foucault torna-se passagem obrishy

gatoacuteria para toda anaacutelise do espaccedilo constata Soja

O mesmo se passa com as artes plaacutesticas Apresentando as

obras do artista plaacutestico cubano Felix Gonzalez-Torres Nancy

Spector descreve uma experiecircncia de ambiente heterotoacutepico

realizada em Manhattan57bull Em vinte e quatro paineacuteis de anuacutencio

publicitaacuterio das instalaccedilotildees urbanas de Manhattan Gonzalezshy

-Torres afixou o contraespaccedilo constituiacutedo por imensa foto em preto

e branco da intimidade de uma cama exposta Desnudamento

absoluto de um puro roccedilar de lenccediloacuteis leve traccedilado de duas cabeshy

ccedilas no vaacuteo entre os dois travesseiros onde cada qual pode proshy

jetar ou a interrupccedilatildeo do sono ou o amor consumado ou mais

51 Ed Soja The spa= that dlfenna makc ln M Kelm e S PIlbullbull PI4u iI1III lhe Politics olidmtiacutety NQVlI Iorque Roudedge 1993 pp 183middot205 52 D Spain Glt1JIUacutertaacute Spam Chapei Ht11 Unlverlty ofCarolIna Pras 1992 53 CWest 1M Ntw Cultural Politict oIDifimut ot h 1M Dilm_ ofrJu BIa lnttlkcttuuacute Ferguson 1994 54 D Gregory Gtographicalmaginatiacuteons citado ln Ed Soj hitrlspace Carobridge Bladltwell 1994 55 B McHale Post Moaacuteernist Fietion Nova Iorque Routledge 1988~ M de Certeau HettrologitS Discouffl 01tlu Otbtr Manchester Manchester University Presa 1986 56 G Bruno Bodlly ArchirecturesAltrtmblag 19 dezembro1992 57 N Spector Ptilt GonzakzmiddotTorres The Solamon R Guggenheim Museum Nova Iorque 1995

radicalmente a advertecircncia do artista uma decisatildeo de 1986 da

Corte suprema autoriza doravante a justiccedila em todo Estado em

que a sodomia eacute ainda um crime a persegui-la mesmo quando consentida entre adultos em suma a intimidade do espaccedilo prishy

vado da cama acaba de entrar no espaccedilo puacuteblico Esta articulashy

ccedilatildeo entre o puacuteblico e o privado poderia criar segundo Spector uma histoacuteria mais silenciosa a marca vazia do companheiro do

artista morto de aids

Maravilhosa intuiccedilatildeo no comeccedilo da confer~ncia radiofocircnica

de Foucault em 1966 daquela passagem inexistente na conferecircnshy

cia para os arquitetos em 1967 em que o fil6sofo evocava como

primeira figura da heterotopia a cama dos pais que as crianccedilas

gostam de invadir com um prazer de transgressatildeo e de sonho das origens Naacuteo poderiacuteamos concluir que aqui a longa seacuterie de

rein~riccedilotildees do texto em muacuteltiplas redes e estrateacutegias que a longa

seacuterie de transformaccedilotildees da figura social de seu autor encontram

neste instante de sua trajetoacuteria a mais completa forma de recepshyccedilatilde0 58 Foucault natildeo declarara tantas vezes que almejava menos

leitores que utilizadores59

58 Ed Soja Heterotopies remembrance Df other spaccs in me citadd LAraquo Strattgies a jIJurna 01 tbeory culturt anaacute poines 3 1990 pp 1middot39 Post metropolis Critiacutecal Stuties 01 Ctti naacute Rtglgtnt Londle$ Blackwdl 2000 59 Em 200I uma associaccedilatildeo cultural italiana denominada EttrotpirJ publicou uma releitura de textos de Foucaulr sobre o espaccedilo sob o titulo Spnialtri

POSFAacuteCIO POSFAacuteCIO

8 9 ser olhado sob esta pele deteriorar Meu corpo eacute o lugar sem

recurso ao qual estou condenado Penso afinal que eacute contra ele

e como que para apagaacute-lo que fizemos nascer todas as utopias

A que se deve o prestiacutegio da utopia a beleza o deslumbramento

da utopia A utopia eacute um lugar fora de todos os lugares mas um

lugar onde eu teria um corpo sem corpo um corpo que seria belo

llmpido transparente luminoso veloz colossal na sua potecircncia

infinito na sua duraccedilatildeo solto invisiacutevel protegido sempre transshy

figurado pode bem ser que a utopia primeira a mais inextirpaacuteshy

vel no coraccedilatildeo dos homens consista precisamente na utopia de

um corpo incorporal O paiacutes das fadas o paiacutes dos duendes dos

gecircnios dos maacutegicos este eacute o paiacutes onde os corpos se transportam

tatildeo raacutepido quanto a luz o paiacutes onde as feridas se curam com um

baacutelsamo maravilhoso na duraccedilatildeo de um relacircmpago o paiacutes onde

se pode cair de uma montanha e reerguer-se vivo o paiacutes onde se eacute visiacutevel quando se quiser invisiacutevel quando se desejar Se existir

um paiacutes feeacuterico eacute justamente para que eu seja priacutencipe encanshy

tado e que todos os janotas graciosos tornem-se peludos e vilotildees coccedilno pequenos ursos

bull Mas haacute tambeacutem uma utopia que eacute feita para apagar os corpos

Essa utopia eacute o paiacutes dos mortos satildeo as grandes cidades utoacutepicas

que nos foram deixadas pela civilizaccedilatildeo egiacutepcia Afinal o que satildeo as muacutemias Elas satildeo a utopia do corpo negado e transfigurado A

muacutemia eacute o grande corpo utoacutepico que persiste atraveacutes do tempo Existiram tambeacutem as maacutescaras de ouro que a civilizaccedilatildeo micecircnica

colocava sobre os rostos dos reis defuntos utopia de seus corpos gloriosos possantes solares terror dos exeacutercitos Existiram as

o CORPO UTOacutePICO

pinturas e as esculturas dos tuacutemulos onde jazem os que desde a

Idade Meacutedia prolongam na imobilidade uma juventude que natildeo

mais passaraacute Existem agora em nossos dias os simples cubos

de maacutermore corpos geometrizados pela pedra figuras regulares e brancas sobre o grande quadro negro dos cemiteacuterios E nessa

cidade de utopia dos mortos eis que meu corpo torna-se soacutelido

como uma coisa eterno como um deus

Poreacutem a mais obstinada talvez a mais possante dessas utopias

pelas quais apagamos a triste topologia do corpo nos eacute fornecida

desde os confins da histoacuteria ocidental pelo grande mito da alma

A alma funciona no meu corpo de maneira maravilhosa Nele

se aloja certamente mas sabe bem dele escapar escapa para ver

as coisas atraveacutes das janelas dos meus olhos escapa para sonhar

quando durmo para sobreviver quando morro Minha alma eacute

bela eacute pura eacute branca e se meu corpo lamacento - de todo modo

natildeo muito limpo - vier a sujaacute-la haveraacute sempre uma virtude

haveraacute uma potecircncia haveraacute mil gestos sagrados que a restabeleshy

ceratildeo na sua pureza primeira Minha alma duraraacute muito tempo

e mais que muito tempo quando meu corpo vier a apodrecer

Viva minha alma Eacute meu corpo luminoso purificado virtuoso

aacutegil moacutevel teacutepido viccediloso eacute meu corpo liso castrado arredonshy

dado como uma bolha de sabatildeo Eis entatildeo que em virtude de todas essas utopias meu corpo

desapareceu Desapareceu como a chama de uma vela que se

assopra A alma os tuacutemulos os gecircnios e as fadas o massacraram fizeram-no desaparecer num aacutetimo sopraram sobre seu peso e

sua fealdade e o restituiacuteram a mim deslumbrante e perpeacutetuo

o CORPO UTOacuteP1CO

10 11

r Mas na verdade meu corpo natildeo se deixa reduzir tatildeo facilshy

mente Afinal ele tem suas fontes proacuteprias de fantaacutestico possui

tambeacutem ele lugares sem lugar e lugares mais profundos mais

obstinados ainda que a alma que o tuacutemulo que o encantamento

dos maacutegicos Possui tambeacutem ele suas caves e seus celeiros tem

abrigos obscuros e plagas luminosas Minha cabeccedila por exemshy

plo ah minha cabeccedila estranha caverna aberta para o mundo

exterior por duas janelas duas aberturas sei disso pois as vejo

no espelho ademais posso fechar uma ou outra separadamente

E no entanto essas aberturas natildeo satildeo senatildeo uma soacute pois natildeo

vejo diante de mim senatildeo uma soacute paisagem contiacutenua sem divishy

saacuteo nem corte E dentro desta cabeccedila como se passam as coisas

Elas entram laacute - e estou muito seguro de que as coisas entram

na minha cabeccedila quando eu olho pois o sol se for demasiado

forte e me ofuscar dilacera ateacute o fundo do meu ceacuterebro - e no

entanto essas coisas que entram dentro da minha cabeccedila permashy

necem no exterior pois vejo-as diante de mim e eu por minha

vez devo me adiantar para alcanccedilaacute-las

Corpo incompreensiacutevel corpo penetraacutevel e opaco corpo

aberto e fechado corpo utoacutepico Corpo absolutamente visiacutevel

em um sentido sei muito bem o que eacute ser olhado por algueacutem da

cabeccedila aos peacutes sei o que eacute ser espiado por traacutes vigiado por cima

do ombro surpreso quando percebo isso sei o que eacute estar nu no

entanto este mesmo corpo que eacute tatildeo visiacutevel eacute afastado captado

por uma espeacutecie de invisibilidade da qual jamais posso desvenshy

cUh-lo Este meu crilnio atraacutes do meu cracircnio que posso tocar

com meUl dedal mas nunca ver este dorso que sinto apoiado

OCO~POU~

na pressatildeo do colchatildeo sobre o divaacute quando me deito mas que

somente surpreenderei pelo ardil de um espelho e o que eacute este

ombro cujos movimentos e posiccedilotildees conheccedilo com precisatildeo

mas que jamais poderei ver sem me contorcer terrivelmente

O corpo fantasma que soacute aparece na miragem dos espelhos e

ainda assim de maneira fragmentaacuteria Preciso verdadeiramente

dos gecircnios e das fadas da morte e da alma para ser ao mesmo

tempo indissociavelmente visiacutevel e invisiacutevel Ademais este corpo

eacute leve eacute transparente eacute imponderaacutevel nada eacute menos coisa que

ele ele corre age vive deseja deixa-se atravessar sem resistecircncia

por todas as minhas intenccedilotildees Eacute verdade Mas somente ateacute o

dia em que adoeccedilo em que se rompe a caverna de meu ventre

em que meu peito e minha garganta se bloqueiam se entopem

se fecham Ateacute o dia em que a dor de dentes estrala no fundo da

minha boca Entatildeo aiacute entatildeo deixo de ser leve imponderaacutevel etc

torno-me coisa arquitetura fantaacutestica e arruinada

Natildeo verdadeiramente natildeo haacute necessidade da maacutegica nem

do feeacuterico natildeo haacute necessidade de uma alma nem de uma morte

para que eu seja ao mesmo tempo opaco e transparente visiacutevel

e invisiacutevel vida e coisa para que eu seja utopia basta que eu

seja um corpo Todas aquelas utopias pelas quais eu esquivava

meu corpo encontravam muito simplesmente seu modelo e seu

ponto primeiro de aplicaccedilatildeo encontravam seu lugar de origem

no meu proacuteprio corpo Enganara-me haacute pouco ao dizer que as

utopias eram voltadas contra o corpo e destinadas a apagaacute-lo

elas nascem do proacuteprio corpo e em seguida talvez retornem

contra ele

o CORPO UTOacutePICO

12 13 Em todo caso uma coisa eacute certa o corpo humano eacute o ator

principal de todas as utopias Afinal uma das mais velhas utopias

que os homens contaram para si mesmos natildeo eacute o sonho de corpos

imensos desmesurados que devorariam o espaccedilo e dominariam

o mundo Eacute a velha utopia dos gigantes que encontramos no

coraccedilatildeo de tantas lendas na Europa na Aacutefrica na Oceania na

Aacutesia essa velha lenda que haacute taacuteo longo tempo nutre a imaginaccedilatildeo

ocidental de Prometeu a Gulliver

O corpo eacute tambeacutem um grande ator utoacutepico quando se trata de

maacutescaras da maquiagem e da tatuagem Mascarar-se maquiar-se

tatuar-se natildeo eacute exatamente como se poderia imaginar adquirir

outro corpo simplesmente um pouco mais belo melhor decorado

mais facilmente reconheciacutevel tatuar-se maquiar-se mascarar-se

eacute sem duacutevida algo muito diferente eacute fazer com que o corpo entre

em comunicaccedilatildeo com poderes secretos e forccedilas invisiacuteveis Maacutescara

signo tatuado pintura depositam no corpo toda uma linguagem

toda uma linguagem enigmaacutetica toda uma linguagem cifrada

secreta sagrada que evoca para este mesmo corpo a violecircncia do

deus a potecircncia surda do sagrado ou a vivacidade do desejo A

maacutescara a tatuagem a pintura instalam o corpo em outro espaccedilo

fazem-no entrar em um lugar que natildeo tem lugar diretamente no

mundo fazem deste corpo um fragmento de espaccedilo imaginaacuterio

que se comunicaraacute com o universo das divindades ou com o unishy

verso do outro Por ele seremos tomados pelos deuses ou seremos

tomados pela pessoa que acabamos de seduzir De todo modo a

maacutescara a tatuagem a pintura satildeo operaccedilotildees pelas quais o corpo eacute arrancado de seu espaccedilo proacuteprio e projetado em um espaccedilo outro

o CORPO UTOacutePICO

Ouccedilamos por exemplo este conto japonecircs e a maneira com

que um tatuador faz passar para um universo que natildeo eacute o nosso

o corpo da jovem que ele deseja O sol dardejava seus raios sobre

o rio e incendiav~ o quarto de sete esteiras Seus raios refletidos

na superfiacutecie da aacutegua formavam um desenho de ondas douradas

sobre o papel dos biombos e sobre o rosto da jovem profundashy

mente adormecida Seikichi apoacutes puxar a divisoacuteria tomou nas

matildeos seus instrumentos de tatuagem Durante alguns instantes

permaneceu mergulhado em uma espeacutecie de ecircxtase Era entatildeo que

ele saboreava plenamente a estranha beleza da jovem Parecia-lhe

poder ficar sentando diante desse rosto imoacutevel durante dezenas

e centenas de anos sem jamais sentir cansaccedilo nem fastio Como

outrora o povo de Mecircnfis embelezava a magniacutefica terra do Egito

com piracircmides e esfinges assim Seikichi com todo amor queshy

ria embelezar com seu desenho a pele viccedilosa da jovem Aplicoushy

-lhe entatildeo a ponta de seus pinceacuteis coloridos que segurava entre o

polegar o anular e o pequeno dedo da matildeo esquerda e agrave medida

em que as linhas eram desenhadas picava-as com a agulha que

segurava na matildeo direita

E se considerarmos que a vestimenta sagrada ou profana relishy

giosa ou civil faz com que o indiviacuteduo entre no espaccedilo fechado

do religioso ou na rede invisiacutevel da sociedade veremos entatildeo que

tudo o que concerne ao corpo - desenho cor coroa tiara vestishy

menta uniforme tudo isso faz desabrochar de forma sensiacutevel

e matizada as utopias seladas no corpo

Mas talvez fosse preciso descer mais por baixo da vestimenta

talvez fosse preciso atingir a proacutepria carne e veriacuteamos entatildeo que

o CORPO UTOcircPICO

14 15 em certos casos no limite eacute o proacuteprio corpo que retorna seu

poder utoacutepico contra si e faz entrar todo o espaccedilo do religioso

e do sagrado todo o espaccedilo do outro mundo todo o espaccedilo do

contramundo no interior mesmo do espaccedilo que lhe eacute reservado

Entatildeo o corpo na sua materialidade na sua carne seria como o

produto de seus proacuteprios fantasmas Afinal o corpo do danccedilarino

natildeo eacute justamente um corpo dilatado segundo um espaccedilo que lhe

eacute ao mesmo tempo interior e exterior E os drogados tambeacutem e

os possuiacutedos os possuiacutedos cujo corpo torna-se inferno os estigshy

matizados cujo corpo torna-se sofrimento resgate e salvaccedilatildeo

ensanguentado paraiacuteso

Verdadeiramente enganara-me haacute pouco ao crer que o

corpo jamais estivesse em outro lugar que era um aqui irremeshy

diaacutevel e que se opunha a toda utopia

Meu corpo estaacute de fato sempre em outro lugar ligado a todos

os outros lugares do mundo e na verdade estaacute em outro lugar

que natildeo o mundo Pois eacute em torno dele que as coisas estatildeo disshy

postas eacute em relaccedilatildeo a ele - e em relaccedilatildeo a ele como em relaccedilatildeo a

um soberano - que haacute um acima um abaixo uma direita uma

esquerda um diante um atraacutes um proacuteximo um longiacutenquo O

corpo eacute o ponto zero do mundo laacute onde os caminhos e os espaccedilos

se cruzam o corpo estaacute em parte alguma ele estaacute no coraccedilatildeo do

mundo este pequeno fulcro utoacutepico a partir do qual eu sonho

falo avanccedilo imagino percebo as coisas em seu lugar e tambeacutem

as nego pelo poder indefinido das utopias que imagino Meu

corpo eacute como a Cidade do Sol naacuteo tem lugar mas eacute dele que

saem e se irradiam todos os lugares possiacuteveis reais ou utoacutepicos

CORPO UTOacutePICO

As crianccedilas afinal levam muito tempo para saber que tecircm

um corpo Durante meses durante mais de um ano elas tecircm

apenas um corpo disperso membros cavidades orifiacutecios e tudo

isso soacute se organiza tudo isso literalmente toma corpo somente

na imagem do espelho De modo mais estranho ainda os gregos

de Homero natildeo tinham uma palavra para designar a unidade do

corpo Por paradoxal que seja diante de Troacuteia abaixo dos muros

defendidos por Heitor e seus companheiros natildeo havia corpos

mas braccedilos erguidos peitos intreacutepidos pernas aacutegeis capacetes

cintilantes em cima de cabeccedilas natildeo havia corpo A palavra grega

para dizer corpo soacute aparece em Homero para designar cadaacutever

Eacute o cadaacutever portanto o cadaacutever e o espelho que nos ensinam

(enfim que ensinaram aos gregos e agora ensinam agraves crianccedilas)

que temos um corpo que este corpo tem uma forma que esta

forma tem um contorno que no contorno haacute uma espessura um

peso em suma que o corpo ocupa um lugar Espelho e cadaacutever

eacute que asseguram um espaccedilo para a experiecircncia profundamente e

originariamente utoacutepica do corpo espelho e cadaacutever eacute que silenshy

ciam e serenizam encerrando em uma clausura - que para noacutes

hoje eacute selada esta grande coacutelera utoacutepica que corroacutei e volatiliza

nosso corpo a todo instante Graccedilas a eles graccedilas ao espelho e

ao cadaacutever eacute que nosso corpo natildeo eacute pura e simples utopia Ora

se considerarmos que a imagem do espelho estaacute alojada para

noacutes em um espaccedilo inacessiacutevel e que jamais poderemos estar laacute

onde estaraacute nosso cadaacutever se considerarmos que o espelho e o

cadaacutever estatildeo eles proacuteprios em um inatingiacutevel outro lugar desshy

cobrimos entatildeo que unicamente as utopias podem fazer refluir

o CORPO UTOacutePICO

16 nelas mesmas e esconder por um instante a utopia profunda e

soberana de nosso corpo

Seria talvez necessaacuterio dizer tambeacutem que fazer amor eacute senshy

tir o corpo refluir sobre si eacute existir enfim fora de toda utopia

com toda densidade entre as matildeos do outro Sob os dedos do

outro que nos percorrem todas as partes invisiacuteveis de nosso

corpo potildeem-se a existir contra os laacutebios do outro os nossos se

tornam sensiacuteveis diante de seus olhos semicerrados nosso rosto

adquire uma certeza existe um olhar enfim para ver nossas paacutelshy

pebras fechadas O amor tambeacutem ele como o espelho e como

a morte sereniza a utopia de nosso corpo silencia-a acalma-a

fecha-a como se numa caixa tranca-a e a sela Eacute por isso que ele eacute

parente tatildeo proacuteximo da ilusatildeo do espelho e da ameaccedila da morte

e se apesar dessas duas figuras perigosas que o cercam amamos

tanto fazer amor eacute porque no amor o corpo estaacute aqui

33 HETEROTOPIA TRIBULACcedilOtildeES DE UM CONCEITO ENTRE VENEZA BERLIM E LOS ANGELESl

No dia 14 de marccedilo de 1967) o Ciacuterculo de estudos arquiacuteteturais de Paris convidara Foucault a pronunciar uma conferecircncia sobre

() espaccedilo para a qual ele propocircs uma analiacutetica nova que batizou

de heterotopologia O texto desta conferecircncia teve circulaccedilatildeo

restrita reservada aos membros daquele ciacuterculo em forma datishy

lografada com exceccedilatildeo de extratos publicados em francecircs em

1968 na revista italiana LArchittetura2 ateacute sua publicaccedilatildeo em

Berlim no outono de 1984 no quadro da exposiccedilatildeo ldeacutee proshymsus reacutesultats no Martin-Gropius-Bau3bull

Essa exposiccedilatildeo foi a principal dentre as dezessete manifestashy

ccedilotildees com as quais a Internationale Bauausstellung (IBN) apreshy

sentou ao mundo o balanccedilo de suas atividades de reconstruccedilatildeo

e renovaccedilatildeo de Berlim Imaginava-se a reunificaccedilatildeo da cidadeshy

-capital que parecia estranhamente ilustrar os espaccedilos outros do

texto de Foucault de 1967 Autorizando sua publicaccedilatildeo pouco

antes da sua morte ocorrida em 25 de junho de 1984 o fi16sofo

a introduzira in extremis no corpus de seus escritos autorizados

I Oucra versatildeo deste texto fui publicada em 1997 no caraacutelogo de Dccummta X em Kassd 2 M Foucault Des espaces aurres EArthinura mJtlltck stvria vol XIII n 150 1968 pp 822-823 M Foucault Des espaces aurres AMes ~ darrhitt(lUrt ourubrofll984 pp 46-49 Eacute esla versatildeo t 1984 signincatiacuteVllmente diferente da que reproduzimos no presente volume que estaacute incluiacuteda cm IJIIiS et Eacutecrits Paris Gallimard t Iv texto n 360 (Martin-Gropius-Bau museu localizado em Berlim Inaugurado em 1881 - N da T) 4 IBA Exposiccedilatildeo internacional de consrruccedilatildeo sigla retomada mais adiante (N da T)

POSFAacuteCIO

34 Desde enrao () lCx ro f()i thlilldantllllllltl trad uzido e comenshy

tado C omo podl prrt na IICLt1 i1I(xplo rlllu d II ranrc vitae anos

Olllo nail c lO l llpn( nd clI Icrgll l1 tl t Edward Soja entushy

sia ~t1 IrolliOl OI l tl illlllli 1I 11I d 1 rmfflpIIf1fJI a Illlporrancia

1l0V(1 d(1 tp t1I t d1 (PH Itlld ldt I I dlvl III )dcrllmos intershy

pretl r 1 di qlIlCl1 ( IIII(~ I _I~ 111 dIIW 1)(1 7 II)IH e a hist6ria

dcs~c -i ltlIli ll 111111 1 h i~I( 1 ti l h 11I 1 11 IlIlp~o1(t A~ nocoes

dt nIt IIO ti t 11111 IllI l ln fU(IAII11I1 Utl l IIVO dc analise

suficic ll lc rnlc J ( fino plI dl 1t1lh lr IIl1n I lit I t trw sfOrmashy

coes tanto d le) diM lI 1m (I ~k~ PII 11101111 c politicos

dos arquitctos t lIIhalli tl 11(11 1 II I Ulll ~ IIJII UItlS quan to da

problematica do cspao 11 11 I ~llll( de 1 -(~~ IIc1I

Linguagem e espa~o

Voce se lembra daqude l(k~I III I1 1111 Ihl III I ir l1nro em

que urn arquiteto via uma nova Ltl JlU~lIj I 11III1~mo Mas

isto nao estava em urn livro Cst I VI 1 111111 I ~ I I 1111111 nll1fcrencia

radiofonica sobre a utopia Pedt lll li lt pw II l( nll~1 1111 dia J3 ou 14 de marco

Esta carta escrita em Sidi BOil ~ai 1 1I1I di1 2 dt lIlano de

1967 e 0 testemunho mais antigo do ( I ll II II I IIJ d f~ FI)lllluJrcom

os arquitetos Em 7 de dezembro dt I )h h li e tll ~ld lll de uma

serie radiofonica chamada de Cuhlll1 rI( I tlllsagrada a 5 amp1 Soja Rembrance of ocher spaces in [he ciradd LA 114(rO Jrftj

Politics 3 1990 p 1 39 Art igo dcscnvolvulo em Ed Soja Ij Rral Imagined Plam Cambridg~ (Mss) Blockwell 1996

6 P Bou rJi cu Quesr-cc q Ut fai l e parler urn ) U[lur A prop d Mit Ii t l I --I ~ ~~h III f~r n

plitmtlltions n especial tlSureiUcr er punic vingt aIl~ pres II Iltl T ~lI ltI L ~middotIIn II t IH

lgto~AClO

35 u topia ele fora convidado a falar sobre Utopia e Literatural

Pactindo de uma evocacao bachelardiana daqueles espacos que

encantam os jogos infantis como os celeiros 0 fundo do jardim

a tenda de Indios ou a cama dos pais verdadeiras utopias localishy

zadas sonhou com uma ciencia que teria por objeto estes espashy

cos diferentes que sao a contestacao dos espaltos onde vivemos

nao uma ciencia das utopias mas das heterotopias cie ncia dos

espacos absolutamente ourros Esta ciencia 011 hecerotopologia

que esta em vias de nascer que ji cxistc c cujos prindpios ele

enunciara naquele dia

As emissoes radiofonicas de Foucault - nas quais de se reveshy

lava urn maravilhoso contista - respondiam aenorme curiosishy

dade suscitada desde a primavera de 1966 pela publicacao de

As Palavras e as coisas 8bull 0 livro se abria com a descricao de uma

improvavd enciclopedia chinesa inventada por Borges segundo

a qual os animais se distribufam em quatorze classes do seguinte

tipo a) pertencenres ao imperador b) embalsamados c) domesshy

ticados k) desenhados com urn pincel muito fino de pelo de

cameoj I) et cetera m) que acabam de quebrar a biJha Esta

desordem que faz cintilar os fragmentos de urn grande numero

de ordens possiveis fora batizada por Foucault de heterotopia

o termo se opunha a utopia etimologicamente nao lugar e nao

eu-topia como se tende a crer Mas se as utopias narram urn lugar

7 M Foucault Uwpi( bem opi quivo sonora de 7 e 2 1 de dczombro de 19(6 CCOIrc Midd Foucaul t DibLioth~uc dc IIM EC-Cacn (eeditad em diso pdo INA em 2004 (rNA In iw Ntiorul de IAudinvisucl - Nd T)

8 M Foucault Ln Mots a Choses Paris Gallimard 1966 (TC3d u~() b silt ira de S T Muchail As PaiArdH as coilas Sao Paulo Martins Fontes 1981 - N da n

POSFAClO

36 37 que natildeo existe desabrocham contudo em um espaccedilo imaginaacuteshy

rio e por isso situam-se na linha reta do discurso pois desde

o fundo dos tempos a linguagem se entrecruza com o espaccedilo A lista de Borges ao contraacuterio estanca as palavras nelas proacuteprias pois a heterotopia arruiacutena natildeo somente a sintaxe das frases como

tambeacutem aquela menos manifesta que autoriza manter juntas as palavras e as coisas9

A impossibilidade em que se encontra nosso pensamento para pensar esse heteroacuteclito radical da classificaccedilatildeo de Borges tesshytemunha um limite do pensamento o mesmo limite que ainda

experimentamos diante das classificaccedilotildees proacuteprias agraves culturas que nos satildeo radicalmente estranhas Quando Victor TurnerlO descreve como os Ndembu da Zacircmbia reuacutenem em uma mesma

classe os caccediladores as viuacutevas os doentes e os guerreiros isto

natildeo implica um espaccedilo de pertenci menta concebido como tershyritoacuterio comum nem um espaccedilo de pertencimento concebido

como ramificaccedilotildees definidas por propriedades formais como

aquele no qual n6s distribuiacutemos os reinos da natureza nem a linearidade arbitraacuteria de uma ordem alfabeacutetica com a qual nosshy

sos dicionaacuterios ordenam o heteroclito no espaccedilo Ele descreve um sistema de analogias de similitudes entre propriedades simshyboacutelicas cujas interconexotildees precisamos traccedilar em uma paacutegina em branco a fim de compreender esse sistema ou o espaccedilo de similitudes Natildeo se pode pensar sem o suporte de um espaccedilo de ordem sem esta zona mediana que Foucault qualifica

9 M FOUaacutelulr Les MolJ ks Choses op dto prefaacutecio p 9 (Ar Plarmu l1li cow pp 5-8 _ N d T) 10 Victor Turner (1920-1983) antropoacutelogo britilnico (N da T)

de arqueoloacutegica por sob nossas percepccedilotildees nossos discursos nossos saberes onde se articulam o visiacutevel e o enunciaacutevel a linshy

guagem o olhar e o espaccedilo

Na emissatildeo radiofocircnica de 7 de dezembro de 1966 Foucault fez um uso totalmente diferente de sua noccedilaacuteo de heterotopia Primeiro ela eacute pertinente natildeo mais a uma anaacutelise dos discursos

mas dos espaccedilos Lugares tatildeo heteroacuteclitos como o espelho o cemiteacuterio a casa de toleracircncia ou a colocircnia polineacutesia de feacuterias em

Djerba entram em uma categoria especiacutefica de espaccedilos-tempos quer este tempo seja provisoacuterio como o tempo uacutenico da defloshy

raccedilatildeo no espaccedilo da viagem de nuacutepcias quer este tempo seja ao contraacuterio cumulativo de temporalidades - atemporal- no lugar da biblioteca ou do museu

Essas unidades espaccedilo-temporais esses espaccedilos-tempos tecircm em comum serem lugares onde estou e natildeo estou como o espeshy

lho ou o cemiteacuterio ou onde sou outro como na casa de toleracircnshy

cia na colocircnia de feacuterias ou na festa carnavalizaccedilotildees da existecircncia

ordinaacuteria Eles ritualizam cortes limiares desvios e os localizam As normas humanas natildeo satildeo todas universalizaacuteveis as da

disciplinarizaccedilatildeo do trabalho e as da transfiguraccedilatildeo pela festa

naacuteo podem desenrolar-se na linearidade de um mesmo espaccedilo ou de um mesmo tempo eacute preciso uma forte ritualizaccedilaacuteo das rupturas dos limiares das crises Estes contraespaccedilos poreacutem saacuteo

Interpenetrados por todos os outros espaccedilos que eles contestam o espelho onde natildeo estou reflete o contexto onde estou o cemishyteacuterio eacute planejado como a cidade haacute reverberaccedilatildeo dos espaccedilos uns nos outros e contudo descontinuidades e rupturas Haacute

POSlACIO

POSFACIO

38 39 enfim como que um eterno retorno desses rituais espaccedilo-temshy

porais e se natildeo universalizaccedilatildeo das mesmas formas ao menos

uma universalidade de sua existecircncia Eles satildeo apreendidos em

uma sincronia e uma diacronia especiacuteficas que fazem deles um

sistema significante entre os sistemas da arquitetura Natildeo refleshy

tem a estrutura social nem a da produccedilatildeo natildeo satildeo um sistema

soacutecio-histoacuterico nem uma ideologia mas rupturas da vida ordishy

naacuteria imaginaacuterios representaccedilotildees polifocircnicas da vida da morte

do amor de Eacuteros e Taacutenatos

A carta de Foucault de 2 de marccedilo de 1967 deixa vazar um

Utopias e heterotopias O Ciacuterculo de estudos arquiteturais era animado entre 1960 e

1970 por Jean Dubuisson seu presidente arquiteto do Museu

(te Artes e Tradiccedilotildees Populares do Bosque de Boulogne e Ionel

Schein que indicava os conferencistas a serem convidados ao

Boulevard Raspail nuacutemero 38 Era um dos raros ciacuterculos de

reflexatildeo de arquitetos sem corporativismo no qual nos anos

cinquenta e sessenta Ionel Schein gozava da lisonjeira reputaccedilatildeo

de agitador de ideias e de radicalismo em arquitetura I I Foi ele

segundo Jean Dubuisson quem convidou Foucault As confeshy

recircncias eram anotadas em estenografia e depois datilografadas e

do arquiteto Natildeo natildeo fora o livro (As Palavras e as coisas) que

desapontamento a arqueologia do olhar natildeo retivera o olhar entregues aos membros do Ciacuterculo Pierre Riboulet - arquiteto

trouxera em germe uma nova concepccedilatildeo do urbanismo livro do entre outros do hospital Robert-Debreacute - conservou sua coacutepia

qual o filoacutesofo esperava a provocaccedilatildeo de rupturas no pensamento Ele se lembra das precauccedilotildees oratoacuterias do filoacutesofo para introduzir

No entanto estas rupturas foram suficientemente ruidosas pelo seu propoacutesito a insistecircncia sobre sua ignoracircncia quanto agraves preshy

menos ateacute o ruiacutedo de 1968 para que Foucault viesse a deixar ocupaccedilotildees dos arquitetos As referecircncias -satildeo tomadas da histoacuteria

tanto o tumulto da gloacuteria quanto o das polecircmicas pela serenidade das ciecircncias (Koyreacute Bachelard) da criacutetica literaacuteria a-p Richard

da luminosa vila de Sidi Bou Sald no alto do golfo de Cartago e Ianchot) da psicanaacutelise existencial (Binswanger) assuntos

a paz - sempre difiacutecil - da escritura Heterotopia vivida O que todos eles sobre os quais Foucault jaacute havia desenvolvido suas

chegara aos ouvidos do arquiteto era uma linguagem menor obsessotildees do espaccedilo12

um daqueles jogos literaacuterios nos quais Foucault tinha um prazer Para marcar seu entusiasmo agrave saiacuteda dessa conferecircncia Robert

guloso juacutebilo incessantemente decepado pela ascese da escrishy Auzelle um dos pensadores da reconstruccedilatildeo da Franccedila a partir

tura contenccedilatildeo que se lecirc na didaacutetica da conferecircncia reescrita d()s anos cinquenta lhe entregou sua histoacuteria da arquitetura

esta para os arquitetos certamente mas os jogos literaacuterios ficam II ltuklt tas infOrmaccedilotildees sobre o Circulo de tstutIos arqumlumis me foram fOrnecidas por P Riboulet

aqui finalmente retranscritos com todo respeito agrave integralidade Illxprcssatildeo utilizada por Fouault in Quesdons agrave Michel Fouault sur la geacuteographie HiroIIote n I 1lt)76 pp 71-85 retomada em Diu et Eacutecriu t m n 169 Paris Gallimard 1994 p 33 (Trad bras de

sonora da qual nasceram K Machado e A L de Souza Sobre a geografia in Microflsica do potUacuter Rio de Janeiro Graal 1979 1IIU-165-N daT)

POSFAacuteCIOPOSFAco

40 41 funeraacuteria e dos cemiteacuterios13 uma das heterotopias de Foucault

Em O Nascimento da cllnica14 Foucault descrevera como a anatoshy

mopatologia havia integrado a morte no conhecimento da vida

oferecer-lhe a hist6ria da integraccedilatildeo dos cemiteacuterios na planificashy

ccedilatildeo urbana provava a perfeita cumplicidade entre seus ouvintes

e o conferencista a negatividade estava no cerne da racionalishy

dade Ela estava no cerne das anaacutelises de Foucault pelo menos ateacute Vigiar epunit5

Foi no final deste mesmo ano de 1967 que Jean-Luc Godard

em A Chinesa fez sua heroiacutena a estudante pr6-chinesa interpreshy

tada por Alme Wiazemsky jogar tomates em um exemplar de As Palavras eas coisas entio um livro siacutembolo por suas descontinuishy

dades abruptas do pensamento no tempo da negaccedilatildeo da hist6ria e portanto da negaccedillo da revoluccedilatildeo

A confercncia de 1967 poderia ter outra circulaccedilatildeo aleacutem da

c6pia datHografada entre os membros do Circulo O pr6prio

Circulo natildeo possuiacutea uma revista e nlo editava nenhuma de suas

conferecircncias Por outro lado as concepccedilotildees que entatildeo partilhashy

vam os arquitetos deviam muito a Le Corbusier e agrave Bauhaus agrave

racionalizaccedilatildeo das formas e agrave legibilidade do espaccedilo urbano

concebido como um texto pontuado com referecircncias espaccedilos

ou edifiacutecios Franccediloise Choay que Foucault frequentara nos anos

13 R AuzeUe Derniim Dmlnlm Paris ed do autor 13 PIace du Panrlleacuteon 1965 14 M Foucault Naissanct de la ClitlUacuteJue Paris PUF 1963(Trad bru de R Machado ONtUCimentIJ da clnCIt ruo d Janeiro Forense-Universitaacuteria 1977 - N da T) 15 M Foucaul Survdlkr tIPunir Paris Gallimard 1975 A obra apresenta o panoacuteptico de Benthrun como um acontecimento na histoacuteria do esplrito humanomiddot epropotildee uma anill1sc do poder em termos d produccedilatildeo e natildeo de repressatildeo (Trad bras de R Ramalhete VIgiar11mr Pett6poliacutes Vous 1987 _ N da T)

ttenta reconstitui essas problemaacuteticas em Urbanisme utopies et rtaiteacutesl6

Um urbanismo progressista humanista que se sustentava

111amp carta de Atenas l7 e em uma racionalidade crescente ou um

urbanismo culturalista para o qual cada forma eacute siacutembolo e que

(Ilha com nostalgia para a harmonia das cidades passadas estas

tmm as ideias reguladoras da razatildeo urbaniacutestica Estas ideias

rCguladoras jaacute natildeo talhavam em pontilhado o espaccedilo da utopia

em que viria a desdobrar-se ap6s 1968 o discurso arquitetural e

urbano em uma dissoluccedilatildeo do objeto cidade no seio das relaccedilotildees

udais capitalistas A cidade como totalidade formal ou racional

I1Ao foi deslocada pelo capitalismo O espaccedilo natildeo eacute uma imensa

paacutegina em branco onde se escreve desde cerca de dois seacuteculos a

Illetanarraccedilaacuteo do capital Naacuteo estaacute aiacute o impensado geral o natildeo

dito de todas essas divisoacuterias construiacutedas entre as classes os sexos

C as geraccedilotildees

O fasciacutenio das escolas de arquitetura pela visita a cidades

patronais estas utopias realizadas como o familisteacuterio de Guise

unstruiacuteda por Godin ou a cidade Menier de Noisiell8 testeshy

munha que o discurso arquitetural e urbaniacutestico francecircs dos anos

etenta se desdobrava no espaccedilo da utopia Os promotores dessas

cidades natildeo estariam entre os primeiros a inventar o consumo

em massa Um reduzia as dimensotildees da milenar e dispendiosa

1111( Choay UrbanisIM UtIJpits tt rlaitis Paris Seuil 1965 17 Carta de Atenas manifesto do IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (Ciam) Atn 1933 (N da T) I Pamllisteacuterio de Guise espeacutecie de comunidade ou cidade operaacuteria inspirada em Charles Fourier IIl1nmulda em 1846 por J-BGodln para habitaccedilatildeo de operaacuterios de sua induacutestria Menler de Noisiel IDmunldade de operaacuterios da ptoduccedilatildeo de chocolates fundada por A B Menier em 1925 nas imediaccedilotildees bull arl (N da T)

POSFAtildeCIO POSFAacuteCIO

42 43 lareira a um aquecedor domeacutestico outro um medicamento dos

exeacutercitos napoleocircnicos a um complemento alimentar industrial

o tablete de chocolate Natildeo teriam eles articulado da maneira

mais restrita a racionalizaccedilatildeo do consumo com a da ocupaccedilatildeo do

espaccedilo A racionalizaccedilatildeo da cidade patronal como a fragmentaccedilatildeo

do espaccedilo urbano o homog~neo como o heterogecircneo conduziam

a um mesmo crivo de leitura infalsificaacutevel a espacializaccedilatildeo do

capital O arquiteto tornava-se o teacutecnico passivo da operacionashy

lizaccedilatildeo das estrateacutegias e das normas do capital

Mostra-se uacutetil falar indiferentemente das utopias preacute-urshy

banistas das cidades operaacuterias de Haussmann da Bauhaus do

funcionalismo dos Shakers dos grandes conjuntos das cidades

novas por toda parte afirma-se perigosamente uma racionalishy

zaccedilatildeo do espaccedilo inerente agrave extensatildeo universal do capital uma

propensatildeo de sua ordem de troca ou da ordem simplesmente podia-se ler na revista Traverse19bull

Genealogia dos equipamento coletivol Eacute a partir de 1972 que Foucault desenvolve pesquishy

sas em equipe sobre a histoacuteria dos equipamentos coletivos

Primeiramente com o Centro de estudos pesquisas eformaccedilatildeo instishytucional- ou Cerfi - animado pelo psiquiatra Feacutelix Guattari que

conclui entatildeo com Gilles Deleuze a redaccedilatildeo do seu Anti-Eacutediptldeg

19 B Eizykman Urbanismo Travme n 4 1976 citado por A Thalamy in PolltilJues tk lhabitat Corda

1977 p 14 (o nome Shaker designa um movimento de grupos religiosos fundado na Inglaterra no seacuteculo XVIII que - agrave semelhanccedila dos Amish- vivem em suas proacuteprias comunidades _ N da T) 20 G Deleuze F Guattari LAnti-CEdipe Paris Minuit 1972 (Trad bras de L B L Orlandi O Antishy-Eacutedipo Satildeo Paulo 34 2010 - N da T)

( rliacuteldo em 1965 com pesquisadores em ciecircncias sociais dissidenshy

trN do Partido Comunista Francecircs (PCF) o Cerfi apoacutes 1970 I()( em questatildeo sua cultura marxista submetendo-a a uma dupla

Inova 1) a do procedimento genealoacutegico praticado em Histoacuteria Ioucura e O Nascimento da cliacutenica 2) a de uma clarificaccedilatildeo

IIlN relaccedilotildees libidinais que todo pesquisador manteacutem com o

uhjeto de sua pesquisa (a ambivalecircncia da reflexatildeo urbaniacutestica

frente agrave racionalidade capitalista natildeo escapava a ningueacutem) e que

UIe pesquisadores mantecircm entre si como grupo social hierarquishy

uto e sexuado

O relato da realizaccedilatildeo dessa dupla prova publicada na revista

do Cerfi21 eacute provavelmente um dos mais interessantes diaacuterios de

hordo da travessia ideoloacutegica daqueles anos Ali se assiste como

lue em um laboratoacuterio agrave desagregaccedilatildeo da anaacutelise marxista e

~ emergecircncia daquilo que logo seraacute batizado de atitude poacutesshy

-moderna O empreendimento eacute descrito por seus autores como

uma estranha maacutequina feita de peccedilas e pedaccedilos emprestados do

Ilenealogista Foucault surrupiadas do depoacutesito do cientista biceacuteshy

falo Deleuze-Guattari

O genealogista Foucault eacute de fato uma nova imagem social

do filoacutesofo o procedimento genealoacutegico soacute estaraacute francamente

c()nfirmado a partir de seu ensino no Colge de France inaugurado

em dezembro de 1970 Ademais a partir de 1971 juntamente

com Deleuze ele anima um movimento militante o Grupo de

JI (eacuteneacutealogie du capital- I Les eacutequipements du pouvoir Recherches n 13 dezembro1973 Um s6 bullbullbullmplo de uma retomada das hettrotopias por H umre a propoacutesito de La Pensuuml marxiste de la vilte IIrlbullbull Casterman 1972

POSFAacuteCJO POSFAacuteCIO

44 45 informarao sobre as prisoes (GIP) enraizado na extrema esquerda

Foucault disc ute com 0 Cedi que trabalha sobre a cidade22

a abordagem genealogica dos equipamemos coletivos e a poe

em pritica sobretudo no seu seminario do College de France 0

seminario e consagrado aemergencia do medico como perito

no seculo XIX atraves da pericla psiquiatrica em medicina legal

por urn lado e por outro como engenheiro que comribui para

a definicao das normas e formas da arquitetura hospitalar Urn

arquiteto Bruno Fortier responsavel pelo Centro de estudos epesshy

quisas em arquitetura (Cera) participa doravame dos trabalhos

de pesquisa desse seminario

Se a expressao equipamemo coletivo nao figura nos textos

do seculo XVIII a maquina de curar definida pelo medico

Tenon como ideal do hospital moderno neles tern lugar A

arquitetura hospitalar escreve Tenon2 nao pode mais constishy

tuir-se de rotina c tateamemos devendo responder a multiplas

prcocupacentes estancar 0 contagio pela distribuicao das salas e

dns leiros a circuhlltao do ar tavorecer a diss()cia~ao dos doemes

c das d()cn~as a vigilancia dos dotntcs e do pessoal manifestar

a hierarquia do olhar medico ter em coma as necessidades da

populacao 0 que serve para curar nao e a regularidade do trashy

cado mas a justeza da arquitetura 0 modelo deve ser perfeito

- nao se podendo mais em nada muda-Io - acabado repetivel

Pela primeira vez em 1788 escreve Bruno Fortier propoe-se

22 Ruhhl1 n 13 op cir pp 27middot31 (Dits ~I fcrit n 129 n 130) 23 J-R Tenon M moirs sur It~middot api fl llX tie P1ris Paris 1788

aos arquitetos a imitacao como urn dever24 as tipologias norshy

mativas seguem os exemplos oferecidos pela historia A justeza

da arquitetura nasce do tratamemo de uma rede de questoes disshy

timas - c1imaticas demogdficas estatisticas higienicas medicas

disciplinares - que tern cada qual seu lugar de emergencia sua

racionalidade seus promotores que respondcm a uma multiplishy

cidade de taticas - tecnicas de vigilancia de producao de saber

de efetuacao de poderes de medica l iza~lo c de saude publica

Elas podem ser descritas como segmemos analogos Oll repetidos

ao infinito de urn so texto de um escrevcnrc unico Illitico e

unitario 0 capital

Certamente esses novos edificios incorporam dticas de

vigil an cia encomradas fora sob outras formas arquiteturais shy

colegios casernas - taticas e formas que puderam preceder e

sustemar a emergencia da organizacao capitalista do trabalho e

que poderao proliferar para alem dela por exemplo nos vast os

arquipelagos do socialismo siberiano Eque fundamemalmeme

nao estamos Iidando nem com formas arquiteturais nem com

modos de producao mas com tecnologias de poder Foi na busca

destas arquiteturas maquinas tao ajustadas aos seus objetishy

vos que Foucault veio a redescobrir 0 que logo tornou-se parashy

digma de sua obra 0 panoptico de Bcntham2 do qual Poyet26

24 M Fo ucault D Barrer-Kriegel A Thahmy F Btgllin B tllrlicr L-IVIi(Jilln II X4lrir (m4JI l)rigill ~1

de OJOpilil modnrl~) Paris lnsri ru[ de J cnvi ronncm cnt 1976 rccd Hruu lOl) Iirc M~rda8Q J~79

25 J Bcmham Le Panoptiqui p rcccdido de Loeil du pouI-vir cnrrcmiddotvisru Om Michel Fou~ult P~ ri s

Bdfond 1977 (faC-ltimik da cdjao franccsa de 179 1) (Trod bras d bullbullm rvi 0 Ih do poder por A L de S OU-1 in Microfli ra tQ pokr op Ci l pp209-227 - N d 1)

26 B Poyet M h noiu sur a niassili d( Iransera lt u collsrlli r tIf-fj rd-lhrm w ill dull pm)lmiddotr It

traminlioll k eel hopil4l Paris 1785

IOSFACIO pOSFAeiO

46

47 desenhara uma interpretaccedilatildeo para a reconstruccedilatildeo da Santa Casa de Misericoacuterdia Os trabalhos do seminaacuterio do College de Frante sobre a arquitetura hospitalar no final do seacuteculo XVIII recebeshy

ram duas ediccedilotildees uma em Paris em 1976 outra em Bruxelas em 1979 Les Machints agravegutrir27

O segundo estudo coletivo dirigido por Foucault teve por objeto o habitatentre 1800 e 185018 Foi conduzido por Franccedilois

Beacuteguin hoje historiador da paisagem e da arquitetura colonial29bull

Ametodologia ~ a mesma que a precedente no lugar de partir de

uma histoacuteria das formas da habitaccedilAo ou da cidade os pesquisashydores inventariaram as pr~tlcllll discursivas que circunscreveram e

codificaram o habitat como obJero de intervenccedilatildeo administrativa e politica entre 1800 e 1850 - a doenccedila o emprego a domestishycaccedilatildeo de equipamentos como a ~gua a iluminaccedilatildeo a ventilaccedilatildeo

e o desenvolvimento de uma crescente jurisdiccedilatildeo sobre o espaccedilo

puacuteblico em cuja intersecccedillo se connroacutei o habitat Eacute preciso prishy

meiramente desfazer-se da pregnAncla da casa desmineralizaacute-la desconstruiacute-la escreve F B6guln

Poder saber es~

Eacute a partir de vtgiar t punir (1975) e de sua raacutepida circulaccedilatildeo Iacutemernacional- traduzido rapidamente em cerca de vinte liacutenguas - que as anaacutelises foucaultianas do espaccedilo recebem uma visibilishy

dade nova como lugar de uma dupla articulaccedilio do poder sobre

27 M fucault B Barrer-Kriegd A Thalamy F Beacutepdn B fIorllr ln MtIthllltt 4 gubir op cit 28 ]-M A1Haume B Barret-Kriegcl F Seguin D Ranclere A lhalamy PDitifUtt tk lhabitat 18()() 1850 Paris Corda 1977 (estudo realizado sob a direccedilAo de M Poucaull)

29 De F Beacuteguin citemos principalmente ArabIacuteSlUlett dko illChlmhI4 ubitill Afoque du Norri 1830-1850 Paris Dunod 1983 e Paysagtt Paris Flammarlon 19

o corpo do indiviacuteduo e do saber ao poder Seguem-se numerosos estudos sobre a arquitetura da vigilacircncia publicados na Itaacutelia e na Gratilde-Bretanha principalmente3deg De modo mais geral socioacuteshy

logos e planificadores urbanos comeccedilam a referir-se a Foucault

A Leaman escreveu em Environment and Plannintl que a obra de Foucault eacute doravante importante para os urbanistas planifishy

cadores e arquitetos por sua anaacutelise das qualidades normativas

das estruturas e das instituiccedilotildees Sharon Zukin considera que a cidade estaacute doravante incluiacuteda nas anaacutelises de uma economia

do poder segundo o meacutetodo desenvolvido em vtgiar e punir32bull

Esse eacute o contexto em que reaparecem as heterotopias na escola de arquitetura de Veneza em dezembro de 1977 prishymeiro estudo sobre seu uso possiacutevel em uma histoacuteria dos espashyccedilos II dispositivo Foucault 33 que reuacutene ensaios de M Cacciari

F RelIa M Tafuri G Teyssot A capa como a de Machines agrave gueacuterir reproduz um plano de arquitetura panoacuteptico para um

hospital inglecircs Os autores se referem essencialmente a Vtgiar e punir e exceto T eyssot a uma reuniatildeo de textos de Foucault sobre o poder publicado neste mesmo ano pela editora Einaudi

Microfisica deipotert4 a incidecircncia poliacutetica desta uacuteltima coletacircnea

lO Ver especialmente HinmJmd primeiro ano n 3 maio-junho1978 n triliacutengue intitulado Segrtgazione corpo sociak consagrado agraves atquitetuta de vigilanda jl A Leaman in Environmmtand Planning n 111979 pp 1079-1082 H Sh Zukin Adecade cfilie new urban sociology 1heoryand Society 91980 pp 575-601 H M Cacdari F Relia M Tafuri G Teyssor II dispositillO Foucaut Veneza Cluva 1977 4 M Iltlucaullt MimfoIacuteCIJ rktpoYrt inkrUtntipoitici editado por Iltlnrana e Pasquino Turin Einudi 1977 retomado e completado pelo movimento alternativo berlinense Dispositive tkr Macht Betlin Merve 1978 (A reuniaacuteo d textos que compotildecm a ediccedilatildeo italiana a=sdda de oUtros textos reltebeu traduccedilaacuteo brasileira de R Machado e OUrtOS Micrufisica do potkr Rio de Janeiro Graal 1979 Foi publicada tambeacutem uma ediccedilaacuteo espanhola com algumas alteraccedilotildees dos tcxtos sdeclonados trad por J Varela e F A1varez-UrIacutell Madri La Piquem 1978 - N da T)

POSFAacuteCIO

POSFAclO

48 49 foi imediata logo reforccedilada pela traduccedilatildeo de Rhizome de Deleuze

e GuattarP livros que se tornaram referecircncias teoacuterico-poliacutetishy

cas do movimento chamado Autonomie (do poliacutetico subenshytenda-se) que incomodava a esquerda do PCI engajado na

estrateacutegia do compromisso histoacuterico ~ esta incidecircncia poliacutetica

que os italianos batizaram de leffeto Foucault36 que eacute o alvo de 1 dispositivo Poucault

A introduccedilatildeo agrave coletAnea escrita por F Rella eacute perfeitamente expliacutecita desde Jogo travare as anaacutelises foucaultianas da pluralishy

dade das relaccedilotildees de poder em uma metafisica do poder de um poder abstrato imaterial supostamente em toda parte e portanto

politicamente em parte alguma liA uacutenica histoacuteria dos poderes eacute

uma histoacuteria dos espaccedilos atraveacutes dos quais o poder se mostra E

apoiando-se no artigo de Teyssot como uacutenica fonte de conhecishy

mento das heterotopias prossegue O nlo lugar do poder situashy

-se no centro de uma infinidade de localizaccedilotildees heterotoacutepicas

A heterotopia torna-se entatildeo um dado central em Foucault

e a hetero topologia a fenomenologia da dlspersio anaacuterquica do

poder A conclusatildeo desta interpretaccedilatildeo eacute previsiacutevel Natildeo se comshy

bate mais o poder doravante investidp em uma miriacuteade de locashylizaccedilotildees [ou dispositivos] mas a tirania das teorias globalizantesraquo

Teorias que Rella explicita precisando em nota leffeto Marx37 Na verdade Teyssot38 natildeo comenta a confer~ncia de 1967

35 G Deleuu F Guattari Rhizo1M Paris Minuit 1976 Rizoma ParrnalL~uea Pradche 1977 36 Em italiano no original (N da T)

37 Em italiano no original (N da T)

38middotG Teyssot Eterotopia e storiadegli spazi II displJlitirm FOllcault pp 83-86 e HelerolOpies and the historyofspaccs Arcbiacutetlctureandurbaniacutesm 121 1980 pp 79-100

mas o uso taxinocircmico do prefaacutecio de As Palavras eas coisas aplishy

cando-o a um projeto de hospital do seacuteculo XVIII descrito pelo

historiador J-c Perrot39bull Seu plano distribui como uma grade

em oiro construccedilotildees distintas oito classes de pensionaacuterios tatildeo

heterogecircneos quanto as categorias de animais da enciclopeacutedia de

Borges a) os prisioneiros a pedido de suas famiacutelias b) os loucos

os prisioneiros por edito real c) as crianccedilas pobres e legiacutetimas

dedois a nove anos os idosos os mendigos as prostitutas acoshy

metidas de doenccedilas veneacutereas d) as crianccedilas bastardas de mais

de nove anos etc Eacute a incongruecircncia do conteuacutedo que designa

a arquitetura como heterotopia e naacuteo o jogo de oposiccedilatildeo ou de contestaccedilaacuteo qualitativa ou simboacutelica dos outros espaccedilos que este

uacuteltimo institui por sua funccedilaacuteo sua forma suas rupturas

O uso da heteroropia feito por T eyssot de modo algum transshy

creve a inscriccedilaacuteo profunda da espacialidade na ttalidade da

existecircncia humana a heterogeneidade e a descontinuidade dos

tempos vividos os limiares da vida as crises bioloacutegicas (iniciashy

ccedilatildeo puberdade defloraccedilatildeo) Eacuteros e Taacutenatos As espacializaccedilotildees

da subjetividade sob todas as suas formas da casa de toleracircncia agrave

sauna e natildeo somente as grandes funccedilotildees da carta de Atenas receshy

beram em todas as culturas uma inscriccedilatildeo especiacutefica no espaccedilo

em espaccedilos que entretecircm entre si natildeo uma relaccedilatildeo de divisatildeo como interioridadeexterioridade margemcentro puacuteblicol prishy

vado mas um jogo formal de diferenciaccedilatildeo e de reverberaccedilatildeo

em suma no registro da comunicaccedilatildeo Tanto Relia que faz do

W J-C Perrot Genes du vilk mo Cam ali XVII sdele Paris Mouton 1975

POSFAacuteCIO

POSgtAClO

51

50 espaccedilo foucaultiano o receptaacuteculo neutro e contiacutenuo das hetero- topias do poder - concepccedilatildeo globalizante - quanto T eyssot que

faz da heterotopia a articulaccedilatildeo arquitetural das incongruecircncias

do mundo - concepccedilatildeo loealista - carecem ambos da terceira dimensatildeo aquela propriedade do espaccedilo de se remeter a si mesmo

na espessura de um jogo formal e simboacutelico de contestaccedilatildeo e de

reverberaccedilatildeo em uma fragmentaccedilatildeo que natildeo eacute segmentaccedilatildeo este Thirding que E Soja assim teoriza no Instituto de urbanismo de LosAngtlts na UeLA the Thirding as othering40

Essa primeira recepccedilatildeo das heterotopias pela escola de arquitetura de Veneza representada por II dispositivo Foucault mostra a ambiguidade da noccedilatildeo de recepccedilatildeo natildeo se trata de uma compreensatildeo exata nem de uma real instrumentalizaccedilatildeo mas de uma reimplantaccedillo poUss~mica e poMmica em uma rede de

debates poJJticos por um lado e de um questionamento episteshymoloacutegico por outro

Em julho de 1976 Foucault relembra pela primeira vez sua confercncia de 1967 em uma entrevista sobre o panoacuteptico de

Bentham publicada em 1977 mencionada aliaacutes por Teyssot Seria necessaacuterio escrever toda uma histoacuteria dos espaccedilos que fosse

ao mesmo tempo uma histoacuteria dos poderes desde as grandes estrateacutegias da geopoliacutetica ateacute as pequenas taacuteticas do habitat da arquitetura institucional da sala de aula ou da organizaccedilatildeo hosshy

pitalar passando pelas implantaccedilotildees econOacutemico-poliacuteticas Eacute surshypreendente ver quanto o problema dos espaccedilos levou tanto tempo

40 Bd Soja 7huacutelspact Journeys to Los Angks a11( Othtr lUa11( ltilM Ptampts Cambridge (Mass)Blackdl 1996

para aparecer como um problema histoacuterico-poliacutetico Lembro-me que haacute cerca de dez anos falei destes problemas de uma poliacutetica

dos espaccedilos e de me terem respondido que era bastante readoshy

naacuterio insistir tanto sobre o espaccedilo e que o tempo o projeto era a vida e o progresso 41

Uma histoacuteria foucaultiana dos espaccedilos mais precisamente

da espacializaccedilatildeo do poder mais precisamente ainda da inscriccedilatildeo

no espaccedilo colonial- heterot6pico - desse regime de poder partishycular que se desenvolve a partir do seacuteculo XVIII e que Foucault designa de biopoder42 a partir do qual os problemas de espaccedilo tornam-se politicamente diferentes eacute o projeto que no comeccedilo dos anos oitenta empreendem o antropoacutelogo Paul Rabinow43 e a historiadora do habitat americano Gwendolyn Wright44bull Nem

eles nem Franccedilois Beacuteguin conheciam a conferecircncia de 1967

Em uma entrevista que Rabinow e Wright fizeram com

Foucault em 198245 publicada em Skyline46 revista americana de

arquitetura o filoacutesofo lembra suas obsessotildees pelo espaccedilo e como

atraveacutes destas obsessotildees cheguei ao que eacute fundamental para mim as relaccedilotildees que satildeo possiacuteveis entre o poder e o saber

41 MFoucault J Bentham Lotil pouvoir in L Panoptiacuteque Opcil (Veja-se em traduccedilaacuteo brasileira de A L de SOU7 O olho do poder in Microfiacutesica b podtr op cit- N da T) 42 M Foucaull La Volon tk savoir Paris Gallimard 1976 cap V Droil de mort et pouvoir SUl I vie (Trad bras de M T da C Albuquerque e J A Guilhon Albuquerque A Vontade tk saber Rio de Janeiro Graal 1977 - N d T) 43 P Rabinow Biopower in lhe Frrnch Coloits conferecircncia interdisciplinar sobr Foucault Knowledge Power HislOry Los Angeles 29-31 de oUlubrol1981 Frrneh Modn Norms and Forms of th SfJCial Enviacuteronmmt Cambridge (M) MIT Press 1989 44 G Wright 7he Poliacutetics ofDltsigns in the Frrnch Colonial Urbanism Chicago University Preso 1991 45F B~n Arabisanm op cil 46 M Foucaull Space knowledge power entrerien avec P Rabinow Skyline marccedilo11982 pp 16-20 retomada em Dits tt Eacutecrits t N n 340 pp 270-285

POSFAacuteCIO

POSFAacuteCIO

53

52

A arquitetUra e o urbanismo naacuteo constituem diz ele um campo isoshylaacutevel Misturam-se com muacuteltiplas praacuteticas e discursos mas o espaccedilo

eacute o lugar privilegiado de compreensatildeo de como o poder opera

Inversamente ele bane da praacutetica do arquiteto toda esperanccedila

utoacutepica Os homens sonharam com maacutequinas libertadoras Mas por definiccedilatildeo natildeo existem maacutequinas de liberdade Jamais

a estrutura das coisas tem competecircncia para garantir a liberdade Nada eacute funcionalmente libertador A liberdade eacute o que se deve exercer a garantia da liberdade eacute a liberdade

Mestre doravante de um discurso poliacutetico e epistemoloacutegico sobre o espaccedilo Foucault deixa entatildeo ressurgir seu antigo conceito de heterotopia Diga-se entre parecircnteses lembro-me de ter sido

convidado por um grupo de arquitetos em 1966 para realizar um estudo do espaccediloi tratava-se do que na eacutepoca chamei de heterotopias espaccedilos singulares que encontramos em alguns

espaccedilos sociais cujas funccedilOes satildeo diferentes das dos outros ou tershy

minantemente opostas Os arquitetos trabalhavam neste projeto e no final do estudo algueacutem tomou a palavra _ um psicoacutelogo

sanreano - para me bombardear que o espaccedilo era reacionaacuterio e capitalista enquanto a histoacuteria e o devir eram revolucionaacuterios

Agravequela eacutepoca este discurso absurdo de modo algum era inabitual Hoje em dia qualquer um se dobraria de rir ouvindo aquilo

Natildeo haacute como natildeo se impressionar com esta longa anamnese em dois tempos primeiro em 1976 relativamente agrave objeccedilatildeo poliacuteshy

tica feita em 1967 e em 1982 enfim relativamente ao proacuteprio conceito de heterotopia em 1984 Foucault podia acolher favoshy

ravelmente a reutilizaccedilatildeo de sua conferecircncia pelo IBA de Berlim

Os dois organizadores da exposiccedilatildeo o alematildeo Johannes Gachnang e o italiano Marco de Michelis conheciam esse texto

em sua publicaccedilatildeo de 1968 em Architteturri7bull Ele sintonizava

estranhamente com a estrateacutegia do IBA tal como foi exposta por

um de seus dois responsaacuteveis J-P Kleihues48 executar a ideia

de uma cidade por fragmentos falar de arquitetur~ urbana sem traccedilar primeiramente um plano global de urbanismo respeitar

a variedade histoacuterica e topograacutefica berlinense pensar a composhysiccedilatildeo da cidade por ilhotas e ateacute confiar a diversos arquitetos a

reconstruccedilatildeo das residecircncias em uma mesma ilhota E por ocashy

siatildeo de uma reunificaccedilatildeo eventual justificar a conservaccedilatildeo da arquitetura staliniana

Sua traduccedilatildeo americana ocorreu em 1986 publicada prishy

meiramente na revista interdisciplinar de ComeU Diacriticis depois na revista de arquitetura LOtu9 Inaugurava-se uma carshy

reira nova para a interpretaccedilatildeo qualitativa dos espaccedilos outros

Natildeo se compreenderia esta carreira sem a simultaneidade da trashy

duccedilatildeo dos volumes II e III de Histoacuteria da sexualidaJe5deg a partir

dos quais Foucault torna-se uma referecircncia para aquilo que os americanos denominam poliacuteticas da identidade Movimentos

feministas movimento gay grupos eacutetnicos constituem a nova

47 Infurmaccedilaacuteo obtida com e1cs e concedida por Franccediloise Jolr 48 J-r Kleihues Agrave propos de I viUe europeacuteenne entreVista com M Bourdeau AMeS outubroI984

pp 95-99 49 M Foucault Ofother spaces Diacritieacuteiacutes 16 n I 1986 pp 22-27 e Lotushmnational 1986 50 M Foucaulr lUage tUacutes pIAis Paris Gallimaa 1984 uacute Souci Je soi Paris Gtlimn 1984 trad

1ht Use ofPlrasU Harmondsworth Penguin 1985 1ht Ca Dfthe sg Harmondsworth Penguin 1986 (Trad bras de M T da C Albuquerque O USQ dos p e O CuiJmJo Je si Rio de Janeiro Graal 1984 e 1985 - N da T)

POSFAacuteCIO

POSFAacuteCIO

54 rede de inscriccedilatildeo e a nova avaliaccedilatildeo das heterotopias A histoacuteshy

ria dos modos de subjetivaccedilatildeo realizada por Foucault atravessa

textos como lhe spaces that diferences make do urbanista Ed

Soja51 Gendered Spaces da feminista Daphne Spain52 lhe New Cultural Politics ofDijforence de Cornel West53 ou Geographical lmaginations do geoacutegrafo Derek Gregory54

Lugar de emergecircncia da heterotopia a anaacutelise literaacuteria dela

se apropria com Brian McHale Michel de Certeau5S a anaacutelise

fiacutelmica com Giuliana Bruno56bull Foucault torna-se passagem obrishy

gatoacuteria para toda anaacutelise do espaccedilo constata Soja

O mesmo se passa com as artes plaacutesticas Apresentando as

obras do artista plaacutestico cubano Felix Gonzalez-Torres Nancy

Spector descreve uma experiecircncia de ambiente heterotoacutepico

realizada em Manhattan57bull Em vinte e quatro paineacuteis de anuacutencio

publicitaacuterio das instalaccedilotildees urbanas de Manhattan Gonzalezshy

-Torres afixou o contraespaccedilo constituiacutedo por imensa foto em preto

e branco da intimidade de uma cama exposta Desnudamento

absoluto de um puro roccedilar de lenccediloacuteis leve traccedilado de duas cabeshy

ccedilas no vaacuteo entre os dois travesseiros onde cada qual pode proshy

jetar ou a interrupccedilatildeo do sono ou o amor consumado ou mais

51 Ed Soja The spa= that dlfenna makc ln M Kelm e S PIlbullbull PI4u iI1III lhe Politics olidmtiacutety NQVlI Iorque Roudedge 1993 pp 183middot205 52 D Spain Glt1JIUacutertaacute Spam Chapei Ht11 Unlverlty ofCarolIna Pras 1992 53 CWest 1M Ntw Cultural Politict oIDifimut ot h 1M Dilm_ ofrJu BIa lnttlkcttuuacute Ferguson 1994 54 D Gregory Gtographicalmaginatiacuteons citado ln Ed Soj hitrlspace Carobridge Bladltwell 1994 55 B McHale Post Moaacuteernist Fietion Nova Iorque Routledge 1988~ M de Certeau HettrologitS Discouffl 01tlu Otbtr Manchester Manchester University Presa 1986 56 G Bruno Bodlly ArchirecturesAltrtmblag 19 dezembro1992 57 N Spector Ptilt GonzakzmiddotTorres The Solamon R Guggenheim Museum Nova Iorque 1995

radicalmente a advertecircncia do artista uma decisatildeo de 1986 da

Corte suprema autoriza doravante a justiccedila em todo Estado em

que a sodomia eacute ainda um crime a persegui-la mesmo quando consentida entre adultos em suma a intimidade do espaccedilo prishy

vado da cama acaba de entrar no espaccedilo puacuteblico Esta articulashy

ccedilatildeo entre o puacuteblico e o privado poderia criar segundo Spector uma histoacuteria mais silenciosa a marca vazia do companheiro do

artista morto de aids

Maravilhosa intuiccedilatildeo no comeccedilo da confer~ncia radiofocircnica

de Foucault em 1966 daquela passagem inexistente na conferecircnshy

cia para os arquitetos em 1967 em que o fil6sofo evocava como

primeira figura da heterotopia a cama dos pais que as crianccedilas

gostam de invadir com um prazer de transgressatildeo e de sonho das origens Naacuteo poderiacuteamos concluir que aqui a longa seacuterie de

rein~riccedilotildees do texto em muacuteltiplas redes e estrateacutegias que a longa

seacuterie de transformaccedilotildees da figura social de seu autor encontram

neste instante de sua trajetoacuteria a mais completa forma de recepshyccedilatilde0 58 Foucault natildeo declarara tantas vezes que almejava menos

leitores que utilizadores59

58 Ed Soja Heterotopies remembrance Df other spaccs in me citadd LAraquo Strattgies a jIJurna 01 tbeory culturt anaacute poines 3 1990 pp 1middot39 Post metropolis Critiacutecal Stuties 01 Ctti naacute Rtglgtnt Londle$ Blackwdl 2000 59 Em 200I uma associaccedilatildeo cultural italiana denominada EttrotpirJ publicou uma releitura de textos de Foucaulr sobre o espaccedilo sob o titulo Spnialtri

POSFAacuteCIO POSFAacuteCIO

10 11

r Mas na verdade meu corpo natildeo se deixa reduzir tatildeo facilshy

mente Afinal ele tem suas fontes proacuteprias de fantaacutestico possui

tambeacutem ele lugares sem lugar e lugares mais profundos mais

obstinados ainda que a alma que o tuacutemulo que o encantamento

dos maacutegicos Possui tambeacutem ele suas caves e seus celeiros tem

abrigos obscuros e plagas luminosas Minha cabeccedila por exemshy

plo ah minha cabeccedila estranha caverna aberta para o mundo

exterior por duas janelas duas aberturas sei disso pois as vejo

no espelho ademais posso fechar uma ou outra separadamente

E no entanto essas aberturas natildeo satildeo senatildeo uma soacute pois natildeo

vejo diante de mim senatildeo uma soacute paisagem contiacutenua sem divishy

saacuteo nem corte E dentro desta cabeccedila como se passam as coisas

Elas entram laacute - e estou muito seguro de que as coisas entram

na minha cabeccedila quando eu olho pois o sol se for demasiado

forte e me ofuscar dilacera ateacute o fundo do meu ceacuterebro - e no

entanto essas coisas que entram dentro da minha cabeccedila permashy

necem no exterior pois vejo-as diante de mim e eu por minha

vez devo me adiantar para alcanccedilaacute-las

Corpo incompreensiacutevel corpo penetraacutevel e opaco corpo

aberto e fechado corpo utoacutepico Corpo absolutamente visiacutevel

em um sentido sei muito bem o que eacute ser olhado por algueacutem da

cabeccedila aos peacutes sei o que eacute ser espiado por traacutes vigiado por cima

do ombro surpreso quando percebo isso sei o que eacute estar nu no

entanto este mesmo corpo que eacute tatildeo visiacutevel eacute afastado captado

por uma espeacutecie de invisibilidade da qual jamais posso desvenshy

cUh-lo Este meu crilnio atraacutes do meu cracircnio que posso tocar

com meUl dedal mas nunca ver este dorso que sinto apoiado

OCO~POU~

na pressatildeo do colchatildeo sobre o divaacute quando me deito mas que

somente surpreenderei pelo ardil de um espelho e o que eacute este

ombro cujos movimentos e posiccedilotildees conheccedilo com precisatildeo

mas que jamais poderei ver sem me contorcer terrivelmente

O corpo fantasma que soacute aparece na miragem dos espelhos e

ainda assim de maneira fragmentaacuteria Preciso verdadeiramente

dos gecircnios e das fadas da morte e da alma para ser ao mesmo

tempo indissociavelmente visiacutevel e invisiacutevel Ademais este corpo

eacute leve eacute transparente eacute imponderaacutevel nada eacute menos coisa que

ele ele corre age vive deseja deixa-se atravessar sem resistecircncia

por todas as minhas intenccedilotildees Eacute verdade Mas somente ateacute o

dia em que adoeccedilo em que se rompe a caverna de meu ventre

em que meu peito e minha garganta se bloqueiam se entopem

se fecham Ateacute o dia em que a dor de dentes estrala no fundo da

minha boca Entatildeo aiacute entatildeo deixo de ser leve imponderaacutevel etc

torno-me coisa arquitetura fantaacutestica e arruinada

Natildeo verdadeiramente natildeo haacute necessidade da maacutegica nem

do feeacuterico natildeo haacute necessidade de uma alma nem de uma morte

para que eu seja ao mesmo tempo opaco e transparente visiacutevel

e invisiacutevel vida e coisa para que eu seja utopia basta que eu

seja um corpo Todas aquelas utopias pelas quais eu esquivava

meu corpo encontravam muito simplesmente seu modelo e seu

ponto primeiro de aplicaccedilatildeo encontravam seu lugar de origem

no meu proacuteprio corpo Enganara-me haacute pouco ao dizer que as

utopias eram voltadas contra o corpo e destinadas a apagaacute-lo

elas nascem do proacuteprio corpo e em seguida talvez retornem

contra ele

o CORPO UTOacutePICO

12 13 Em todo caso uma coisa eacute certa o corpo humano eacute o ator

principal de todas as utopias Afinal uma das mais velhas utopias

que os homens contaram para si mesmos natildeo eacute o sonho de corpos

imensos desmesurados que devorariam o espaccedilo e dominariam

o mundo Eacute a velha utopia dos gigantes que encontramos no

coraccedilatildeo de tantas lendas na Europa na Aacutefrica na Oceania na

Aacutesia essa velha lenda que haacute taacuteo longo tempo nutre a imaginaccedilatildeo

ocidental de Prometeu a Gulliver

O corpo eacute tambeacutem um grande ator utoacutepico quando se trata de

maacutescaras da maquiagem e da tatuagem Mascarar-se maquiar-se

tatuar-se natildeo eacute exatamente como se poderia imaginar adquirir

outro corpo simplesmente um pouco mais belo melhor decorado

mais facilmente reconheciacutevel tatuar-se maquiar-se mascarar-se

eacute sem duacutevida algo muito diferente eacute fazer com que o corpo entre

em comunicaccedilatildeo com poderes secretos e forccedilas invisiacuteveis Maacutescara

signo tatuado pintura depositam no corpo toda uma linguagem

toda uma linguagem enigmaacutetica toda uma linguagem cifrada

secreta sagrada que evoca para este mesmo corpo a violecircncia do

deus a potecircncia surda do sagrado ou a vivacidade do desejo A

maacutescara a tatuagem a pintura instalam o corpo em outro espaccedilo

fazem-no entrar em um lugar que natildeo tem lugar diretamente no

mundo fazem deste corpo um fragmento de espaccedilo imaginaacuterio

que se comunicaraacute com o universo das divindades ou com o unishy

verso do outro Por ele seremos tomados pelos deuses ou seremos

tomados pela pessoa que acabamos de seduzir De todo modo a

maacutescara a tatuagem a pintura satildeo operaccedilotildees pelas quais o corpo eacute arrancado de seu espaccedilo proacuteprio e projetado em um espaccedilo outro

o CORPO UTOacutePICO

Ouccedilamos por exemplo este conto japonecircs e a maneira com

que um tatuador faz passar para um universo que natildeo eacute o nosso

o corpo da jovem que ele deseja O sol dardejava seus raios sobre

o rio e incendiav~ o quarto de sete esteiras Seus raios refletidos

na superfiacutecie da aacutegua formavam um desenho de ondas douradas

sobre o papel dos biombos e sobre o rosto da jovem profundashy

mente adormecida Seikichi apoacutes puxar a divisoacuteria tomou nas

matildeos seus instrumentos de tatuagem Durante alguns instantes

permaneceu mergulhado em uma espeacutecie de ecircxtase Era entatildeo que

ele saboreava plenamente a estranha beleza da jovem Parecia-lhe

poder ficar sentando diante desse rosto imoacutevel durante dezenas

e centenas de anos sem jamais sentir cansaccedilo nem fastio Como

outrora o povo de Mecircnfis embelezava a magniacutefica terra do Egito

com piracircmides e esfinges assim Seikichi com todo amor queshy

ria embelezar com seu desenho a pele viccedilosa da jovem Aplicoushy

-lhe entatildeo a ponta de seus pinceacuteis coloridos que segurava entre o

polegar o anular e o pequeno dedo da matildeo esquerda e agrave medida

em que as linhas eram desenhadas picava-as com a agulha que

segurava na matildeo direita

E se considerarmos que a vestimenta sagrada ou profana relishy

giosa ou civil faz com que o indiviacuteduo entre no espaccedilo fechado

do religioso ou na rede invisiacutevel da sociedade veremos entatildeo que

tudo o que concerne ao corpo - desenho cor coroa tiara vestishy

menta uniforme tudo isso faz desabrochar de forma sensiacutevel

e matizada as utopias seladas no corpo

Mas talvez fosse preciso descer mais por baixo da vestimenta

talvez fosse preciso atingir a proacutepria carne e veriacuteamos entatildeo que

o CORPO UTOcircPICO

14 15 em certos casos no limite eacute o proacuteprio corpo que retorna seu

poder utoacutepico contra si e faz entrar todo o espaccedilo do religioso

e do sagrado todo o espaccedilo do outro mundo todo o espaccedilo do

contramundo no interior mesmo do espaccedilo que lhe eacute reservado

Entatildeo o corpo na sua materialidade na sua carne seria como o

produto de seus proacuteprios fantasmas Afinal o corpo do danccedilarino

natildeo eacute justamente um corpo dilatado segundo um espaccedilo que lhe

eacute ao mesmo tempo interior e exterior E os drogados tambeacutem e

os possuiacutedos os possuiacutedos cujo corpo torna-se inferno os estigshy

matizados cujo corpo torna-se sofrimento resgate e salvaccedilatildeo

ensanguentado paraiacuteso

Verdadeiramente enganara-me haacute pouco ao crer que o

corpo jamais estivesse em outro lugar que era um aqui irremeshy

diaacutevel e que se opunha a toda utopia

Meu corpo estaacute de fato sempre em outro lugar ligado a todos

os outros lugares do mundo e na verdade estaacute em outro lugar

que natildeo o mundo Pois eacute em torno dele que as coisas estatildeo disshy

postas eacute em relaccedilatildeo a ele - e em relaccedilatildeo a ele como em relaccedilatildeo a

um soberano - que haacute um acima um abaixo uma direita uma

esquerda um diante um atraacutes um proacuteximo um longiacutenquo O

corpo eacute o ponto zero do mundo laacute onde os caminhos e os espaccedilos

se cruzam o corpo estaacute em parte alguma ele estaacute no coraccedilatildeo do

mundo este pequeno fulcro utoacutepico a partir do qual eu sonho

falo avanccedilo imagino percebo as coisas em seu lugar e tambeacutem

as nego pelo poder indefinido das utopias que imagino Meu

corpo eacute como a Cidade do Sol naacuteo tem lugar mas eacute dele que

saem e se irradiam todos os lugares possiacuteveis reais ou utoacutepicos

CORPO UTOacutePICO

As crianccedilas afinal levam muito tempo para saber que tecircm

um corpo Durante meses durante mais de um ano elas tecircm

apenas um corpo disperso membros cavidades orifiacutecios e tudo

isso soacute se organiza tudo isso literalmente toma corpo somente

na imagem do espelho De modo mais estranho ainda os gregos

de Homero natildeo tinham uma palavra para designar a unidade do

corpo Por paradoxal que seja diante de Troacuteia abaixo dos muros

defendidos por Heitor e seus companheiros natildeo havia corpos

mas braccedilos erguidos peitos intreacutepidos pernas aacutegeis capacetes

cintilantes em cima de cabeccedilas natildeo havia corpo A palavra grega

para dizer corpo soacute aparece em Homero para designar cadaacutever

Eacute o cadaacutever portanto o cadaacutever e o espelho que nos ensinam

(enfim que ensinaram aos gregos e agora ensinam agraves crianccedilas)

que temos um corpo que este corpo tem uma forma que esta

forma tem um contorno que no contorno haacute uma espessura um

peso em suma que o corpo ocupa um lugar Espelho e cadaacutever

eacute que asseguram um espaccedilo para a experiecircncia profundamente e

originariamente utoacutepica do corpo espelho e cadaacutever eacute que silenshy

ciam e serenizam encerrando em uma clausura - que para noacutes

hoje eacute selada esta grande coacutelera utoacutepica que corroacutei e volatiliza

nosso corpo a todo instante Graccedilas a eles graccedilas ao espelho e

ao cadaacutever eacute que nosso corpo natildeo eacute pura e simples utopia Ora

se considerarmos que a imagem do espelho estaacute alojada para

noacutes em um espaccedilo inacessiacutevel e que jamais poderemos estar laacute

onde estaraacute nosso cadaacutever se considerarmos que o espelho e o

cadaacutever estatildeo eles proacuteprios em um inatingiacutevel outro lugar desshy

cobrimos entatildeo que unicamente as utopias podem fazer refluir

o CORPO UTOacutePICO

16 nelas mesmas e esconder por um instante a utopia profunda e

soberana de nosso corpo

Seria talvez necessaacuterio dizer tambeacutem que fazer amor eacute senshy

tir o corpo refluir sobre si eacute existir enfim fora de toda utopia

com toda densidade entre as matildeos do outro Sob os dedos do

outro que nos percorrem todas as partes invisiacuteveis de nosso

corpo potildeem-se a existir contra os laacutebios do outro os nossos se

tornam sensiacuteveis diante de seus olhos semicerrados nosso rosto

adquire uma certeza existe um olhar enfim para ver nossas paacutelshy

pebras fechadas O amor tambeacutem ele como o espelho e como

a morte sereniza a utopia de nosso corpo silencia-a acalma-a

fecha-a como se numa caixa tranca-a e a sela Eacute por isso que ele eacute

parente tatildeo proacuteximo da ilusatildeo do espelho e da ameaccedila da morte

e se apesar dessas duas figuras perigosas que o cercam amamos

tanto fazer amor eacute porque no amor o corpo estaacute aqui

33 HETEROTOPIA TRIBULACcedilOtildeES DE UM CONCEITO ENTRE VENEZA BERLIM E LOS ANGELESl

No dia 14 de marccedilo de 1967) o Ciacuterculo de estudos arquiacuteteturais de Paris convidara Foucault a pronunciar uma conferecircncia sobre

() espaccedilo para a qual ele propocircs uma analiacutetica nova que batizou

de heterotopologia O texto desta conferecircncia teve circulaccedilatildeo

restrita reservada aos membros daquele ciacuterculo em forma datishy

lografada com exceccedilatildeo de extratos publicados em francecircs em

1968 na revista italiana LArchittetura2 ateacute sua publicaccedilatildeo em

Berlim no outono de 1984 no quadro da exposiccedilatildeo ldeacutee proshymsus reacutesultats no Martin-Gropius-Bau3bull

Essa exposiccedilatildeo foi a principal dentre as dezessete manifestashy

ccedilotildees com as quais a Internationale Bauausstellung (IBN) apreshy

sentou ao mundo o balanccedilo de suas atividades de reconstruccedilatildeo

e renovaccedilatildeo de Berlim Imaginava-se a reunificaccedilatildeo da cidadeshy

-capital que parecia estranhamente ilustrar os espaccedilos outros do

texto de Foucault de 1967 Autorizando sua publicaccedilatildeo pouco

antes da sua morte ocorrida em 25 de junho de 1984 o fi16sofo

a introduzira in extremis no corpus de seus escritos autorizados

I Oucra versatildeo deste texto fui publicada em 1997 no caraacutelogo de Dccummta X em Kassd 2 M Foucault Des espaces aurres EArthinura mJtlltck stvria vol XIII n 150 1968 pp 822-823 M Foucault Des espaces aurres AMes ~ darrhitt(lUrt ourubrofll984 pp 46-49 Eacute esla versatildeo t 1984 signincatiacuteVllmente diferente da que reproduzimos no presente volume que estaacute incluiacuteda cm IJIIiS et Eacutecrits Paris Gallimard t Iv texto n 360 (Martin-Gropius-Bau museu localizado em Berlim Inaugurado em 1881 - N da T) 4 IBA Exposiccedilatildeo internacional de consrruccedilatildeo sigla retomada mais adiante (N da T)

POSFAacuteCIO

34 Desde enrao () lCx ro f()i thlilldantllllllltl trad uzido e comenshy

tado C omo podl prrt na IICLt1 i1I(xplo rlllu d II ranrc vitae anos

Olllo nail c lO l llpn( nd clI Icrgll l1 tl t Edward Soja entushy

sia ~t1 IrolliOl OI l tl illlllli 1I 11I d 1 rmfflpIIf1fJI a Illlporrancia

1l0V(1 d(1 tp t1I t d1 (PH Itlld ldt I I dlvl III )dcrllmos intershy

pretl r 1 di qlIlCl1 ( IIII(~ I _I~ 111 dIIW 1)(1 7 II)IH e a hist6ria

dcs~c -i ltlIli ll 111111 1 h i~I( 1 ti l h 11I 1 11 IlIlp~o1(t A~ nocoes

dt nIt IIO ti t 11111 IllI l ln fU(IAII11I1 Utl l IIVO dc analise

suficic ll lc rnlc J ( fino plI dl 1t1lh lr IIl1n I lit I t trw sfOrmashy

coes tanto d le) diM lI 1m (I ~k~ PII 11101111 c politicos

dos arquitctos t lIIhalli tl 11(11 1 II I Ulll ~ IIJII UItlS quan to da

problematica do cspao 11 11 I ~llll( de 1 -(~~ IIc1I

Linguagem e espa~o

Voce se lembra daqude l(k~I III I1 1111 Ihl III I ir l1nro em

que urn arquiteto via uma nova Ltl JlU~lIj I 11III1~mo Mas

isto nao estava em urn livro Cst I VI 1 111111 I ~ I I 1111111 nll1fcrencia

radiofonica sobre a utopia Pedt lll li lt pw II l( nll~1 1111 dia J3 ou 14 de marco

Esta carta escrita em Sidi BOil ~ai 1 1I1I di1 2 dt lIlano de

1967 e 0 testemunho mais antigo do ( I ll II II I IIJ d f~ FI)lllluJrcom

os arquitetos Em 7 de dezembro dt I )h h li e tll ~ld lll de uma

serie radiofonica chamada de Cuhlll1 rI( I tlllsagrada a 5 amp1 Soja Rembrance of ocher spaces in [he ciradd LA 114(rO Jrftj

Politics 3 1990 p 1 39 Art igo dcscnvolvulo em Ed Soja Ij Rral Imagined Plam Cambridg~ (Mss) Blockwell 1996

6 P Bou rJi cu Quesr-cc q Ut fai l e parler urn ) U[lur A prop d Mit Ii t l I --I ~ ~~h III f~r n

plitmtlltions n especial tlSureiUcr er punic vingt aIl~ pres II Iltl T ~lI ltI L ~middotIIn II t IH

lgto~AClO

35 u topia ele fora convidado a falar sobre Utopia e Literatural

Pactindo de uma evocacao bachelardiana daqueles espacos que

encantam os jogos infantis como os celeiros 0 fundo do jardim

a tenda de Indios ou a cama dos pais verdadeiras utopias localishy

zadas sonhou com uma ciencia que teria por objeto estes espashy

cos diferentes que sao a contestacao dos espaltos onde vivemos

nao uma ciencia das utopias mas das heterotopias cie ncia dos

espacos absolutamente ourros Esta ciencia 011 hecerotopologia

que esta em vias de nascer que ji cxistc c cujos prindpios ele

enunciara naquele dia

As emissoes radiofonicas de Foucault - nas quais de se reveshy

lava urn maravilhoso contista - respondiam aenorme curiosishy

dade suscitada desde a primavera de 1966 pela publicacao de

As Palavras e as coisas 8bull 0 livro se abria com a descricao de uma

improvavd enciclopedia chinesa inventada por Borges segundo

a qual os animais se distribufam em quatorze classes do seguinte

tipo a) pertencenres ao imperador b) embalsamados c) domesshy

ticados k) desenhados com urn pincel muito fino de pelo de

cameoj I) et cetera m) que acabam de quebrar a biJha Esta

desordem que faz cintilar os fragmentos de urn grande numero

de ordens possiveis fora batizada por Foucault de heterotopia

o termo se opunha a utopia etimologicamente nao lugar e nao

eu-topia como se tende a crer Mas se as utopias narram urn lugar

7 M Foucault Uwpi( bem opi quivo sonora de 7 e 2 1 de dczombro de 19(6 CCOIrc Midd Foucaul t DibLioth~uc dc IIM EC-Cacn (eeditad em diso pdo INA em 2004 (rNA In iw Ntiorul de IAudinvisucl - Nd T)

8 M Foucault Ln Mots a Choses Paris Gallimard 1966 (TC3d u~() b silt ira de S T Muchail As PaiArdH as coilas Sao Paulo Martins Fontes 1981 - N da n

POSFAClO

36 37 que natildeo existe desabrocham contudo em um espaccedilo imaginaacuteshy

rio e por isso situam-se na linha reta do discurso pois desde

o fundo dos tempos a linguagem se entrecruza com o espaccedilo A lista de Borges ao contraacuterio estanca as palavras nelas proacuteprias pois a heterotopia arruiacutena natildeo somente a sintaxe das frases como

tambeacutem aquela menos manifesta que autoriza manter juntas as palavras e as coisas9

A impossibilidade em que se encontra nosso pensamento para pensar esse heteroacuteclito radical da classificaccedilatildeo de Borges tesshytemunha um limite do pensamento o mesmo limite que ainda

experimentamos diante das classificaccedilotildees proacuteprias agraves culturas que nos satildeo radicalmente estranhas Quando Victor TurnerlO descreve como os Ndembu da Zacircmbia reuacutenem em uma mesma

classe os caccediladores as viuacutevas os doentes e os guerreiros isto

natildeo implica um espaccedilo de pertenci menta concebido como tershyritoacuterio comum nem um espaccedilo de pertencimento concebido

como ramificaccedilotildees definidas por propriedades formais como

aquele no qual n6s distribuiacutemos os reinos da natureza nem a linearidade arbitraacuteria de uma ordem alfabeacutetica com a qual nosshy

sos dicionaacuterios ordenam o heteroclito no espaccedilo Ele descreve um sistema de analogias de similitudes entre propriedades simshyboacutelicas cujas interconexotildees precisamos traccedilar em uma paacutegina em branco a fim de compreender esse sistema ou o espaccedilo de similitudes Natildeo se pode pensar sem o suporte de um espaccedilo de ordem sem esta zona mediana que Foucault qualifica

9 M FOUaacutelulr Les MolJ ks Choses op dto prefaacutecio p 9 (Ar Plarmu l1li cow pp 5-8 _ N d T) 10 Victor Turner (1920-1983) antropoacutelogo britilnico (N da T)

de arqueoloacutegica por sob nossas percepccedilotildees nossos discursos nossos saberes onde se articulam o visiacutevel e o enunciaacutevel a linshy

guagem o olhar e o espaccedilo

Na emissatildeo radiofocircnica de 7 de dezembro de 1966 Foucault fez um uso totalmente diferente de sua noccedilaacuteo de heterotopia Primeiro ela eacute pertinente natildeo mais a uma anaacutelise dos discursos

mas dos espaccedilos Lugares tatildeo heteroacuteclitos como o espelho o cemiteacuterio a casa de toleracircncia ou a colocircnia polineacutesia de feacuterias em

Djerba entram em uma categoria especiacutefica de espaccedilos-tempos quer este tempo seja provisoacuterio como o tempo uacutenico da defloshy

raccedilatildeo no espaccedilo da viagem de nuacutepcias quer este tempo seja ao contraacuterio cumulativo de temporalidades - atemporal- no lugar da biblioteca ou do museu

Essas unidades espaccedilo-temporais esses espaccedilos-tempos tecircm em comum serem lugares onde estou e natildeo estou como o espeshy

lho ou o cemiteacuterio ou onde sou outro como na casa de toleracircnshy

cia na colocircnia de feacuterias ou na festa carnavalizaccedilotildees da existecircncia

ordinaacuteria Eles ritualizam cortes limiares desvios e os localizam As normas humanas natildeo satildeo todas universalizaacuteveis as da

disciplinarizaccedilatildeo do trabalho e as da transfiguraccedilatildeo pela festa

naacuteo podem desenrolar-se na linearidade de um mesmo espaccedilo ou de um mesmo tempo eacute preciso uma forte ritualizaccedilaacuteo das rupturas dos limiares das crises Estes contraespaccedilos poreacutem saacuteo

Interpenetrados por todos os outros espaccedilos que eles contestam o espelho onde natildeo estou reflete o contexto onde estou o cemishyteacuterio eacute planejado como a cidade haacute reverberaccedilatildeo dos espaccedilos uns nos outros e contudo descontinuidades e rupturas Haacute

POSlACIO

POSFACIO

38 39 enfim como que um eterno retorno desses rituais espaccedilo-temshy

porais e se natildeo universalizaccedilatildeo das mesmas formas ao menos

uma universalidade de sua existecircncia Eles satildeo apreendidos em

uma sincronia e uma diacronia especiacuteficas que fazem deles um

sistema significante entre os sistemas da arquitetura Natildeo refleshy

tem a estrutura social nem a da produccedilatildeo natildeo satildeo um sistema

soacutecio-histoacuterico nem uma ideologia mas rupturas da vida ordishy

naacuteria imaginaacuterios representaccedilotildees polifocircnicas da vida da morte

do amor de Eacuteros e Taacutenatos

A carta de Foucault de 2 de marccedilo de 1967 deixa vazar um

Utopias e heterotopias O Ciacuterculo de estudos arquiteturais era animado entre 1960 e

1970 por Jean Dubuisson seu presidente arquiteto do Museu

(te Artes e Tradiccedilotildees Populares do Bosque de Boulogne e Ionel

Schein que indicava os conferencistas a serem convidados ao

Boulevard Raspail nuacutemero 38 Era um dos raros ciacuterculos de

reflexatildeo de arquitetos sem corporativismo no qual nos anos

cinquenta e sessenta Ionel Schein gozava da lisonjeira reputaccedilatildeo

de agitador de ideias e de radicalismo em arquitetura I I Foi ele

segundo Jean Dubuisson quem convidou Foucault As confeshy

recircncias eram anotadas em estenografia e depois datilografadas e

do arquiteto Natildeo natildeo fora o livro (As Palavras e as coisas) que

desapontamento a arqueologia do olhar natildeo retivera o olhar entregues aos membros do Ciacuterculo Pierre Riboulet - arquiteto

trouxera em germe uma nova concepccedilatildeo do urbanismo livro do entre outros do hospital Robert-Debreacute - conservou sua coacutepia

qual o filoacutesofo esperava a provocaccedilatildeo de rupturas no pensamento Ele se lembra das precauccedilotildees oratoacuterias do filoacutesofo para introduzir

No entanto estas rupturas foram suficientemente ruidosas pelo seu propoacutesito a insistecircncia sobre sua ignoracircncia quanto agraves preshy

menos ateacute o ruiacutedo de 1968 para que Foucault viesse a deixar ocupaccedilotildees dos arquitetos As referecircncias -satildeo tomadas da histoacuteria

tanto o tumulto da gloacuteria quanto o das polecircmicas pela serenidade das ciecircncias (Koyreacute Bachelard) da criacutetica literaacuteria a-p Richard

da luminosa vila de Sidi Bou Sald no alto do golfo de Cartago e Ianchot) da psicanaacutelise existencial (Binswanger) assuntos

a paz - sempre difiacutecil - da escritura Heterotopia vivida O que todos eles sobre os quais Foucault jaacute havia desenvolvido suas

chegara aos ouvidos do arquiteto era uma linguagem menor obsessotildees do espaccedilo12

um daqueles jogos literaacuterios nos quais Foucault tinha um prazer Para marcar seu entusiasmo agrave saiacuteda dessa conferecircncia Robert

guloso juacutebilo incessantemente decepado pela ascese da escrishy Auzelle um dos pensadores da reconstruccedilatildeo da Franccedila a partir

tura contenccedilatildeo que se lecirc na didaacutetica da conferecircncia reescrita d()s anos cinquenta lhe entregou sua histoacuteria da arquitetura

esta para os arquitetos certamente mas os jogos literaacuterios ficam II ltuklt tas infOrmaccedilotildees sobre o Circulo de tstutIos arqumlumis me foram fOrnecidas por P Riboulet

aqui finalmente retranscritos com todo respeito agrave integralidade Illxprcssatildeo utilizada por Fouault in Quesdons agrave Michel Fouault sur la geacuteographie HiroIIote n I 1lt)76 pp 71-85 retomada em Diu et Eacutecriu t m n 169 Paris Gallimard 1994 p 33 (Trad bras de

sonora da qual nasceram K Machado e A L de Souza Sobre a geografia in Microflsica do potUacuter Rio de Janeiro Graal 1979 1IIU-165-N daT)

POSFAacuteCIOPOSFAco

40 41 funeraacuteria e dos cemiteacuterios13 uma das heterotopias de Foucault

Em O Nascimento da cllnica14 Foucault descrevera como a anatoshy

mopatologia havia integrado a morte no conhecimento da vida

oferecer-lhe a hist6ria da integraccedilatildeo dos cemiteacuterios na planificashy

ccedilatildeo urbana provava a perfeita cumplicidade entre seus ouvintes

e o conferencista a negatividade estava no cerne da racionalishy

dade Ela estava no cerne das anaacutelises de Foucault pelo menos ateacute Vigiar epunit5

Foi no final deste mesmo ano de 1967 que Jean-Luc Godard

em A Chinesa fez sua heroiacutena a estudante pr6-chinesa interpreshy

tada por Alme Wiazemsky jogar tomates em um exemplar de As Palavras eas coisas entio um livro siacutembolo por suas descontinuishy

dades abruptas do pensamento no tempo da negaccedilatildeo da hist6ria e portanto da negaccedillo da revoluccedilatildeo

A confercncia de 1967 poderia ter outra circulaccedilatildeo aleacutem da

c6pia datHografada entre os membros do Circulo O pr6prio

Circulo natildeo possuiacutea uma revista e nlo editava nenhuma de suas

conferecircncias Por outro lado as concepccedilotildees que entatildeo partilhashy

vam os arquitetos deviam muito a Le Corbusier e agrave Bauhaus agrave

racionalizaccedilatildeo das formas e agrave legibilidade do espaccedilo urbano

concebido como um texto pontuado com referecircncias espaccedilos

ou edifiacutecios Franccediloise Choay que Foucault frequentara nos anos

13 R AuzeUe Derniim Dmlnlm Paris ed do autor 13 PIace du Panrlleacuteon 1965 14 M Foucault Naissanct de la ClitlUacuteJue Paris PUF 1963(Trad bru de R Machado ONtUCimentIJ da clnCIt ruo d Janeiro Forense-Universitaacuteria 1977 - N da T) 15 M Foucaul Survdlkr tIPunir Paris Gallimard 1975 A obra apresenta o panoacuteptico de Benthrun como um acontecimento na histoacuteria do esplrito humanomiddot epropotildee uma anill1sc do poder em termos d produccedilatildeo e natildeo de repressatildeo (Trad bras de R Ramalhete VIgiar11mr Pett6poliacutes Vous 1987 _ N da T)

ttenta reconstitui essas problemaacuteticas em Urbanisme utopies et rtaiteacutesl6

Um urbanismo progressista humanista que se sustentava

111amp carta de Atenas l7 e em uma racionalidade crescente ou um

urbanismo culturalista para o qual cada forma eacute siacutembolo e que

(Ilha com nostalgia para a harmonia das cidades passadas estas

tmm as ideias reguladoras da razatildeo urbaniacutestica Estas ideias

rCguladoras jaacute natildeo talhavam em pontilhado o espaccedilo da utopia

em que viria a desdobrar-se ap6s 1968 o discurso arquitetural e

urbano em uma dissoluccedilatildeo do objeto cidade no seio das relaccedilotildees

udais capitalistas A cidade como totalidade formal ou racional

I1Ao foi deslocada pelo capitalismo O espaccedilo natildeo eacute uma imensa

paacutegina em branco onde se escreve desde cerca de dois seacuteculos a

Illetanarraccedilaacuteo do capital Naacuteo estaacute aiacute o impensado geral o natildeo

dito de todas essas divisoacuterias construiacutedas entre as classes os sexos

C as geraccedilotildees

O fasciacutenio das escolas de arquitetura pela visita a cidades

patronais estas utopias realizadas como o familisteacuterio de Guise

unstruiacuteda por Godin ou a cidade Menier de Noisiell8 testeshy

munha que o discurso arquitetural e urbaniacutestico francecircs dos anos

etenta se desdobrava no espaccedilo da utopia Os promotores dessas

cidades natildeo estariam entre os primeiros a inventar o consumo

em massa Um reduzia as dimensotildees da milenar e dispendiosa

1111( Choay UrbanisIM UtIJpits tt rlaitis Paris Seuil 1965 17 Carta de Atenas manifesto do IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (Ciam) Atn 1933 (N da T) I Pamllisteacuterio de Guise espeacutecie de comunidade ou cidade operaacuteria inspirada em Charles Fourier IIl1nmulda em 1846 por J-BGodln para habitaccedilatildeo de operaacuterios de sua induacutestria Menler de Noisiel IDmunldade de operaacuterios da ptoduccedilatildeo de chocolates fundada por A B Menier em 1925 nas imediaccedilotildees bull arl (N da T)

POSFAtildeCIO POSFAacuteCIO

42 43 lareira a um aquecedor domeacutestico outro um medicamento dos

exeacutercitos napoleocircnicos a um complemento alimentar industrial

o tablete de chocolate Natildeo teriam eles articulado da maneira

mais restrita a racionalizaccedilatildeo do consumo com a da ocupaccedilatildeo do

espaccedilo A racionalizaccedilatildeo da cidade patronal como a fragmentaccedilatildeo

do espaccedilo urbano o homog~neo como o heterogecircneo conduziam

a um mesmo crivo de leitura infalsificaacutevel a espacializaccedilatildeo do

capital O arquiteto tornava-se o teacutecnico passivo da operacionashy

lizaccedilatildeo das estrateacutegias e das normas do capital

Mostra-se uacutetil falar indiferentemente das utopias preacute-urshy

banistas das cidades operaacuterias de Haussmann da Bauhaus do

funcionalismo dos Shakers dos grandes conjuntos das cidades

novas por toda parte afirma-se perigosamente uma racionalishy

zaccedilatildeo do espaccedilo inerente agrave extensatildeo universal do capital uma

propensatildeo de sua ordem de troca ou da ordem simplesmente podia-se ler na revista Traverse19bull

Genealogia dos equipamento coletivol Eacute a partir de 1972 que Foucault desenvolve pesquishy

sas em equipe sobre a histoacuteria dos equipamentos coletivos

Primeiramente com o Centro de estudos pesquisas eformaccedilatildeo instishytucional- ou Cerfi - animado pelo psiquiatra Feacutelix Guattari que

conclui entatildeo com Gilles Deleuze a redaccedilatildeo do seu Anti-Eacutediptldeg

19 B Eizykman Urbanismo Travme n 4 1976 citado por A Thalamy in PolltilJues tk lhabitat Corda

1977 p 14 (o nome Shaker designa um movimento de grupos religiosos fundado na Inglaterra no seacuteculo XVIII que - agrave semelhanccedila dos Amish- vivem em suas proacuteprias comunidades _ N da T) 20 G Deleuze F Guattari LAnti-CEdipe Paris Minuit 1972 (Trad bras de L B L Orlandi O Antishy-Eacutedipo Satildeo Paulo 34 2010 - N da T)

( rliacuteldo em 1965 com pesquisadores em ciecircncias sociais dissidenshy

trN do Partido Comunista Francecircs (PCF) o Cerfi apoacutes 1970 I()( em questatildeo sua cultura marxista submetendo-a a uma dupla

Inova 1) a do procedimento genealoacutegico praticado em Histoacuteria Ioucura e O Nascimento da cliacutenica 2) a de uma clarificaccedilatildeo

IIlN relaccedilotildees libidinais que todo pesquisador manteacutem com o

uhjeto de sua pesquisa (a ambivalecircncia da reflexatildeo urbaniacutestica

frente agrave racionalidade capitalista natildeo escapava a ningueacutem) e que

UIe pesquisadores mantecircm entre si como grupo social hierarquishy

uto e sexuado

O relato da realizaccedilatildeo dessa dupla prova publicada na revista

do Cerfi21 eacute provavelmente um dos mais interessantes diaacuterios de

hordo da travessia ideoloacutegica daqueles anos Ali se assiste como

lue em um laboratoacuterio agrave desagregaccedilatildeo da anaacutelise marxista e

~ emergecircncia daquilo que logo seraacute batizado de atitude poacutesshy

-moderna O empreendimento eacute descrito por seus autores como

uma estranha maacutequina feita de peccedilas e pedaccedilos emprestados do

Ilenealogista Foucault surrupiadas do depoacutesito do cientista biceacuteshy

falo Deleuze-Guattari

O genealogista Foucault eacute de fato uma nova imagem social

do filoacutesofo o procedimento genealoacutegico soacute estaraacute francamente

c()nfirmado a partir de seu ensino no Colge de France inaugurado

em dezembro de 1970 Ademais a partir de 1971 juntamente

com Deleuze ele anima um movimento militante o Grupo de

JI (eacuteneacutealogie du capital- I Les eacutequipements du pouvoir Recherches n 13 dezembro1973 Um s6 bullbullbullmplo de uma retomada das hettrotopias por H umre a propoacutesito de La Pensuuml marxiste de la vilte IIrlbullbull Casterman 1972

POSFAacuteCJO POSFAacuteCIO

44 45 informarao sobre as prisoes (GIP) enraizado na extrema esquerda

Foucault disc ute com 0 Cedi que trabalha sobre a cidade22

a abordagem genealogica dos equipamemos coletivos e a poe

em pritica sobretudo no seu seminario do College de France 0

seminario e consagrado aemergencia do medico como perito

no seculo XIX atraves da pericla psiquiatrica em medicina legal

por urn lado e por outro como engenheiro que comribui para

a definicao das normas e formas da arquitetura hospitalar Urn

arquiteto Bruno Fortier responsavel pelo Centro de estudos epesshy

quisas em arquitetura (Cera) participa doravame dos trabalhos

de pesquisa desse seminario

Se a expressao equipamemo coletivo nao figura nos textos

do seculo XVIII a maquina de curar definida pelo medico

Tenon como ideal do hospital moderno neles tern lugar A

arquitetura hospitalar escreve Tenon2 nao pode mais constishy

tuir-se de rotina c tateamemos devendo responder a multiplas

prcocupacentes estancar 0 contagio pela distribuicao das salas e

dns leiros a circuhlltao do ar tavorecer a diss()cia~ao dos doemes

c das d()cn~as a vigilancia dos dotntcs e do pessoal manifestar

a hierarquia do olhar medico ter em coma as necessidades da

populacao 0 que serve para curar nao e a regularidade do trashy

cado mas a justeza da arquitetura 0 modelo deve ser perfeito

- nao se podendo mais em nada muda-Io - acabado repetivel

Pela primeira vez em 1788 escreve Bruno Fortier propoe-se

22 Ruhhl1 n 13 op cir pp 27middot31 (Dits ~I fcrit n 129 n 130) 23 J-R Tenon M moirs sur It~middot api fl llX tie P1ris Paris 1788

aos arquitetos a imitacao como urn dever24 as tipologias norshy

mativas seguem os exemplos oferecidos pela historia A justeza

da arquitetura nasce do tratamemo de uma rede de questoes disshy

timas - c1imaticas demogdficas estatisticas higienicas medicas

disciplinares - que tern cada qual seu lugar de emergencia sua

racionalidade seus promotores que respondcm a uma multiplishy

cidade de taticas - tecnicas de vigilancia de producao de saber

de efetuacao de poderes de medica l iza~lo c de saude publica

Elas podem ser descritas como segmemos analogos Oll repetidos

ao infinito de urn so texto de um escrevcnrc unico Illitico e

unitario 0 capital

Certamente esses novos edificios incorporam dticas de

vigil an cia encomradas fora sob outras formas arquiteturais shy

colegios casernas - taticas e formas que puderam preceder e

sustemar a emergencia da organizacao capitalista do trabalho e

que poderao proliferar para alem dela por exemplo nos vast os

arquipelagos do socialismo siberiano Eque fundamemalmeme

nao estamos Iidando nem com formas arquiteturais nem com

modos de producao mas com tecnologias de poder Foi na busca

destas arquiteturas maquinas tao ajustadas aos seus objetishy

vos que Foucault veio a redescobrir 0 que logo tornou-se parashy

digma de sua obra 0 panoptico de Bcntham2 do qual Poyet26

24 M Fo ucault D Barrer-Kriegel A Thahmy F Btgllin B tllrlicr L-IVIi(Jilln II X4lrir (m4JI l)rigill ~1

de OJOpilil modnrl~) Paris lnsri ru[ de J cnvi ronncm cnt 1976 rccd Hruu lOl) Iirc M~rda8Q J~79

25 J Bcmham Le Panoptiqui p rcccdido de Loeil du pouI-vir cnrrcmiddotvisru Om Michel Fou~ult P~ ri s

Bdfond 1977 (faC-ltimik da cdjao franccsa de 179 1) (Trod bras d bullbullm rvi 0 Ih do poder por A L de S OU-1 in Microfli ra tQ pokr op Ci l pp209-227 - N d 1)

26 B Poyet M h noiu sur a niassili d( Iransera lt u collsrlli r tIf-fj rd-lhrm w ill dull pm)lmiddotr It

traminlioll k eel hopil4l Paris 1785

IOSFACIO pOSFAeiO

46

47 desenhara uma interpretaccedilatildeo para a reconstruccedilatildeo da Santa Casa de Misericoacuterdia Os trabalhos do seminaacuterio do College de Frante sobre a arquitetura hospitalar no final do seacuteculo XVIII recebeshy

ram duas ediccedilotildees uma em Paris em 1976 outra em Bruxelas em 1979 Les Machints agravegutrir27

O segundo estudo coletivo dirigido por Foucault teve por objeto o habitatentre 1800 e 185018 Foi conduzido por Franccedilois

Beacuteguin hoje historiador da paisagem e da arquitetura colonial29bull

Ametodologia ~ a mesma que a precedente no lugar de partir de

uma histoacuteria das formas da habitaccedilAo ou da cidade os pesquisashydores inventariaram as pr~tlcllll discursivas que circunscreveram e

codificaram o habitat como obJero de intervenccedilatildeo administrativa e politica entre 1800 e 1850 - a doenccedila o emprego a domestishycaccedilatildeo de equipamentos como a ~gua a iluminaccedilatildeo a ventilaccedilatildeo

e o desenvolvimento de uma crescente jurisdiccedilatildeo sobre o espaccedilo

puacuteblico em cuja intersecccedillo se connroacutei o habitat Eacute preciso prishy

meiramente desfazer-se da pregnAncla da casa desmineralizaacute-la desconstruiacute-la escreve F B6guln

Poder saber es~

Eacute a partir de vtgiar t punir (1975) e de sua raacutepida circulaccedilatildeo Iacutemernacional- traduzido rapidamente em cerca de vinte liacutenguas - que as anaacutelises foucaultianas do espaccedilo recebem uma visibilishy

dade nova como lugar de uma dupla articulaccedilio do poder sobre

27 M fucault B Barrer-Kriegd A Thalamy F Beacutepdn B fIorllr ln MtIthllltt 4 gubir op cit 28 ]-M A1Haume B Barret-Kriegcl F Seguin D Ranclere A lhalamy PDitifUtt tk lhabitat 18()() 1850 Paris Corda 1977 (estudo realizado sob a direccedilAo de M Poucaull)

29 De F Beacuteguin citemos principalmente ArabIacuteSlUlett dko illChlmhI4 ubitill Afoque du Norri 1830-1850 Paris Dunod 1983 e Paysagtt Paris Flammarlon 19

o corpo do indiviacuteduo e do saber ao poder Seguem-se numerosos estudos sobre a arquitetura da vigilacircncia publicados na Itaacutelia e na Gratilde-Bretanha principalmente3deg De modo mais geral socioacuteshy

logos e planificadores urbanos comeccedilam a referir-se a Foucault

A Leaman escreveu em Environment and Plannintl que a obra de Foucault eacute doravante importante para os urbanistas planifishy

cadores e arquitetos por sua anaacutelise das qualidades normativas

das estruturas e das instituiccedilotildees Sharon Zukin considera que a cidade estaacute doravante incluiacuteda nas anaacutelises de uma economia

do poder segundo o meacutetodo desenvolvido em vtgiar e punir32bull

Esse eacute o contexto em que reaparecem as heterotopias na escola de arquitetura de Veneza em dezembro de 1977 prishymeiro estudo sobre seu uso possiacutevel em uma histoacuteria dos espashyccedilos II dispositivo Foucault 33 que reuacutene ensaios de M Cacciari

F RelIa M Tafuri G Teyssot A capa como a de Machines agrave gueacuterir reproduz um plano de arquitetura panoacuteptico para um

hospital inglecircs Os autores se referem essencialmente a Vtgiar e punir e exceto T eyssot a uma reuniatildeo de textos de Foucault sobre o poder publicado neste mesmo ano pela editora Einaudi

Microfisica deipotert4 a incidecircncia poliacutetica desta uacuteltima coletacircnea

lO Ver especialmente HinmJmd primeiro ano n 3 maio-junho1978 n triliacutengue intitulado Segrtgazione corpo sociak consagrado agraves atquitetuta de vigilanda jl A Leaman in Environmmtand Planning n 111979 pp 1079-1082 H Sh Zukin Adecade cfilie new urban sociology 1heoryand Society 91980 pp 575-601 H M Cacdari F Relia M Tafuri G Teyssor II dispositillO Foucaut Veneza Cluva 1977 4 M Iltlucaullt MimfoIacuteCIJ rktpoYrt inkrUtntipoitici editado por Iltlnrana e Pasquino Turin Einudi 1977 retomado e completado pelo movimento alternativo berlinense Dispositive tkr Macht Betlin Merve 1978 (A reuniaacuteo d textos que compotildecm a ediccedilatildeo italiana a=sdda de oUtros textos reltebeu traduccedilaacuteo brasileira de R Machado e OUrtOS Micrufisica do potkr Rio de Janeiro Graal 1979 Foi publicada tambeacutem uma ediccedilaacuteo espanhola com algumas alteraccedilotildees dos tcxtos sdeclonados trad por J Varela e F A1varez-UrIacutell Madri La Piquem 1978 - N da T)

POSFAacuteCIO

POSFAclO

48 49 foi imediata logo reforccedilada pela traduccedilatildeo de Rhizome de Deleuze

e GuattarP livros que se tornaram referecircncias teoacuterico-poliacutetishy

cas do movimento chamado Autonomie (do poliacutetico subenshytenda-se) que incomodava a esquerda do PCI engajado na

estrateacutegia do compromisso histoacuterico ~ esta incidecircncia poliacutetica

que os italianos batizaram de leffeto Foucault36 que eacute o alvo de 1 dispositivo Poucault

A introduccedilatildeo agrave coletAnea escrita por F Rella eacute perfeitamente expliacutecita desde Jogo travare as anaacutelises foucaultianas da pluralishy

dade das relaccedilotildees de poder em uma metafisica do poder de um poder abstrato imaterial supostamente em toda parte e portanto

politicamente em parte alguma liA uacutenica histoacuteria dos poderes eacute

uma histoacuteria dos espaccedilos atraveacutes dos quais o poder se mostra E

apoiando-se no artigo de Teyssot como uacutenica fonte de conhecishy

mento das heterotopias prossegue O nlo lugar do poder situashy

-se no centro de uma infinidade de localizaccedilotildees heterotoacutepicas

A heterotopia torna-se entatildeo um dado central em Foucault

e a hetero topologia a fenomenologia da dlspersio anaacuterquica do

poder A conclusatildeo desta interpretaccedilatildeo eacute previsiacutevel Natildeo se comshy

bate mais o poder doravante investidp em uma miriacuteade de locashylizaccedilotildees [ou dispositivos] mas a tirania das teorias globalizantesraquo

Teorias que Rella explicita precisando em nota leffeto Marx37 Na verdade Teyssot38 natildeo comenta a confer~ncia de 1967

35 G Deleuu F Guattari Rhizo1M Paris Minuit 1976 Rizoma ParrnalL~uea Pradche 1977 36 Em italiano no original (N da T)

37 Em italiano no original (N da T)

38middotG Teyssot Eterotopia e storiadegli spazi II displJlitirm FOllcault pp 83-86 e HelerolOpies and the historyofspaccs Arcbiacutetlctureandurbaniacutesm 121 1980 pp 79-100

mas o uso taxinocircmico do prefaacutecio de As Palavras eas coisas aplishy

cando-o a um projeto de hospital do seacuteculo XVIII descrito pelo

historiador J-c Perrot39bull Seu plano distribui como uma grade

em oiro construccedilotildees distintas oito classes de pensionaacuterios tatildeo

heterogecircneos quanto as categorias de animais da enciclopeacutedia de

Borges a) os prisioneiros a pedido de suas famiacutelias b) os loucos

os prisioneiros por edito real c) as crianccedilas pobres e legiacutetimas

dedois a nove anos os idosos os mendigos as prostitutas acoshy

metidas de doenccedilas veneacutereas d) as crianccedilas bastardas de mais

de nove anos etc Eacute a incongruecircncia do conteuacutedo que designa

a arquitetura como heterotopia e naacuteo o jogo de oposiccedilatildeo ou de contestaccedilaacuteo qualitativa ou simboacutelica dos outros espaccedilos que este

uacuteltimo institui por sua funccedilaacuteo sua forma suas rupturas

O uso da heteroropia feito por T eyssot de modo algum transshy

creve a inscriccedilaacuteo profunda da espacialidade na ttalidade da

existecircncia humana a heterogeneidade e a descontinuidade dos

tempos vividos os limiares da vida as crises bioloacutegicas (iniciashy

ccedilatildeo puberdade defloraccedilatildeo) Eacuteros e Taacutenatos As espacializaccedilotildees

da subjetividade sob todas as suas formas da casa de toleracircncia agrave

sauna e natildeo somente as grandes funccedilotildees da carta de Atenas receshy

beram em todas as culturas uma inscriccedilatildeo especiacutefica no espaccedilo

em espaccedilos que entretecircm entre si natildeo uma relaccedilatildeo de divisatildeo como interioridadeexterioridade margemcentro puacuteblicol prishy

vado mas um jogo formal de diferenciaccedilatildeo e de reverberaccedilatildeo

em suma no registro da comunicaccedilatildeo Tanto Relia que faz do

W J-C Perrot Genes du vilk mo Cam ali XVII sdele Paris Mouton 1975

POSFAacuteCIO

POSgtAClO

51

50 espaccedilo foucaultiano o receptaacuteculo neutro e contiacutenuo das hetero- topias do poder - concepccedilatildeo globalizante - quanto T eyssot que

faz da heterotopia a articulaccedilatildeo arquitetural das incongruecircncias

do mundo - concepccedilatildeo loealista - carecem ambos da terceira dimensatildeo aquela propriedade do espaccedilo de se remeter a si mesmo

na espessura de um jogo formal e simboacutelico de contestaccedilatildeo e de

reverberaccedilatildeo em uma fragmentaccedilatildeo que natildeo eacute segmentaccedilatildeo este Thirding que E Soja assim teoriza no Instituto de urbanismo de LosAngtlts na UeLA the Thirding as othering40

Essa primeira recepccedilatildeo das heterotopias pela escola de arquitetura de Veneza representada por II dispositivo Foucault mostra a ambiguidade da noccedilatildeo de recepccedilatildeo natildeo se trata de uma compreensatildeo exata nem de uma real instrumentalizaccedilatildeo mas de uma reimplantaccedillo poUss~mica e poMmica em uma rede de

debates poJJticos por um lado e de um questionamento episteshymoloacutegico por outro

Em julho de 1976 Foucault relembra pela primeira vez sua confercncia de 1967 em uma entrevista sobre o panoacuteptico de

Bentham publicada em 1977 mencionada aliaacutes por Teyssot Seria necessaacuterio escrever toda uma histoacuteria dos espaccedilos que fosse

ao mesmo tempo uma histoacuteria dos poderes desde as grandes estrateacutegias da geopoliacutetica ateacute as pequenas taacuteticas do habitat da arquitetura institucional da sala de aula ou da organizaccedilatildeo hosshy

pitalar passando pelas implantaccedilotildees econOacutemico-poliacuteticas Eacute surshypreendente ver quanto o problema dos espaccedilos levou tanto tempo

40 Bd Soja 7huacutelspact Journeys to Los Angks a11( Othtr lUa11( ltilM Ptampts Cambridge (Mass)Blackdl 1996

para aparecer como um problema histoacuterico-poliacutetico Lembro-me que haacute cerca de dez anos falei destes problemas de uma poliacutetica

dos espaccedilos e de me terem respondido que era bastante readoshy

naacuterio insistir tanto sobre o espaccedilo e que o tempo o projeto era a vida e o progresso 41

Uma histoacuteria foucaultiana dos espaccedilos mais precisamente

da espacializaccedilatildeo do poder mais precisamente ainda da inscriccedilatildeo

no espaccedilo colonial- heterot6pico - desse regime de poder partishycular que se desenvolve a partir do seacuteculo XVIII e que Foucault designa de biopoder42 a partir do qual os problemas de espaccedilo tornam-se politicamente diferentes eacute o projeto que no comeccedilo dos anos oitenta empreendem o antropoacutelogo Paul Rabinow43 e a historiadora do habitat americano Gwendolyn Wright44bull Nem

eles nem Franccedilois Beacuteguin conheciam a conferecircncia de 1967

Em uma entrevista que Rabinow e Wright fizeram com

Foucault em 198245 publicada em Skyline46 revista americana de

arquitetura o filoacutesofo lembra suas obsessotildees pelo espaccedilo e como

atraveacutes destas obsessotildees cheguei ao que eacute fundamental para mim as relaccedilotildees que satildeo possiacuteveis entre o poder e o saber

41 MFoucault J Bentham Lotil pouvoir in L Panoptiacuteque Opcil (Veja-se em traduccedilaacuteo brasileira de A L de SOU7 O olho do poder in Microfiacutesica b podtr op cit- N da T) 42 M Foucaull La Volon tk savoir Paris Gallimard 1976 cap V Droil de mort et pouvoir SUl I vie (Trad bras de M T da C Albuquerque e J A Guilhon Albuquerque A Vontade tk saber Rio de Janeiro Graal 1977 - N d T) 43 P Rabinow Biopower in lhe Frrnch Coloits conferecircncia interdisciplinar sobr Foucault Knowledge Power HislOry Los Angeles 29-31 de oUlubrol1981 Frrneh Modn Norms and Forms of th SfJCial Enviacuteronmmt Cambridge (M) MIT Press 1989 44 G Wright 7he Poliacutetics ofDltsigns in the Frrnch Colonial Urbanism Chicago University Preso 1991 45F B~n Arabisanm op cil 46 M Foucaull Space knowledge power entrerien avec P Rabinow Skyline marccedilo11982 pp 16-20 retomada em Dits tt Eacutecrits t N n 340 pp 270-285

POSFAacuteCIO

POSFAacuteCIO

53

52

A arquitetUra e o urbanismo naacuteo constituem diz ele um campo isoshylaacutevel Misturam-se com muacuteltiplas praacuteticas e discursos mas o espaccedilo

eacute o lugar privilegiado de compreensatildeo de como o poder opera

Inversamente ele bane da praacutetica do arquiteto toda esperanccedila

utoacutepica Os homens sonharam com maacutequinas libertadoras Mas por definiccedilatildeo natildeo existem maacutequinas de liberdade Jamais

a estrutura das coisas tem competecircncia para garantir a liberdade Nada eacute funcionalmente libertador A liberdade eacute o que se deve exercer a garantia da liberdade eacute a liberdade

Mestre doravante de um discurso poliacutetico e epistemoloacutegico sobre o espaccedilo Foucault deixa entatildeo ressurgir seu antigo conceito de heterotopia Diga-se entre parecircnteses lembro-me de ter sido

convidado por um grupo de arquitetos em 1966 para realizar um estudo do espaccediloi tratava-se do que na eacutepoca chamei de heterotopias espaccedilos singulares que encontramos em alguns

espaccedilos sociais cujas funccedilOes satildeo diferentes das dos outros ou tershy

minantemente opostas Os arquitetos trabalhavam neste projeto e no final do estudo algueacutem tomou a palavra _ um psicoacutelogo

sanreano - para me bombardear que o espaccedilo era reacionaacuterio e capitalista enquanto a histoacuteria e o devir eram revolucionaacuterios

Agravequela eacutepoca este discurso absurdo de modo algum era inabitual Hoje em dia qualquer um se dobraria de rir ouvindo aquilo

Natildeo haacute como natildeo se impressionar com esta longa anamnese em dois tempos primeiro em 1976 relativamente agrave objeccedilatildeo poliacuteshy

tica feita em 1967 e em 1982 enfim relativamente ao proacuteprio conceito de heterotopia em 1984 Foucault podia acolher favoshy

ravelmente a reutilizaccedilatildeo de sua conferecircncia pelo IBA de Berlim

Os dois organizadores da exposiccedilatildeo o alematildeo Johannes Gachnang e o italiano Marco de Michelis conheciam esse texto

em sua publicaccedilatildeo de 1968 em Architteturri7bull Ele sintonizava

estranhamente com a estrateacutegia do IBA tal como foi exposta por

um de seus dois responsaacuteveis J-P Kleihues48 executar a ideia

de uma cidade por fragmentos falar de arquitetur~ urbana sem traccedilar primeiramente um plano global de urbanismo respeitar

a variedade histoacuterica e topograacutefica berlinense pensar a composhysiccedilatildeo da cidade por ilhotas e ateacute confiar a diversos arquitetos a

reconstruccedilatildeo das residecircncias em uma mesma ilhota E por ocashy

siatildeo de uma reunificaccedilatildeo eventual justificar a conservaccedilatildeo da arquitetura staliniana

Sua traduccedilatildeo americana ocorreu em 1986 publicada prishy

meiramente na revista interdisciplinar de ComeU Diacriticis depois na revista de arquitetura LOtu9 Inaugurava-se uma carshy

reira nova para a interpretaccedilatildeo qualitativa dos espaccedilos outros

Natildeo se compreenderia esta carreira sem a simultaneidade da trashy

duccedilatildeo dos volumes II e III de Histoacuteria da sexualidaJe5deg a partir

dos quais Foucault torna-se uma referecircncia para aquilo que os americanos denominam poliacuteticas da identidade Movimentos

feministas movimento gay grupos eacutetnicos constituem a nova

47 Infurmaccedilaacuteo obtida com e1cs e concedida por Franccediloise Jolr 48 J-r Kleihues Agrave propos de I viUe europeacuteenne entreVista com M Bourdeau AMeS outubroI984

pp 95-99 49 M Foucault Ofother spaces Diacritieacuteiacutes 16 n I 1986 pp 22-27 e Lotushmnational 1986 50 M Foucaulr lUage tUacutes pIAis Paris Gallimaa 1984 uacute Souci Je soi Paris Gtlimn 1984 trad

1ht Use ofPlrasU Harmondsworth Penguin 1985 1ht Ca Dfthe sg Harmondsworth Penguin 1986 (Trad bras de M T da C Albuquerque O USQ dos p e O CuiJmJo Je si Rio de Janeiro Graal 1984 e 1985 - N da T)

POSFAacuteCIO

POSFAacuteCIO

54 rede de inscriccedilatildeo e a nova avaliaccedilatildeo das heterotopias A histoacuteshy

ria dos modos de subjetivaccedilatildeo realizada por Foucault atravessa

textos como lhe spaces that diferences make do urbanista Ed

Soja51 Gendered Spaces da feminista Daphne Spain52 lhe New Cultural Politics ofDijforence de Cornel West53 ou Geographical lmaginations do geoacutegrafo Derek Gregory54

Lugar de emergecircncia da heterotopia a anaacutelise literaacuteria dela

se apropria com Brian McHale Michel de Certeau5S a anaacutelise

fiacutelmica com Giuliana Bruno56bull Foucault torna-se passagem obrishy

gatoacuteria para toda anaacutelise do espaccedilo constata Soja

O mesmo se passa com as artes plaacutesticas Apresentando as

obras do artista plaacutestico cubano Felix Gonzalez-Torres Nancy

Spector descreve uma experiecircncia de ambiente heterotoacutepico

realizada em Manhattan57bull Em vinte e quatro paineacuteis de anuacutencio

publicitaacuterio das instalaccedilotildees urbanas de Manhattan Gonzalezshy

-Torres afixou o contraespaccedilo constituiacutedo por imensa foto em preto

e branco da intimidade de uma cama exposta Desnudamento

absoluto de um puro roccedilar de lenccediloacuteis leve traccedilado de duas cabeshy

ccedilas no vaacuteo entre os dois travesseiros onde cada qual pode proshy

jetar ou a interrupccedilatildeo do sono ou o amor consumado ou mais

51 Ed Soja The spa= that dlfenna makc ln M Kelm e S PIlbullbull PI4u iI1III lhe Politics olidmtiacutety NQVlI Iorque Roudedge 1993 pp 183middot205 52 D Spain Glt1JIUacutertaacute Spam Chapei Ht11 Unlverlty ofCarolIna Pras 1992 53 CWest 1M Ntw Cultural Politict oIDifimut ot h 1M Dilm_ ofrJu BIa lnttlkcttuuacute Ferguson 1994 54 D Gregory Gtographicalmaginatiacuteons citado ln Ed Soj hitrlspace Carobridge Bladltwell 1994 55 B McHale Post Moaacuteernist Fietion Nova Iorque Routledge 1988~ M de Certeau HettrologitS Discouffl 01tlu Otbtr Manchester Manchester University Presa 1986 56 G Bruno Bodlly ArchirecturesAltrtmblag 19 dezembro1992 57 N Spector Ptilt GonzakzmiddotTorres The Solamon R Guggenheim Museum Nova Iorque 1995

radicalmente a advertecircncia do artista uma decisatildeo de 1986 da

Corte suprema autoriza doravante a justiccedila em todo Estado em

que a sodomia eacute ainda um crime a persegui-la mesmo quando consentida entre adultos em suma a intimidade do espaccedilo prishy

vado da cama acaba de entrar no espaccedilo puacuteblico Esta articulashy

ccedilatildeo entre o puacuteblico e o privado poderia criar segundo Spector uma histoacuteria mais silenciosa a marca vazia do companheiro do

artista morto de aids

Maravilhosa intuiccedilatildeo no comeccedilo da confer~ncia radiofocircnica

de Foucault em 1966 daquela passagem inexistente na conferecircnshy

cia para os arquitetos em 1967 em que o fil6sofo evocava como

primeira figura da heterotopia a cama dos pais que as crianccedilas

gostam de invadir com um prazer de transgressatildeo e de sonho das origens Naacuteo poderiacuteamos concluir que aqui a longa seacuterie de

rein~riccedilotildees do texto em muacuteltiplas redes e estrateacutegias que a longa

seacuterie de transformaccedilotildees da figura social de seu autor encontram

neste instante de sua trajetoacuteria a mais completa forma de recepshyccedilatilde0 58 Foucault natildeo declarara tantas vezes que almejava menos

leitores que utilizadores59

58 Ed Soja Heterotopies remembrance Df other spaccs in me citadd LAraquo Strattgies a jIJurna 01 tbeory culturt anaacute poines 3 1990 pp 1middot39 Post metropolis Critiacutecal Stuties 01 Ctti naacute Rtglgtnt Londle$ Blackwdl 2000 59 Em 200I uma associaccedilatildeo cultural italiana denominada EttrotpirJ publicou uma releitura de textos de Foucaulr sobre o espaccedilo sob o titulo Spnialtri

POSFAacuteCIO POSFAacuteCIO

12 13 Em todo caso uma coisa eacute certa o corpo humano eacute o ator

principal de todas as utopias Afinal uma das mais velhas utopias

que os homens contaram para si mesmos natildeo eacute o sonho de corpos

imensos desmesurados que devorariam o espaccedilo e dominariam

o mundo Eacute a velha utopia dos gigantes que encontramos no

coraccedilatildeo de tantas lendas na Europa na Aacutefrica na Oceania na

Aacutesia essa velha lenda que haacute taacuteo longo tempo nutre a imaginaccedilatildeo

ocidental de Prometeu a Gulliver

O corpo eacute tambeacutem um grande ator utoacutepico quando se trata de

maacutescaras da maquiagem e da tatuagem Mascarar-se maquiar-se

tatuar-se natildeo eacute exatamente como se poderia imaginar adquirir

outro corpo simplesmente um pouco mais belo melhor decorado

mais facilmente reconheciacutevel tatuar-se maquiar-se mascarar-se

eacute sem duacutevida algo muito diferente eacute fazer com que o corpo entre

em comunicaccedilatildeo com poderes secretos e forccedilas invisiacuteveis Maacutescara

signo tatuado pintura depositam no corpo toda uma linguagem

toda uma linguagem enigmaacutetica toda uma linguagem cifrada

secreta sagrada que evoca para este mesmo corpo a violecircncia do

deus a potecircncia surda do sagrado ou a vivacidade do desejo A

maacutescara a tatuagem a pintura instalam o corpo em outro espaccedilo

fazem-no entrar em um lugar que natildeo tem lugar diretamente no

mundo fazem deste corpo um fragmento de espaccedilo imaginaacuterio

que se comunicaraacute com o universo das divindades ou com o unishy

verso do outro Por ele seremos tomados pelos deuses ou seremos

tomados pela pessoa que acabamos de seduzir De todo modo a

maacutescara a tatuagem a pintura satildeo operaccedilotildees pelas quais o corpo eacute arrancado de seu espaccedilo proacuteprio e projetado em um espaccedilo outro

o CORPO UTOacutePICO

Ouccedilamos por exemplo este conto japonecircs e a maneira com

que um tatuador faz passar para um universo que natildeo eacute o nosso

o corpo da jovem que ele deseja O sol dardejava seus raios sobre

o rio e incendiav~ o quarto de sete esteiras Seus raios refletidos

na superfiacutecie da aacutegua formavam um desenho de ondas douradas

sobre o papel dos biombos e sobre o rosto da jovem profundashy

mente adormecida Seikichi apoacutes puxar a divisoacuteria tomou nas

matildeos seus instrumentos de tatuagem Durante alguns instantes

permaneceu mergulhado em uma espeacutecie de ecircxtase Era entatildeo que

ele saboreava plenamente a estranha beleza da jovem Parecia-lhe

poder ficar sentando diante desse rosto imoacutevel durante dezenas

e centenas de anos sem jamais sentir cansaccedilo nem fastio Como

outrora o povo de Mecircnfis embelezava a magniacutefica terra do Egito

com piracircmides e esfinges assim Seikichi com todo amor queshy

ria embelezar com seu desenho a pele viccedilosa da jovem Aplicoushy

-lhe entatildeo a ponta de seus pinceacuteis coloridos que segurava entre o

polegar o anular e o pequeno dedo da matildeo esquerda e agrave medida

em que as linhas eram desenhadas picava-as com a agulha que

segurava na matildeo direita

E se considerarmos que a vestimenta sagrada ou profana relishy

giosa ou civil faz com que o indiviacuteduo entre no espaccedilo fechado

do religioso ou na rede invisiacutevel da sociedade veremos entatildeo que

tudo o que concerne ao corpo - desenho cor coroa tiara vestishy

menta uniforme tudo isso faz desabrochar de forma sensiacutevel

e matizada as utopias seladas no corpo

Mas talvez fosse preciso descer mais por baixo da vestimenta

talvez fosse preciso atingir a proacutepria carne e veriacuteamos entatildeo que

o CORPO UTOcircPICO

14 15 em certos casos no limite eacute o proacuteprio corpo que retorna seu

poder utoacutepico contra si e faz entrar todo o espaccedilo do religioso

e do sagrado todo o espaccedilo do outro mundo todo o espaccedilo do

contramundo no interior mesmo do espaccedilo que lhe eacute reservado

Entatildeo o corpo na sua materialidade na sua carne seria como o

produto de seus proacuteprios fantasmas Afinal o corpo do danccedilarino

natildeo eacute justamente um corpo dilatado segundo um espaccedilo que lhe

eacute ao mesmo tempo interior e exterior E os drogados tambeacutem e

os possuiacutedos os possuiacutedos cujo corpo torna-se inferno os estigshy

matizados cujo corpo torna-se sofrimento resgate e salvaccedilatildeo

ensanguentado paraiacuteso

Verdadeiramente enganara-me haacute pouco ao crer que o

corpo jamais estivesse em outro lugar que era um aqui irremeshy

diaacutevel e que se opunha a toda utopia

Meu corpo estaacute de fato sempre em outro lugar ligado a todos

os outros lugares do mundo e na verdade estaacute em outro lugar

que natildeo o mundo Pois eacute em torno dele que as coisas estatildeo disshy

postas eacute em relaccedilatildeo a ele - e em relaccedilatildeo a ele como em relaccedilatildeo a

um soberano - que haacute um acima um abaixo uma direita uma

esquerda um diante um atraacutes um proacuteximo um longiacutenquo O

corpo eacute o ponto zero do mundo laacute onde os caminhos e os espaccedilos

se cruzam o corpo estaacute em parte alguma ele estaacute no coraccedilatildeo do

mundo este pequeno fulcro utoacutepico a partir do qual eu sonho

falo avanccedilo imagino percebo as coisas em seu lugar e tambeacutem

as nego pelo poder indefinido das utopias que imagino Meu

corpo eacute como a Cidade do Sol naacuteo tem lugar mas eacute dele que

saem e se irradiam todos os lugares possiacuteveis reais ou utoacutepicos

CORPO UTOacutePICO

As crianccedilas afinal levam muito tempo para saber que tecircm

um corpo Durante meses durante mais de um ano elas tecircm

apenas um corpo disperso membros cavidades orifiacutecios e tudo

isso soacute se organiza tudo isso literalmente toma corpo somente

na imagem do espelho De modo mais estranho ainda os gregos

de Homero natildeo tinham uma palavra para designar a unidade do

corpo Por paradoxal que seja diante de Troacuteia abaixo dos muros

defendidos por Heitor e seus companheiros natildeo havia corpos

mas braccedilos erguidos peitos intreacutepidos pernas aacutegeis capacetes

cintilantes em cima de cabeccedilas natildeo havia corpo A palavra grega

para dizer corpo soacute aparece em Homero para designar cadaacutever

Eacute o cadaacutever portanto o cadaacutever e o espelho que nos ensinam

(enfim que ensinaram aos gregos e agora ensinam agraves crianccedilas)

que temos um corpo que este corpo tem uma forma que esta

forma tem um contorno que no contorno haacute uma espessura um

peso em suma que o corpo ocupa um lugar Espelho e cadaacutever

eacute que asseguram um espaccedilo para a experiecircncia profundamente e

originariamente utoacutepica do corpo espelho e cadaacutever eacute que silenshy

ciam e serenizam encerrando em uma clausura - que para noacutes

hoje eacute selada esta grande coacutelera utoacutepica que corroacutei e volatiliza

nosso corpo a todo instante Graccedilas a eles graccedilas ao espelho e

ao cadaacutever eacute que nosso corpo natildeo eacute pura e simples utopia Ora

se considerarmos que a imagem do espelho estaacute alojada para

noacutes em um espaccedilo inacessiacutevel e que jamais poderemos estar laacute

onde estaraacute nosso cadaacutever se considerarmos que o espelho e o

cadaacutever estatildeo eles proacuteprios em um inatingiacutevel outro lugar desshy

cobrimos entatildeo que unicamente as utopias podem fazer refluir

o CORPO UTOacutePICO

16 nelas mesmas e esconder por um instante a utopia profunda e

soberana de nosso corpo

Seria talvez necessaacuterio dizer tambeacutem que fazer amor eacute senshy

tir o corpo refluir sobre si eacute existir enfim fora de toda utopia

com toda densidade entre as matildeos do outro Sob os dedos do

outro que nos percorrem todas as partes invisiacuteveis de nosso

corpo potildeem-se a existir contra os laacutebios do outro os nossos se

tornam sensiacuteveis diante de seus olhos semicerrados nosso rosto

adquire uma certeza existe um olhar enfim para ver nossas paacutelshy

pebras fechadas O amor tambeacutem ele como o espelho e como

a morte sereniza a utopia de nosso corpo silencia-a acalma-a

fecha-a como se numa caixa tranca-a e a sela Eacute por isso que ele eacute

parente tatildeo proacuteximo da ilusatildeo do espelho e da ameaccedila da morte

e se apesar dessas duas figuras perigosas que o cercam amamos

tanto fazer amor eacute porque no amor o corpo estaacute aqui

33 HETEROTOPIA TRIBULACcedilOtildeES DE UM CONCEITO ENTRE VENEZA BERLIM E LOS ANGELESl

No dia 14 de marccedilo de 1967) o Ciacuterculo de estudos arquiacuteteturais de Paris convidara Foucault a pronunciar uma conferecircncia sobre

() espaccedilo para a qual ele propocircs uma analiacutetica nova que batizou

de heterotopologia O texto desta conferecircncia teve circulaccedilatildeo

restrita reservada aos membros daquele ciacuterculo em forma datishy

lografada com exceccedilatildeo de extratos publicados em francecircs em

1968 na revista italiana LArchittetura2 ateacute sua publicaccedilatildeo em

Berlim no outono de 1984 no quadro da exposiccedilatildeo ldeacutee proshymsus reacutesultats no Martin-Gropius-Bau3bull

Essa exposiccedilatildeo foi a principal dentre as dezessete manifestashy

ccedilotildees com as quais a Internationale Bauausstellung (IBN) apreshy

sentou ao mundo o balanccedilo de suas atividades de reconstruccedilatildeo

e renovaccedilatildeo de Berlim Imaginava-se a reunificaccedilatildeo da cidadeshy

-capital que parecia estranhamente ilustrar os espaccedilos outros do

texto de Foucault de 1967 Autorizando sua publicaccedilatildeo pouco

antes da sua morte ocorrida em 25 de junho de 1984 o fi16sofo

a introduzira in extremis no corpus de seus escritos autorizados

I Oucra versatildeo deste texto fui publicada em 1997 no caraacutelogo de Dccummta X em Kassd 2 M Foucault Des espaces aurres EArthinura mJtlltck stvria vol XIII n 150 1968 pp 822-823 M Foucault Des espaces aurres AMes ~ darrhitt(lUrt ourubrofll984 pp 46-49 Eacute esla versatildeo t 1984 signincatiacuteVllmente diferente da que reproduzimos no presente volume que estaacute incluiacuteda cm IJIIiS et Eacutecrits Paris Gallimard t Iv texto n 360 (Martin-Gropius-Bau museu localizado em Berlim Inaugurado em 1881 - N da T) 4 IBA Exposiccedilatildeo internacional de consrruccedilatildeo sigla retomada mais adiante (N da T)

POSFAacuteCIO

34 Desde enrao () lCx ro f()i thlilldantllllllltl trad uzido e comenshy

tado C omo podl prrt na IICLt1 i1I(xplo rlllu d II ranrc vitae anos

Olllo nail c lO l llpn( nd clI Icrgll l1 tl t Edward Soja entushy

sia ~t1 IrolliOl OI l tl illlllli 1I 11I d 1 rmfflpIIf1fJI a Illlporrancia

1l0V(1 d(1 tp t1I t d1 (PH Itlld ldt I I dlvl III )dcrllmos intershy

pretl r 1 di qlIlCl1 ( IIII(~ I _I~ 111 dIIW 1)(1 7 II)IH e a hist6ria

dcs~c -i ltlIli ll 111111 1 h i~I( 1 ti l h 11I 1 11 IlIlp~o1(t A~ nocoes

dt nIt IIO ti t 11111 IllI l ln fU(IAII11I1 Utl l IIVO dc analise

suficic ll lc rnlc J ( fino plI dl 1t1lh lr IIl1n I lit I t trw sfOrmashy

coes tanto d le) diM lI 1m (I ~k~ PII 11101111 c politicos

dos arquitctos t lIIhalli tl 11(11 1 II I Ulll ~ IIJII UItlS quan to da

problematica do cspao 11 11 I ~llll( de 1 -(~~ IIc1I

Linguagem e espa~o

Voce se lembra daqude l(k~I III I1 1111 Ihl III I ir l1nro em

que urn arquiteto via uma nova Ltl JlU~lIj I 11III1~mo Mas

isto nao estava em urn livro Cst I VI 1 111111 I ~ I I 1111111 nll1fcrencia

radiofonica sobre a utopia Pedt lll li lt pw II l( nll~1 1111 dia J3 ou 14 de marco

Esta carta escrita em Sidi BOil ~ai 1 1I1I di1 2 dt lIlano de

1967 e 0 testemunho mais antigo do ( I ll II II I IIJ d f~ FI)lllluJrcom

os arquitetos Em 7 de dezembro dt I )h h li e tll ~ld lll de uma

serie radiofonica chamada de Cuhlll1 rI( I tlllsagrada a 5 amp1 Soja Rembrance of ocher spaces in [he ciradd LA 114(rO Jrftj

Politics 3 1990 p 1 39 Art igo dcscnvolvulo em Ed Soja Ij Rral Imagined Plam Cambridg~ (Mss) Blockwell 1996

6 P Bou rJi cu Quesr-cc q Ut fai l e parler urn ) U[lur A prop d Mit Ii t l I --I ~ ~~h III f~r n

plitmtlltions n especial tlSureiUcr er punic vingt aIl~ pres II Iltl T ~lI ltI L ~middotIIn II t IH

lgto~AClO

35 u topia ele fora convidado a falar sobre Utopia e Literatural

Pactindo de uma evocacao bachelardiana daqueles espacos que

encantam os jogos infantis como os celeiros 0 fundo do jardim

a tenda de Indios ou a cama dos pais verdadeiras utopias localishy

zadas sonhou com uma ciencia que teria por objeto estes espashy

cos diferentes que sao a contestacao dos espaltos onde vivemos

nao uma ciencia das utopias mas das heterotopias cie ncia dos

espacos absolutamente ourros Esta ciencia 011 hecerotopologia

que esta em vias de nascer que ji cxistc c cujos prindpios ele

enunciara naquele dia

As emissoes radiofonicas de Foucault - nas quais de se reveshy

lava urn maravilhoso contista - respondiam aenorme curiosishy

dade suscitada desde a primavera de 1966 pela publicacao de

As Palavras e as coisas 8bull 0 livro se abria com a descricao de uma

improvavd enciclopedia chinesa inventada por Borges segundo

a qual os animais se distribufam em quatorze classes do seguinte

tipo a) pertencenres ao imperador b) embalsamados c) domesshy

ticados k) desenhados com urn pincel muito fino de pelo de

cameoj I) et cetera m) que acabam de quebrar a biJha Esta

desordem que faz cintilar os fragmentos de urn grande numero

de ordens possiveis fora batizada por Foucault de heterotopia

o termo se opunha a utopia etimologicamente nao lugar e nao

eu-topia como se tende a crer Mas se as utopias narram urn lugar

7 M Foucault Uwpi( bem opi quivo sonora de 7 e 2 1 de dczombro de 19(6 CCOIrc Midd Foucaul t DibLioth~uc dc IIM EC-Cacn (eeditad em diso pdo INA em 2004 (rNA In iw Ntiorul de IAudinvisucl - Nd T)

8 M Foucault Ln Mots a Choses Paris Gallimard 1966 (TC3d u~() b silt ira de S T Muchail As PaiArdH as coilas Sao Paulo Martins Fontes 1981 - N da n

POSFAClO

36 37 que natildeo existe desabrocham contudo em um espaccedilo imaginaacuteshy

rio e por isso situam-se na linha reta do discurso pois desde

o fundo dos tempos a linguagem se entrecruza com o espaccedilo A lista de Borges ao contraacuterio estanca as palavras nelas proacuteprias pois a heterotopia arruiacutena natildeo somente a sintaxe das frases como

tambeacutem aquela menos manifesta que autoriza manter juntas as palavras e as coisas9

A impossibilidade em que se encontra nosso pensamento para pensar esse heteroacuteclito radical da classificaccedilatildeo de Borges tesshytemunha um limite do pensamento o mesmo limite que ainda

experimentamos diante das classificaccedilotildees proacuteprias agraves culturas que nos satildeo radicalmente estranhas Quando Victor TurnerlO descreve como os Ndembu da Zacircmbia reuacutenem em uma mesma

classe os caccediladores as viuacutevas os doentes e os guerreiros isto

natildeo implica um espaccedilo de pertenci menta concebido como tershyritoacuterio comum nem um espaccedilo de pertencimento concebido

como ramificaccedilotildees definidas por propriedades formais como

aquele no qual n6s distribuiacutemos os reinos da natureza nem a linearidade arbitraacuteria de uma ordem alfabeacutetica com a qual nosshy

sos dicionaacuterios ordenam o heteroclito no espaccedilo Ele descreve um sistema de analogias de similitudes entre propriedades simshyboacutelicas cujas interconexotildees precisamos traccedilar em uma paacutegina em branco a fim de compreender esse sistema ou o espaccedilo de similitudes Natildeo se pode pensar sem o suporte de um espaccedilo de ordem sem esta zona mediana que Foucault qualifica

9 M FOUaacutelulr Les MolJ ks Choses op dto prefaacutecio p 9 (Ar Plarmu l1li cow pp 5-8 _ N d T) 10 Victor Turner (1920-1983) antropoacutelogo britilnico (N da T)

de arqueoloacutegica por sob nossas percepccedilotildees nossos discursos nossos saberes onde se articulam o visiacutevel e o enunciaacutevel a linshy

guagem o olhar e o espaccedilo

Na emissatildeo radiofocircnica de 7 de dezembro de 1966 Foucault fez um uso totalmente diferente de sua noccedilaacuteo de heterotopia Primeiro ela eacute pertinente natildeo mais a uma anaacutelise dos discursos

mas dos espaccedilos Lugares tatildeo heteroacuteclitos como o espelho o cemiteacuterio a casa de toleracircncia ou a colocircnia polineacutesia de feacuterias em

Djerba entram em uma categoria especiacutefica de espaccedilos-tempos quer este tempo seja provisoacuterio como o tempo uacutenico da defloshy

raccedilatildeo no espaccedilo da viagem de nuacutepcias quer este tempo seja ao contraacuterio cumulativo de temporalidades - atemporal- no lugar da biblioteca ou do museu

Essas unidades espaccedilo-temporais esses espaccedilos-tempos tecircm em comum serem lugares onde estou e natildeo estou como o espeshy

lho ou o cemiteacuterio ou onde sou outro como na casa de toleracircnshy

cia na colocircnia de feacuterias ou na festa carnavalizaccedilotildees da existecircncia

ordinaacuteria Eles ritualizam cortes limiares desvios e os localizam As normas humanas natildeo satildeo todas universalizaacuteveis as da

disciplinarizaccedilatildeo do trabalho e as da transfiguraccedilatildeo pela festa

naacuteo podem desenrolar-se na linearidade de um mesmo espaccedilo ou de um mesmo tempo eacute preciso uma forte ritualizaccedilaacuteo das rupturas dos limiares das crises Estes contraespaccedilos poreacutem saacuteo

Interpenetrados por todos os outros espaccedilos que eles contestam o espelho onde natildeo estou reflete o contexto onde estou o cemishyteacuterio eacute planejado como a cidade haacute reverberaccedilatildeo dos espaccedilos uns nos outros e contudo descontinuidades e rupturas Haacute

POSlACIO

POSFACIO

38 39 enfim como que um eterno retorno desses rituais espaccedilo-temshy

porais e se natildeo universalizaccedilatildeo das mesmas formas ao menos

uma universalidade de sua existecircncia Eles satildeo apreendidos em

uma sincronia e uma diacronia especiacuteficas que fazem deles um

sistema significante entre os sistemas da arquitetura Natildeo refleshy

tem a estrutura social nem a da produccedilatildeo natildeo satildeo um sistema

soacutecio-histoacuterico nem uma ideologia mas rupturas da vida ordishy

naacuteria imaginaacuterios representaccedilotildees polifocircnicas da vida da morte

do amor de Eacuteros e Taacutenatos

A carta de Foucault de 2 de marccedilo de 1967 deixa vazar um

Utopias e heterotopias O Ciacuterculo de estudos arquiteturais era animado entre 1960 e

1970 por Jean Dubuisson seu presidente arquiteto do Museu

(te Artes e Tradiccedilotildees Populares do Bosque de Boulogne e Ionel

Schein que indicava os conferencistas a serem convidados ao

Boulevard Raspail nuacutemero 38 Era um dos raros ciacuterculos de

reflexatildeo de arquitetos sem corporativismo no qual nos anos

cinquenta e sessenta Ionel Schein gozava da lisonjeira reputaccedilatildeo

de agitador de ideias e de radicalismo em arquitetura I I Foi ele

segundo Jean Dubuisson quem convidou Foucault As confeshy

recircncias eram anotadas em estenografia e depois datilografadas e

do arquiteto Natildeo natildeo fora o livro (As Palavras e as coisas) que

desapontamento a arqueologia do olhar natildeo retivera o olhar entregues aos membros do Ciacuterculo Pierre Riboulet - arquiteto

trouxera em germe uma nova concepccedilatildeo do urbanismo livro do entre outros do hospital Robert-Debreacute - conservou sua coacutepia

qual o filoacutesofo esperava a provocaccedilatildeo de rupturas no pensamento Ele se lembra das precauccedilotildees oratoacuterias do filoacutesofo para introduzir

No entanto estas rupturas foram suficientemente ruidosas pelo seu propoacutesito a insistecircncia sobre sua ignoracircncia quanto agraves preshy

menos ateacute o ruiacutedo de 1968 para que Foucault viesse a deixar ocupaccedilotildees dos arquitetos As referecircncias -satildeo tomadas da histoacuteria

tanto o tumulto da gloacuteria quanto o das polecircmicas pela serenidade das ciecircncias (Koyreacute Bachelard) da criacutetica literaacuteria a-p Richard

da luminosa vila de Sidi Bou Sald no alto do golfo de Cartago e Ianchot) da psicanaacutelise existencial (Binswanger) assuntos

a paz - sempre difiacutecil - da escritura Heterotopia vivida O que todos eles sobre os quais Foucault jaacute havia desenvolvido suas

chegara aos ouvidos do arquiteto era uma linguagem menor obsessotildees do espaccedilo12

um daqueles jogos literaacuterios nos quais Foucault tinha um prazer Para marcar seu entusiasmo agrave saiacuteda dessa conferecircncia Robert

guloso juacutebilo incessantemente decepado pela ascese da escrishy Auzelle um dos pensadores da reconstruccedilatildeo da Franccedila a partir

tura contenccedilatildeo que se lecirc na didaacutetica da conferecircncia reescrita d()s anos cinquenta lhe entregou sua histoacuteria da arquitetura

esta para os arquitetos certamente mas os jogos literaacuterios ficam II ltuklt tas infOrmaccedilotildees sobre o Circulo de tstutIos arqumlumis me foram fOrnecidas por P Riboulet

aqui finalmente retranscritos com todo respeito agrave integralidade Illxprcssatildeo utilizada por Fouault in Quesdons agrave Michel Fouault sur la geacuteographie HiroIIote n I 1lt)76 pp 71-85 retomada em Diu et Eacutecriu t m n 169 Paris Gallimard 1994 p 33 (Trad bras de

sonora da qual nasceram K Machado e A L de Souza Sobre a geografia in Microflsica do potUacuter Rio de Janeiro Graal 1979 1IIU-165-N daT)

POSFAacuteCIOPOSFAco

40 41 funeraacuteria e dos cemiteacuterios13 uma das heterotopias de Foucault

Em O Nascimento da cllnica14 Foucault descrevera como a anatoshy

mopatologia havia integrado a morte no conhecimento da vida

oferecer-lhe a hist6ria da integraccedilatildeo dos cemiteacuterios na planificashy

ccedilatildeo urbana provava a perfeita cumplicidade entre seus ouvintes

e o conferencista a negatividade estava no cerne da racionalishy

dade Ela estava no cerne das anaacutelises de Foucault pelo menos ateacute Vigiar epunit5

Foi no final deste mesmo ano de 1967 que Jean-Luc Godard

em A Chinesa fez sua heroiacutena a estudante pr6-chinesa interpreshy

tada por Alme Wiazemsky jogar tomates em um exemplar de As Palavras eas coisas entio um livro siacutembolo por suas descontinuishy

dades abruptas do pensamento no tempo da negaccedilatildeo da hist6ria e portanto da negaccedillo da revoluccedilatildeo

A confercncia de 1967 poderia ter outra circulaccedilatildeo aleacutem da

c6pia datHografada entre os membros do Circulo O pr6prio

Circulo natildeo possuiacutea uma revista e nlo editava nenhuma de suas

conferecircncias Por outro lado as concepccedilotildees que entatildeo partilhashy

vam os arquitetos deviam muito a Le Corbusier e agrave Bauhaus agrave

racionalizaccedilatildeo das formas e agrave legibilidade do espaccedilo urbano

concebido como um texto pontuado com referecircncias espaccedilos

ou edifiacutecios Franccediloise Choay que Foucault frequentara nos anos

13 R AuzeUe Derniim Dmlnlm Paris ed do autor 13 PIace du Panrlleacuteon 1965 14 M Foucault Naissanct de la ClitlUacuteJue Paris PUF 1963(Trad bru de R Machado ONtUCimentIJ da clnCIt ruo d Janeiro Forense-Universitaacuteria 1977 - N da T) 15 M Foucaul Survdlkr tIPunir Paris Gallimard 1975 A obra apresenta o panoacuteptico de Benthrun como um acontecimento na histoacuteria do esplrito humanomiddot epropotildee uma anill1sc do poder em termos d produccedilatildeo e natildeo de repressatildeo (Trad bras de R Ramalhete VIgiar11mr Pett6poliacutes Vous 1987 _ N da T)

ttenta reconstitui essas problemaacuteticas em Urbanisme utopies et rtaiteacutesl6

Um urbanismo progressista humanista que se sustentava

111amp carta de Atenas l7 e em uma racionalidade crescente ou um

urbanismo culturalista para o qual cada forma eacute siacutembolo e que

(Ilha com nostalgia para a harmonia das cidades passadas estas

tmm as ideias reguladoras da razatildeo urbaniacutestica Estas ideias

rCguladoras jaacute natildeo talhavam em pontilhado o espaccedilo da utopia

em que viria a desdobrar-se ap6s 1968 o discurso arquitetural e

urbano em uma dissoluccedilatildeo do objeto cidade no seio das relaccedilotildees

udais capitalistas A cidade como totalidade formal ou racional

I1Ao foi deslocada pelo capitalismo O espaccedilo natildeo eacute uma imensa

paacutegina em branco onde se escreve desde cerca de dois seacuteculos a

Illetanarraccedilaacuteo do capital Naacuteo estaacute aiacute o impensado geral o natildeo

dito de todas essas divisoacuterias construiacutedas entre as classes os sexos

C as geraccedilotildees

O fasciacutenio das escolas de arquitetura pela visita a cidades

patronais estas utopias realizadas como o familisteacuterio de Guise

unstruiacuteda por Godin ou a cidade Menier de Noisiell8 testeshy

munha que o discurso arquitetural e urbaniacutestico francecircs dos anos

etenta se desdobrava no espaccedilo da utopia Os promotores dessas

cidades natildeo estariam entre os primeiros a inventar o consumo

em massa Um reduzia as dimensotildees da milenar e dispendiosa

1111( Choay UrbanisIM UtIJpits tt rlaitis Paris Seuil 1965 17 Carta de Atenas manifesto do IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (Ciam) Atn 1933 (N da T) I Pamllisteacuterio de Guise espeacutecie de comunidade ou cidade operaacuteria inspirada em Charles Fourier IIl1nmulda em 1846 por J-BGodln para habitaccedilatildeo de operaacuterios de sua induacutestria Menler de Noisiel IDmunldade de operaacuterios da ptoduccedilatildeo de chocolates fundada por A B Menier em 1925 nas imediaccedilotildees bull arl (N da T)

POSFAtildeCIO POSFAacuteCIO

42 43 lareira a um aquecedor domeacutestico outro um medicamento dos

exeacutercitos napoleocircnicos a um complemento alimentar industrial

o tablete de chocolate Natildeo teriam eles articulado da maneira

mais restrita a racionalizaccedilatildeo do consumo com a da ocupaccedilatildeo do

espaccedilo A racionalizaccedilatildeo da cidade patronal como a fragmentaccedilatildeo

do espaccedilo urbano o homog~neo como o heterogecircneo conduziam

a um mesmo crivo de leitura infalsificaacutevel a espacializaccedilatildeo do

capital O arquiteto tornava-se o teacutecnico passivo da operacionashy

lizaccedilatildeo das estrateacutegias e das normas do capital

Mostra-se uacutetil falar indiferentemente das utopias preacute-urshy

banistas das cidades operaacuterias de Haussmann da Bauhaus do

funcionalismo dos Shakers dos grandes conjuntos das cidades

novas por toda parte afirma-se perigosamente uma racionalishy

zaccedilatildeo do espaccedilo inerente agrave extensatildeo universal do capital uma

propensatildeo de sua ordem de troca ou da ordem simplesmente podia-se ler na revista Traverse19bull

Genealogia dos equipamento coletivol Eacute a partir de 1972 que Foucault desenvolve pesquishy

sas em equipe sobre a histoacuteria dos equipamentos coletivos

Primeiramente com o Centro de estudos pesquisas eformaccedilatildeo instishytucional- ou Cerfi - animado pelo psiquiatra Feacutelix Guattari que

conclui entatildeo com Gilles Deleuze a redaccedilatildeo do seu Anti-Eacutediptldeg

19 B Eizykman Urbanismo Travme n 4 1976 citado por A Thalamy in PolltilJues tk lhabitat Corda

1977 p 14 (o nome Shaker designa um movimento de grupos religiosos fundado na Inglaterra no seacuteculo XVIII que - agrave semelhanccedila dos Amish- vivem em suas proacuteprias comunidades _ N da T) 20 G Deleuze F Guattari LAnti-CEdipe Paris Minuit 1972 (Trad bras de L B L Orlandi O Antishy-Eacutedipo Satildeo Paulo 34 2010 - N da T)

( rliacuteldo em 1965 com pesquisadores em ciecircncias sociais dissidenshy

trN do Partido Comunista Francecircs (PCF) o Cerfi apoacutes 1970 I()( em questatildeo sua cultura marxista submetendo-a a uma dupla

Inova 1) a do procedimento genealoacutegico praticado em Histoacuteria Ioucura e O Nascimento da cliacutenica 2) a de uma clarificaccedilatildeo

IIlN relaccedilotildees libidinais que todo pesquisador manteacutem com o

uhjeto de sua pesquisa (a ambivalecircncia da reflexatildeo urbaniacutestica

frente agrave racionalidade capitalista natildeo escapava a ningueacutem) e que

UIe pesquisadores mantecircm entre si como grupo social hierarquishy

uto e sexuado

O relato da realizaccedilatildeo dessa dupla prova publicada na revista

do Cerfi21 eacute provavelmente um dos mais interessantes diaacuterios de

hordo da travessia ideoloacutegica daqueles anos Ali se assiste como

lue em um laboratoacuterio agrave desagregaccedilatildeo da anaacutelise marxista e

~ emergecircncia daquilo que logo seraacute batizado de atitude poacutesshy

-moderna O empreendimento eacute descrito por seus autores como

uma estranha maacutequina feita de peccedilas e pedaccedilos emprestados do

Ilenealogista Foucault surrupiadas do depoacutesito do cientista biceacuteshy

falo Deleuze-Guattari

O genealogista Foucault eacute de fato uma nova imagem social

do filoacutesofo o procedimento genealoacutegico soacute estaraacute francamente

c()nfirmado a partir de seu ensino no Colge de France inaugurado

em dezembro de 1970 Ademais a partir de 1971 juntamente

com Deleuze ele anima um movimento militante o Grupo de

JI (eacuteneacutealogie du capital- I Les eacutequipements du pouvoir Recherches n 13 dezembro1973 Um s6 bullbullbullmplo de uma retomada das hettrotopias por H umre a propoacutesito de La Pensuuml marxiste de la vilte IIrlbullbull Casterman 1972

POSFAacuteCJO POSFAacuteCIO

44 45 informarao sobre as prisoes (GIP) enraizado na extrema esquerda

Foucault disc ute com 0 Cedi que trabalha sobre a cidade22

a abordagem genealogica dos equipamemos coletivos e a poe

em pritica sobretudo no seu seminario do College de France 0

seminario e consagrado aemergencia do medico como perito

no seculo XIX atraves da pericla psiquiatrica em medicina legal

por urn lado e por outro como engenheiro que comribui para

a definicao das normas e formas da arquitetura hospitalar Urn

arquiteto Bruno Fortier responsavel pelo Centro de estudos epesshy

quisas em arquitetura (Cera) participa doravame dos trabalhos

de pesquisa desse seminario

Se a expressao equipamemo coletivo nao figura nos textos

do seculo XVIII a maquina de curar definida pelo medico

Tenon como ideal do hospital moderno neles tern lugar A

arquitetura hospitalar escreve Tenon2 nao pode mais constishy

tuir-se de rotina c tateamemos devendo responder a multiplas

prcocupacentes estancar 0 contagio pela distribuicao das salas e

dns leiros a circuhlltao do ar tavorecer a diss()cia~ao dos doemes

c das d()cn~as a vigilancia dos dotntcs e do pessoal manifestar

a hierarquia do olhar medico ter em coma as necessidades da

populacao 0 que serve para curar nao e a regularidade do trashy

cado mas a justeza da arquitetura 0 modelo deve ser perfeito

- nao se podendo mais em nada muda-Io - acabado repetivel

Pela primeira vez em 1788 escreve Bruno Fortier propoe-se

22 Ruhhl1 n 13 op cir pp 27middot31 (Dits ~I fcrit n 129 n 130) 23 J-R Tenon M moirs sur It~middot api fl llX tie P1ris Paris 1788

aos arquitetos a imitacao como urn dever24 as tipologias norshy

mativas seguem os exemplos oferecidos pela historia A justeza

da arquitetura nasce do tratamemo de uma rede de questoes disshy

timas - c1imaticas demogdficas estatisticas higienicas medicas

disciplinares - que tern cada qual seu lugar de emergencia sua

racionalidade seus promotores que respondcm a uma multiplishy

cidade de taticas - tecnicas de vigilancia de producao de saber

de efetuacao de poderes de medica l iza~lo c de saude publica

Elas podem ser descritas como segmemos analogos Oll repetidos

ao infinito de urn so texto de um escrevcnrc unico Illitico e

unitario 0 capital

Certamente esses novos edificios incorporam dticas de

vigil an cia encomradas fora sob outras formas arquiteturais shy

colegios casernas - taticas e formas que puderam preceder e

sustemar a emergencia da organizacao capitalista do trabalho e

que poderao proliferar para alem dela por exemplo nos vast os

arquipelagos do socialismo siberiano Eque fundamemalmeme

nao estamos Iidando nem com formas arquiteturais nem com

modos de producao mas com tecnologias de poder Foi na busca

destas arquiteturas maquinas tao ajustadas aos seus objetishy

vos que Foucault veio a redescobrir 0 que logo tornou-se parashy

digma de sua obra 0 panoptico de Bcntham2 do qual Poyet26

24 M Fo ucault D Barrer-Kriegel A Thahmy F Btgllin B tllrlicr L-IVIi(Jilln II X4lrir (m4JI l)rigill ~1

de OJOpilil modnrl~) Paris lnsri ru[ de J cnvi ronncm cnt 1976 rccd Hruu lOl) Iirc M~rda8Q J~79

25 J Bcmham Le Panoptiqui p rcccdido de Loeil du pouI-vir cnrrcmiddotvisru Om Michel Fou~ult P~ ri s

Bdfond 1977 (faC-ltimik da cdjao franccsa de 179 1) (Trod bras d bullbullm rvi 0 Ih do poder por A L de S OU-1 in Microfli ra tQ pokr op Ci l pp209-227 - N d 1)

26 B Poyet M h noiu sur a niassili d( Iransera lt u collsrlli r tIf-fj rd-lhrm w ill dull pm)lmiddotr It

traminlioll k eel hopil4l Paris 1785

IOSFACIO pOSFAeiO

46

47 desenhara uma interpretaccedilatildeo para a reconstruccedilatildeo da Santa Casa de Misericoacuterdia Os trabalhos do seminaacuterio do College de Frante sobre a arquitetura hospitalar no final do seacuteculo XVIII recebeshy

ram duas ediccedilotildees uma em Paris em 1976 outra em Bruxelas em 1979 Les Machints agravegutrir27

O segundo estudo coletivo dirigido por Foucault teve por objeto o habitatentre 1800 e 185018 Foi conduzido por Franccedilois

Beacuteguin hoje historiador da paisagem e da arquitetura colonial29bull

Ametodologia ~ a mesma que a precedente no lugar de partir de

uma histoacuteria das formas da habitaccedilAo ou da cidade os pesquisashydores inventariaram as pr~tlcllll discursivas que circunscreveram e

codificaram o habitat como obJero de intervenccedilatildeo administrativa e politica entre 1800 e 1850 - a doenccedila o emprego a domestishycaccedilatildeo de equipamentos como a ~gua a iluminaccedilatildeo a ventilaccedilatildeo

e o desenvolvimento de uma crescente jurisdiccedilatildeo sobre o espaccedilo

puacuteblico em cuja intersecccedillo se connroacutei o habitat Eacute preciso prishy

meiramente desfazer-se da pregnAncla da casa desmineralizaacute-la desconstruiacute-la escreve F B6guln

Poder saber es~

Eacute a partir de vtgiar t punir (1975) e de sua raacutepida circulaccedilatildeo Iacutemernacional- traduzido rapidamente em cerca de vinte liacutenguas - que as anaacutelises foucaultianas do espaccedilo recebem uma visibilishy

dade nova como lugar de uma dupla articulaccedilio do poder sobre

27 M fucault B Barrer-Kriegd A Thalamy F Beacutepdn B fIorllr ln MtIthllltt 4 gubir op cit 28 ]-M A1Haume B Barret-Kriegcl F Seguin D Ranclere A lhalamy PDitifUtt tk lhabitat 18()() 1850 Paris Corda 1977 (estudo realizado sob a direccedilAo de M Poucaull)

29 De F Beacuteguin citemos principalmente ArabIacuteSlUlett dko illChlmhI4 ubitill Afoque du Norri 1830-1850 Paris Dunod 1983 e Paysagtt Paris Flammarlon 19

o corpo do indiviacuteduo e do saber ao poder Seguem-se numerosos estudos sobre a arquitetura da vigilacircncia publicados na Itaacutelia e na Gratilde-Bretanha principalmente3deg De modo mais geral socioacuteshy

logos e planificadores urbanos comeccedilam a referir-se a Foucault

A Leaman escreveu em Environment and Plannintl que a obra de Foucault eacute doravante importante para os urbanistas planifishy

cadores e arquitetos por sua anaacutelise das qualidades normativas

das estruturas e das instituiccedilotildees Sharon Zukin considera que a cidade estaacute doravante incluiacuteda nas anaacutelises de uma economia

do poder segundo o meacutetodo desenvolvido em vtgiar e punir32bull

Esse eacute o contexto em que reaparecem as heterotopias na escola de arquitetura de Veneza em dezembro de 1977 prishymeiro estudo sobre seu uso possiacutevel em uma histoacuteria dos espashyccedilos II dispositivo Foucault 33 que reuacutene ensaios de M Cacciari

F RelIa M Tafuri G Teyssot A capa como a de Machines agrave gueacuterir reproduz um plano de arquitetura panoacuteptico para um

hospital inglecircs Os autores se referem essencialmente a Vtgiar e punir e exceto T eyssot a uma reuniatildeo de textos de Foucault sobre o poder publicado neste mesmo ano pela editora Einaudi

Microfisica deipotert4 a incidecircncia poliacutetica desta uacuteltima coletacircnea

lO Ver especialmente HinmJmd primeiro ano n 3 maio-junho1978 n triliacutengue intitulado Segrtgazione corpo sociak consagrado agraves atquitetuta de vigilanda jl A Leaman in Environmmtand Planning n 111979 pp 1079-1082 H Sh Zukin Adecade cfilie new urban sociology 1heoryand Society 91980 pp 575-601 H M Cacdari F Relia M Tafuri G Teyssor II dispositillO Foucaut Veneza Cluva 1977 4 M Iltlucaullt MimfoIacuteCIJ rktpoYrt inkrUtntipoitici editado por Iltlnrana e Pasquino Turin Einudi 1977 retomado e completado pelo movimento alternativo berlinense Dispositive tkr Macht Betlin Merve 1978 (A reuniaacuteo d textos que compotildecm a ediccedilatildeo italiana a=sdda de oUtros textos reltebeu traduccedilaacuteo brasileira de R Machado e OUrtOS Micrufisica do potkr Rio de Janeiro Graal 1979 Foi publicada tambeacutem uma ediccedilaacuteo espanhola com algumas alteraccedilotildees dos tcxtos sdeclonados trad por J Varela e F A1varez-UrIacutell Madri La Piquem 1978 - N da T)

POSFAacuteCIO

POSFAclO

48 49 foi imediata logo reforccedilada pela traduccedilatildeo de Rhizome de Deleuze

e GuattarP livros que se tornaram referecircncias teoacuterico-poliacutetishy

cas do movimento chamado Autonomie (do poliacutetico subenshytenda-se) que incomodava a esquerda do PCI engajado na

estrateacutegia do compromisso histoacuterico ~ esta incidecircncia poliacutetica

que os italianos batizaram de leffeto Foucault36 que eacute o alvo de 1 dispositivo Poucault

A introduccedilatildeo agrave coletAnea escrita por F Rella eacute perfeitamente expliacutecita desde Jogo travare as anaacutelises foucaultianas da pluralishy

dade das relaccedilotildees de poder em uma metafisica do poder de um poder abstrato imaterial supostamente em toda parte e portanto

politicamente em parte alguma liA uacutenica histoacuteria dos poderes eacute

uma histoacuteria dos espaccedilos atraveacutes dos quais o poder se mostra E

apoiando-se no artigo de Teyssot como uacutenica fonte de conhecishy

mento das heterotopias prossegue O nlo lugar do poder situashy

-se no centro de uma infinidade de localizaccedilotildees heterotoacutepicas

A heterotopia torna-se entatildeo um dado central em Foucault

e a hetero topologia a fenomenologia da dlspersio anaacuterquica do

poder A conclusatildeo desta interpretaccedilatildeo eacute previsiacutevel Natildeo se comshy

bate mais o poder doravante investidp em uma miriacuteade de locashylizaccedilotildees [ou dispositivos] mas a tirania das teorias globalizantesraquo

Teorias que Rella explicita precisando em nota leffeto Marx37 Na verdade Teyssot38 natildeo comenta a confer~ncia de 1967

35 G Deleuu F Guattari Rhizo1M Paris Minuit 1976 Rizoma ParrnalL~uea Pradche 1977 36 Em italiano no original (N da T)

37 Em italiano no original (N da T)

38middotG Teyssot Eterotopia e storiadegli spazi II displJlitirm FOllcault pp 83-86 e HelerolOpies and the historyofspaccs Arcbiacutetlctureandurbaniacutesm 121 1980 pp 79-100

mas o uso taxinocircmico do prefaacutecio de As Palavras eas coisas aplishy

cando-o a um projeto de hospital do seacuteculo XVIII descrito pelo

historiador J-c Perrot39bull Seu plano distribui como uma grade

em oiro construccedilotildees distintas oito classes de pensionaacuterios tatildeo

heterogecircneos quanto as categorias de animais da enciclopeacutedia de

Borges a) os prisioneiros a pedido de suas famiacutelias b) os loucos

os prisioneiros por edito real c) as crianccedilas pobres e legiacutetimas

dedois a nove anos os idosos os mendigos as prostitutas acoshy

metidas de doenccedilas veneacutereas d) as crianccedilas bastardas de mais

de nove anos etc Eacute a incongruecircncia do conteuacutedo que designa

a arquitetura como heterotopia e naacuteo o jogo de oposiccedilatildeo ou de contestaccedilaacuteo qualitativa ou simboacutelica dos outros espaccedilos que este

uacuteltimo institui por sua funccedilaacuteo sua forma suas rupturas

O uso da heteroropia feito por T eyssot de modo algum transshy

creve a inscriccedilaacuteo profunda da espacialidade na ttalidade da

existecircncia humana a heterogeneidade e a descontinuidade dos

tempos vividos os limiares da vida as crises bioloacutegicas (iniciashy

ccedilatildeo puberdade defloraccedilatildeo) Eacuteros e Taacutenatos As espacializaccedilotildees

da subjetividade sob todas as suas formas da casa de toleracircncia agrave

sauna e natildeo somente as grandes funccedilotildees da carta de Atenas receshy

beram em todas as culturas uma inscriccedilatildeo especiacutefica no espaccedilo

em espaccedilos que entretecircm entre si natildeo uma relaccedilatildeo de divisatildeo como interioridadeexterioridade margemcentro puacuteblicol prishy

vado mas um jogo formal de diferenciaccedilatildeo e de reverberaccedilatildeo

em suma no registro da comunicaccedilatildeo Tanto Relia que faz do

W J-C Perrot Genes du vilk mo Cam ali XVII sdele Paris Mouton 1975

POSFAacuteCIO

POSgtAClO

51

50 espaccedilo foucaultiano o receptaacuteculo neutro e contiacutenuo das hetero- topias do poder - concepccedilatildeo globalizante - quanto T eyssot que

faz da heterotopia a articulaccedilatildeo arquitetural das incongruecircncias

do mundo - concepccedilatildeo loealista - carecem ambos da terceira dimensatildeo aquela propriedade do espaccedilo de se remeter a si mesmo

na espessura de um jogo formal e simboacutelico de contestaccedilatildeo e de

reverberaccedilatildeo em uma fragmentaccedilatildeo que natildeo eacute segmentaccedilatildeo este Thirding que E Soja assim teoriza no Instituto de urbanismo de LosAngtlts na UeLA the Thirding as othering40

Essa primeira recepccedilatildeo das heterotopias pela escola de arquitetura de Veneza representada por II dispositivo Foucault mostra a ambiguidade da noccedilatildeo de recepccedilatildeo natildeo se trata de uma compreensatildeo exata nem de uma real instrumentalizaccedilatildeo mas de uma reimplantaccedillo poUss~mica e poMmica em uma rede de

debates poJJticos por um lado e de um questionamento episteshymoloacutegico por outro

Em julho de 1976 Foucault relembra pela primeira vez sua confercncia de 1967 em uma entrevista sobre o panoacuteptico de

Bentham publicada em 1977 mencionada aliaacutes por Teyssot Seria necessaacuterio escrever toda uma histoacuteria dos espaccedilos que fosse

ao mesmo tempo uma histoacuteria dos poderes desde as grandes estrateacutegias da geopoliacutetica ateacute as pequenas taacuteticas do habitat da arquitetura institucional da sala de aula ou da organizaccedilatildeo hosshy

pitalar passando pelas implantaccedilotildees econOacutemico-poliacuteticas Eacute surshypreendente ver quanto o problema dos espaccedilos levou tanto tempo

40 Bd Soja 7huacutelspact Journeys to Los Angks a11( Othtr lUa11( ltilM Ptampts Cambridge (Mass)Blackdl 1996

para aparecer como um problema histoacuterico-poliacutetico Lembro-me que haacute cerca de dez anos falei destes problemas de uma poliacutetica

dos espaccedilos e de me terem respondido que era bastante readoshy

naacuterio insistir tanto sobre o espaccedilo e que o tempo o projeto era a vida e o progresso 41

Uma histoacuteria foucaultiana dos espaccedilos mais precisamente

da espacializaccedilatildeo do poder mais precisamente ainda da inscriccedilatildeo

no espaccedilo colonial- heterot6pico - desse regime de poder partishycular que se desenvolve a partir do seacuteculo XVIII e que Foucault designa de biopoder42 a partir do qual os problemas de espaccedilo tornam-se politicamente diferentes eacute o projeto que no comeccedilo dos anos oitenta empreendem o antropoacutelogo Paul Rabinow43 e a historiadora do habitat americano Gwendolyn Wright44bull Nem

eles nem Franccedilois Beacuteguin conheciam a conferecircncia de 1967

Em uma entrevista que Rabinow e Wright fizeram com

Foucault em 198245 publicada em Skyline46 revista americana de

arquitetura o filoacutesofo lembra suas obsessotildees pelo espaccedilo e como

atraveacutes destas obsessotildees cheguei ao que eacute fundamental para mim as relaccedilotildees que satildeo possiacuteveis entre o poder e o saber

41 MFoucault J Bentham Lotil pouvoir in L Panoptiacuteque Opcil (Veja-se em traduccedilaacuteo brasileira de A L de SOU7 O olho do poder in Microfiacutesica b podtr op cit- N da T) 42 M Foucaull La Volon tk savoir Paris Gallimard 1976 cap V Droil de mort et pouvoir SUl I vie (Trad bras de M T da C Albuquerque e J A Guilhon Albuquerque A Vontade tk saber Rio de Janeiro Graal 1977 - N d T) 43 P Rabinow Biopower in lhe Frrnch Coloits conferecircncia interdisciplinar sobr Foucault Knowledge Power HislOry Los Angeles 29-31 de oUlubrol1981 Frrneh Modn Norms and Forms of th SfJCial Enviacuteronmmt Cambridge (M) MIT Press 1989 44 G Wright 7he Poliacutetics ofDltsigns in the Frrnch Colonial Urbanism Chicago University Preso 1991 45F B~n Arabisanm op cil 46 M Foucaull Space knowledge power entrerien avec P Rabinow Skyline marccedilo11982 pp 16-20 retomada em Dits tt Eacutecrits t N n 340 pp 270-285

POSFAacuteCIO

POSFAacuteCIO

53

52

A arquitetUra e o urbanismo naacuteo constituem diz ele um campo isoshylaacutevel Misturam-se com muacuteltiplas praacuteticas e discursos mas o espaccedilo

eacute o lugar privilegiado de compreensatildeo de como o poder opera

Inversamente ele bane da praacutetica do arquiteto toda esperanccedila

utoacutepica Os homens sonharam com maacutequinas libertadoras Mas por definiccedilatildeo natildeo existem maacutequinas de liberdade Jamais

a estrutura das coisas tem competecircncia para garantir a liberdade Nada eacute funcionalmente libertador A liberdade eacute o que se deve exercer a garantia da liberdade eacute a liberdade

Mestre doravante de um discurso poliacutetico e epistemoloacutegico sobre o espaccedilo Foucault deixa entatildeo ressurgir seu antigo conceito de heterotopia Diga-se entre parecircnteses lembro-me de ter sido

convidado por um grupo de arquitetos em 1966 para realizar um estudo do espaccediloi tratava-se do que na eacutepoca chamei de heterotopias espaccedilos singulares que encontramos em alguns

espaccedilos sociais cujas funccedilOes satildeo diferentes das dos outros ou tershy

minantemente opostas Os arquitetos trabalhavam neste projeto e no final do estudo algueacutem tomou a palavra _ um psicoacutelogo

sanreano - para me bombardear que o espaccedilo era reacionaacuterio e capitalista enquanto a histoacuteria e o devir eram revolucionaacuterios

Agravequela eacutepoca este discurso absurdo de modo algum era inabitual Hoje em dia qualquer um se dobraria de rir ouvindo aquilo

Natildeo haacute como natildeo se impressionar com esta longa anamnese em dois tempos primeiro em 1976 relativamente agrave objeccedilatildeo poliacuteshy

tica feita em 1967 e em 1982 enfim relativamente ao proacuteprio conceito de heterotopia em 1984 Foucault podia acolher favoshy

ravelmente a reutilizaccedilatildeo de sua conferecircncia pelo IBA de Berlim

Os dois organizadores da exposiccedilatildeo o alematildeo Johannes Gachnang e o italiano Marco de Michelis conheciam esse texto

em sua publicaccedilatildeo de 1968 em Architteturri7bull Ele sintonizava

estranhamente com a estrateacutegia do IBA tal como foi exposta por

um de seus dois responsaacuteveis J-P Kleihues48 executar a ideia

de uma cidade por fragmentos falar de arquitetur~ urbana sem traccedilar primeiramente um plano global de urbanismo respeitar

a variedade histoacuterica e topograacutefica berlinense pensar a composhysiccedilatildeo da cidade por ilhotas e ateacute confiar a diversos arquitetos a

reconstruccedilatildeo das residecircncias em uma mesma ilhota E por ocashy

siatildeo de uma reunificaccedilatildeo eventual justificar a conservaccedilatildeo da arquitetura staliniana

Sua traduccedilatildeo americana ocorreu em 1986 publicada prishy

meiramente na revista interdisciplinar de ComeU Diacriticis depois na revista de arquitetura LOtu9 Inaugurava-se uma carshy

reira nova para a interpretaccedilatildeo qualitativa dos espaccedilos outros

Natildeo se compreenderia esta carreira sem a simultaneidade da trashy

duccedilatildeo dos volumes II e III de Histoacuteria da sexualidaJe5deg a partir

dos quais Foucault torna-se uma referecircncia para aquilo que os americanos denominam poliacuteticas da identidade Movimentos

feministas movimento gay grupos eacutetnicos constituem a nova

47 Infurmaccedilaacuteo obtida com e1cs e concedida por Franccediloise Jolr 48 J-r Kleihues Agrave propos de I viUe europeacuteenne entreVista com M Bourdeau AMeS outubroI984

pp 95-99 49 M Foucault Ofother spaces Diacritieacuteiacutes 16 n I 1986 pp 22-27 e Lotushmnational 1986 50 M Foucaulr lUage tUacutes pIAis Paris Gallimaa 1984 uacute Souci Je soi Paris Gtlimn 1984 trad

1ht Use ofPlrasU Harmondsworth Penguin 1985 1ht Ca Dfthe sg Harmondsworth Penguin 1986 (Trad bras de M T da C Albuquerque O USQ dos p e O CuiJmJo Je si Rio de Janeiro Graal 1984 e 1985 - N da T)

POSFAacuteCIO

POSFAacuteCIO

54 rede de inscriccedilatildeo e a nova avaliaccedilatildeo das heterotopias A histoacuteshy

ria dos modos de subjetivaccedilatildeo realizada por Foucault atravessa

textos como lhe spaces that diferences make do urbanista Ed

Soja51 Gendered Spaces da feminista Daphne Spain52 lhe New Cultural Politics ofDijforence de Cornel West53 ou Geographical lmaginations do geoacutegrafo Derek Gregory54

Lugar de emergecircncia da heterotopia a anaacutelise literaacuteria dela

se apropria com Brian McHale Michel de Certeau5S a anaacutelise

fiacutelmica com Giuliana Bruno56bull Foucault torna-se passagem obrishy

gatoacuteria para toda anaacutelise do espaccedilo constata Soja

O mesmo se passa com as artes plaacutesticas Apresentando as

obras do artista plaacutestico cubano Felix Gonzalez-Torres Nancy

Spector descreve uma experiecircncia de ambiente heterotoacutepico

realizada em Manhattan57bull Em vinte e quatro paineacuteis de anuacutencio

publicitaacuterio das instalaccedilotildees urbanas de Manhattan Gonzalezshy

-Torres afixou o contraespaccedilo constituiacutedo por imensa foto em preto

e branco da intimidade de uma cama exposta Desnudamento

absoluto de um puro roccedilar de lenccediloacuteis leve traccedilado de duas cabeshy

ccedilas no vaacuteo entre os dois travesseiros onde cada qual pode proshy

jetar ou a interrupccedilatildeo do sono ou o amor consumado ou mais

51 Ed Soja The spa= that dlfenna makc ln M Kelm e S PIlbullbull PI4u iI1III lhe Politics olidmtiacutety NQVlI Iorque Roudedge 1993 pp 183middot205 52 D Spain Glt1JIUacutertaacute Spam Chapei Ht11 Unlverlty ofCarolIna Pras 1992 53 CWest 1M Ntw Cultural Politict oIDifimut ot h 1M Dilm_ ofrJu BIa lnttlkcttuuacute Ferguson 1994 54 D Gregory Gtographicalmaginatiacuteons citado ln Ed Soj hitrlspace Carobridge Bladltwell 1994 55 B McHale Post Moaacuteernist Fietion Nova Iorque Routledge 1988~ M de Certeau HettrologitS Discouffl 01tlu Otbtr Manchester Manchester University Presa 1986 56 G Bruno Bodlly ArchirecturesAltrtmblag 19 dezembro1992 57 N Spector Ptilt GonzakzmiddotTorres The Solamon R Guggenheim Museum Nova Iorque 1995

radicalmente a advertecircncia do artista uma decisatildeo de 1986 da

Corte suprema autoriza doravante a justiccedila em todo Estado em

que a sodomia eacute ainda um crime a persegui-la mesmo quando consentida entre adultos em suma a intimidade do espaccedilo prishy

vado da cama acaba de entrar no espaccedilo puacuteblico Esta articulashy

ccedilatildeo entre o puacuteblico e o privado poderia criar segundo Spector uma histoacuteria mais silenciosa a marca vazia do companheiro do

artista morto de aids

Maravilhosa intuiccedilatildeo no comeccedilo da confer~ncia radiofocircnica

de Foucault em 1966 daquela passagem inexistente na conferecircnshy

cia para os arquitetos em 1967 em que o fil6sofo evocava como

primeira figura da heterotopia a cama dos pais que as crianccedilas

gostam de invadir com um prazer de transgressatildeo e de sonho das origens Naacuteo poderiacuteamos concluir que aqui a longa seacuterie de

rein~riccedilotildees do texto em muacuteltiplas redes e estrateacutegias que a longa

seacuterie de transformaccedilotildees da figura social de seu autor encontram

neste instante de sua trajetoacuteria a mais completa forma de recepshyccedilatilde0 58 Foucault natildeo declarara tantas vezes que almejava menos

leitores que utilizadores59

58 Ed Soja Heterotopies remembrance Df other spaccs in me citadd LAraquo Strattgies a jIJurna 01 tbeory culturt anaacute poines 3 1990 pp 1middot39 Post metropolis Critiacutecal Stuties 01 Ctti naacute Rtglgtnt Londle$ Blackwdl 2000 59 Em 200I uma associaccedilatildeo cultural italiana denominada EttrotpirJ publicou uma releitura de textos de Foucaulr sobre o espaccedilo sob o titulo Spnialtri

POSFAacuteCIO POSFAacuteCIO

14 15 em certos casos no limite eacute o proacuteprio corpo que retorna seu

poder utoacutepico contra si e faz entrar todo o espaccedilo do religioso

e do sagrado todo o espaccedilo do outro mundo todo o espaccedilo do

contramundo no interior mesmo do espaccedilo que lhe eacute reservado

Entatildeo o corpo na sua materialidade na sua carne seria como o

produto de seus proacuteprios fantasmas Afinal o corpo do danccedilarino

natildeo eacute justamente um corpo dilatado segundo um espaccedilo que lhe

eacute ao mesmo tempo interior e exterior E os drogados tambeacutem e

os possuiacutedos os possuiacutedos cujo corpo torna-se inferno os estigshy

matizados cujo corpo torna-se sofrimento resgate e salvaccedilatildeo

ensanguentado paraiacuteso

Verdadeiramente enganara-me haacute pouco ao crer que o

corpo jamais estivesse em outro lugar que era um aqui irremeshy

diaacutevel e que se opunha a toda utopia

Meu corpo estaacute de fato sempre em outro lugar ligado a todos

os outros lugares do mundo e na verdade estaacute em outro lugar

que natildeo o mundo Pois eacute em torno dele que as coisas estatildeo disshy

postas eacute em relaccedilatildeo a ele - e em relaccedilatildeo a ele como em relaccedilatildeo a

um soberano - que haacute um acima um abaixo uma direita uma

esquerda um diante um atraacutes um proacuteximo um longiacutenquo O

corpo eacute o ponto zero do mundo laacute onde os caminhos e os espaccedilos

se cruzam o corpo estaacute em parte alguma ele estaacute no coraccedilatildeo do

mundo este pequeno fulcro utoacutepico a partir do qual eu sonho

falo avanccedilo imagino percebo as coisas em seu lugar e tambeacutem

as nego pelo poder indefinido das utopias que imagino Meu

corpo eacute como a Cidade do Sol naacuteo tem lugar mas eacute dele que

saem e se irradiam todos os lugares possiacuteveis reais ou utoacutepicos

CORPO UTOacutePICO

As crianccedilas afinal levam muito tempo para saber que tecircm

um corpo Durante meses durante mais de um ano elas tecircm

apenas um corpo disperso membros cavidades orifiacutecios e tudo

isso soacute se organiza tudo isso literalmente toma corpo somente

na imagem do espelho De modo mais estranho ainda os gregos

de Homero natildeo tinham uma palavra para designar a unidade do

corpo Por paradoxal que seja diante de Troacuteia abaixo dos muros

defendidos por Heitor e seus companheiros natildeo havia corpos

mas braccedilos erguidos peitos intreacutepidos pernas aacutegeis capacetes

cintilantes em cima de cabeccedilas natildeo havia corpo A palavra grega

para dizer corpo soacute aparece em Homero para designar cadaacutever

Eacute o cadaacutever portanto o cadaacutever e o espelho que nos ensinam

(enfim que ensinaram aos gregos e agora ensinam agraves crianccedilas)

que temos um corpo que este corpo tem uma forma que esta

forma tem um contorno que no contorno haacute uma espessura um

peso em suma que o corpo ocupa um lugar Espelho e cadaacutever

eacute que asseguram um espaccedilo para a experiecircncia profundamente e

originariamente utoacutepica do corpo espelho e cadaacutever eacute que silenshy

ciam e serenizam encerrando em uma clausura - que para noacutes

hoje eacute selada esta grande coacutelera utoacutepica que corroacutei e volatiliza

nosso corpo a todo instante Graccedilas a eles graccedilas ao espelho e

ao cadaacutever eacute que nosso corpo natildeo eacute pura e simples utopia Ora

se considerarmos que a imagem do espelho estaacute alojada para

noacutes em um espaccedilo inacessiacutevel e que jamais poderemos estar laacute

onde estaraacute nosso cadaacutever se considerarmos que o espelho e o

cadaacutever estatildeo eles proacuteprios em um inatingiacutevel outro lugar desshy

cobrimos entatildeo que unicamente as utopias podem fazer refluir

o CORPO UTOacutePICO

16 nelas mesmas e esconder por um instante a utopia profunda e

soberana de nosso corpo

Seria talvez necessaacuterio dizer tambeacutem que fazer amor eacute senshy

tir o corpo refluir sobre si eacute existir enfim fora de toda utopia

com toda densidade entre as matildeos do outro Sob os dedos do

outro que nos percorrem todas as partes invisiacuteveis de nosso

corpo potildeem-se a existir contra os laacutebios do outro os nossos se

tornam sensiacuteveis diante de seus olhos semicerrados nosso rosto

adquire uma certeza existe um olhar enfim para ver nossas paacutelshy

pebras fechadas O amor tambeacutem ele como o espelho e como

a morte sereniza a utopia de nosso corpo silencia-a acalma-a

fecha-a como se numa caixa tranca-a e a sela Eacute por isso que ele eacute

parente tatildeo proacuteximo da ilusatildeo do espelho e da ameaccedila da morte

e se apesar dessas duas figuras perigosas que o cercam amamos

tanto fazer amor eacute porque no amor o corpo estaacute aqui

33 HETEROTOPIA TRIBULACcedilOtildeES DE UM CONCEITO ENTRE VENEZA BERLIM E LOS ANGELESl

No dia 14 de marccedilo de 1967) o Ciacuterculo de estudos arquiacuteteturais de Paris convidara Foucault a pronunciar uma conferecircncia sobre

() espaccedilo para a qual ele propocircs uma analiacutetica nova que batizou

de heterotopologia O texto desta conferecircncia teve circulaccedilatildeo

restrita reservada aos membros daquele ciacuterculo em forma datishy

lografada com exceccedilatildeo de extratos publicados em francecircs em

1968 na revista italiana LArchittetura2 ateacute sua publicaccedilatildeo em

Berlim no outono de 1984 no quadro da exposiccedilatildeo ldeacutee proshymsus reacutesultats no Martin-Gropius-Bau3bull

Essa exposiccedilatildeo foi a principal dentre as dezessete manifestashy

ccedilotildees com as quais a Internationale Bauausstellung (IBN) apreshy

sentou ao mundo o balanccedilo de suas atividades de reconstruccedilatildeo

e renovaccedilatildeo de Berlim Imaginava-se a reunificaccedilatildeo da cidadeshy

-capital que parecia estranhamente ilustrar os espaccedilos outros do

texto de Foucault de 1967 Autorizando sua publicaccedilatildeo pouco

antes da sua morte ocorrida em 25 de junho de 1984 o fi16sofo

a introduzira in extremis no corpus de seus escritos autorizados

I Oucra versatildeo deste texto fui publicada em 1997 no caraacutelogo de Dccummta X em Kassd 2 M Foucault Des espaces aurres EArthinura mJtlltck stvria vol XIII n 150 1968 pp 822-823 M Foucault Des espaces aurres AMes ~ darrhitt(lUrt ourubrofll984 pp 46-49 Eacute esla versatildeo t 1984 signincatiacuteVllmente diferente da que reproduzimos no presente volume que estaacute incluiacuteda cm IJIIiS et Eacutecrits Paris Gallimard t Iv texto n 360 (Martin-Gropius-Bau museu localizado em Berlim Inaugurado em 1881 - N da T) 4 IBA Exposiccedilatildeo internacional de consrruccedilatildeo sigla retomada mais adiante (N da T)

POSFAacuteCIO

34 Desde enrao () lCx ro f()i thlilldantllllllltl trad uzido e comenshy

tado C omo podl prrt na IICLt1 i1I(xplo rlllu d II ranrc vitae anos

Olllo nail c lO l llpn( nd clI Icrgll l1 tl t Edward Soja entushy

sia ~t1 IrolliOl OI l tl illlllli 1I 11I d 1 rmfflpIIf1fJI a Illlporrancia

1l0V(1 d(1 tp t1I t d1 (PH Itlld ldt I I dlvl III )dcrllmos intershy

pretl r 1 di qlIlCl1 ( IIII(~ I _I~ 111 dIIW 1)(1 7 II)IH e a hist6ria

dcs~c -i ltlIli ll 111111 1 h i~I( 1 ti l h 11I 1 11 IlIlp~o1(t A~ nocoes

dt nIt IIO ti t 11111 IllI l ln fU(IAII11I1 Utl l IIVO dc analise

suficic ll lc rnlc J ( fino plI dl 1t1lh lr IIl1n I lit I t trw sfOrmashy

coes tanto d le) diM lI 1m (I ~k~ PII 11101111 c politicos

dos arquitctos t lIIhalli tl 11(11 1 II I Ulll ~ IIJII UItlS quan to da

problematica do cspao 11 11 I ~llll( de 1 -(~~ IIc1I

Linguagem e espa~o

Voce se lembra daqude l(k~I III I1 1111 Ihl III I ir l1nro em

que urn arquiteto via uma nova Ltl JlU~lIj I 11III1~mo Mas

isto nao estava em urn livro Cst I VI 1 111111 I ~ I I 1111111 nll1fcrencia

radiofonica sobre a utopia Pedt lll li lt pw II l( nll~1 1111 dia J3 ou 14 de marco

Esta carta escrita em Sidi BOil ~ai 1 1I1I di1 2 dt lIlano de

1967 e 0 testemunho mais antigo do ( I ll II II I IIJ d f~ FI)lllluJrcom

os arquitetos Em 7 de dezembro dt I )h h li e tll ~ld lll de uma

serie radiofonica chamada de Cuhlll1 rI( I tlllsagrada a 5 amp1 Soja Rembrance of ocher spaces in [he ciradd LA 114(rO Jrftj

Politics 3 1990 p 1 39 Art igo dcscnvolvulo em Ed Soja Ij Rral Imagined Plam Cambridg~ (Mss) Blockwell 1996

6 P Bou rJi cu Quesr-cc q Ut fai l e parler urn ) U[lur A prop d Mit Ii t l I --I ~ ~~h III f~r n

plitmtlltions n especial tlSureiUcr er punic vingt aIl~ pres II Iltl T ~lI ltI L ~middotIIn II t IH

lgto~AClO

35 u topia ele fora convidado a falar sobre Utopia e Literatural

Pactindo de uma evocacao bachelardiana daqueles espacos que

encantam os jogos infantis como os celeiros 0 fundo do jardim

a tenda de Indios ou a cama dos pais verdadeiras utopias localishy

zadas sonhou com uma ciencia que teria por objeto estes espashy

cos diferentes que sao a contestacao dos espaltos onde vivemos

nao uma ciencia das utopias mas das heterotopias cie ncia dos

espacos absolutamente ourros Esta ciencia 011 hecerotopologia

que esta em vias de nascer que ji cxistc c cujos prindpios ele

enunciara naquele dia

As emissoes radiofonicas de Foucault - nas quais de se reveshy

lava urn maravilhoso contista - respondiam aenorme curiosishy

dade suscitada desde a primavera de 1966 pela publicacao de

As Palavras e as coisas 8bull 0 livro se abria com a descricao de uma

improvavd enciclopedia chinesa inventada por Borges segundo

a qual os animais se distribufam em quatorze classes do seguinte

tipo a) pertencenres ao imperador b) embalsamados c) domesshy

ticados k) desenhados com urn pincel muito fino de pelo de

cameoj I) et cetera m) que acabam de quebrar a biJha Esta

desordem que faz cintilar os fragmentos de urn grande numero

de ordens possiveis fora batizada por Foucault de heterotopia

o termo se opunha a utopia etimologicamente nao lugar e nao

eu-topia como se tende a crer Mas se as utopias narram urn lugar

7 M Foucault Uwpi( bem opi quivo sonora de 7 e 2 1 de dczombro de 19(6 CCOIrc Midd Foucaul t DibLioth~uc dc IIM EC-Cacn (eeditad em diso pdo INA em 2004 (rNA In iw Ntiorul de IAudinvisucl - Nd T)

8 M Foucault Ln Mots a Choses Paris Gallimard 1966 (TC3d u~() b silt ira de S T Muchail As PaiArdH as coilas Sao Paulo Martins Fontes 1981 - N da n

POSFAClO

36 37 que natildeo existe desabrocham contudo em um espaccedilo imaginaacuteshy

rio e por isso situam-se na linha reta do discurso pois desde

o fundo dos tempos a linguagem se entrecruza com o espaccedilo A lista de Borges ao contraacuterio estanca as palavras nelas proacuteprias pois a heterotopia arruiacutena natildeo somente a sintaxe das frases como

tambeacutem aquela menos manifesta que autoriza manter juntas as palavras e as coisas9

A impossibilidade em que se encontra nosso pensamento para pensar esse heteroacuteclito radical da classificaccedilatildeo de Borges tesshytemunha um limite do pensamento o mesmo limite que ainda

experimentamos diante das classificaccedilotildees proacuteprias agraves culturas que nos satildeo radicalmente estranhas Quando Victor TurnerlO descreve como os Ndembu da Zacircmbia reuacutenem em uma mesma

classe os caccediladores as viuacutevas os doentes e os guerreiros isto

natildeo implica um espaccedilo de pertenci menta concebido como tershyritoacuterio comum nem um espaccedilo de pertencimento concebido

como ramificaccedilotildees definidas por propriedades formais como

aquele no qual n6s distribuiacutemos os reinos da natureza nem a linearidade arbitraacuteria de uma ordem alfabeacutetica com a qual nosshy

sos dicionaacuterios ordenam o heteroclito no espaccedilo Ele descreve um sistema de analogias de similitudes entre propriedades simshyboacutelicas cujas interconexotildees precisamos traccedilar em uma paacutegina em branco a fim de compreender esse sistema ou o espaccedilo de similitudes Natildeo se pode pensar sem o suporte de um espaccedilo de ordem sem esta zona mediana que Foucault qualifica

9 M FOUaacutelulr Les MolJ ks Choses op dto prefaacutecio p 9 (Ar Plarmu l1li cow pp 5-8 _ N d T) 10 Victor Turner (1920-1983) antropoacutelogo britilnico (N da T)

de arqueoloacutegica por sob nossas percepccedilotildees nossos discursos nossos saberes onde se articulam o visiacutevel e o enunciaacutevel a linshy

guagem o olhar e o espaccedilo

Na emissatildeo radiofocircnica de 7 de dezembro de 1966 Foucault fez um uso totalmente diferente de sua noccedilaacuteo de heterotopia Primeiro ela eacute pertinente natildeo mais a uma anaacutelise dos discursos

mas dos espaccedilos Lugares tatildeo heteroacuteclitos como o espelho o cemiteacuterio a casa de toleracircncia ou a colocircnia polineacutesia de feacuterias em

Djerba entram em uma categoria especiacutefica de espaccedilos-tempos quer este tempo seja provisoacuterio como o tempo uacutenico da defloshy

raccedilatildeo no espaccedilo da viagem de nuacutepcias quer este tempo seja ao contraacuterio cumulativo de temporalidades - atemporal- no lugar da biblioteca ou do museu

Essas unidades espaccedilo-temporais esses espaccedilos-tempos tecircm em comum serem lugares onde estou e natildeo estou como o espeshy

lho ou o cemiteacuterio ou onde sou outro como na casa de toleracircnshy

cia na colocircnia de feacuterias ou na festa carnavalizaccedilotildees da existecircncia

ordinaacuteria Eles ritualizam cortes limiares desvios e os localizam As normas humanas natildeo satildeo todas universalizaacuteveis as da

disciplinarizaccedilatildeo do trabalho e as da transfiguraccedilatildeo pela festa

naacuteo podem desenrolar-se na linearidade de um mesmo espaccedilo ou de um mesmo tempo eacute preciso uma forte ritualizaccedilaacuteo das rupturas dos limiares das crises Estes contraespaccedilos poreacutem saacuteo

Interpenetrados por todos os outros espaccedilos que eles contestam o espelho onde natildeo estou reflete o contexto onde estou o cemishyteacuterio eacute planejado como a cidade haacute reverberaccedilatildeo dos espaccedilos uns nos outros e contudo descontinuidades e rupturas Haacute

POSlACIO

POSFACIO

38 39 enfim como que um eterno retorno desses rituais espaccedilo-temshy

porais e se natildeo universalizaccedilatildeo das mesmas formas ao menos

uma universalidade de sua existecircncia Eles satildeo apreendidos em

uma sincronia e uma diacronia especiacuteficas que fazem deles um

sistema significante entre os sistemas da arquitetura Natildeo refleshy

tem a estrutura social nem a da produccedilatildeo natildeo satildeo um sistema

soacutecio-histoacuterico nem uma ideologia mas rupturas da vida ordishy

naacuteria imaginaacuterios representaccedilotildees polifocircnicas da vida da morte

do amor de Eacuteros e Taacutenatos

A carta de Foucault de 2 de marccedilo de 1967 deixa vazar um

Utopias e heterotopias O Ciacuterculo de estudos arquiteturais era animado entre 1960 e

1970 por Jean Dubuisson seu presidente arquiteto do Museu

(te Artes e Tradiccedilotildees Populares do Bosque de Boulogne e Ionel

Schein que indicava os conferencistas a serem convidados ao

Boulevard Raspail nuacutemero 38 Era um dos raros ciacuterculos de

reflexatildeo de arquitetos sem corporativismo no qual nos anos

cinquenta e sessenta Ionel Schein gozava da lisonjeira reputaccedilatildeo

de agitador de ideias e de radicalismo em arquitetura I I Foi ele

segundo Jean Dubuisson quem convidou Foucault As confeshy

recircncias eram anotadas em estenografia e depois datilografadas e

do arquiteto Natildeo natildeo fora o livro (As Palavras e as coisas) que

desapontamento a arqueologia do olhar natildeo retivera o olhar entregues aos membros do Ciacuterculo Pierre Riboulet - arquiteto

trouxera em germe uma nova concepccedilatildeo do urbanismo livro do entre outros do hospital Robert-Debreacute - conservou sua coacutepia

qual o filoacutesofo esperava a provocaccedilatildeo de rupturas no pensamento Ele se lembra das precauccedilotildees oratoacuterias do filoacutesofo para introduzir

No entanto estas rupturas foram suficientemente ruidosas pelo seu propoacutesito a insistecircncia sobre sua ignoracircncia quanto agraves preshy

menos ateacute o ruiacutedo de 1968 para que Foucault viesse a deixar ocupaccedilotildees dos arquitetos As referecircncias -satildeo tomadas da histoacuteria

tanto o tumulto da gloacuteria quanto o das polecircmicas pela serenidade das ciecircncias (Koyreacute Bachelard) da criacutetica literaacuteria a-p Richard

da luminosa vila de Sidi Bou Sald no alto do golfo de Cartago e Ianchot) da psicanaacutelise existencial (Binswanger) assuntos

a paz - sempre difiacutecil - da escritura Heterotopia vivida O que todos eles sobre os quais Foucault jaacute havia desenvolvido suas

chegara aos ouvidos do arquiteto era uma linguagem menor obsessotildees do espaccedilo12

um daqueles jogos literaacuterios nos quais Foucault tinha um prazer Para marcar seu entusiasmo agrave saiacuteda dessa conferecircncia Robert

guloso juacutebilo incessantemente decepado pela ascese da escrishy Auzelle um dos pensadores da reconstruccedilatildeo da Franccedila a partir

tura contenccedilatildeo que se lecirc na didaacutetica da conferecircncia reescrita d()s anos cinquenta lhe entregou sua histoacuteria da arquitetura

esta para os arquitetos certamente mas os jogos literaacuterios ficam II ltuklt tas infOrmaccedilotildees sobre o Circulo de tstutIos arqumlumis me foram fOrnecidas por P Riboulet

aqui finalmente retranscritos com todo respeito agrave integralidade Illxprcssatildeo utilizada por Fouault in Quesdons agrave Michel Fouault sur la geacuteographie HiroIIote n I 1lt)76 pp 71-85 retomada em Diu et Eacutecriu t m n 169 Paris Gallimard 1994 p 33 (Trad bras de

sonora da qual nasceram K Machado e A L de Souza Sobre a geografia in Microflsica do potUacuter Rio de Janeiro Graal 1979 1IIU-165-N daT)

POSFAacuteCIOPOSFAco

40 41 funeraacuteria e dos cemiteacuterios13 uma das heterotopias de Foucault

Em O Nascimento da cllnica14 Foucault descrevera como a anatoshy

mopatologia havia integrado a morte no conhecimento da vida

oferecer-lhe a hist6ria da integraccedilatildeo dos cemiteacuterios na planificashy

ccedilatildeo urbana provava a perfeita cumplicidade entre seus ouvintes

e o conferencista a negatividade estava no cerne da racionalishy

dade Ela estava no cerne das anaacutelises de Foucault pelo menos ateacute Vigiar epunit5

Foi no final deste mesmo ano de 1967 que Jean-Luc Godard

em A Chinesa fez sua heroiacutena a estudante pr6-chinesa interpreshy

tada por Alme Wiazemsky jogar tomates em um exemplar de As Palavras eas coisas entio um livro siacutembolo por suas descontinuishy

dades abruptas do pensamento no tempo da negaccedilatildeo da hist6ria e portanto da negaccedillo da revoluccedilatildeo

A confercncia de 1967 poderia ter outra circulaccedilatildeo aleacutem da

c6pia datHografada entre os membros do Circulo O pr6prio

Circulo natildeo possuiacutea uma revista e nlo editava nenhuma de suas

conferecircncias Por outro lado as concepccedilotildees que entatildeo partilhashy

vam os arquitetos deviam muito a Le Corbusier e agrave Bauhaus agrave

racionalizaccedilatildeo das formas e agrave legibilidade do espaccedilo urbano

concebido como um texto pontuado com referecircncias espaccedilos

ou edifiacutecios Franccediloise Choay que Foucault frequentara nos anos

13 R AuzeUe Derniim Dmlnlm Paris ed do autor 13 PIace du Panrlleacuteon 1965 14 M Foucault Naissanct de la ClitlUacuteJue Paris PUF 1963(Trad bru de R Machado ONtUCimentIJ da clnCIt ruo d Janeiro Forense-Universitaacuteria 1977 - N da T) 15 M Foucaul Survdlkr tIPunir Paris Gallimard 1975 A obra apresenta o panoacuteptico de Benthrun como um acontecimento na histoacuteria do esplrito humanomiddot epropotildee uma anill1sc do poder em termos d produccedilatildeo e natildeo de repressatildeo (Trad bras de R Ramalhete VIgiar11mr Pett6poliacutes Vous 1987 _ N da T)

ttenta reconstitui essas problemaacuteticas em Urbanisme utopies et rtaiteacutesl6

Um urbanismo progressista humanista que se sustentava

111amp carta de Atenas l7 e em uma racionalidade crescente ou um

urbanismo culturalista para o qual cada forma eacute siacutembolo e que

(Ilha com nostalgia para a harmonia das cidades passadas estas

tmm as ideias reguladoras da razatildeo urbaniacutestica Estas ideias

rCguladoras jaacute natildeo talhavam em pontilhado o espaccedilo da utopia

em que viria a desdobrar-se ap6s 1968 o discurso arquitetural e

urbano em uma dissoluccedilatildeo do objeto cidade no seio das relaccedilotildees

udais capitalistas A cidade como totalidade formal ou racional

I1Ao foi deslocada pelo capitalismo O espaccedilo natildeo eacute uma imensa

paacutegina em branco onde se escreve desde cerca de dois seacuteculos a

Illetanarraccedilaacuteo do capital Naacuteo estaacute aiacute o impensado geral o natildeo

dito de todas essas divisoacuterias construiacutedas entre as classes os sexos

C as geraccedilotildees

O fasciacutenio das escolas de arquitetura pela visita a cidades

patronais estas utopias realizadas como o familisteacuterio de Guise

unstruiacuteda por Godin ou a cidade Menier de Noisiell8 testeshy

munha que o discurso arquitetural e urbaniacutestico francecircs dos anos

etenta se desdobrava no espaccedilo da utopia Os promotores dessas

cidades natildeo estariam entre os primeiros a inventar o consumo

em massa Um reduzia as dimensotildees da milenar e dispendiosa

1111( Choay UrbanisIM UtIJpits tt rlaitis Paris Seuil 1965 17 Carta de Atenas manifesto do IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (Ciam) Atn 1933 (N da T) I Pamllisteacuterio de Guise espeacutecie de comunidade ou cidade operaacuteria inspirada em Charles Fourier IIl1nmulda em 1846 por J-BGodln para habitaccedilatildeo de operaacuterios de sua induacutestria Menler de Noisiel IDmunldade de operaacuterios da ptoduccedilatildeo de chocolates fundada por A B Menier em 1925 nas imediaccedilotildees bull arl (N da T)

POSFAtildeCIO POSFAacuteCIO

42 43 lareira a um aquecedor domeacutestico outro um medicamento dos

exeacutercitos napoleocircnicos a um complemento alimentar industrial

o tablete de chocolate Natildeo teriam eles articulado da maneira

mais restrita a racionalizaccedilatildeo do consumo com a da ocupaccedilatildeo do

espaccedilo A racionalizaccedilatildeo da cidade patronal como a fragmentaccedilatildeo

do espaccedilo urbano o homog~neo como o heterogecircneo conduziam

a um mesmo crivo de leitura infalsificaacutevel a espacializaccedilatildeo do

capital O arquiteto tornava-se o teacutecnico passivo da operacionashy

lizaccedilatildeo das estrateacutegias e das normas do capital

Mostra-se uacutetil falar indiferentemente das utopias preacute-urshy

banistas das cidades operaacuterias de Haussmann da Bauhaus do

funcionalismo dos Shakers dos grandes conjuntos das cidades

novas por toda parte afirma-se perigosamente uma racionalishy

zaccedilatildeo do espaccedilo inerente agrave extensatildeo universal do capital uma

propensatildeo de sua ordem de troca ou da ordem simplesmente podia-se ler na revista Traverse19bull

Genealogia dos equipamento coletivol Eacute a partir de 1972 que Foucault desenvolve pesquishy

sas em equipe sobre a histoacuteria dos equipamentos coletivos

Primeiramente com o Centro de estudos pesquisas eformaccedilatildeo instishytucional- ou Cerfi - animado pelo psiquiatra Feacutelix Guattari que

conclui entatildeo com Gilles Deleuze a redaccedilatildeo do seu Anti-Eacutediptldeg

19 B Eizykman Urbanismo Travme n 4 1976 citado por A Thalamy in PolltilJues tk lhabitat Corda

1977 p 14 (o nome Shaker designa um movimento de grupos religiosos fundado na Inglaterra no seacuteculo XVIII que - agrave semelhanccedila dos Amish- vivem em suas proacuteprias comunidades _ N da T) 20 G Deleuze F Guattari LAnti-CEdipe Paris Minuit 1972 (Trad bras de L B L Orlandi O Antishy-Eacutedipo Satildeo Paulo 34 2010 - N da T)

( rliacuteldo em 1965 com pesquisadores em ciecircncias sociais dissidenshy

trN do Partido Comunista Francecircs (PCF) o Cerfi apoacutes 1970 I()( em questatildeo sua cultura marxista submetendo-a a uma dupla

Inova 1) a do procedimento genealoacutegico praticado em Histoacuteria Ioucura e O Nascimento da cliacutenica 2) a de uma clarificaccedilatildeo

IIlN relaccedilotildees libidinais que todo pesquisador manteacutem com o

uhjeto de sua pesquisa (a ambivalecircncia da reflexatildeo urbaniacutestica

frente agrave racionalidade capitalista natildeo escapava a ningueacutem) e que

UIe pesquisadores mantecircm entre si como grupo social hierarquishy

uto e sexuado

O relato da realizaccedilatildeo dessa dupla prova publicada na revista

do Cerfi21 eacute provavelmente um dos mais interessantes diaacuterios de

hordo da travessia ideoloacutegica daqueles anos Ali se assiste como

lue em um laboratoacuterio agrave desagregaccedilatildeo da anaacutelise marxista e

~ emergecircncia daquilo que logo seraacute batizado de atitude poacutesshy

-moderna O empreendimento eacute descrito por seus autores como

uma estranha maacutequina feita de peccedilas e pedaccedilos emprestados do

Ilenealogista Foucault surrupiadas do depoacutesito do cientista biceacuteshy

falo Deleuze-Guattari

O genealogista Foucault eacute de fato uma nova imagem social

do filoacutesofo o procedimento genealoacutegico soacute estaraacute francamente

c()nfirmado a partir de seu ensino no Colge de France inaugurado

em dezembro de 1970 Ademais a partir de 1971 juntamente

com Deleuze ele anima um movimento militante o Grupo de

JI (eacuteneacutealogie du capital- I Les eacutequipements du pouvoir Recherches n 13 dezembro1973 Um s6 bullbullbullmplo de uma retomada das hettrotopias por H umre a propoacutesito de La Pensuuml marxiste de la vilte IIrlbullbull Casterman 1972

POSFAacuteCJO POSFAacuteCIO

44 45 informarao sobre as prisoes (GIP) enraizado na extrema esquerda

Foucault disc ute com 0 Cedi que trabalha sobre a cidade22

a abordagem genealogica dos equipamemos coletivos e a poe

em pritica sobretudo no seu seminario do College de France 0

seminario e consagrado aemergencia do medico como perito

no seculo XIX atraves da pericla psiquiatrica em medicina legal

por urn lado e por outro como engenheiro que comribui para

a definicao das normas e formas da arquitetura hospitalar Urn

arquiteto Bruno Fortier responsavel pelo Centro de estudos epesshy

quisas em arquitetura (Cera) participa doravame dos trabalhos

de pesquisa desse seminario

Se a expressao equipamemo coletivo nao figura nos textos

do seculo XVIII a maquina de curar definida pelo medico

Tenon como ideal do hospital moderno neles tern lugar A

arquitetura hospitalar escreve Tenon2 nao pode mais constishy

tuir-se de rotina c tateamemos devendo responder a multiplas

prcocupacentes estancar 0 contagio pela distribuicao das salas e

dns leiros a circuhlltao do ar tavorecer a diss()cia~ao dos doemes

c das d()cn~as a vigilancia dos dotntcs e do pessoal manifestar

a hierarquia do olhar medico ter em coma as necessidades da

populacao 0 que serve para curar nao e a regularidade do trashy

cado mas a justeza da arquitetura 0 modelo deve ser perfeito

- nao se podendo mais em nada muda-Io - acabado repetivel

Pela primeira vez em 1788 escreve Bruno Fortier propoe-se

22 Ruhhl1 n 13 op cir pp 27middot31 (Dits ~I fcrit n 129 n 130) 23 J-R Tenon M moirs sur It~middot api fl llX tie P1ris Paris 1788

aos arquitetos a imitacao como urn dever24 as tipologias norshy

mativas seguem os exemplos oferecidos pela historia A justeza

da arquitetura nasce do tratamemo de uma rede de questoes disshy

timas - c1imaticas demogdficas estatisticas higienicas medicas

disciplinares - que tern cada qual seu lugar de emergencia sua

racionalidade seus promotores que respondcm a uma multiplishy

cidade de taticas - tecnicas de vigilancia de producao de saber

de efetuacao de poderes de medica l iza~lo c de saude publica

Elas podem ser descritas como segmemos analogos Oll repetidos

ao infinito de urn so texto de um escrevcnrc unico Illitico e

unitario 0 capital

Certamente esses novos edificios incorporam dticas de

vigil an cia encomradas fora sob outras formas arquiteturais shy

colegios casernas - taticas e formas que puderam preceder e

sustemar a emergencia da organizacao capitalista do trabalho e

que poderao proliferar para alem dela por exemplo nos vast os

arquipelagos do socialismo siberiano Eque fundamemalmeme

nao estamos Iidando nem com formas arquiteturais nem com

modos de producao mas com tecnologias de poder Foi na busca

destas arquiteturas maquinas tao ajustadas aos seus objetishy

vos que Foucault veio a redescobrir 0 que logo tornou-se parashy

digma de sua obra 0 panoptico de Bcntham2 do qual Poyet26

24 M Fo ucault D Barrer-Kriegel A Thahmy F Btgllin B tllrlicr L-IVIi(Jilln II X4lrir (m4JI l)rigill ~1

de OJOpilil modnrl~) Paris lnsri ru[ de J cnvi ronncm cnt 1976 rccd Hruu lOl) Iirc M~rda8Q J~79

25 J Bcmham Le Panoptiqui p rcccdido de Loeil du pouI-vir cnrrcmiddotvisru Om Michel Fou~ult P~ ri s

Bdfond 1977 (faC-ltimik da cdjao franccsa de 179 1) (Trod bras d bullbullm rvi 0 Ih do poder por A L de S OU-1 in Microfli ra tQ pokr op Ci l pp209-227 - N d 1)

26 B Poyet M h noiu sur a niassili d( Iransera lt u collsrlli r tIf-fj rd-lhrm w ill dull pm)lmiddotr It

traminlioll k eel hopil4l Paris 1785

IOSFACIO pOSFAeiO

46

47 desenhara uma interpretaccedilatildeo para a reconstruccedilatildeo da Santa Casa de Misericoacuterdia Os trabalhos do seminaacuterio do College de Frante sobre a arquitetura hospitalar no final do seacuteculo XVIII recebeshy

ram duas ediccedilotildees uma em Paris em 1976 outra em Bruxelas em 1979 Les Machints agravegutrir27

O segundo estudo coletivo dirigido por Foucault teve por objeto o habitatentre 1800 e 185018 Foi conduzido por Franccedilois

Beacuteguin hoje historiador da paisagem e da arquitetura colonial29bull

Ametodologia ~ a mesma que a precedente no lugar de partir de

uma histoacuteria das formas da habitaccedilAo ou da cidade os pesquisashydores inventariaram as pr~tlcllll discursivas que circunscreveram e

codificaram o habitat como obJero de intervenccedilatildeo administrativa e politica entre 1800 e 1850 - a doenccedila o emprego a domestishycaccedilatildeo de equipamentos como a ~gua a iluminaccedilatildeo a ventilaccedilatildeo

e o desenvolvimento de uma crescente jurisdiccedilatildeo sobre o espaccedilo

puacuteblico em cuja intersecccedillo se connroacutei o habitat Eacute preciso prishy

meiramente desfazer-se da pregnAncla da casa desmineralizaacute-la desconstruiacute-la escreve F B6guln

Poder saber es~

Eacute a partir de vtgiar t punir (1975) e de sua raacutepida circulaccedilatildeo Iacutemernacional- traduzido rapidamente em cerca de vinte liacutenguas - que as anaacutelises foucaultianas do espaccedilo recebem uma visibilishy

dade nova como lugar de uma dupla articulaccedilio do poder sobre

27 M fucault B Barrer-Kriegd A Thalamy F Beacutepdn B fIorllr ln MtIthllltt 4 gubir op cit 28 ]-M A1Haume B Barret-Kriegcl F Seguin D Ranclere A lhalamy PDitifUtt tk lhabitat 18()() 1850 Paris Corda 1977 (estudo realizado sob a direccedilAo de M Poucaull)

29 De F Beacuteguin citemos principalmente ArabIacuteSlUlett dko illChlmhI4 ubitill Afoque du Norri 1830-1850 Paris Dunod 1983 e Paysagtt Paris Flammarlon 19

o corpo do indiviacuteduo e do saber ao poder Seguem-se numerosos estudos sobre a arquitetura da vigilacircncia publicados na Itaacutelia e na Gratilde-Bretanha principalmente3deg De modo mais geral socioacuteshy

logos e planificadores urbanos comeccedilam a referir-se a Foucault

A Leaman escreveu em Environment and Plannintl que a obra de Foucault eacute doravante importante para os urbanistas planifishy

cadores e arquitetos por sua anaacutelise das qualidades normativas

das estruturas e das instituiccedilotildees Sharon Zukin considera que a cidade estaacute doravante incluiacuteda nas anaacutelises de uma economia

do poder segundo o meacutetodo desenvolvido em vtgiar e punir32bull

Esse eacute o contexto em que reaparecem as heterotopias na escola de arquitetura de Veneza em dezembro de 1977 prishymeiro estudo sobre seu uso possiacutevel em uma histoacuteria dos espashyccedilos II dispositivo Foucault 33 que reuacutene ensaios de M Cacciari

F RelIa M Tafuri G Teyssot A capa como a de Machines agrave gueacuterir reproduz um plano de arquitetura panoacuteptico para um

hospital inglecircs Os autores se referem essencialmente a Vtgiar e punir e exceto T eyssot a uma reuniatildeo de textos de Foucault sobre o poder publicado neste mesmo ano pela editora Einaudi

Microfisica deipotert4 a incidecircncia poliacutetica desta uacuteltima coletacircnea

lO Ver especialmente HinmJmd primeiro ano n 3 maio-junho1978 n triliacutengue intitulado Segrtgazione corpo sociak consagrado agraves atquitetuta de vigilanda jl A Leaman in Environmmtand Planning n 111979 pp 1079-1082 H Sh Zukin Adecade cfilie new urban sociology 1heoryand Society 91980 pp 575-601 H M Cacdari F Relia M Tafuri G Teyssor II dispositillO Foucaut Veneza Cluva 1977 4 M Iltlucaullt MimfoIacuteCIJ rktpoYrt inkrUtntipoitici editado por Iltlnrana e Pasquino Turin Einudi 1977 retomado e completado pelo movimento alternativo berlinense Dispositive tkr Macht Betlin Merve 1978 (A reuniaacuteo d textos que compotildecm a ediccedilatildeo italiana a=sdda de oUtros textos reltebeu traduccedilaacuteo brasileira de R Machado e OUrtOS Micrufisica do potkr Rio de Janeiro Graal 1979 Foi publicada tambeacutem uma ediccedilaacuteo espanhola com algumas alteraccedilotildees dos tcxtos sdeclonados trad por J Varela e F A1varez-UrIacutell Madri La Piquem 1978 - N da T)

POSFAacuteCIO

POSFAclO

48 49 foi imediata logo reforccedilada pela traduccedilatildeo de Rhizome de Deleuze

e GuattarP livros que se tornaram referecircncias teoacuterico-poliacutetishy

cas do movimento chamado Autonomie (do poliacutetico subenshytenda-se) que incomodava a esquerda do PCI engajado na

estrateacutegia do compromisso histoacuterico ~ esta incidecircncia poliacutetica

que os italianos batizaram de leffeto Foucault36 que eacute o alvo de 1 dispositivo Poucault

A introduccedilatildeo agrave coletAnea escrita por F Rella eacute perfeitamente expliacutecita desde Jogo travare as anaacutelises foucaultianas da pluralishy

dade das relaccedilotildees de poder em uma metafisica do poder de um poder abstrato imaterial supostamente em toda parte e portanto

politicamente em parte alguma liA uacutenica histoacuteria dos poderes eacute

uma histoacuteria dos espaccedilos atraveacutes dos quais o poder se mostra E

apoiando-se no artigo de Teyssot como uacutenica fonte de conhecishy

mento das heterotopias prossegue O nlo lugar do poder situashy

-se no centro de uma infinidade de localizaccedilotildees heterotoacutepicas

A heterotopia torna-se entatildeo um dado central em Foucault

e a hetero topologia a fenomenologia da dlspersio anaacuterquica do

poder A conclusatildeo desta interpretaccedilatildeo eacute previsiacutevel Natildeo se comshy

bate mais o poder doravante investidp em uma miriacuteade de locashylizaccedilotildees [ou dispositivos] mas a tirania das teorias globalizantesraquo

Teorias que Rella explicita precisando em nota leffeto Marx37 Na verdade Teyssot38 natildeo comenta a confer~ncia de 1967

35 G Deleuu F Guattari Rhizo1M Paris Minuit 1976 Rizoma ParrnalL~uea Pradche 1977 36 Em italiano no original (N da T)

37 Em italiano no original (N da T)

38middotG Teyssot Eterotopia e storiadegli spazi II displJlitirm FOllcault pp 83-86 e HelerolOpies and the historyofspaccs Arcbiacutetlctureandurbaniacutesm 121 1980 pp 79-100

mas o uso taxinocircmico do prefaacutecio de As Palavras eas coisas aplishy

cando-o a um projeto de hospital do seacuteculo XVIII descrito pelo

historiador J-c Perrot39bull Seu plano distribui como uma grade

em oiro construccedilotildees distintas oito classes de pensionaacuterios tatildeo

heterogecircneos quanto as categorias de animais da enciclopeacutedia de

Borges a) os prisioneiros a pedido de suas famiacutelias b) os loucos

os prisioneiros por edito real c) as crianccedilas pobres e legiacutetimas

dedois a nove anos os idosos os mendigos as prostitutas acoshy

metidas de doenccedilas veneacutereas d) as crianccedilas bastardas de mais

de nove anos etc Eacute a incongruecircncia do conteuacutedo que designa

a arquitetura como heterotopia e naacuteo o jogo de oposiccedilatildeo ou de contestaccedilaacuteo qualitativa ou simboacutelica dos outros espaccedilos que este

uacuteltimo institui por sua funccedilaacuteo sua forma suas rupturas

O uso da heteroropia feito por T eyssot de modo algum transshy

creve a inscriccedilaacuteo profunda da espacialidade na ttalidade da

existecircncia humana a heterogeneidade e a descontinuidade dos

tempos vividos os limiares da vida as crises bioloacutegicas (iniciashy

ccedilatildeo puberdade defloraccedilatildeo) Eacuteros e Taacutenatos As espacializaccedilotildees

da subjetividade sob todas as suas formas da casa de toleracircncia agrave

sauna e natildeo somente as grandes funccedilotildees da carta de Atenas receshy

beram em todas as culturas uma inscriccedilatildeo especiacutefica no espaccedilo

em espaccedilos que entretecircm entre si natildeo uma relaccedilatildeo de divisatildeo como interioridadeexterioridade margemcentro puacuteblicol prishy

vado mas um jogo formal de diferenciaccedilatildeo e de reverberaccedilatildeo

em suma no registro da comunicaccedilatildeo Tanto Relia que faz do

W J-C Perrot Genes du vilk mo Cam ali XVII sdele Paris Mouton 1975

POSFAacuteCIO

POSgtAClO

51

50 espaccedilo foucaultiano o receptaacuteculo neutro e contiacutenuo das hetero- topias do poder - concepccedilatildeo globalizante - quanto T eyssot que

faz da heterotopia a articulaccedilatildeo arquitetural das incongruecircncias

do mundo - concepccedilatildeo loealista - carecem ambos da terceira dimensatildeo aquela propriedade do espaccedilo de se remeter a si mesmo

na espessura de um jogo formal e simboacutelico de contestaccedilatildeo e de

reverberaccedilatildeo em uma fragmentaccedilatildeo que natildeo eacute segmentaccedilatildeo este Thirding que E Soja assim teoriza no Instituto de urbanismo de LosAngtlts na UeLA the Thirding as othering40

Essa primeira recepccedilatildeo das heterotopias pela escola de arquitetura de Veneza representada por II dispositivo Foucault mostra a ambiguidade da noccedilatildeo de recepccedilatildeo natildeo se trata de uma compreensatildeo exata nem de uma real instrumentalizaccedilatildeo mas de uma reimplantaccedillo poUss~mica e poMmica em uma rede de

debates poJJticos por um lado e de um questionamento episteshymoloacutegico por outro

Em julho de 1976 Foucault relembra pela primeira vez sua confercncia de 1967 em uma entrevista sobre o panoacuteptico de

Bentham publicada em 1977 mencionada aliaacutes por Teyssot Seria necessaacuterio escrever toda uma histoacuteria dos espaccedilos que fosse

ao mesmo tempo uma histoacuteria dos poderes desde as grandes estrateacutegias da geopoliacutetica ateacute as pequenas taacuteticas do habitat da arquitetura institucional da sala de aula ou da organizaccedilatildeo hosshy

pitalar passando pelas implantaccedilotildees econOacutemico-poliacuteticas Eacute surshypreendente ver quanto o problema dos espaccedilos levou tanto tempo

40 Bd Soja 7huacutelspact Journeys to Los Angks a11( Othtr lUa11( ltilM Ptampts Cambridge (Mass)Blackdl 1996

para aparecer como um problema histoacuterico-poliacutetico Lembro-me que haacute cerca de dez anos falei destes problemas de uma poliacutetica

dos espaccedilos e de me terem respondido que era bastante readoshy

naacuterio insistir tanto sobre o espaccedilo e que o tempo o projeto era a vida e o progresso 41

Uma histoacuteria foucaultiana dos espaccedilos mais precisamente

da espacializaccedilatildeo do poder mais precisamente ainda da inscriccedilatildeo

no espaccedilo colonial- heterot6pico - desse regime de poder partishycular que se desenvolve a partir do seacuteculo XVIII e que Foucault designa de biopoder42 a partir do qual os problemas de espaccedilo tornam-se politicamente diferentes eacute o projeto que no comeccedilo dos anos oitenta empreendem o antropoacutelogo Paul Rabinow43 e a historiadora do habitat americano Gwendolyn Wright44bull Nem

eles nem Franccedilois Beacuteguin conheciam a conferecircncia de 1967

Em uma entrevista que Rabinow e Wright fizeram com

Foucault em 198245 publicada em Skyline46 revista americana de

arquitetura o filoacutesofo lembra suas obsessotildees pelo espaccedilo e como

atraveacutes destas obsessotildees cheguei ao que eacute fundamental para mim as relaccedilotildees que satildeo possiacuteveis entre o poder e o saber

41 MFoucault J Bentham Lotil pouvoir in L Panoptiacuteque Opcil (Veja-se em traduccedilaacuteo brasileira de A L de SOU7 O olho do poder in Microfiacutesica b podtr op cit- N da T) 42 M Foucaull La Volon tk savoir Paris Gallimard 1976 cap V Droil de mort et pouvoir SUl I vie (Trad bras de M T da C Albuquerque e J A Guilhon Albuquerque A Vontade tk saber Rio de Janeiro Graal 1977 - N d T) 43 P Rabinow Biopower in lhe Frrnch Coloits conferecircncia interdisciplinar sobr Foucault Knowledge Power HislOry Los Angeles 29-31 de oUlubrol1981 Frrneh Modn Norms and Forms of th SfJCial Enviacuteronmmt Cambridge (M) MIT Press 1989 44 G Wright 7he Poliacutetics ofDltsigns in the Frrnch Colonial Urbanism Chicago University Preso 1991 45F B~n Arabisanm op cil 46 M Foucaull Space knowledge power entrerien avec P Rabinow Skyline marccedilo11982 pp 16-20 retomada em Dits tt Eacutecrits t N n 340 pp 270-285

POSFAacuteCIO

POSFAacuteCIO

53

52

A arquitetUra e o urbanismo naacuteo constituem diz ele um campo isoshylaacutevel Misturam-se com muacuteltiplas praacuteticas e discursos mas o espaccedilo

eacute o lugar privilegiado de compreensatildeo de como o poder opera

Inversamente ele bane da praacutetica do arquiteto toda esperanccedila

utoacutepica Os homens sonharam com maacutequinas libertadoras Mas por definiccedilatildeo natildeo existem maacutequinas de liberdade Jamais

a estrutura das coisas tem competecircncia para garantir a liberdade Nada eacute funcionalmente libertador A liberdade eacute o que se deve exercer a garantia da liberdade eacute a liberdade

Mestre doravante de um discurso poliacutetico e epistemoloacutegico sobre o espaccedilo Foucault deixa entatildeo ressurgir seu antigo conceito de heterotopia Diga-se entre parecircnteses lembro-me de ter sido

convidado por um grupo de arquitetos em 1966 para realizar um estudo do espaccediloi tratava-se do que na eacutepoca chamei de heterotopias espaccedilos singulares que encontramos em alguns

espaccedilos sociais cujas funccedilOes satildeo diferentes das dos outros ou tershy

minantemente opostas Os arquitetos trabalhavam neste projeto e no final do estudo algueacutem tomou a palavra _ um psicoacutelogo

sanreano - para me bombardear que o espaccedilo era reacionaacuterio e capitalista enquanto a histoacuteria e o devir eram revolucionaacuterios

Agravequela eacutepoca este discurso absurdo de modo algum era inabitual Hoje em dia qualquer um se dobraria de rir ouvindo aquilo

Natildeo haacute como natildeo se impressionar com esta longa anamnese em dois tempos primeiro em 1976 relativamente agrave objeccedilatildeo poliacuteshy

tica feita em 1967 e em 1982 enfim relativamente ao proacuteprio conceito de heterotopia em 1984 Foucault podia acolher favoshy

ravelmente a reutilizaccedilatildeo de sua conferecircncia pelo IBA de Berlim

Os dois organizadores da exposiccedilatildeo o alematildeo Johannes Gachnang e o italiano Marco de Michelis conheciam esse texto

em sua publicaccedilatildeo de 1968 em Architteturri7bull Ele sintonizava

estranhamente com a estrateacutegia do IBA tal como foi exposta por

um de seus dois responsaacuteveis J-P Kleihues48 executar a ideia

de uma cidade por fragmentos falar de arquitetur~ urbana sem traccedilar primeiramente um plano global de urbanismo respeitar

a variedade histoacuterica e topograacutefica berlinense pensar a composhysiccedilatildeo da cidade por ilhotas e ateacute confiar a diversos arquitetos a

reconstruccedilatildeo das residecircncias em uma mesma ilhota E por ocashy

siatildeo de uma reunificaccedilatildeo eventual justificar a conservaccedilatildeo da arquitetura staliniana

Sua traduccedilatildeo americana ocorreu em 1986 publicada prishy

meiramente na revista interdisciplinar de ComeU Diacriticis depois na revista de arquitetura LOtu9 Inaugurava-se uma carshy

reira nova para a interpretaccedilatildeo qualitativa dos espaccedilos outros

Natildeo se compreenderia esta carreira sem a simultaneidade da trashy

duccedilatildeo dos volumes II e III de Histoacuteria da sexualidaJe5deg a partir

dos quais Foucault torna-se uma referecircncia para aquilo que os americanos denominam poliacuteticas da identidade Movimentos

feministas movimento gay grupos eacutetnicos constituem a nova

47 Infurmaccedilaacuteo obtida com e1cs e concedida por Franccediloise Jolr 48 J-r Kleihues Agrave propos de I viUe europeacuteenne entreVista com M Bourdeau AMeS outubroI984

pp 95-99 49 M Foucault Ofother spaces Diacritieacuteiacutes 16 n I 1986 pp 22-27 e Lotushmnational 1986 50 M Foucaulr lUage tUacutes pIAis Paris Gallimaa 1984 uacute Souci Je soi Paris Gtlimn 1984 trad

1ht Use ofPlrasU Harmondsworth Penguin 1985 1ht Ca Dfthe sg Harmondsworth Penguin 1986 (Trad bras de M T da C Albuquerque O USQ dos p e O CuiJmJo Je si Rio de Janeiro Graal 1984 e 1985 - N da T)

POSFAacuteCIO

POSFAacuteCIO

54 rede de inscriccedilatildeo e a nova avaliaccedilatildeo das heterotopias A histoacuteshy

ria dos modos de subjetivaccedilatildeo realizada por Foucault atravessa

textos como lhe spaces that diferences make do urbanista Ed

Soja51 Gendered Spaces da feminista Daphne Spain52 lhe New Cultural Politics ofDijforence de Cornel West53 ou Geographical lmaginations do geoacutegrafo Derek Gregory54

Lugar de emergecircncia da heterotopia a anaacutelise literaacuteria dela

se apropria com Brian McHale Michel de Certeau5S a anaacutelise

fiacutelmica com Giuliana Bruno56bull Foucault torna-se passagem obrishy

gatoacuteria para toda anaacutelise do espaccedilo constata Soja

O mesmo se passa com as artes plaacutesticas Apresentando as

obras do artista plaacutestico cubano Felix Gonzalez-Torres Nancy

Spector descreve uma experiecircncia de ambiente heterotoacutepico

realizada em Manhattan57bull Em vinte e quatro paineacuteis de anuacutencio

publicitaacuterio das instalaccedilotildees urbanas de Manhattan Gonzalezshy

-Torres afixou o contraespaccedilo constituiacutedo por imensa foto em preto

e branco da intimidade de uma cama exposta Desnudamento

absoluto de um puro roccedilar de lenccediloacuteis leve traccedilado de duas cabeshy

ccedilas no vaacuteo entre os dois travesseiros onde cada qual pode proshy

jetar ou a interrupccedilatildeo do sono ou o amor consumado ou mais

51 Ed Soja The spa= that dlfenna makc ln M Kelm e S PIlbullbull PI4u iI1III lhe Politics olidmtiacutety NQVlI Iorque Roudedge 1993 pp 183middot205 52 D Spain Glt1JIUacutertaacute Spam Chapei Ht11 Unlverlty ofCarolIna Pras 1992 53 CWest 1M Ntw Cultural Politict oIDifimut ot h 1M Dilm_ ofrJu BIa lnttlkcttuuacute Ferguson 1994 54 D Gregory Gtographicalmaginatiacuteons citado ln Ed Soj hitrlspace Carobridge Bladltwell 1994 55 B McHale Post Moaacuteernist Fietion Nova Iorque Routledge 1988~ M de Certeau HettrologitS Discouffl 01tlu Otbtr Manchester Manchester University Presa 1986 56 G Bruno Bodlly ArchirecturesAltrtmblag 19 dezembro1992 57 N Spector Ptilt GonzakzmiddotTorres The Solamon R Guggenheim Museum Nova Iorque 1995

radicalmente a advertecircncia do artista uma decisatildeo de 1986 da

Corte suprema autoriza doravante a justiccedila em todo Estado em

que a sodomia eacute ainda um crime a persegui-la mesmo quando consentida entre adultos em suma a intimidade do espaccedilo prishy

vado da cama acaba de entrar no espaccedilo puacuteblico Esta articulashy

ccedilatildeo entre o puacuteblico e o privado poderia criar segundo Spector uma histoacuteria mais silenciosa a marca vazia do companheiro do

artista morto de aids

Maravilhosa intuiccedilatildeo no comeccedilo da confer~ncia radiofocircnica

de Foucault em 1966 daquela passagem inexistente na conferecircnshy

cia para os arquitetos em 1967 em que o fil6sofo evocava como

primeira figura da heterotopia a cama dos pais que as crianccedilas

gostam de invadir com um prazer de transgressatildeo e de sonho das origens Naacuteo poderiacuteamos concluir que aqui a longa seacuterie de

rein~riccedilotildees do texto em muacuteltiplas redes e estrateacutegias que a longa

seacuterie de transformaccedilotildees da figura social de seu autor encontram

neste instante de sua trajetoacuteria a mais completa forma de recepshyccedilatilde0 58 Foucault natildeo declarara tantas vezes que almejava menos

leitores que utilizadores59

58 Ed Soja Heterotopies remembrance Df other spaccs in me citadd LAraquo Strattgies a jIJurna 01 tbeory culturt anaacute poines 3 1990 pp 1middot39 Post metropolis Critiacutecal Stuties 01 Ctti naacute Rtglgtnt Londle$ Blackwdl 2000 59 Em 200I uma associaccedilatildeo cultural italiana denominada EttrotpirJ publicou uma releitura de textos de Foucaulr sobre o espaccedilo sob o titulo Spnialtri

POSFAacuteCIO POSFAacuteCIO

16 nelas mesmas e esconder por um instante a utopia profunda e

soberana de nosso corpo

Seria talvez necessaacuterio dizer tambeacutem que fazer amor eacute senshy

tir o corpo refluir sobre si eacute existir enfim fora de toda utopia

com toda densidade entre as matildeos do outro Sob os dedos do

outro que nos percorrem todas as partes invisiacuteveis de nosso

corpo potildeem-se a existir contra os laacutebios do outro os nossos se

tornam sensiacuteveis diante de seus olhos semicerrados nosso rosto

adquire uma certeza existe um olhar enfim para ver nossas paacutelshy

pebras fechadas O amor tambeacutem ele como o espelho e como

a morte sereniza a utopia de nosso corpo silencia-a acalma-a

fecha-a como se numa caixa tranca-a e a sela Eacute por isso que ele eacute

parente tatildeo proacuteximo da ilusatildeo do espelho e da ameaccedila da morte

e se apesar dessas duas figuras perigosas que o cercam amamos

tanto fazer amor eacute porque no amor o corpo estaacute aqui

33 HETEROTOPIA TRIBULACcedilOtildeES DE UM CONCEITO ENTRE VENEZA BERLIM E LOS ANGELESl

No dia 14 de marccedilo de 1967) o Ciacuterculo de estudos arquiacuteteturais de Paris convidara Foucault a pronunciar uma conferecircncia sobre

() espaccedilo para a qual ele propocircs uma analiacutetica nova que batizou

de heterotopologia O texto desta conferecircncia teve circulaccedilatildeo

restrita reservada aos membros daquele ciacuterculo em forma datishy

lografada com exceccedilatildeo de extratos publicados em francecircs em

1968 na revista italiana LArchittetura2 ateacute sua publicaccedilatildeo em

Berlim no outono de 1984 no quadro da exposiccedilatildeo ldeacutee proshymsus reacutesultats no Martin-Gropius-Bau3bull

Essa exposiccedilatildeo foi a principal dentre as dezessete manifestashy

ccedilotildees com as quais a Internationale Bauausstellung (IBN) apreshy

sentou ao mundo o balanccedilo de suas atividades de reconstruccedilatildeo

e renovaccedilatildeo de Berlim Imaginava-se a reunificaccedilatildeo da cidadeshy

-capital que parecia estranhamente ilustrar os espaccedilos outros do

texto de Foucault de 1967 Autorizando sua publicaccedilatildeo pouco

antes da sua morte ocorrida em 25 de junho de 1984 o fi16sofo

a introduzira in extremis no corpus de seus escritos autorizados

I Oucra versatildeo deste texto fui publicada em 1997 no caraacutelogo de Dccummta X em Kassd 2 M Foucault Des espaces aurres EArthinura mJtlltck stvria vol XIII n 150 1968 pp 822-823 M Foucault Des espaces aurres AMes ~ darrhitt(lUrt ourubrofll984 pp 46-49 Eacute esla versatildeo t 1984 signincatiacuteVllmente diferente da que reproduzimos no presente volume que estaacute incluiacuteda cm IJIIiS et Eacutecrits Paris Gallimard t Iv texto n 360 (Martin-Gropius-Bau museu localizado em Berlim Inaugurado em 1881 - N da T) 4 IBA Exposiccedilatildeo internacional de consrruccedilatildeo sigla retomada mais adiante (N da T)

POSFAacuteCIO

34 Desde enrao () lCx ro f()i thlilldantllllllltl trad uzido e comenshy

tado C omo podl prrt na IICLt1 i1I(xplo rlllu d II ranrc vitae anos

Olllo nail c lO l llpn( nd clI Icrgll l1 tl t Edward Soja entushy

sia ~t1 IrolliOl OI l tl illlllli 1I 11I d 1 rmfflpIIf1fJI a Illlporrancia

1l0V(1 d(1 tp t1I t d1 (PH Itlld ldt I I dlvl III )dcrllmos intershy

pretl r 1 di qlIlCl1 ( IIII(~ I _I~ 111 dIIW 1)(1 7 II)IH e a hist6ria

dcs~c -i ltlIli ll 111111 1 h i~I( 1 ti l h 11I 1 11 IlIlp~o1(t A~ nocoes

dt nIt IIO ti t 11111 IllI l ln fU(IAII11I1 Utl l IIVO dc analise

suficic ll lc rnlc J ( fino plI dl 1t1lh lr IIl1n I lit I t trw sfOrmashy

coes tanto d le) diM lI 1m (I ~k~ PII 11101111 c politicos

dos arquitctos t lIIhalli tl 11(11 1 II I Ulll ~ IIJII UItlS quan to da

problematica do cspao 11 11 I ~llll( de 1 -(~~ IIc1I

Linguagem e espa~o

Voce se lembra daqude l(k~I III I1 1111 Ihl III I ir l1nro em

que urn arquiteto via uma nova Ltl JlU~lIj I 11III1~mo Mas

isto nao estava em urn livro Cst I VI 1 111111 I ~ I I 1111111 nll1fcrencia

radiofonica sobre a utopia Pedt lll li lt pw II l( nll~1 1111 dia J3 ou 14 de marco

Esta carta escrita em Sidi BOil ~ai 1 1I1I di1 2 dt lIlano de

1967 e 0 testemunho mais antigo do ( I ll II II I IIJ d f~ FI)lllluJrcom

os arquitetos Em 7 de dezembro dt I )h h li e tll ~ld lll de uma

serie radiofonica chamada de Cuhlll1 rI( I tlllsagrada a 5 amp1 Soja Rembrance of ocher spaces in [he ciradd LA 114(rO Jrftj

Politics 3 1990 p 1 39 Art igo dcscnvolvulo em Ed Soja Ij Rral Imagined Plam Cambridg~ (Mss) Blockwell 1996

6 P Bou rJi cu Quesr-cc q Ut fai l e parler urn ) U[lur A prop d Mit Ii t l I --I ~ ~~h III f~r n

plitmtlltions n especial tlSureiUcr er punic vingt aIl~ pres II Iltl T ~lI ltI L ~middotIIn II t IH

lgto~AClO

35 u topia ele fora convidado a falar sobre Utopia e Literatural

Pactindo de uma evocacao bachelardiana daqueles espacos que

encantam os jogos infantis como os celeiros 0 fundo do jardim

a tenda de Indios ou a cama dos pais verdadeiras utopias localishy

zadas sonhou com uma ciencia que teria por objeto estes espashy

cos diferentes que sao a contestacao dos espaltos onde vivemos

nao uma ciencia das utopias mas das heterotopias cie ncia dos

espacos absolutamente ourros Esta ciencia 011 hecerotopologia

que esta em vias de nascer que ji cxistc c cujos prindpios ele

enunciara naquele dia

As emissoes radiofonicas de Foucault - nas quais de se reveshy

lava urn maravilhoso contista - respondiam aenorme curiosishy

dade suscitada desde a primavera de 1966 pela publicacao de

As Palavras e as coisas 8bull 0 livro se abria com a descricao de uma

improvavd enciclopedia chinesa inventada por Borges segundo

a qual os animais se distribufam em quatorze classes do seguinte

tipo a) pertencenres ao imperador b) embalsamados c) domesshy

ticados k) desenhados com urn pincel muito fino de pelo de

cameoj I) et cetera m) que acabam de quebrar a biJha Esta

desordem que faz cintilar os fragmentos de urn grande numero

de ordens possiveis fora batizada por Foucault de heterotopia

o termo se opunha a utopia etimologicamente nao lugar e nao

eu-topia como se tende a crer Mas se as utopias narram urn lugar

7 M Foucault Uwpi( bem opi quivo sonora de 7 e 2 1 de dczombro de 19(6 CCOIrc Midd Foucaul t DibLioth~uc dc IIM EC-Cacn (eeditad em diso pdo INA em 2004 (rNA In iw Ntiorul de IAudinvisucl - Nd T)

8 M Foucault Ln Mots a Choses Paris Gallimard 1966 (TC3d u~() b silt ira de S T Muchail As PaiArdH as coilas Sao Paulo Martins Fontes 1981 - N da n

POSFAClO

36 37 que natildeo existe desabrocham contudo em um espaccedilo imaginaacuteshy

rio e por isso situam-se na linha reta do discurso pois desde

o fundo dos tempos a linguagem se entrecruza com o espaccedilo A lista de Borges ao contraacuterio estanca as palavras nelas proacuteprias pois a heterotopia arruiacutena natildeo somente a sintaxe das frases como

tambeacutem aquela menos manifesta que autoriza manter juntas as palavras e as coisas9

A impossibilidade em que se encontra nosso pensamento para pensar esse heteroacuteclito radical da classificaccedilatildeo de Borges tesshytemunha um limite do pensamento o mesmo limite que ainda

experimentamos diante das classificaccedilotildees proacuteprias agraves culturas que nos satildeo radicalmente estranhas Quando Victor TurnerlO descreve como os Ndembu da Zacircmbia reuacutenem em uma mesma

classe os caccediladores as viuacutevas os doentes e os guerreiros isto

natildeo implica um espaccedilo de pertenci menta concebido como tershyritoacuterio comum nem um espaccedilo de pertencimento concebido

como ramificaccedilotildees definidas por propriedades formais como

aquele no qual n6s distribuiacutemos os reinos da natureza nem a linearidade arbitraacuteria de uma ordem alfabeacutetica com a qual nosshy

sos dicionaacuterios ordenam o heteroclito no espaccedilo Ele descreve um sistema de analogias de similitudes entre propriedades simshyboacutelicas cujas interconexotildees precisamos traccedilar em uma paacutegina em branco a fim de compreender esse sistema ou o espaccedilo de similitudes Natildeo se pode pensar sem o suporte de um espaccedilo de ordem sem esta zona mediana que Foucault qualifica

9 M FOUaacutelulr Les MolJ ks Choses op dto prefaacutecio p 9 (Ar Plarmu l1li cow pp 5-8 _ N d T) 10 Victor Turner (1920-1983) antropoacutelogo britilnico (N da T)

de arqueoloacutegica por sob nossas percepccedilotildees nossos discursos nossos saberes onde se articulam o visiacutevel e o enunciaacutevel a linshy

guagem o olhar e o espaccedilo

Na emissatildeo radiofocircnica de 7 de dezembro de 1966 Foucault fez um uso totalmente diferente de sua noccedilaacuteo de heterotopia Primeiro ela eacute pertinente natildeo mais a uma anaacutelise dos discursos

mas dos espaccedilos Lugares tatildeo heteroacuteclitos como o espelho o cemiteacuterio a casa de toleracircncia ou a colocircnia polineacutesia de feacuterias em

Djerba entram em uma categoria especiacutefica de espaccedilos-tempos quer este tempo seja provisoacuterio como o tempo uacutenico da defloshy

raccedilatildeo no espaccedilo da viagem de nuacutepcias quer este tempo seja ao contraacuterio cumulativo de temporalidades - atemporal- no lugar da biblioteca ou do museu

Essas unidades espaccedilo-temporais esses espaccedilos-tempos tecircm em comum serem lugares onde estou e natildeo estou como o espeshy

lho ou o cemiteacuterio ou onde sou outro como na casa de toleracircnshy

cia na colocircnia de feacuterias ou na festa carnavalizaccedilotildees da existecircncia

ordinaacuteria Eles ritualizam cortes limiares desvios e os localizam As normas humanas natildeo satildeo todas universalizaacuteveis as da

disciplinarizaccedilatildeo do trabalho e as da transfiguraccedilatildeo pela festa

naacuteo podem desenrolar-se na linearidade de um mesmo espaccedilo ou de um mesmo tempo eacute preciso uma forte ritualizaccedilaacuteo das rupturas dos limiares das crises Estes contraespaccedilos poreacutem saacuteo

Interpenetrados por todos os outros espaccedilos que eles contestam o espelho onde natildeo estou reflete o contexto onde estou o cemishyteacuterio eacute planejado como a cidade haacute reverberaccedilatildeo dos espaccedilos uns nos outros e contudo descontinuidades e rupturas Haacute

POSlACIO

POSFACIO

38 39 enfim como que um eterno retorno desses rituais espaccedilo-temshy

porais e se natildeo universalizaccedilatildeo das mesmas formas ao menos

uma universalidade de sua existecircncia Eles satildeo apreendidos em

uma sincronia e uma diacronia especiacuteficas que fazem deles um

sistema significante entre os sistemas da arquitetura Natildeo refleshy

tem a estrutura social nem a da produccedilatildeo natildeo satildeo um sistema

soacutecio-histoacuterico nem uma ideologia mas rupturas da vida ordishy

naacuteria imaginaacuterios representaccedilotildees polifocircnicas da vida da morte

do amor de Eacuteros e Taacutenatos

A carta de Foucault de 2 de marccedilo de 1967 deixa vazar um

Utopias e heterotopias O Ciacuterculo de estudos arquiteturais era animado entre 1960 e

1970 por Jean Dubuisson seu presidente arquiteto do Museu

(te Artes e Tradiccedilotildees Populares do Bosque de Boulogne e Ionel

Schein que indicava os conferencistas a serem convidados ao

Boulevard Raspail nuacutemero 38 Era um dos raros ciacuterculos de

reflexatildeo de arquitetos sem corporativismo no qual nos anos

cinquenta e sessenta Ionel Schein gozava da lisonjeira reputaccedilatildeo

de agitador de ideias e de radicalismo em arquitetura I I Foi ele

segundo Jean Dubuisson quem convidou Foucault As confeshy

recircncias eram anotadas em estenografia e depois datilografadas e

do arquiteto Natildeo natildeo fora o livro (As Palavras e as coisas) que

desapontamento a arqueologia do olhar natildeo retivera o olhar entregues aos membros do Ciacuterculo Pierre Riboulet - arquiteto

trouxera em germe uma nova concepccedilatildeo do urbanismo livro do entre outros do hospital Robert-Debreacute - conservou sua coacutepia

qual o filoacutesofo esperava a provocaccedilatildeo de rupturas no pensamento Ele se lembra das precauccedilotildees oratoacuterias do filoacutesofo para introduzir

No entanto estas rupturas foram suficientemente ruidosas pelo seu propoacutesito a insistecircncia sobre sua ignoracircncia quanto agraves preshy

menos ateacute o ruiacutedo de 1968 para que Foucault viesse a deixar ocupaccedilotildees dos arquitetos As referecircncias -satildeo tomadas da histoacuteria

tanto o tumulto da gloacuteria quanto o das polecircmicas pela serenidade das ciecircncias (Koyreacute Bachelard) da criacutetica literaacuteria a-p Richard

da luminosa vila de Sidi Bou Sald no alto do golfo de Cartago e Ianchot) da psicanaacutelise existencial (Binswanger) assuntos

a paz - sempre difiacutecil - da escritura Heterotopia vivida O que todos eles sobre os quais Foucault jaacute havia desenvolvido suas

chegara aos ouvidos do arquiteto era uma linguagem menor obsessotildees do espaccedilo12

um daqueles jogos literaacuterios nos quais Foucault tinha um prazer Para marcar seu entusiasmo agrave saiacuteda dessa conferecircncia Robert

guloso juacutebilo incessantemente decepado pela ascese da escrishy Auzelle um dos pensadores da reconstruccedilatildeo da Franccedila a partir

tura contenccedilatildeo que se lecirc na didaacutetica da conferecircncia reescrita d()s anos cinquenta lhe entregou sua histoacuteria da arquitetura

esta para os arquitetos certamente mas os jogos literaacuterios ficam II ltuklt tas infOrmaccedilotildees sobre o Circulo de tstutIos arqumlumis me foram fOrnecidas por P Riboulet

aqui finalmente retranscritos com todo respeito agrave integralidade Illxprcssatildeo utilizada por Fouault in Quesdons agrave Michel Fouault sur la geacuteographie HiroIIote n I 1lt)76 pp 71-85 retomada em Diu et Eacutecriu t m n 169 Paris Gallimard 1994 p 33 (Trad bras de

sonora da qual nasceram K Machado e A L de Souza Sobre a geografia in Microflsica do potUacuter Rio de Janeiro Graal 1979 1IIU-165-N daT)

POSFAacuteCIOPOSFAco

40 41 funeraacuteria e dos cemiteacuterios13 uma das heterotopias de Foucault

Em O Nascimento da cllnica14 Foucault descrevera como a anatoshy

mopatologia havia integrado a morte no conhecimento da vida

oferecer-lhe a hist6ria da integraccedilatildeo dos cemiteacuterios na planificashy

ccedilatildeo urbana provava a perfeita cumplicidade entre seus ouvintes

e o conferencista a negatividade estava no cerne da racionalishy

dade Ela estava no cerne das anaacutelises de Foucault pelo menos ateacute Vigiar epunit5

Foi no final deste mesmo ano de 1967 que Jean-Luc Godard

em A Chinesa fez sua heroiacutena a estudante pr6-chinesa interpreshy

tada por Alme Wiazemsky jogar tomates em um exemplar de As Palavras eas coisas entio um livro siacutembolo por suas descontinuishy

dades abruptas do pensamento no tempo da negaccedilatildeo da hist6ria e portanto da negaccedillo da revoluccedilatildeo

A confercncia de 1967 poderia ter outra circulaccedilatildeo aleacutem da

c6pia datHografada entre os membros do Circulo O pr6prio

Circulo natildeo possuiacutea uma revista e nlo editava nenhuma de suas

conferecircncias Por outro lado as concepccedilotildees que entatildeo partilhashy

vam os arquitetos deviam muito a Le Corbusier e agrave Bauhaus agrave

racionalizaccedilatildeo das formas e agrave legibilidade do espaccedilo urbano

concebido como um texto pontuado com referecircncias espaccedilos

ou edifiacutecios Franccediloise Choay que Foucault frequentara nos anos

13 R AuzeUe Derniim Dmlnlm Paris ed do autor 13 PIace du Panrlleacuteon 1965 14 M Foucault Naissanct de la ClitlUacuteJue Paris PUF 1963(Trad bru de R Machado ONtUCimentIJ da clnCIt ruo d Janeiro Forense-Universitaacuteria 1977 - N da T) 15 M Foucaul Survdlkr tIPunir Paris Gallimard 1975 A obra apresenta o panoacuteptico de Benthrun como um acontecimento na histoacuteria do esplrito humanomiddot epropotildee uma anill1sc do poder em termos d produccedilatildeo e natildeo de repressatildeo (Trad bras de R Ramalhete VIgiar11mr Pett6poliacutes Vous 1987 _ N da T)

ttenta reconstitui essas problemaacuteticas em Urbanisme utopies et rtaiteacutesl6

Um urbanismo progressista humanista que se sustentava

111amp carta de Atenas l7 e em uma racionalidade crescente ou um

urbanismo culturalista para o qual cada forma eacute siacutembolo e que

(Ilha com nostalgia para a harmonia das cidades passadas estas

tmm as ideias reguladoras da razatildeo urbaniacutestica Estas ideias

rCguladoras jaacute natildeo talhavam em pontilhado o espaccedilo da utopia

em que viria a desdobrar-se ap6s 1968 o discurso arquitetural e

urbano em uma dissoluccedilatildeo do objeto cidade no seio das relaccedilotildees

udais capitalistas A cidade como totalidade formal ou racional

I1Ao foi deslocada pelo capitalismo O espaccedilo natildeo eacute uma imensa

paacutegina em branco onde se escreve desde cerca de dois seacuteculos a

Illetanarraccedilaacuteo do capital Naacuteo estaacute aiacute o impensado geral o natildeo

dito de todas essas divisoacuterias construiacutedas entre as classes os sexos

C as geraccedilotildees

O fasciacutenio das escolas de arquitetura pela visita a cidades

patronais estas utopias realizadas como o familisteacuterio de Guise

unstruiacuteda por Godin ou a cidade Menier de Noisiell8 testeshy

munha que o discurso arquitetural e urbaniacutestico francecircs dos anos

etenta se desdobrava no espaccedilo da utopia Os promotores dessas

cidades natildeo estariam entre os primeiros a inventar o consumo

em massa Um reduzia as dimensotildees da milenar e dispendiosa

1111( Choay UrbanisIM UtIJpits tt rlaitis Paris Seuil 1965 17 Carta de Atenas manifesto do IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (Ciam) Atn 1933 (N da T) I Pamllisteacuterio de Guise espeacutecie de comunidade ou cidade operaacuteria inspirada em Charles Fourier IIl1nmulda em 1846 por J-BGodln para habitaccedilatildeo de operaacuterios de sua induacutestria Menler de Noisiel IDmunldade de operaacuterios da ptoduccedilatildeo de chocolates fundada por A B Menier em 1925 nas imediaccedilotildees bull arl (N da T)

POSFAtildeCIO POSFAacuteCIO

42 43 lareira a um aquecedor domeacutestico outro um medicamento dos

exeacutercitos napoleocircnicos a um complemento alimentar industrial

o tablete de chocolate Natildeo teriam eles articulado da maneira

mais restrita a racionalizaccedilatildeo do consumo com a da ocupaccedilatildeo do

espaccedilo A racionalizaccedilatildeo da cidade patronal como a fragmentaccedilatildeo

do espaccedilo urbano o homog~neo como o heterogecircneo conduziam

a um mesmo crivo de leitura infalsificaacutevel a espacializaccedilatildeo do

capital O arquiteto tornava-se o teacutecnico passivo da operacionashy

lizaccedilatildeo das estrateacutegias e das normas do capital

Mostra-se uacutetil falar indiferentemente das utopias preacute-urshy

banistas das cidades operaacuterias de Haussmann da Bauhaus do

funcionalismo dos Shakers dos grandes conjuntos das cidades

novas por toda parte afirma-se perigosamente uma racionalishy

zaccedilatildeo do espaccedilo inerente agrave extensatildeo universal do capital uma

propensatildeo de sua ordem de troca ou da ordem simplesmente podia-se ler na revista Traverse19bull

Genealogia dos equipamento coletivol Eacute a partir de 1972 que Foucault desenvolve pesquishy

sas em equipe sobre a histoacuteria dos equipamentos coletivos

Primeiramente com o Centro de estudos pesquisas eformaccedilatildeo instishytucional- ou Cerfi - animado pelo psiquiatra Feacutelix Guattari que

conclui entatildeo com Gilles Deleuze a redaccedilatildeo do seu Anti-Eacutediptldeg

19 B Eizykman Urbanismo Travme n 4 1976 citado por A Thalamy in PolltilJues tk lhabitat Corda

1977 p 14 (o nome Shaker designa um movimento de grupos religiosos fundado na Inglaterra no seacuteculo XVIII que - agrave semelhanccedila dos Amish- vivem em suas proacuteprias comunidades _ N da T) 20 G Deleuze F Guattari LAnti-CEdipe Paris Minuit 1972 (Trad bras de L B L Orlandi O Antishy-Eacutedipo Satildeo Paulo 34 2010 - N da T)

( rliacuteldo em 1965 com pesquisadores em ciecircncias sociais dissidenshy

trN do Partido Comunista Francecircs (PCF) o Cerfi apoacutes 1970 I()( em questatildeo sua cultura marxista submetendo-a a uma dupla

Inova 1) a do procedimento genealoacutegico praticado em Histoacuteria Ioucura e O Nascimento da cliacutenica 2) a de uma clarificaccedilatildeo

IIlN relaccedilotildees libidinais que todo pesquisador manteacutem com o

uhjeto de sua pesquisa (a ambivalecircncia da reflexatildeo urbaniacutestica

frente agrave racionalidade capitalista natildeo escapava a ningueacutem) e que

UIe pesquisadores mantecircm entre si como grupo social hierarquishy

uto e sexuado

O relato da realizaccedilatildeo dessa dupla prova publicada na revista

do Cerfi21 eacute provavelmente um dos mais interessantes diaacuterios de

hordo da travessia ideoloacutegica daqueles anos Ali se assiste como

lue em um laboratoacuterio agrave desagregaccedilatildeo da anaacutelise marxista e

~ emergecircncia daquilo que logo seraacute batizado de atitude poacutesshy

-moderna O empreendimento eacute descrito por seus autores como

uma estranha maacutequina feita de peccedilas e pedaccedilos emprestados do

Ilenealogista Foucault surrupiadas do depoacutesito do cientista biceacuteshy

falo Deleuze-Guattari

O genealogista Foucault eacute de fato uma nova imagem social

do filoacutesofo o procedimento genealoacutegico soacute estaraacute francamente

c()nfirmado a partir de seu ensino no Colge de France inaugurado

em dezembro de 1970 Ademais a partir de 1971 juntamente

com Deleuze ele anima um movimento militante o Grupo de

JI (eacuteneacutealogie du capital- I Les eacutequipements du pouvoir Recherches n 13 dezembro1973 Um s6 bullbullbullmplo de uma retomada das hettrotopias por H umre a propoacutesito de La Pensuuml marxiste de la vilte IIrlbullbull Casterman 1972

POSFAacuteCJO POSFAacuteCIO

44 45 informarao sobre as prisoes (GIP) enraizado na extrema esquerda

Foucault disc ute com 0 Cedi que trabalha sobre a cidade22

a abordagem genealogica dos equipamemos coletivos e a poe

em pritica sobretudo no seu seminario do College de France 0

seminario e consagrado aemergencia do medico como perito

no seculo XIX atraves da pericla psiquiatrica em medicina legal

por urn lado e por outro como engenheiro que comribui para

a definicao das normas e formas da arquitetura hospitalar Urn

arquiteto Bruno Fortier responsavel pelo Centro de estudos epesshy

quisas em arquitetura (Cera) participa doravame dos trabalhos

de pesquisa desse seminario

Se a expressao equipamemo coletivo nao figura nos textos

do seculo XVIII a maquina de curar definida pelo medico

Tenon como ideal do hospital moderno neles tern lugar A

arquitetura hospitalar escreve Tenon2 nao pode mais constishy

tuir-se de rotina c tateamemos devendo responder a multiplas

prcocupacentes estancar 0 contagio pela distribuicao das salas e

dns leiros a circuhlltao do ar tavorecer a diss()cia~ao dos doemes

c das d()cn~as a vigilancia dos dotntcs e do pessoal manifestar

a hierarquia do olhar medico ter em coma as necessidades da

populacao 0 que serve para curar nao e a regularidade do trashy

cado mas a justeza da arquitetura 0 modelo deve ser perfeito

- nao se podendo mais em nada muda-Io - acabado repetivel

Pela primeira vez em 1788 escreve Bruno Fortier propoe-se

22 Ruhhl1 n 13 op cir pp 27middot31 (Dits ~I fcrit n 129 n 130) 23 J-R Tenon M moirs sur It~middot api fl llX tie P1ris Paris 1788

aos arquitetos a imitacao como urn dever24 as tipologias norshy

mativas seguem os exemplos oferecidos pela historia A justeza

da arquitetura nasce do tratamemo de uma rede de questoes disshy

timas - c1imaticas demogdficas estatisticas higienicas medicas

disciplinares - que tern cada qual seu lugar de emergencia sua

racionalidade seus promotores que respondcm a uma multiplishy

cidade de taticas - tecnicas de vigilancia de producao de saber

de efetuacao de poderes de medica l iza~lo c de saude publica

Elas podem ser descritas como segmemos analogos Oll repetidos

ao infinito de urn so texto de um escrevcnrc unico Illitico e

unitario 0 capital

Certamente esses novos edificios incorporam dticas de

vigil an cia encomradas fora sob outras formas arquiteturais shy

colegios casernas - taticas e formas que puderam preceder e

sustemar a emergencia da organizacao capitalista do trabalho e

que poderao proliferar para alem dela por exemplo nos vast os

arquipelagos do socialismo siberiano Eque fundamemalmeme

nao estamos Iidando nem com formas arquiteturais nem com

modos de producao mas com tecnologias de poder Foi na busca

destas arquiteturas maquinas tao ajustadas aos seus objetishy

vos que Foucault veio a redescobrir 0 que logo tornou-se parashy

digma de sua obra 0 panoptico de Bcntham2 do qual Poyet26

24 M Fo ucault D Barrer-Kriegel A Thahmy F Btgllin B tllrlicr L-IVIi(Jilln II X4lrir (m4JI l)rigill ~1

de OJOpilil modnrl~) Paris lnsri ru[ de J cnvi ronncm cnt 1976 rccd Hruu lOl) Iirc M~rda8Q J~79

25 J Bcmham Le Panoptiqui p rcccdido de Loeil du pouI-vir cnrrcmiddotvisru Om Michel Fou~ult P~ ri s

Bdfond 1977 (faC-ltimik da cdjao franccsa de 179 1) (Trod bras d bullbullm rvi 0 Ih do poder por A L de S OU-1 in Microfli ra tQ pokr op Ci l pp209-227 - N d 1)

26 B Poyet M h noiu sur a niassili d( Iransera lt u collsrlli r tIf-fj rd-lhrm w ill dull pm)lmiddotr It

traminlioll k eel hopil4l Paris 1785

IOSFACIO pOSFAeiO

46

47 desenhara uma interpretaccedilatildeo para a reconstruccedilatildeo da Santa Casa de Misericoacuterdia Os trabalhos do seminaacuterio do College de Frante sobre a arquitetura hospitalar no final do seacuteculo XVIII recebeshy

ram duas ediccedilotildees uma em Paris em 1976 outra em Bruxelas em 1979 Les Machints agravegutrir27

O segundo estudo coletivo dirigido por Foucault teve por objeto o habitatentre 1800 e 185018 Foi conduzido por Franccedilois

Beacuteguin hoje historiador da paisagem e da arquitetura colonial29bull

Ametodologia ~ a mesma que a precedente no lugar de partir de

uma histoacuteria das formas da habitaccedilAo ou da cidade os pesquisashydores inventariaram as pr~tlcllll discursivas que circunscreveram e

codificaram o habitat como obJero de intervenccedilatildeo administrativa e politica entre 1800 e 1850 - a doenccedila o emprego a domestishycaccedilatildeo de equipamentos como a ~gua a iluminaccedilatildeo a ventilaccedilatildeo

e o desenvolvimento de uma crescente jurisdiccedilatildeo sobre o espaccedilo

puacuteblico em cuja intersecccedillo se connroacutei o habitat Eacute preciso prishy

meiramente desfazer-se da pregnAncla da casa desmineralizaacute-la desconstruiacute-la escreve F B6guln

Poder saber es~

Eacute a partir de vtgiar t punir (1975) e de sua raacutepida circulaccedilatildeo Iacutemernacional- traduzido rapidamente em cerca de vinte liacutenguas - que as anaacutelises foucaultianas do espaccedilo recebem uma visibilishy

dade nova como lugar de uma dupla articulaccedilio do poder sobre

27 M fucault B Barrer-Kriegd A Thalamy F Beacutepdn B fIorllr ln MtIthllltt 4 gubir op cit 28 ]-M A1Haume B Barret-Kriegcl F Seguin D Ranclere A lhalamy PDitifUtt tk lhabitat 18()() 1850 Paris Corda 1977 (estudo realizado sob a direccedilAo de M Poucaull)

29 De F Beacuteguin citemos principalmente ArabIacuteSlUlett dko illChlmhI4 ubitill Afoque du Norri 1830-1850 Paris Dunod 1983 e Paysagtt Paris Flammarlon 19

o corpo do indiviacuteduo e do saber ao poder Seguem-se numerosos estudos sobre a arquitetura da vigilacircncia publicados na Itaacutelia e na Gratilde-Bretanha principalmente3deg De modo mais geral socioacuteshy

logos e planificadores urbanos comeccedilam a referir-se a Foucault

A Leaman escreveu em Environment and Plannintl que a obra de Foucault eacute doravante importante para os urbanistas planifishy

cadores e arquitetos por sua anaacutelise das qualidades normativas

das estruturas e das instituiccedilotildees Sharon Zukin considera que a cidade estaacute doravante incluiacuteda nas anaacutelises de uma economia

do poder segundo o meacutetodo desenvolvido em vtgiar e punir32bull

Esse eacute o contexto em que reaparecem as heterotopias na escola de arquitetura de Veneza em dezembro de 1977 prishymeiro estudo sobre seu uso possiacutevel em uma histoacuteria dos espashyccedilos II dispositivo Foucault 33 que reuacutene ensaios de M Cacciari

F RelIa M Tafuri G Teyssot A capa como a de Machines agrave gueacuterir reproduz um plano de arquitetura panoacuteptico para um

hospital inglecircs Os autores se referem essencialmente a Vtgiar e punir e exceto T eyssot a uma reuniatildeo de textos de Foucault sobre o poder publicado neste mesmo ano pela editora Einaudi

Microfisica deipotert4 a incidecircncia poliacutetica desta uacuteltima coletacircnea

lO Ver especialmente HinmJmd primeiro ano n 3 maio-junho1978 n triliacutengue intitulado Segrtgazione corpo sociak consagrado agraves atquitetuta de vigilanda jl A Leaman in Environmmtand Planning n 111979 pp 1079-1082 H Sh Zukin Adecade cfilie new urban sociology 1heoryand Society 91980 pp 575-601 H M Cacdari F Relia M Tafuri G Teyssor II dispositillO Foucaut Veneza Cluva 1977 4 M Iltlucaullt MimfoIacuteCIJ rktpoYrt inkrUtntipoitici editado por Iltlnrana e Pasquino Turin Einudi 1977 retomado e completado pelo movimento alternativo berlinense Dispositive tkr Macht Betlin Merve 1978 (A reuniaacuteo d textos que compotildecm a ediccedilatildeo italiana a=sdda de oUtros textos reltebeu traduccedilaacuteo brasileira de R Machado e OUrtOS Micrufisica do potkr Rio de Janeiro Graal 1979 Foi publicada tambeacutem uma ediccedilaacuteo espanhola com algumas alteraccedilotildees dos tcxtos sdeclonados trad por J Varela e F A1varez-UrIacutell Madri La Piquem 1978 - N da T)

POSFAacuteCIO

POSFAclO

48 49 foi imediata logo reforccedilada pela traduccedilatildeo de Rhizome de Deleuze

e GuattarP livros que se tornaram referecircncias teoacuterico-poliacutetishy

cas do movimento chamado Autonomie (do poliacutetico subenshytenda-se) que incomodava a esquerda do PCI engajado na

estrateacutegia do compromisso histoacuterico ~ esta incidecircncia poliacutetica

que os italianos batizaram de leffeto Foucault36 que eacute o alvo de 1 dispositivo Poucault

A introduccedilatildeo agrave coletAnea escrita por F Rella eacute perfeitamente expliacutecita desde Jogo travare as anaacutelises foucaultianas da pluralishy

dade das relaccedilotildees de poder em uma metafisica do poder de um poder abstrato imaterial supostamente em toda parte e portanto

politicamente em parte alguma liA uacutenica histoacuteria dos poderes eacute

uma histoacuteria dos espaccedilos atraveacutes dos quais o poder se mostra E

apoiando-se no artigo de Teyssot como uacutenica fonte de conhecishy

mento das heterotopias prossegue O nlo lugar do poder situashy

-se no centro de uma infinidade de localizaccedilotildees heterotoacutepicas

A heterotopia torna-se entatildeo um dado central em Foucault

e a hetero topologia a fenomenologia da dlspersio anaacuterquica do

poder A conclusatildeo desta interpretaccedilatildeo eacute previsiacutevel Natildeo se comshy

bate mais o poder doravante investidp em uma miriacuteade de locashylizaccedilotildees [ou dispositivos] mas a tirania das teorias globalizantesraquo

Teorias que Rella explicita precisando em nota leffeto Marx37 Na verdade Teyssot38 natildeo comenta a confer~ncia de 1967

35 G Deleuu F Guattari Rhizo1M Paris Minuit 1976 Rizoma ParrnalL~uea Pradche 1977 36 Em italiano no original (N da T)

37 Em italiano no original (N da T)

38middotG Teyssot Eterotopia e storiadegli spazi II displJlitirm FOllcault pp 83-86 e HelerolOpies and the historyofspaccs Arcbiacutetlctureandurbaniacutesm 121 1980 pp 79-100

mas o uso taxinocircmico do prefaacutecio de As Palavras eas coisas aplishy

cando-o a um projeto de hospital do seacuteculo XVIII descrito pelo

historiador J-c Perrot39bull Seu plano distribui como uma grade

em oiro construccedilotildees distintas oito classes de pensionaacuterios tatildeo

heterogecircneos quanto as categorias de animais da enciclopeacutedia de

Borges a) os prisioneiros a pedido de suas famiacutelias b) os loucos

os prisioneiros por edito real c) as crianccedilas pobres e legiacutetimas

dedois a nove anos os idosos os mendigos as prostitutas acoshy

metidas de doenccedilas veneacutereas d) as crianccedilas bastardas de mais

de nove anos etc Eacute a incongruecircncia do conteuacutedo que designa

a arquitetura como heterotopia e naacuteo o jogo de oposiccedilatildeo ou de contestaccedilaacuteo qualitativa ou simboacutelica dos outros espaccedilos que este

uacuteltimo institui por sua funccedilaacuteo sua forma suas rupturas

O uso da heteroropia feito por T eyssot de modo algum transshy

creve a inscriccedilaacuteo profunda da espacialidade na ttalidade da

existecircncia humana a heterogeneidade e a descontinuidade dos

tempos vividos os limiares da vida as crises bioloacutegicas (iniciashy

ccedilatildeo puberdade defloraccedilatildeo) Eacuteros e Taacutenatos As espacializaccedilotildees

da subjetividade sob todas as suas formas da casa de toleracircncia agrave

sauna e natildeo somente as grandes funccedilotildees da carta de Atenas receshy

beram em todas as culturas uma inscriccedilatildeo especiacutefica no espaccedilo

em espaccedilos que entretecircm entre si natildeo uma relaccedilatildeo de divisatildeo como interioridadeexterioridade margemcentro puacuteblicol prishy

vado mas um jogo formal de diferenciaccedilatildeo e de reverberaccedilatildeo

em suma no registro da comunicaccedilatildeo Tanto Relia que faz do

W J-C Perrot Genes du vilk mo Cam ali XVII sdele Paris Mouton 1975

POSFAacuteCIO

POSgtAClO

51

50 espaccedilo foucaultiano o receptaacuteculo neutro e contiacutenuo das hetero- topias do poder - concepccedilatildeo globalizante - quanto T eyssot que

faz da heterotopia a articulaccedilatildeo arquitetural das incongruecircncias

do mundo - concepccedilatildeo loealista - carecem ambos da terceira dimensatildeo aquela propriedade do espaccedilo de se remeter a si mesmo

na espessura de um jogo formal e simboacutelico de contestaccedilatildeo e de

reverberaccedilatildeo em uma fragmentaccedilatildeo que natildeo eacute segmentaccedilatildeo este Thirding que E Soja assim teoriza no Instituto de urbanismo de LosAngtlts na UeLA the Thirding as othering40

Essa primeira recepccedilatildeo das heterotopias pela escola de arquitetura de Veneza representada por II dispositivo Foucault mostra a ambiguidade da noccedilatildeo de recepccedilatildeo natildeo se trata de uma compreensatildeo exata nem de uma real instrumentalizaccedilatildeo mas de uma reimplantaccedillo poUss~mica e poMmica em uma rede de

debates poJJticos por um lado e de um questionamento episteshymoloacutegico por outro

Em julho de 1976 Foucault relembra pela primeira vez sua confercncia de 1967 em uma entrevista sobre o panoacuteptico de

Bentham publicada em 1977 mencionada aliaacutes por Teyssot Seria necessaacuterio escrever toda uma histoacuteria dos espaccedilos que fosse

ao mesmo tempo uma histoacuteria dos poderes desde as grandes estrateacutegias da geopoliacutetica ateacute as pequenas taacuteticas do habitat da arquitetura institucional da sala de aula ou da organizaccedilatildeo hosshy

pitalar passando pelas implantaccedilotildees econOacutemico-poliacuteticas Eacute surshypreendente ver quanto o problema dos espaccedilos levou tanto tempo

40 Bd Soja 7huacutelspact Journeys to Los Angks a11( Othtr lUa11( ltilM Ptampts Cambridge (Mass)Blackdl 1996

para aparecer como um problema histoacuterico-poliacutetico Lembro-me que haacute cerca de dez anos falei destes problemas de uma poliacutetica

dos espaccedilos e de me terem respondido que era bastante readoshy

naacuterio insistir tanto sobre o espaccedilo e que o tempo o projeto era a vida e o progresso 41

Uma histoacuteria foucaultiana dos espaccedilos mais precisamente

da espacializaccedilatildeo do poder mais precisamente ainda da inscriccedilatildeo

no espaccedilo colonial- heterot6pico - desse regime de poder partishycular que se desenvolve a partir do seacuteculo XVIII e que Foucault designa de biopoder42 a partir do qual os problemas de espaccedilo tornam-se politicamente diferentes eacute o projeto que no comeccedilo dos anos oitenta empreendem o antropoacutelogo Paul Rabinow43 e a historiadora do habitat americano Gwendolyn Wright44bull Nem

eles nem Franccedilois Beacuteguin conheciam a conferecircncia de 1967

Em uma entrevista que Rabinow e Wright fizeram com

Foucault em 198245 publicada em Skyline46 revista americana de

arquitetura o filoacutesofo lembra suas obsessotildees pelo espaccedilo e como

atraveacutes destas obsessotildees cheguei ao que eacute fundamental para mim as relaccedilotildees que satildeo possiacuteveis entre o poder e o saber

41 MFoucault J Bentham Lotil pouvoir in L Panoptiacuteque Opcil (Veja-se em traduccedilaacuteo brasileira de A L de SOU7 O olho do poder in Microfiacutesica b podtr op cit- N da T) 42 M Foucaull La Volon tk savoir Paris Gallimard 1976 cap V Droil de mort et pouvoir SUl I vie (Trad bras de M T da C Albuquerque e J A Guilhon Albuquerque A Vontade tk saber Rio de Janeiro Graal 1977 - N d T) 43 P Rabinow Biopower in lhe Frrnch Coloits conferecircncia interdisciplinar sobr Foucault Knowledge Power HislOry Los Angeles 29-31 de oUlubrol1981 Frrneh Modn Norms and Forms of th SfJCial Enviacuteronmmt Cambridge (M) MIT Press 1989 44 G Wright 7he Poliacutetics ofDltsigns in the Frrnch Colonial Urbanism Chicago University Preso 1991 45F B~n Arabisanm op cil 46 M Foucaull Space knowledge power entrerien avec P Rabinow Skyline marccedilo11982 pp 16-20 retomada em Dits tt Eacutecrits t N n 340 pp 270-285

POSFAacuteCIO

POSFAacuteCIO

53

52

A arquitetUra e o urbanismo naacuteo constituem diz ele um campo isoshylaacutevel Misturam-se com muacuteltiplas praacuteticas e discursos mas o espaccedilo

eacute o lugar privilegiado de compreensatildeo de como o poder opera

Inversamente ele bane da praacutetica do arquiteto toda esperanccedila

utoacutepica Os homens sonharam com maacutequinas libertadoras Mas por definiccedilatildeo natildeo existem maacutequinas de liberdade Jamais

a estrutura das coisas tem competecircncia para garantir a liberdade Nada eacute funcionalmente libertador A liberdade eacute o que se deve exercer a garantia da liberdade eacute a liberdade

Mestre doravante de um discurso poliacutetico e epistemoloacutegico sobre o espaccedilo Foucault deixa entatildeo ressurgir seu antigo conceito de heterotopia Diga-se entre parecircnteses lembro-me de ter sido

convidado por um grupo de arquitetos em 1966 para realizar um estudo do espaccediloi tratava-se do que na eacutepoca chamei de heterotopias espaccedilos singulares que encontramos em alguns

espaccedilos sociais cujas funccedilOes satildeo diferentes das dos outros ou tershy

minantemente opostas Os arquitetos trabalhavam neste projeto e no final do estudo algueacutem tomou a palavra _ um psicoacutelogo

sanreano - para me bombardear que o espaccedilo era reacionaacuterio e capitalista enquanto a histoacuteria e o devir eram revolucionaacuterios

Agravequela eacutepoca este discurso absurdo de modo algum era inabitual Hoje em dia qualquer um se dobraria de rir ouvindo aquilo

Natildeo haacute como natildeo se impressionar com esta longa anamnese em dois tempos primeiro em 1976 relativamente agrave objeccedilatildeo poliacuteshy

tica feita em 1967 e em 1982 enfim relativamente ao proacuteprio conceito de heterotopia em 1984 Foucault podia acolher favoshy

ravelmente a reutilizaccedilatildeo de sua conferecircncia pelo IBA de Berlim

Os dois organizadores da exposiccedilatildeo o alematildeo Johannes Gachnang e o italiano Marco de Michelis conheciam esse texto

em sua publicaccedilatildeo de 1968 em Architteturri7bull Ele sintonizava

estranhamente com a estrateacutegia do IBA tal como foi exposta por

um de seus dois responsaacuteveis J-P Kleihues48 executar a ideia

de uma cidade por fragmentos falar de arquitetur~ urbana sem traccedilar primeiramente um plano global de urbanismo respeitar

a variedade histoacuterica e topograacutefica berlinense pensar a composhysiccedilatildeo da cidade por ilhotas e ateacute confiar a diversos arquitetos a

reconstruccedilatildeo das residecircncias em uma mesma ilhota E por ocashy

siatildeo de uma reunificaccedilatildeo eventual justificar a conservaccedilatildeo da arquitetura staliniana

Sua traduccedilatildeo americana ocorreu em 1986 publicada prishy

meiramente na revista interdisciplinar de ComeU Diacriticis depois na revista de arquitetura LOtu9 Inaugurava-se uma carshy

reira nova para a interpretaccedilatildeo qualitativa dos espaccedilos outros

Natildeo se compreenderia esta carreira sem a simultaneidade da trashy

duccedilatildeo dos volumes II e III de Histoacuteria da sexualidaJe5deg a partir

dos quais Foucault torna-se uma referecircncia para aquilo que os americanos denominam poliacuteticas da identidade Movimentos

feministas movimento gay grupos eacutetnicos constituem a nova

47 Infurmaccedilaacuteo obtida com e1cs e concedida por Franccediloise Jolr 48 J-r Kleihues Agrave propos de I viUe europeacuteenne entreVista com M Bourdeau AMeS outubroI984

pp 95-99 49 M Foucault Ofother spaces Diacritieacuteiacutes 16 n I 1986 pp 22-27 e Lotushmnational 1986 50 M Foucaulr lUage tUacutes pIAis Paris Gallimaa 1984 uacute Souci Je soi Paris Gtlimn 1984 trad

1ht Use ofPlrasU Harmondsworth Penguin 1985 1ht Ca Dfthe sg Harmondsworth Penguin 1986 (Trad bras de M T da C Albuquerque O USQ dos p e O CuiJmJo Je si Rio de Janeiro Graal 1984 e 1985 - N da T)

POSFAacuteCIO

POSFAacuteCIO

54 rede de inscriccedilatildeo e a nova avaliaccedilatildeo das heterotopias A histoacuteshy

ria dos modos de subjetivaccedilatildeo realizada por Foucault atravessa

textos como lhe spaces that diferences make do urbanista Ed

Soja51 Gendered Spaces da feminista Daphne Spain52 lhe New Cultural Politics ofDijforence de Cornel West53 ou Geographical lmaginations do geoacutegrafo Derek Gregory54

Lugar de emergecircncia da heterotopia a anaacutelise literaacuteria dela

se apropria com Brian McHale Michel de Certeau5S a anaacutelise

fiacutelmica com Giuliana Bruno56bull Foucault torna-se passagem obrishy

gatoacuteria para toda anaacutelise do espaccedilo constata Soja

O mesmo se passa com as artes plaacutesticas Apresentando as

obras do artista plaacutestico cubano Felix Gonzalez-Torres Nancy

Spector descreve uma experiecircncia de ambiente heterotoacutepico

realizada em Manhattan57bull Em vinte e quatro paineacuteis de anuacutencio

publicitaacuterio das instalaccedilotildees urbanas de Manhattan Gonzalezshy

-Torres afixou o contraespaccedilo constituiacutedo por imensa foto em preto

e branco da intimidade de uma cama exposta Desnudamento

absoluto de um puro roccedilar de lenccediloacuteis leve traccedilado de duas cabeshy

ccedilas no vaacuteo entre os dois travesseiros onde cada qual pode proshy

jetar ou a interrupccedilatildeo do sono ou o amor consumado ou mais

51 Ed Soja The spa= that dlfenna makc ln M Kelm e S PIlbullbull PI4u iI1III lhe Politics olidmtiacutety NQVlI Iorque Roudedge 1993 pp 183middot205 52 D Spain Glt1JIUacutertaacute Spam Chapei Ht11 Unlverlty ofCarolIna Pras 1992 53 CWest 1M Ntw Cultural Politict oIDifimut ot h 1M Dilm_ ofrJu BIa lnttlkcttuuacute Ferguson 1994 54 D Gregory Gtographicalmaginatiacuteons citado ln Ed Soj hitrlspace Carobridge Bladltwell 1994 55 B McHale Post Moaacuteernist Fietion Nova Iorque Routledge 1988~ M de Certeau HettrologitS Discouffl 01tlu Otbtr Manchester Manchester University Presa 1986 56 G Bruno Bodlly ArchirecturesAltrtmblag 19 dezembro1992 57 N Spector Ptilt GonzakzmiddotTorres The Solamon R Guggenheim Museum Nova Iorque 1995

radicalmente a advertecircncia do artista uma decisatildeo de 1986 da

Corte suprema autoriza doravante a justiccedila em todo Estado em

que a sodomia eacute ainda um crime a persegui-la mesmo quando consentida entre adultos em suma a intimidade do espaccedilo prishy

vado da cama acaba de entrar no espaccedilo puacuteblico Esta articulashy

ccedilatildeo entre o puacuteblico e o privado poderia criar segundo Spector uma histoacuteria mais silenciosa a marca vazia do companheiro do

artista morto de aids

Maravilhosa intuiccedilatildeo no comeccedilo da confer~ncia radiofocircnica

de Foucault em 1966 daquela passagem inexistente na conferecircnshy

cia para os arquitetos em 1967 em que o fil6sofo evocava como

primeira figura da heterotopia a cama dos pais que as crianccedilas

gostam de invadir com um prazer de transgressatildeo e de sonho das origens Naacuteo poderiacuteamos concluir que aqui a longa seacuterie de

rein~riccedilotildees do texto em muacuteltiplas redes e estrateacutegias que a longa

seacuterie de transformaccedilotildees da figura social de seu autor encontram

neste instante de sua trajetoacuteria a mais completa forma de recepshyccedilatilde0 58 Foucault natildeo declarara tantas vezes que almejava menos

leitores que utilizadores59

58 Ed Soja Heterotopies remembrance Df other spaccs in me citadd LAraquo Strattgies a jIJurna 01 tbeory culturt anaacute poines 3 1990 pp 1middot39 Post metropolis Critiacutecal Stuties 01 Ctti naacute Rtglgtnt Londle$ Blackwdl 2000 59 Em 200I uma associaccedilatildeo cultural italiana denominada EttrotpirJ publicou uma releitura de textos de Foucaulr sobre o espaccedilo sob o titulo Spnialtri

POSFAacuteCIO POSFAacuteCIO

33 HETEROTOPIA TRIBULACcedilOtildeES DE UM CONCEITO ENTRE VENEZA BERLIM E LOS ANGELESl

No dia 14 de marccedilo de 1967) o Ciacuterculo de estudos arquiacuteteturais de Paris convidara Foucault a pronunciar uma conferecircncia sobre

() espaccedilo para a qual ele propocircs uma analiacutetica nova que batizou

de heterotopologia O texto desta conferecircncia teve circulaccedilatildeo

restrita reservada aos membros daquele ciacuterculo em forma datishy

lografada com exceccedilatildeo de extratos publicados em francecircs em

1968 na revista italiana LArchittetura2 ateacute sua publicaccedilatildeo em

Berlim no outono de 1984 no quadro da exposiccedilatildeo ldeacutee proshymsus reacutesultats no Martin-Gropius-Bau3bull

Essa exposiccedilatildeo foi a principal dentre as dezessete manifestashy

ccedilotildees com as quais a Internationale Bauausstellung (IBN) apreshy

sentou ao mundo o balanccedilo de suas atividades de reconstruccedilatildeo

e renovaccedilatildeo de Berlim Imaginava-se a reunificaccedilatildeo da cidadeshy

-capital que parecia estranhamente ilustrar os espaccedilos outros do

texto de Foucault de 1967 Autorizando sua publicaccedilatildeo pouco

antes da sua morte ocorrida em 25 de junho de 1984 o fi16sofo

a introduzira in extremis no corpus de seus escritos autorizados

I Oucra versatildeo deste texto fui publicada em 1997 no caraacutelogo de Dccummta X em Kassd 2 M Foucault Des espaces aurres EArthinura mJtlltck stvria vol XIII n 150 1968 pp 822-823 M Foucault Des espaces aurres AMes ~ darrhitt(lUrt ourubrofll984 pp 46-49 Eacute esla versatildeo t 1984 signincatiacuteVllmente diferente da que reproduzimos no presente volume que estaacute incluiacuteda cm IJIIiS et Eacutecrits Paris Gallimard t Iv texto n 360 (Martin-Gropius-Bau museu localizado em Berlim Inaugurado em 1881 - N da T) 4 IBA Exposiccedilatildeo internacional de consrruccedilatildeo sigla retomada mais adiante (N da T)

POSFAacuteCIO

34 Desde enrao () lCx ro f()i thlilldantllllllltl trad uzido e comenshy

tado C omo podl prrt na IICLt1 i1I(xplo rlllu d II ranrc vitae anos

Olllo nail c lO l llpn( nd clI Icrgll l1 tl t Edward Soja entushy

sia ~t1 IrolliOl OI l tl illlllli 1I 11I d 1 rmfflpIIf1fJI a Illlporrancia

1l0V(1 d(1 tp t1I t d1 (PH Itlld ldt I I dlvl III )dcrllmos intershy

pretl r 1 di qlIlCl1 ( IIII(~ I _I~ 111 dIIW 1)(1 7 II)IH e a hist6ria

dcs~c -i ltlIli ll 111111 1 h i~I( 1 ti l h 11I 1 11 IlIlp~o1(t A~ nocoes

dt nIt IIO ti t 11111 IllI l ln fU(IAII11I1 Utl l IIVO dc analise

suficic ll lc rnlc J ( fino plI dl 1t1lh lr IIl1n I lit I t trw sfOrmashy

coes tanto d le) diM lI 1m (I ~k~ PII 11101111 c politicos

dos arquitctos t lIIhalli tl 11(11 1 II I Ulll ~ IIJII UItlS quan to da

problematica do cspao 11 11 I ~llll( de 1 -(~~ IIc1I

Linguagem e espa~o

Voce se lembra daqude l(k~I III I1 1111 Ihl III I ir l1nro em

que urn arquiteto via uma nova Ltl JlU~lIj I 11III1~mo Mas

isto nao estava em urn livro Cst I VI 1 111111 I ~ I I 1111111 nll1fcrencia

radiofonica sobre a utopia Pedt lll li lt pw II l( nll~1 1111 dia J3 ou 14 de marco

Esta carta escrita em Sidi BOil ~ai 1 1I1I di1 2 dt lIlano de

1967 e 0 testemunho mais antigo do ( I ll II II I IIJ d f~ FI)lllluJrcom

os arquitetos Em 7 de dezembro dt I )h h li e tll ~ld lll de uma

serie radiofonica chamada de Cuhlll1 rI( I tlllsagrada a 5 amp1 Soja Rembrance of ocher spaces in [he ciradd LA 114(rO Jrftj

Politics 3 1990 p 1 39 Art igo dcscnvolvulo em Ed Soja Ij Rral Imagined Plam Cambridg~ (Mss) Blockwell 1996

6 P Bou rJi cu Quesr-cc q Ut fai l e parler urn ) U[lur A prop d Mit Ii t l I --I ~ ~~h III f~r n

plitmtlltions n especial tlSureiUcr er punic vingt aIl~ pres II Iltl T ~lI ltI L ~middotIIn II t IH

lgto~AClO

35 u topia ele fora convidado a falar sobre Utopia e Literatural

Pactindo de uma evocacao bachelardiana daqueles espacos que

encantam os jogos infantis como os celeiros 0 fundo do jardim

a tenda de Indios ou a cama dos pais verdadeiras utopias localishy

zadas sonhou com uma ciencia que teria por objeto estes espashy

cos diferentes que sao a contestacao dos espaltos onde vivemos

nao uma ciencia das utopias mas das heterotopias cie ncia dos

espacos absolutamente ourros Esta ciencia 011 hecerotopologia

que esta em vias de nascer que ji cxistc c cujos prindpios ele

enunciara naquele dia

As emissoes radiofonicas de Foucault - nas quais de se reveshy

lava urn maravilhoso contista - respondiam aenorme curiosishy

dade suscitada desde a primavera de 1966 pela publicacao de

As Palavras e as coisas 8bull 0 livro se abria com a descricao de uma

improvavd enciclopedia chinesa inventada por Borges segundo

a qual os animais se distribufam em quatorze classes do seguinte

tipo a) pertencenres ao imperador b) embalsamados c) domesshy

ticados k) desenhados com urn pincel muito fino de pelo de

cameoj I) et cetera m) que acabam de quebrar a biJha Esta

desordem que faz cintilar os fragmentos de urn grande numero

de ordens possiveis fora batizada por Foucault de heterotopia

o termo se opunha a utopia etimologicamente nao lugar e nao

eu-topia como se tende a crer Mas se as utopias narram urn lugar

7 M Foucault Uwpi( bem opi quivo sonora de 7 e 2 1 de dczombro de 19(6 CCOIrc Midd Foucaul t DibLioth~uc dc IIM EC-Cacn (eeditad em diso pdo INA em 2004 (rNA In iw Ntiorul de IAudinvisucl - Nd T)

8 M Foucault Ln Mots a Choses Paris Gallimard 1966 (TC3d u~() b silt ira de S T Muchail As PaiArdH as coilas Sao Paulo Martins Fontes 1981 - N da n

POSFAClO

36 37 que natildeo existe desabrocham contudo em um espaccedilo imaginaacuteshy

rio e por isso situam-se na linha reta do discurso pois desde

o fundo dos tempos a linguagem se entrecruza com o espaccedilo A lista de Borges ao contraacuterio estanca as palavras nelas proacuteprias pois a heterotopia arruiacutena natildeo somente a sintaxe das frases como

tambeacutem aquela menos manifesta que autoriza manter juntas as palavras e as coisas9

A impossibilidade em que se encontra nosso pensamento para pensar esse heteroacuteclito radical da classificaccedilatildeo de Borges tesshytemunha um limite do pensamento o mesmo limite que ainda

experimentamos diante das classificaccedilotildees proacuteprias agraves culturas que nos satildeo radicalmente estranhas Quando Victor TurnerlO descreve como os Ndembu da Zacircmbia reuacutenem em uma mesma

classe os caccediladores as viuacutevas os doentes e os guerreiros isto

natildeo implica um espaccedilo de pertenci menta concebido como tershyritoacuterio comum nem um espaccedilo de pertencimento concebido

como ramificaccedilotildees definidas por propriedades formais como

aquele no qual n6s distribuiacutemos os reinos da natureza nem a linearidade arbitraacuteria de uma ordem alfabeacutetica com a qual nosshy

sos dicionaacuterios ordenam o heteroclito no espaccedilo Ele descreve um sistema de analogias de similitudes entre propriedades simshyboacutelicas cujas interconexotildees precisamos traccedilar em uma paacutegina em branco a fim de compreender esse sistema ou o espaccedilo de similitudes Natildeo se pode pensar sem o suporte de um espaccedilo de ordem sem esta zona mediana que Foucault qualifica

9 M FOUaacutelulr Les MolJ ks Choses op dto prefaacutecio p 9 (Ar Plarmu l1li cow pp 5-8 _ N d T) 10 Victor Turner (1920-1983) antropoacutelogo britilnico (N da T)

de arqueoloacutegica por sob nossas percepccedilotildees nossos discursos nossos saberes onde se articulam o visiacutevel e o enunciaacutevel a linshy

guagem o olhar e o espaccedilo

Na emissatildeo radiofocircnica de 7 de dezembro de 1966 Foucault fez um uso totalmente diferente de sua noccedilaacuteo de heterotopia Primeiro ela eacute pertinente natildeo mais a uma anaacutelise dos discursos

mas dos espaccedilos Lugares tatildeo heteroacuteclitos como o espelho o cemiteacuterio a casa de toleracircncia ou a colocircnia polineacutesia de feacuterias em

Djerba entram em uma categoria especiacutefica de espaccedilos-tempos quer este tempo seja provisoacuterio como o tempo uacutenico da defloshy

raccedilatildeo no espaccedilo da viagem de nuacutepcias quer este tempo seja ao contraacuterio cumulativo de temporalidades - atemporal- no lugar da biblioteca ou do museu

Essas unidades espaccedilo-temporais esses espaccedilos-tempos tecircm em comum serem lugares onde estou e natildeo estou como o espeshy

lho ou o cemiteacuterio ou onde sou outro como na casa de toleracircnshy

cia na colocircnia de feacuterias ou na festa carnavalizaccedilotildees da existecircncia

ordinaacuteria Eles ritualizam cortes limiares desvios e os localizam As normas humanas natildeo satildeo todas universalizaacuteveis as da

disciplinarizaccedilatildeo do trabalho e as da transfiguraccedilatildeo pela festa

naacuteo podem desenrolar-se na linearidade de um mesmo espaccedilo ou de um mesmo tempo eacute preciso uma forte ritualizaccedilaacuteo das rupturas dos limiares das crises Estes contraespaccedilos poreacutem saacuteo

Interpenetrados por todos os outros espaccedilos que eles contestam o espelho onde natildeo estou reflete o contexto onde estou o cemishyteacuterio eacute planejado como a cidade haacute reverberaccedilatildeo dos espaccedilos uns nos outros e contudo descontinuidades e rupturas Haacute

POSlACIO

POSFACIO

38 39 enfim como que um eterno retorno desses rituais espaccedilo-temshy

porais e se natildeo universalizaccedilatildeo das mesmas formas ao menos

uma universalidade de sua existecircncia Eles satildeo apreendidos em

uma sincronia e uma diacronia especiacuteficas que fazem deles um

sistema significante entre os sistemas da arquitetura Natildeo refleshy

tem a estrutura social nem a da produccedilatildeo natildeo satildeo um sistema

soacutecio-histoacuterico nem uma ideologia mas rupturas da vida ordishy

naacuteria imaginaacuterios representaccedilotildees polifocircnicas da vida da morte

do amor de Eacuteros e Taacutenatos

A carta de Foucault de 2 de marccedilo de 1967 deixa vazar um

Utopias e heterotopias O Ciacuterculo de estudos arquiteturais era animado entre 1960 e

1970 por Jean Dubuisson seu presidente arquiteto do Museu

(te Artes e Tradiccedilotildees Populares do Bosque de Boulogne e Ionel

Schein que indicava os conferencistas a serem convidados ao

Boulevard Raspail nuacutemero 38 Era um dos raros ciacuterculos de

reflexatildeo de arquitetos sem corporativismo no qual nos anos

cinquenta e sessenta Ionel Schein gozava da lisonjeira reputaccedilatildeo

de agitador de ideias e de radicalismo em arquitetura I I Foi ele

segundo Jean Dubuisson quem convidou Foucault As confeshy

recircncias eram anotadas em estenografia e depois datilografadas e

do arquiteto Natildeo natildeo fora o livro (As Palavras e as coisas) que

desapontamento a arqueologia do olhar natildeo retivera o olhar entregues aos membros do Ciacuterculo Pierre Riboulet - arquiteto

trouxera em germe uma nova concepccedilatildeo do urbanismo livro do entre outros do hospital Robert-Debreacute - conservou sua coacutepia

qual o filoacutesofo esperava a provocaccedilatildeo de rupturas no pensamento Ele se lembra das precauccedilotildees oratoacuterias do filoacutesofo para introduzir

No entanto estas rupturas foram suficientemente ruidosas pelo seu propoacutesito a insistecircncia sobre sua ignoracircncia quanto agraves preshy

menos ateacute o ruiacutedo de 1968 para que Foucault viesse a deixar ocupaccedilotildees dos arquitetos As referecircncias -satildeo tomadas da histoacuteria

tanto o tumulto da gloacuteria quanto o das polecircmicas pela serenidade das ciecircncias (Koyreacute Bachelard) da criacutetica literaacuteria a-p Richard

da luminosa vila de Sidi Bou Sald no alto do golfo de Cartago e Ianchot) da psicanaacutelise existencial (Binswanger) assuntos

a paz - sempre difiacutecil - da escritura Heterotopia vivida O que todos eles sobre os quais Foucault jaacute havia desenvolvido suas

chegara aos ouvidos do arquiteto era uma linguagem menor obsessotildees do espaccedilo12

um daqueles jogos literaacuterios nos quais Foucault tinha um prazer Para marcar seu entusiasmo agrave saiacuteda dessa conferecircncia Robert

guloso juacutebilo incessantemente decepado pela ascese da escrishy Auzelle um dos pensadores da reconstruccedilatildeo da Franccedila a partir

tura contenccedilatildeo que se lecirc na didaacutetica da conferecircncia reescrita d()s anos cinquenta lhe entregou sua histoacuteria da arquitetura

esta para os arquitetos certamente mas os jogos literaacuterios ficam II ltuklt tas infOrmaccedilotildees sobre o Circulo de tstutIos arqumlumis me foram fOrnecidas por P Riboulet

aqui finalmente retranscritos com todo respeito agrave integralidade Illxprcssatildeo utilizada por Fouault in Quesdons agrave Michel Fouault sur la geacuteographie HiroIIote n I 1lt)76 pp 71-85 retomada em Diu et Eacutecriu t m n 169 Paris Gallimard 1994 p 33 (Trad bras de

sonora da qual nasceram K Machado e A L de Souza Sobre a geografia in Microflsica do potUacuter Rio de Janeiro Graal 1979 1IIU-165-N daT)

POSFAacuteCIOPOSFAco

40 41 funeraacuteria e dos cemiteacuterios13 uma das heterotopias de Foucault

Em O Nascimento da cllnica14 Foucault descrevera como a anatoshy

mopatologia havia integrado a morte no conhecimento da vida

oferecer-lhe a hist6ria da integraccedilatildeo dos cemiteacuterios na planificashy

ccedilatildeo urbana provava a perfeita cumplicidade entre seus ouvintes

e o conferencista a negatividade estava no cerne da racionalishy

dade Ela estava no cerne das anaacutelises de Foucault pelo menos ateacute Vigiar epunit5

Foi no final deste mesmo ano de 1967 que Jean-Luc Godard

em A Chinesa fez sua heroiacutena a estudante pr6-chinesa interpreshy

tada por Alme Wiazemsky jogar tomates em um exemplar de As Palavras eas coisas entio um livro siacutembolo por suas descontinuishy

dades abruptas do pensamento no tempo da negaccedilatildeo da hist6ria e portanto da negaccedillo da revoluccedilatildeo

A confercncia de 1967 poderia ter outra circulaccedilatildeo aleacutem da

c6pia datHografada entre os membros do Circulo O pr6prio

Circulo natildeo possuiacutea uma revista e nlo editava nenhuma de suas

conferecircncias Por outro lado as concepccedilotildees que entatildeo partilhashy

vam os arquitetos deviam muito a Le Corbusier e agrave Bauhaus agrave

racionalizaccedilatildeo das formas e agrave legibilidade do espaccedilo urbano

concebido como um texto pontuado com referecircncias espaccedilos

ou edifiacutecios Franccediloise Choay que Foucault frequentara nos anos

13 R AuzeUe Derniim Dmlnlm Paris ed do autor 13 PIace du Panrlleacuteon 1965 14 M Foucault Naissanct de la ClitlUacuteJue Paris PUF 1963(Trad bru de R Machado ONtUCimentIJ da clnCIt ruo d Janeiro Forense-Universitaacuteria 1977 - N da T) 15 M Foucaul Survdlkr tIPunir Paris Gallimard 1975 A obra apresenta o panoacuteptico de Benthrun como um acontecimento na histoacuteria do esplrito humanomiddot epropotildee uma anill1sc do poder em termos d produccedilatildeo e natildeo de repressatildeo (Trad bras de R Ramalhete VIgiar11mr Pett6poliacutes Vous 1987 _ N da T)

ttenta reconstitui essas problemaacuteticas em Urbanisme utopies et rtaiteacutesl6

Um urbanismo progressista humanista que se sustentava

111amp carta de Atenas l7 e em uma racionalidade crescente ou um

urbanismo culturalista para o qual cada forma eacute siacutembolo e que

(Ilha com nostalgia para a harmonia das cidades passadas estas

tmm as ideias reguladoras da razatildeo urbaniacutestica Estas ideias

rCguladoras jaacute natildeo talhavam em pontilhado o espaccedilo da utopia

em que viria a desdobrar-se ap6s 1968 o discurso arquitetural e

urbano em uma dissoluccedilatildeo do objeto cidade no seio das relaccedilotildees

udais capitalistas A cidade como totalidade formal ou racional

I1Ao foi deslocada pelo capitalismo O espaccedilo natildeo eacute uma imensa

paacutegina em branco onde se escreve desde cerca de dois seacuteculos a

Illetanarraccedilaacuteo do capital Naacuteo estaacute aiacute o impensado geral o natildeo

dito de todas essas divisoacuterias construiacutedas entre as classes os sexos

C as geraccedilotildees

O fasciacutenio das escolas de arquitetura pela visita a cidades

patronais estas utopias realizadas como o familisteacuterio de Guise

unstruiacuteda por Godin ou a cidade Menier de Noisiell8 testeshy

munha que o discurso arquitetural e urbaniacutestico francecircs dos anos

etenta se desdobrava no espaccedilo da utopia Os promotores dessas

cidades natildeo estariam entre os primeiros a inventar o consumo

em massa Um reduzia as dimensotildees da milenar e dispendiosa

1111( Choay UrbanisIM UtIJpits tt rlaitis Paris Seuil 1965 17 Carta de Atenas manifesto do IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (Ciam) Atn 1933 (N da T) I Pamllisteacuterio de Guise espeacutecie de comunidade ou cidade operaacuteria inspirada em Charles Fourier IIl1nmulda em 1846 por J-BGodln para habitaccedilatildeo de operaacuterios de sua induacutestria Menler de Noisiel IDmunldade de operaacuterios da ptoduccedilatildeo de chocolates fundada por A B Menier em 1925 nas imediaccedilotildees bull arl (N da T)

POSFAtildeCIO POSFAacuteCIO

42 43 lareira a um aquecedor domeacutestico outro um medicamento dos

exeacutercitos napoleocircnicos a um complemento alimentar industrial

o tablete de chocolate Natildeo teriam eles articulado da maneira

mais restrita a racionalizaccedilatildeo do consumo com a da ocupaccedilatildeo do

espaccedilo A racionalizaccedilatildeo da cidade patronal como a fragmentaccedilatildeo

do espaccedilo urbano o homog~neo como o heterogecircneo conduziam

a um mesmo crivo de leitura infalsificaacutevel a espacializaccedilatildeo do

capital O arquiteto tornava-se o teacutecnico passivo da operacionashy

lizaccedilatildeo das estrateacutegias e das normas do capital

Mostra-se uacutetil falar indiferentemente das utopias preacute-urshy

banistas das cidades operaacuterias de Haussmann da Bauhaus do

funcionalismo dos Shakers dos grandes conjuntos das cidades

novas por toda parte afirma-se perigosamente uma racionalishy

zaccedilatildeo do espaccedilo inerente agrave extensatildeo universal do capital uma

propensatildeo de sua ordem de troca ou da ordem simplesmente podia-se ler na revista Traverse19bull

Genealogia dos equipamento coletivol Eacute a partir de 1972 que Foucault desenvolve pesquishy

sas em equipe sobre a histoacuteria dos equipamentos coletivos

Primeiramente com o Centro de estudos pesquisas eformaccedilatildeo instishytucional- ou Cerfi - animado pelo psiquiatra Feacutelix Guattari que

conclui entatildeo com Gilles Deleuze a redaccedilatildeo do seu Anti-Eacutediptldeg

19 B Eizykman Urbanismo Travme n 4 1976 citado por A Thalamy in PolltilJues tk lhabitat Corda

1977 p 14 (o nome Shaker designa um movimento de grupos religiosos fundado na Inglaterra no seacuteculo XVIII que - agrave semelhanccedila dos Amish- vivem em suas proacuteprias comunidades _ N da T) 20 G Deleuze F Guattari LAnti-CEdipe Paris Minuit 1972 (Trad bras de L B L Orlandi O Antishy-Eacutedipo Satildeo Paulo 34 2010 - N da T)

( rliacuteldo em 1965 com pesquisadores em ciecircncias sociais dissidenshy

trN do Partido Comunista Francecircs (PCF) o Cerfi apoacutes 1970 I()( em questatildeo sua cultura marxista submetendo-a a uma dupla

Inova 1) a do procedimento genealoacutegico praticado em Histoacuteria Ioucura e O Nascimento da cliacutenica 2) a de uma clarificaccedilatildeo

IIlN relaccedilotildees libidinais que todo pesquisador manteacutem com o

uhjeto de sua pesquisa (a ambivalecircncia da reflexatildeo urbaniacutestica

frente agrave racionalidade capitalista natildeo escapava a ningueacutem) e que

UIe pesquisadores mantecircm entre si como grupo social hierarquishy

uto e sexuado

O relato da realizaccedilatildeo dessa dupla prova publicada na revista

do Cerfi21 eacute provavelmente um dos mais interessantes diaacuterios de

hordo da travessia ideoloacutegica daqueles anos Ali se assiste como

lue em um laboratoacuterio agrave desagregaccedilatildeo da anaacutelise marxista e

~ emergecircncia daquilo que logo seraacute batizado de atitude poacutesshy

-moderna O empreendimento eacute descrito por seus autores como

uma estranha maacutequina feita de peccedilas e pedaccedilos emprestados do

Ilenealogista Foucault surrupiadas do depoacutesito do cientista biceacuteshy

falo Deleuze-Guattari

O genealogista Foucault eacute de fato uma nova imagem social

do filoacutesofo o procedimento genealoacutegico soacute estaraacute francamente

c()nfirmado a partir de seu ensino no Colge de France inaugurado

em dezembro de 1970 Ademais a partir de 1971 juntamente

com Deleuze ele anima um movimento militante o Grupo de

JI (eacuteneacutealogie du capital- I Les eacutequipements du pouvoir Recherches n 13 dezembro1973 Um s6 bullbullbullmplo de uma retomada das hettrotopias por H umre a propoacutesito de La Pensuuml marxiste de la vilte IIrlbullbull Casterman 1972

POSFAacuteCJO POSFAacuteCIO

44 45 informarao sobre as prisoes (GIP) enraizado na extrema esquerda

Foucault disc ute com 0 Cedi que trabalha sobre a cidade22

a abordagem genealogica dos equipamemos coletivos e a poe

em pritica sobretudo no seu seminario do College de France 0

seminario e consagrado aemergencia do medico como perito

no seculo XIX atraves da pericla psiquiatrica em medicina legal

por urn lado e por outro como engenheiro que comribui para

a definicao das normas e formas da arquitetura hospitalar Urn

arquiteto Bruno Fortier responsavel pelo Centro de estudos epesshy

quisas em arquitetura (Cera) participa doravame dos trabalhos

de pesquisa desse seminario

Se a expressao equipamemo coletivo nao figura nos textos

do seculo XVIII a maquina de curar definida pelo medico

Tenon como ideal do hospital moderno neles tern lugar A

arquitetura hospitalar escreve Tenon2 nao pode mais constishy

tuir-se de rotina c tateamemos devendo responder a multiplas

prcocupacentes estancar 0 contagio pela distribuicao das salas e

dns leiros a circuhlltao do ar tavorecer a diss()cia~ao dos doemes

c das d()cn~as a vigilancia dos dotntcs e do pessoal manifestar

a hierarquia do olhar medico ter em coma as necessidades da

populacao 0 que serve para curar nao e a regularidade do trashy

cado mas a justeza da arquitetura 0 modelo deve ser perfeito

- nao se podendo mais em nada muda-Io - acabado repetivel

Pela primeira vez em 1788 escreve Bruno Fortier propoe-se

22 Ruhhl1 n 13 op cir pp 27middot31 (Dits ~I fcrit n 129 n 130) 23 J-R Tenon M moirs sur It~middot api fl llX tie P1ris Paris 1788

aos arquitetos a imitacao como urn dever24 as tipologias norshy

mativas seguem os exemplos oferecidos pela historia A justeza

da arquitetura nasce do tratamemo de uma rede de questoes disshy

timas - c1imaticas demogdficas estatisticas higienicas medicas

disciplinares - que tern cada qual seu lugar de emergencia sua

racionalidade seus promotores que respondcm a uma multiplishy

cidade de taticas - tecnicas de vigilancia de producao de saber

de efetuacao de poderes de medica l iza~lo c de saude publica

Elas podem ser descritas como segmemos analogos Oll repetidos

ao infinito de urn so texto de um escrevcnrc unico Illitico e

unitario 0 capital

Certamente esses novos edificios incorporam dticas de

vigil an cia encomradas fora sob outras formas arquiteturais shy

colegios casernas - taticas e formas que puderam preceder e

sustemar a emergencia da organizacao capitalista do trabalho e

que poderao proliferar para alem dela por exemplo nos vast os

arquipelagos do socialismo siberiano Eque fundamemalmeme

nao estamos Iidando nem com formas arquiteturais nem com

modos de producao mas com tecnologias de poder Foi na busca

destas arquiteturas maquinas tao ajustadas aos seus objetishy

vos que Foucault veio a redescobrir 0 que logo tornou-se parashy

digma de sua obra 0 panoptico de Bcntham2 do qual Poyet26

24 M Fo ucault D Barrer-Kriegel A Thahmy F Btgllin B tllrlicr L-IVIi(Jilln II X4lrir (m4JI l)rigill ~1

de OJOpilil modnrl~) Paris lnsri ru[ de J cnvi ronncm cnt 1976 rccd Hruu lOl) Iirc M~rda8Q J~79

25 J Bcmham Le Panoptiqui p rcccdido de Loeil du pouI-vir cnrrcmiddotvisru Om Michel Fou~ult P~ ri s

Bdfond 1977 (faC-ltimik da cdjao franccsa de 179 1) (Trod bras d bullbullm rvi 0 Ih do poder por A L de S OU-1 in Microfli ra tQ pokr op Ci l pp209-227 - N d 1)

26 B Poyet M h noiu sur a niassili d( Iransera lt u collsrlli r tIf-fj rd-lhrm w ill dull pm)lmiddotr It

traminlioll k eel hopil4l Paris 1785

IOSFACIO pOSFAeiO

46

47 desenhara uma interpretaccedilatildeo para a reconstruccedilatildeo da Santa Casa de Misericoacuterdia Os trabalhos do seminaacuterio do College de Frante sobre a arquitetura hospitalar no final do seacuteculo XVIII recebeshy

ram duas ediccedilotildees uma em Paris em 1976 outra em Bruxelas em 1979 Les Machints agravegutrir27

O segundo estudo coletivo dirigido por Foucault teve por objeto o habitatentre 1800 e 185018 Foi conduzido por Franccedilois

Beacuteguin hoje historiador da paisagem e da arquitetura colonial29bull

Ametodologia ~ a mesma que a precedente no lugar de partir de

uma histoacuteria das formas da habitaccedilAo ou da cidade os pesquisashydores inventariaram as pr~tlcllll discursivas que circunscreveram e

codificaram o habitat como obJero de intervenccedilatildeo administrativa e politica entre 1800 e 1850 - a doenccedila o emprego a domestishycaccedilatildeo de equipamentos como a ~gua a iluminaccedilatildeo a ventilaccedilatildeo

e o desenvolvimento de uma crescente jurisdiccedilatildeo sobre o espaccedilo

puacuteblico em cuja intersecccedillo se connroacutei o habitat Eacute preciso prishy

meiramente desfazer-se da pregnAncla da casa desmineralizaacute-la desconstruiacute-la escreve F B6guln

Poder saber es~

Eacute a partir de vtgiar t punir (1975) e de sua raacutepida circulaccedilatildeo Iacutemernacional- traduzido rapidamente em cerca de vinte liacutenguas - que as anaacutelises foucaultianas do espaccedilo recebem uma visibilishy

dade nova como lugar de uma dupla articulaccedilio do poder sobre

27 M fucault B Barrer-Kriegd A Thalamy F Beacutepdn B fIorllr ln MtIthllltt 4 gubir op cit 28 ]-M A1Haume B Barret-Kriegcl F Seguin D Ranclere A lhalamy PDitifUtt tk lhabitat 18()() 1850 Paris Corda 1977 (estudo realizado sob a direccedilAo de M Poucaull)

29 De F Beacuteguin citemos principalmente ArabIacuteSlUlett dko illChlmhI4 ubitill Afoque du Norri 1830-1850 Paris Dunod 1983 e Paysagtt Paris Flammarlon 19

o corpo do indiviacuteduo e do saber ao poder Seguem-se numerosos estudos sobre a arquitetura da vigilacircncia publicados na Itaacutelia e na Gratilde-Bretanha principalmente3deg De modo mais geral socioacuteshy

logos e planificadores urbanos comeccedilam a referir-se a Foucault

A Leaman escreveu em Environment and Plannintl que a obra de Foucault eacute doravante importante para os urbanistas planifishy

cadores e arquitetos por sua anaacutelise das qualidades normativas

das estruturas e das instituiccedilotildees Sharon Zukin considera que a cidade estaacute doravante incluiacuteda nas anaacutelises de uma economia

do poder segundo o meacutetodo desenvolvido em vtgiar e punir32bull

Esse eacute o contexto em que reaparecem as heterotopias na escola de arquitetura de Veneza em dezembro de 1977 prishymeiro estudo sobre seu uso possiacutevel em uma histoacuteria dos espashyccedilos II dispositivo Foucault 33 que reuacutene ensaios de M Cacciari

F RelIa M Tafuri G Teyssot A capa como a de Machines agrave gueacuterir reproduz um plano de arquitetura panoacuteptico para um

hospital inglecircs Os autores se referem essencialmente a Vtgiar e punir e exceto T eyssot a uma reuniatildeo de textos de Foucault sobre o poder publicado neste mesmo ano pela editora Einaudi

Microfisica deipotert4 a incidecircncia poliacutetica desta uacuteltima coletacircnea

lO Ver especialmente HinmJmd primeiro ano n 3 maio-junho1978 n triliacutengue intitulado Segrtgazione corpo sociak consagrado agraves atquitetuta de vigilanda jl A Leaman in Environmmtand Planning n 111979 pp 1079-1082 H Sh Zukin Adecade cfilie new urban sociology 1heoryand Society 91980 pp 575-601 H M Cacdari F Relia M Tafuri G Teyssor II dispositillO Foucaut Veneza Cluva 1977 4 M Iltlucaullt MimfoIacuteCIJ rktpoYrt inkrUtntipoitici editado por Iltlnrana e Pasquino Turin Einudi 1977 retomado e completado pelo movimento alternativo berlinense Dispositive tkr Macht Betlin Merve 1978 (A reuniaacuteo d textos que compotildecm a ediccedilatildeo italiana a=sdda de oUtros textos reltebeu traduccedilaacuteo brasileira de R Machado e OUrtOS Micrufisica do potkr Rio de Janeiro Graal 1979 Foi publicada tambeacutem uma ediccedilaacuteo espanhola com algumas alteraccedilotildees dos tcxtos sdeclonados trad por J Varela e F A1varez-UrIacutell Madri La Piquem 1978 - N da T)

POSFAacuteCIO

POSFAclO

48 49 foi imediata logo reforccedilada pela traduccedilatildeo de Rhizome de Deleuze

e GuattarP livros que se tornaram referecircncias teoacuterico-poliacutetishy

cas do movimento chamado Autonomie (do poliacutetico subenshytenda-se) que incomodava a esquerda do PCI engajado na

estrateacutegia do compromisso histoacuterico ~ esta incidecircncia poliacutetica

que os italianos batizaram de leffeto Foucault36 que eacute o alvo de 1 dispositivo Poucault

A introduccedilatildeo agrave coletAnea escrita por F Rella eacute perfeitamente expliacutecita desde Jogo travare as anaacutelises foucaultianas da pluralishy

dade das relaccedilotildees de poder em uma metafisica do poder de um poder abstrato imaterial supostamente em toda parte e portanto

politicamente em parte alguma liA uacutenica histoacuteria dos poderes eacute

uma histoacuteria dos espaccedilos atraveacutes dos quais o poder se mostra E

apoiando-se no artigo de Teyssot como uacutenica fonte de conhecishy

mento das heterotopias prossegue O nlo lugar do poder situashy

-se no centro de uma infinidade de localizaccedilotildees heterotoacutepicas

A heterotopia torna-se entatildeo um dado central em Foucault

e a hetero topologia a fenomenologia da dlspersio anaacuterquica do

poder A conclusatildeo desta interpretaccedilatildeo eacute previsiacutevel Natildeo se comshy

bate mais o poder doravante investidp em uma miriacuteade de locashylizaccedilotildees [ou dispositivos] mas a tirania das teorias globalizantesraquo

Teorias que Rella explicita precisando em nota leffeto Marx37 Na verdade Teyssot38 natildeo comenta a confer~ncia de 1967

35 G Deleuu F Guattari Rhizo1M Paris Minuit 1976 Rizoma ParrnalL~uea Pradche 1977 36 Em italiano no original (N da T)

37 Em italiano no original (N da T)

38middotG Teyssot Eterotopia e storiadegli spazi II displJlitirm FOllcault pp 83-86 e HelerolOpies and the historyofspaccs Arcbiacutetlctureandurbaniacutesm 121 1980 pp 79-100

mas o uso taxinocircmico do prefaacutecio de As Palavras eas coisas aplishy

cando-o a um projeto de hospital do seacuteculo XVIII descrito pelo

historiador J-c Perrot39bull Seu plano distribui como uma grade

em oiro construccedilotildees distintas oito classes de pensionaacuterios tatildeo

heterogecircneos quanto as categorias de animais da enciclopeacutedia de

Borges a) os prisioneiros a pedido de suas famiacutelias b) os loucos

os prisioneiros por edito real c) as crianccedilas pobres e legiacutetimas

dedois a nove anos os idosos os mendigos as prostitutas acoshy

metidas de doenccedilas veneacutereas d) as crianccedilas bastardas de mais

de nove anos etc Eacute a incongruecircncia do conteuacutedo que designa

a arquitetura como heterotopia e naacuteo o jogo de oposiccedilatildeo ou de contestaccedilaacuteo qualitativa ou simboacutelica dos outros espaccedilos que este

uacuteltimo institui por sua funccedilaacuteo sua forma suas rupturas

O uso da heteroropia feito por T eyssot de modo algum transshy

creve a inscriccedilaacuteo profunda da espacialidade na ttalidade da

existecircncia humana a heterogeneidade e a descontinuidade dos

tempos vividos os limiares da vida as crises bioloacutegicas (iniciashy

ccedilatildeo puberdade defloraccedilatildeo) Eacuteros e Taacutenatos As espacializaccedilotildees

da subjetividade sob todas as suas formas da casa de toleracircncia agrave

sauna e natildeo somente as grandes funccedilotildees da carta de Atenas receshy

beram em todas as culturas uma inscriccedilatildeo especiacutefica no espaccedilo

em espaccedilos que entretecircm entre si natildeo uma relaccedilatildeo de divisatildeo como interioridadeexterioridade margemcentro puacuteblicol prishy

vado mas um jogo formal de diferenciaccedilatildeo e de reverberaccedilatildeo

em suma no registro da comunicaccedilatildeo Tanto Relia que faz do

W J-C Perrot Genes du vilk mo Cam ali XVII sdele Paris Mouton 1975

POSFAacuteCIO

POSgtAClO

51

50 espaccedilo foucaultiano o receptaacuteculo neutro e contiacutenuo das hetero- topias do poder - concepccedilatildeo globalizante - quanto T eyssot que

faz da heterotopia a articulaccedilatildeo arquitetural das incongruecircncias

do mundo - concepccedilatildeo loealista - carecem ambos da terceira dimensatildeo aquela propriedade do espaccedilo de se remeter a si mesmo

na espessura de um jogo formal e simboacutelico de contestaccedilatildeo e de

reverberaccedilatildeo em uma fragmentaccedilatildeo que natildeo eacute segmentaccedilatildeo este Thirding que E Soja assim teoriza no Instituto de urbanismo de LosAngtlts na UeLA the Thirding as othering40

Essa primeira recepccedilatildeo das heterotopias pela escola de arquitetura de Veneza representada por II dispositivo Foucault mostra a ambiguidade da noccedilatildeo de recepccedilatildeo natildeo se trata de uma compreensatildeo exata nem de uma real instrumentalizaccedilatildeo mas de uma reimplantaccedillo poUss~mica e poMmica em uma rede de

debates poJJticos por um lado e de um questionamento episteshymoloacutegico por outro

Em julho de 1976 Foucault relembra pela primeira vez sua confercncia de 1967 em uma entrevista sobre o panoacuteptico de

Bentham publicada em 1977 mencionada aliaacutes por Teyssot Seria necessaacuterio escrever toda uma histoacuteria dos espaccedilos que fosse

ao mesmo tempo uma histoacuteria dos poderes desde as grandes estrateacutegias da geopoliacutetica ateacute as pequenas taacuteticas do habitat da arquitetura institucional da sala de aula ou da organizaccedilatildeo hosshy

pitalar passando pelas implantaccedilotildees econOacutemico-poliacuteticas Eacute surshypreendente ver quanto o problema dos espaccedilos levou tanto tempo

40 Bd Soja 7huacutelspact Journeys to Los Angks a11( Othtr lUa11( ltilM Ptampts Cambridge (Mass)Blackdl 1996

para aparecer como um problema histoacuterico-poliacutetico Lembro-me que haacute cerca de dez anos falei destes problemas de uma poliacutetica

dos espaccedilos e de me terem respondido que era bastante readoshy

naacuterio insistir tanto sobre o espaccedilo e que o tempo o projeto era a vida e o progresso 41

Uma histoacuteria foucaultiana dos espaccedilos mais precisamente

da espacializaccedilatildeo do poder mais precisamente ainda da inscriccedilatildeo

no espaccedilo colonial- heterot6pico - desse regime de poder partishycular que se desenvolve a partir do seacuteculo XVIII e que Foucault designa de biopoder42 a partir do qual os problemas de espaccedilo tornam-se politicamente diferentes eacute o projeto que no comeccedilo dos anos oitenta empreendem o antropoacutelogo Paul Rabinow43 e a historiadora do habitat americano Gwendolyn Wright44bull Nem

eles nem Franccedilois Beacuteguin conheciam a conferecircncia de 1967

Em uma entrevista que Rabinow e Wright fizeram com

Foucault em 198245 publicada em Skyline46 revista americana de

arquitetura o filoacutesofo lembra suas obsessotildees pelo espaccedilo e como

atraveacutes destas obsessotildees cheguei ao que eacute fundamental para mim as relaccedilotildees que satildeo possiacuteveis entre o poder e o saber

41 MFoucault J Bentham Lotil pouvoir in L Panoptiacuteque Opcil (Veja-se em traduccedilaacuteo brasileira de A L de SOU7 O olho do poder in Microfiacutesica b podtr op cit- N da T) 42 M Foucaull La Volon tk savoir Paris Gallimard 1976 cap V Droil de mort et pouvoir SUl I vie (Trad bras de M T da C Albuquerque e J A Guilhon Albuquerque A Vontade tk saber Rio de Janeiro Graal 1977 - N d T) 43 P Rabinow Biopower in lhe Frrnch Coloits conferecircncia interdisciplinar sobr Foucault Knowledge Power HislOry Los Angeles 29-31 de oUlubrol1981 Frrneh Modn Norms and Forms of th SfJCial Enviacuteronmmt Cambridge (M) MIT Press 1989 44 G Wright 7he Poliacutetics ofDltsigns in the Frrnch Colonial Urbanism Chicago University Preso 1991 45F B~n Arabisanm op cil 46 M Foucaull Space knowledge power entrerien avec P Rabinow Skyline marccedilo11982 pp 16-20 retomada em Dits tt Eacutecrits t N n 340 pp 270-285

POSFAacuteCIO

POSFAacuteCIO

53

52

A arquitetUra e o urbanismo naacuteo constituem diz ele um campo isoshylaacutevel Misturam-se com muacuteltiplas praacuteticas e discursos mas o espaccedilo

eacute o lugar privilegiado de compreensatildeo de como o poder opera

Inversamente ele bane da praacutetica do arquiteto toda esperanccedila

utoacutepica Os homens sonharam com maacutequinas libertadoras Mas por definiccedilatildeo natildeo existem maacutequinas de liberdade Jamais

a estrutura das coisas tem competecircncia para garantir a liberdade Nada eacute funcionalmente libertador A liberdade eacute o que se deve exercer a garantia da liberdade eacute a liberdade

Mestre doravante de um discurso poliacutetico e epistemoloacutegico sobre o espaccedilo Foucault deixa entatildeo ressurgir seu antigo conceito de heterotopia Diga-se entre parecircnteses lembro-me de ter sido

convidado por um grupo de arquitetos em 1966 para realizar um estudo do espaccediloi tratava-se do que na eacutepoca chamei de heterotopias espaccedilos singulares que encontramos em alguns

espaccedilos sociais cujas funccedilOes satildeo diferentes das dos outros ou tershy

minantemente opostas Os arquitetos trabalhavam neste projeto e no final do estudo algueacutem tomou a palavra _ um psicoacutelogo

sanreano - para me bombardear que o espaccedilo era reacionaacuterio e capitalista enquanto a histoacuteria e o devir eram revolucionaacuterios

Agravequela eacutepoca este discurso absurdo de modo algum era inabitual Hoje em dia qualquer um se dobraria de rir ouvindo aquilo

Natildeo haacute como natildeo se impressionar com esta longa anamnese em dois tempos primeiro em 1976 relativamente agrave objeccedilatildeo poliacuteshy

tica feita em 1967 e em 1982 enfim relativamente ao proacuteprio conceito de heterotopia em 1984 Foucault podia acolher favoshy

ravelmente a reutilizaccedilatildeo de sua conferecircncia pelo IBA de Berlim

Os dois organizadores da exposiccedilatildeo o alematildeo Johannes Gachnang e o italiano Marco de Michelis conheciam esse texto

em sua publicaccedilatildeo de 1968 em Architteturri7bull Ele sintonizava

estranhamente com a estrateacutegia do IBA tal como foi exposta por

um de seus dois responsaacuteveis J-P Kleihues48 executar a ideia

de uma cidade por fragmentos falar de arquitetur~ urbana sem traccedilar primeiramente um plano global de urbanismo respeitar

a variedade histoacuterica e topograacutefica berlinense pensar a composhysiccedilatildeo da cidade por ilhotas e ateacute confiar a diversos arquitetos a

reconstruccedilatildeo das residecircncias em uma mesma ilhota E por ocashy

siatildeo de uma reunificaccedilatildeo eventual justificar a conservaccedilatildeo da arquitetura staliniana

Sua traduccedilatildeo americana ocorreu em 1986 publicada prishy

meiramente na revista interdisciplinar de ComeU Diacriticis depois na revista de arquitetura LOtu9 Inaugurava-se uma carshy

reira nova para a interpretaccedilatildeo qualitativa dos espaccedilos outros

Natildeo se compreenderia esta carreira sem a simultaneidade da trashy

duccedilatildeo dos volumes II e III de Histoacuteria da sexualidaJe5deg a partir

dos quais Foucault torna-se uma referecircncia para aquilo que os americanos denominam poliacuteticas da identidade Movimentos

feministas movimento gay grupos eacutetnicos constituem a nova

47 Infurmaccedilaacuteo obtida com e1cs e concedida por Franccediloise Jolr 48 J-r Kleihues Agrave propos de I viUe europeacuteenne entreVista com M Bourdeau AMeS outubroI984

pp 95-99 49 M Foucault Ofother spaces Diacritieacuteiacutes 16 n I 1986 pp 22-27 e Lotushmnational 1986 50 M Foucaulr lUage tUacutes pIAis Paris Gallimaa 1984 uacute Souci Je soi Paris Gtlimn 1984 trad

1ht Use ofPlrasU Harmondsworth Penguin 1985 1ht Ca Dfthe sg Harmondsworth Penguin 1986 (Trad bras de M T da C Albuquerque O USQ dos p e O CuiJmJo Je si Rio de Janeiro Graal 1984 e 1985 - N da T)

POSFAacuteCIO

POSFAacuteCIO

54 rede de inscriccedilatildeo e a nova avaliaccedilatildeo das heterotopias A histoacuteshy

ria dos modos de subjetivaccedilatildeo realizada por Foucault atravessa

textos como lhe spaces that diferences make do urbanista Ed

Soja51 Gendered Spaces da feminista Daphne Spain52 lhe New Cultural Politics ofDijforence de Cornel West53 ou Geographical lmaginations do geoacutegrafo Derek Gregory54

Lugar de emergecircncia da heterotopia a anaacutelise literaacuteria dela

se apropria com Brian McHale Michel de Certeau5S a anaacutelise

fiacutelmica com Giuliana Bruno56bull Foucault torna-se passagem obrishy

gatoacuteria para toda anaacutelise do espaccedilo constata Soja

O mesmo se passa com as artes plaacutesticas Apresentando as

obras do artista plaacutestico cubano Felix Gonzalez-Torres Nancy

Spector descreve uma experiecircncia de ambiente heterotoacutepico

realizada em Manhattan57bull Em vinte e quatro paineacuteis de anuacutencio

publicitaacuterio das instalaccedilotildees urbanas de Manhattan Gonzalezshy

-Torres afixou o contraespaccedilo constituiacutedo por imensa foto em preto

e branco da intimidade de uma cama exposta Desnudamento

absoluto de um puro roccedilar de lenccediloacuteis leve traccedilado de duas cabeshy

ccedilas no vaacuteo entre os dois travesseiros onde cada qual pode proshy

jetar ou a interrupccedilatildeo do sono ou o amor consumado ou mais

51 Ed Soja The spa= that dlfenna makc ln M Kelm e S PIlbullbull PI4u iI1III lhe Politics olidmtiacutety NQVlI Iorque Roudedge 1993 pp 183middot205 52 D Spain Glt1JIUacutertaacute Spam Chapei Ht11 Unlverlty ofCarolIna Pras 1992 53 CWest 1M Ntw Cultural Politict oIDifimut ot h 1M Dilm_ ofrJu BIa lnttlkcttuuacute Ferguson 1994 54 D Gregory Gtographicalmaginatiacuteons citado ln Ed Soj hitrlspace Carobridge Bladltwell 1994 55 B McHale Post Moaacuteernist Fietion Nova Iorque Routledge 1988~ M de Certeau HettrologitS Discouffl 01tlu Otbtr Manchester Manchester University Presa 1986 56 G Bruno Bodlly ArchirecturesAltrtmblag 19 dezembro1992 57 N Spector Ptilt GonzakzmiddotTorres The Solamon R Guggenheim Museum Nova Iorque 1995

radicalmente a advertecircncia do artista uma decisatildeo de 1986 da

Corte suprema autoriza doravante a justiccedila em todo Estado em

que a sodomia eacute ainda um crime a persegui-la mesmo quando consentida entre adultos em suma a intimidade do espaccedilo prishy

vado da cama acaba de entrar no espaccedilo puacuteblico Esta articulashy

ccedilatildeo entre o puacuteblico e o privado poderia criar segundo Spector uma histoacuteria mais silenciosa a marca vazia do companheiro do

artista morto de aids

Maravilhosa intuiccedilatildeo no comeccedilo da confer~ncia radiofocircnica

de Foucault em 1966 daquela passagem inexistente na conferecircnshy

cia para os arquitetos em 1967 em que o fil6sofo evocava como

primeira figura da heterotopia a cama dos pais que as crianccedilas

gostam de invadir com um prazer de transgressatildeo e de sonho das origens Naacuteo poderiacuteamos concluir que aqui a longa seacuterie de

rein~riccedilotildees do texto em muacuteltiplas redes e estrateacutegias que a longa

seacuterie de transformaccedilotildees da figura social de seu autor encontram

neste instante de sua trajetoacuteria a mais completa forma de recepshyccedilatilde0 58 Foucault natildeo declarara tantas vezes que almejava menos

leitores que utilizadores59

58 Ed Soja Heterotopies remembrance Df other spaccs in me citadd LAraquo Strattgies a jIJurna 01 tbeory culturt anaacute poines 3 1990 pp 1middot39 Post metropolis Critiacutecal Stuties 01 Ctti naacute Rtglgtnt Londle$ Blackwdl 2000 59 Em 200I uma associaccedilatildeo cultural italiana denominada EttrotpirJ publicou uma releitura de textos de Foucaulr sobre o espaccedilo sob o titulo Spnialtri

POSFAacuteCIO POSFAacuteCIO

34 Desde enrao () lCx ro f()i thlilldantllllllltl trad uzido e comenshy

tado C omo podl prrt na IICLt1 i1I(xplo rlllu d II ranrc vitae anos

Olllo nail c lO l llpn( nd clI Icrgll l1 tl t Edward Soja entushy

sia ~t1 IrolliOl OI l tl illlllli 1I 11I d 1 rmfflpIIf1fJI a Illlporrancia

1l0V(1 d(1 tp t1I t d1 (PH Itlld ldt I I dlvl III )dcrllmos intershy

pretl r 1 di qlIlCl1 ( IIII(~ I _I~ 111 dIIW 1)(1 7 II)IH e a hist6ria

dcs~c -i ltlIli ll 111111 1 h i~I( 1 ti l h 11I 1 11 IlIlp~o1(t A~ nocoes

dt nIt IIO ti t 11111 IllI l ln fU(IAII11I1 Utl l IIVO dc analise

suficic ll lc rnlc J ( fino plI dl 1t1lh lr IIl1n I lit I t trw sfOrmashy

coes tanto d le) diM lI 1m (I ~k~ PII 11101111 c politicos

dos arquitctos t lIIhalli tl 11(11 1 II I Ulll ~ IIJII UItlS quan to da

problematica do cspao 11 11 I ~llll( de 1 -(~~ IIc1I

Linguagem e espa~o

Voce se lembra daqude l(k~I III I1 1111 Ihl III I ir l1nro em

que urn arquiteto via uma nova Ltl JlU~lIj I 11III1~mo Mas

isto nao estava em urn livro Cst I VI 1 111111 I ~ I I 1111111 nll1fcrencia

radiofonica sobre a utopia Pedt lll li lt pw II l( nll~1 1111 dia J3 ou 14 de marco

Esta carta escrita em Sidi BOil ~ai 1 1I1I di1 2 dt lIlano de

1967 e 0 testemunho mais antigo do ( I ll II II I IIJ d f~ FI)lllluJrcom

os arquitetos Em 7 de dezembro dt I )h h li e tll ~ld lll de uma

serie radiofonica chamada de Cuhlll1 rI( I tlllsagrada a 5 amp1 Soja Rembrance of ocher spaces in [he ciradd LA 114(rO Jrftj

Politics 3 1990 p 1 39 Art igo dcscnvolvulo em Ed Soja Ij Rral Imagined Plam Cambridg~ (Mss) Blockwell 1996

6 P Bou rJi cu Quesr-cc q Ut fai l e parler urn ) U[lur A prop d Mit Ii t l I --I ~ ~~h III f~r n

plitmtlltions n especial tlSureiUcr er punic vingt aIl~ pres II Iltl T ~lI ltI L ~middotIIn II t IH

lgto~AClO

35 u topia ele fora convidado a falar sobre Utopia e Literatural

Pactindo de uma evocacao bachelardiana daqueles espacos que

encantam os jogos infantis como os celeiros 0 fundo do jardim

a tenda de Indios ou a cama dos pais verdadeiras utopias localishy

zadas sonhou com uma ciencia que teria por objeto estes espashy

cos diferentes que sao a contestacao dos espaltos onde vivemos

nao uma ciencia das utopias mas das heterotopias cie ncia dos

espacos absolutamente ourros Esta ciencia 011 hecerotopologia

que esta em vias de nascer que ji cxistc c cujos prindpios ele

enunciara naquele dia

As emissoes radiofonicas de Foucault - nas quais de se reveshy

lava urn maravilhoso contista - respondiam aenorme curiosishy

dade suscitada desde a primavera de 1966 pela publicacao de

As Palavras e as coisas 8bull 0 livro se abria com a descricao de uma

improvavd enciclopedia chinesa inventada por Borges segundo

a qual os animais se distribufam em quatorze classes do seguinte

tipo a) pertencenres ao imperador b) embalsamados c) domesshy

ticados k) desenhados com urn pincel muito fino de pelo de

cameoj I) et cetera m) que acabam de quebrar a biJha Esta

desordem que faz cintilar os fragmentos de urn grande numero

de ordens possiveis fora batizada por Foucault de heterotopia

o termo se opunha a utopia etimologicamente nao lugar e nao

eu-topia como se tende a crer Mas se as utopias narram urn lugar

7 M Foucault Uwpi( bem opi quivo sonora de 7 e 2 1 de dczombro de 19(6 CCOIrc Midd Foucaul t DibLioth~uc dc IIM EC-Cacn (eeditad em diso pdo INA em 2004 (rNA In iw Ntiorul de IAudinvisucl - Nd T)

8 M Foucault Ln Mots a Choses Paris Gallimard 1966 (TC3d u~() b silt ira de S T Muchail As PaiArdH as coilas Sao Paulo Martins Fontes 1981 - N da n

POSFAClO

36 37 que natildeo existe desabrocham contudo em um espaccedilo imaginaacuteshy

rio e por isso situam-se na linha reta do discurso pois desde

o fundo dos tempos a linguagem se entrecruza com o espaccedilo A lista de Borges ao contraacuterio estanca as palavras nelas proacuteprias pois a heterotopia arruiacutena natildeo somente a sintaxe das frases como

tambeacutem aquela menos manifesta que autoriza manter juntas as palavras e as coisas9

A impossibilidade em que se encontra nosso pensamento para pensar esse heteroacuteclito radical da classificaccedilatildeo de Borges tesshytemunha um limite do pensamento o mesmo limite que ainda

experimentamos diante das classificaccedilotildees proacuteprias agraves culturas que nos satildeo radicalmente estranhas Quando Victor TurnerlO descreve como os Ndembu da Zacircmbia reuacutenem em uma mesma

classe os caccediladores as viuacutevas os doentes e os guerreiros isto

natildeo implica um espaccedilo de pertenci menta concebido como tershyritoacuterio comum nem um espaccedilo de pertencimento concebido

como ramificaccedilotildees definidas por propriedades formais como

aquele no qual n6s distribuiacutemos os reinos da natureza nem a linearidade arbitraacuteria de uma ordem alfabeacutetica com a qual nosshy

sos dicionaacuterios ordenam o heteroclito no espaccedilo Ele descreve um sistema de analogias de similitudes entre propriedades simshyboacutelicas cujas interconexotildees precisamos traccedilar em uma paacutegina em branco a fim de compreender esse sistema ou o espaccedilo de similitudes Natildeo se pode pensar sem o suporte de um espaccedilo de ordem sem esta zona mediana que Foucault qualifica

9 M FOUaacutelulr Les MolJ ks Choses op dto prefaacutecio p 9 (Ar Plarmu l1li cow pp 5-8 _ N d T) 10 Victor Turner (1920-1983) antropoacutelogo britilnico (N da T)

de arqueoloacutegica por sob nossas percepccedilotildees nossos discursos nossos saberes onde se articulam o visiacutevel e o enunciaacutevel a linshy

guagem o olhar e o espaccedilo

Na emissatildeo radiofocircnica de 7 de dezembro de 1966 Foucault fez um uso totalmente diferente de sua noccedilaacuteo de heterotopia Primeiro ela eacute pertinente natildeo mais a uma anaacutelise dos discursos

mas dos espaccedilos Lugares tatildeo heteroacuteclitos como o espelho o cemiteacuterio a casa de toleracircncia ou a colocircnia polineacutesia de feacuterias em

Djerba entram em uma categoria especiacutefica de espaccedilos-tempos quer este tempo seja provisoacuterio como o tempo uacutenico da defloshy

raccedilatildeo no espaccedilo da viagem de nuacutepcias quer este tempo seja ao contraacuterio cumulativo de temporalidades - atemporal- no lugar da biblioteca ou do museu

Essas unidades espaccedilo-temporais esses espaccedilos-tempos tecircm em comum serem lugares onde estou e natildeo estou como o espeshy

lho ou o cemiteacuterio ou onde sou outro como na casa de toleracircnshy

cia na colocircnia de feacuterias ou na festa carnavalizaccedilotildees da existecircncia

ordinaacuteria Eles ritualizam cortes limiares desvios e os localizam As normas humanas natildeo satildeo todas universalizaacuteveis as da

disciplinarizaccedilatildeo do trabalho e as da transfiguraccedilatildeo pela festa

naacuteo podem desenrolar-se na linearidade de um mesmo espaccedilo ou de um mesmo tempo eacute preciso uma forte ritualizaccedilaacuteo das rupturas dos limiares das crises Estes contraespaccedilos poreacutem saacuteo

Interpenetrados por todos os outros espaccedilos que eles contestam o espelho onde natildeo estou reflete o contexto onde estou o cemishyteacuterio eacute planejado como a cidade haacute reverberaccedilatildeo dos espaccedilos uns nos outros e contudo descontinuidades e rupturas Haacute

POSlACIO

POSFACIO

38 39 enfim como que um eterno retorno desses rituais espaccedilo-temshy

porais e se natildeo universalizaccedilatildeo das mesmas formas ao menos

uma universalidade de sua existecircncia Eles satildeo apreendidos em

uma sincronia e uma diacronia especiacuteficas que fazem deles um

sistema significante entre os sistemas da arquitetura Natildeo refleshy

tem a estrutura social nem a da produccedilatildeo natildeo satildeo um sistema

soacutecio-histoacuterico nem uma ideologia mas rupturas da vida ordishy

naacuteria imaginaacuterios representaccedilotildees polifocircnicas da vida da morte

do amor de Eacuteros e Taacutenatos

A carta de Foucault de 2 de marccedilo de 1967 deixa vazar um

Utopias e heterotopias O Ciacuterculo de estudos arquiteturais era animado entre 1960 e

1970 por Jean Dubuisson seu presidente arquiteto do Museu

(te Artes e Tradiccedilotildees Populares do Bosque de Boulogne e Ionel

Schein que indicava os conferencistas a serem convidados ao

Boulevard Raspail nuacutemero 38 Era um dos raros ciacuterculos de

reflexatildeo de arquitetos sem corporativismo no qual nos anos

cinquenta e sessenta Ionel Schein gozava da lisonjeira reputaccedilatildeo

de agitador de ideias e de radicalismo em arquitetura I I Foi ele

segundo Jean Dubuisson quem convidou Foucault As confeshy

recircncias eram anotadas em estenografia e depois datilografadas e

do arquiteto Natildeo natildeo fora o livro (As Palavras e as coisas) que

desapontamento a arqueologia do olhar natildeo retivera o olhar entregues aos membros do Ciacuterculo Pierre Riboulet - arquiteto

trouxera em germe uma nova concepccedilatildeo do urbanismo livro do entre outros do hospital Robert-Debreacute - conservou sua coacutepia

qual o filoacutesofo esperava a provocaccedilatildeo de rupturas no pensamento Ele se lembra das precauccedilotildees oratoacuterias do filoacutesofo para introduzir

No entanto estas rupturas foram suficientemente ruidosas pelo seu propoacutesito a insistecircncia sobre sua ignoracircncia quanto agraves preshy

menos ateacute o ruiacutedo de 1968 para que Foucault viesse a deixar ocupaccedilotildees dos arquitetos As referecircncias -satildeo tomadas da histoacuteria

tanto o tumulto da gloacuteria quanto o das polecircmicas pela serenidade das ciecircncias (Koyreacute Bachelard) da criacutetica literaacuteria a-p Richard

da luminosa vila de Sidi Bou Sald no alto do golfo de Cartago e Ianchot) da psicanaacutelise existencial (Binswanger) assuntos

a paz - sempre difiacutecil - da escritura Heterotopia vivida O que todos eles sobre os quais Foucault jaacute havia desenvolvido suas

chegara aos ouvidos do arquiteto era uma linguagem menor obsessotildees do espaccedilo12

um daqueles jogos literaacuterios nos quais Foucault tinha um prazer Para marcar seu entusiasmo agrave saiacuteda dessa conferecircncia Robert

guloso juacutebilo incessantemente decepado pela ascese da escrishy Auzelle um dos pensadores da reconstruccedilatildeo da Franccedila a partir

tura contenccedilatildeo que se lecirc na didaacutetica da conferecircncia reescrita d()s anos cinquenta lhe entregou sua histoacuteria da arquitetura

esta para os arquitetos certamente mas os jogos literaacuterios ficam II ltuklt tas infOrmaccedilotildees sobre o Circulo de tstutIos arqumlumis me foram fOrnecidas por P Riboulet

aqui finalmente retranscritos com todo respeito agrave integralidade Illxprcssatildeo utilizada por Fouault in Quesdons agrave Michel Fouault sur la geacuteographie HiroIIote n I 1lt)76 pp 71-85 retomada em Diu et Eacutecriu t m n 169 Paris Gallimard 1994 p 33 (Trad bras de

sonora da qual nasceram K Machado e A L de Souza Sobre a geografia in Microflsica do potUacuter Rio de Janeiro Graal 1979 1IIU-165-N daT)

POSFAacuteCIOPOSFAco

40 41 funeraacuteria e dos cemiteacuterios13 uma das heterotopias de Foucault

Em O Nascimento da cllnica14 Foucault descrevera como a anatoshy

mopatologia havia integrado a morte no conhecimento da vida

oferecer-lhe a hist6ria da integraccedilatildeo dos cemiteacuterios na planificashy

ccedilatildeo urbana provava a perfeita cumplicidade entre seus ouvintes

e o conferencista a negatividade estava no cerne da racionalishy

dade Ela estava no cerne das anaacutelises de Foucault pelo menos ateacute Vigiar epunit5

Foi no final deste mesmo ano de 1967 que Jean-Luc Godard

em A Chinesa fez sua heroiacutena a estudante pr6-chinesa interpreshy

tada por Alme Wiazemsky jogar tomates em um exemplar de As Palavras eas coisas entio um livro siacutembolo por suas descontinuishy

dades abruptas do pensamento no tempo da negaccedilatildeo da hist6ria e portanto da negaccedillo da revoluccedilatildeo

A confercncia de 1967 poderia ter outra circulaccedilatildeo aleacutem da

c6pia datHografada entre os membros do Circulo O pr6prio

Circulo natildeo possuiacutea uma revista e nlo editava nenhuma de suas

conferecircncias Por outro lado as concepccedilotildees que entatildeo partilhashy

vam os arquitetos deviam muito a Le Corbusier e agrave Bauhaus agrave

racionalizaccedilatildeo das formas e agrave legibilidade do espaccedilo urbano

concebido como um texto pontuado com referecircncias espaccedilos

ou edifiacutecios Franccediloise Choay que Foucault frequentara nos anos

13 R AuzeUe Derniim Dmlnlm Paris ed do autor 13 PIace du Panrlleacuteon 1965 14 M Foucault Naissanct de la ClitlUacuteJue Paris PUF 1963(Trad bru de R Machado ONtUCimentIJ da clnCIt ruo d Janeiro Forense-Universitaacuteria 1977 - N da T) 15 M Foucaul Survdlkr tIPunir Paris Gallimard 1975 A obra apresenta o panoacuteptico de Benthrun como um acontecimento na histoacuteria do esplrito humanomiddot epropotildee uma anill1sc do poder em termos d produccedilatildeo e natildeo de repressatildeo (Trad bras de R Ramalhete VIgiar11mr Pett6poliacutes Vous 1987 _ N da T)

ttenta reconstitui essas problemaacuteticas em Urbanisme utopies et rtaiteacutesl6

Um urbanismo progressista humanista que se sustentava

111amp carta de Atenas l7 e em uma racionalidade crescente ou um

urbanismo culturalista para o qual cada forma eacute siacutembolo e que

(Ilha com nostalgia para a harmonia das cidades passadas estas

tmm as ideias reguladoras da razatildeo urbaniacutestica Estas ideias

rCguladoras jaacute natildeo talhavam em pontilhado o espaccedilo da utopia

em que viria a desdobrar-se ap6s 1968 o discurso arquitetural e

urbano em uma dissoluccedilatildeo do objeto cidade no seio das relaccedilotildees

udais capitalistas A cidade como totalidade formal ou racional

I1Ao foi deslocada pelo capitalismo O espaccedilo natildeo eacute uma imensa

paacutegina em branco onde se escreve desde cerca de dois seacuteculos a

Illetanarraccedilaacuteo do capital Naacuteo estaacute aiacute o impensado geral o natildeo

dito de todas essas divisoacuterias construiacutedas entre as classes os sexos

C as geraccedilotildees

O fasciacutenio das escolas de arquitetura pela visita a cidades

patronais estas utopias realizadas como o familisteacuterio de Guise

unstruiacuteda por Godin ou a cidade Menier de Noisiell8 testeshy

munha que o discurso arquitetural e urbaniacutestico francecircs dos anos

etenta se desdobrava no espaccedilo da utopia Os promotores dessas

cidades natildeo estariam entre os primeiros a inventar o consumo

em massa Um reduzia as dimensotildees da milenar e dispendiosa

1111( Choay UrbanisIM UtIJpits tt rlaitis Paris Seuil 1965 17 Carta de Atenas manifesto do IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (Ciam) Atn 1933 (N da T) I Pamllisteacuterio de Guise espeacutecie de comunidade ou cidade operaacuteria inspirada em Charles Fourier IIl1nmulda em 1846 por J-BGodln para habitaccedilatildeo de operaacuterios de sua induacutestria Menler de Noisiel IDmunldade de operaacuterios da ptoduccedilatildeo de chocolates fundada por A B Menier em 1925 nas imediaccedilotildees bull arl (N da T)

POSFAtildeCIO POSFAacuteCIO

42 43 lareira a um aquecedor domeacutestico outro um medicamento dos

exeacutercitos napoleocircnicos a um complemento alimentar industrial

o tablete de chocolate Natildeo teriam eles articulado da maneira

mais restrita a racionalizaccedilatildeo do consumo com a da ocupaccedilatildeo do

espaccedilo A racionalizaccedilatildeo da cidade patronal como a fragmentaccedilatildeo

do espaccedilo urbano o homog~neo como o heterogecircneo conduziam

a um mesmo crivo de leitura infalsificaacutevel a espacializaccedilatildeo do

capital O arquiteto tornava-se o teacutecnico passivo da operacionashy

lizaccedilatildeo das estrateacutegias e das normas do capital

Mostra-se uacutetil falar indiferentemente das utopias preacute-urshy

banistas das cidades operaacuterias de Haussmann da Bauhaus do

funcionalismo dos Shakers dos grandes conjuntos das cidades

novas por toda parte afirma-se perigosamente uma racionalishy

zaccedilatildeo do espaccedilo inerente agrave extensatildeo universal do capital uma

propensatildeo de sua ordem de troca ou da ordem simplesmente podia-se ler na revista Traverse19bull

Genealogia dos equipamento coletivol Eacute a partir de 1972 que Foucault desenvolve pesquishy

sas em equipe sobre a histoacuteria dos equipamentos coletivos

Primeiramente com o Centro de estudos pesquisas eformaccedilatildeo instishytucional- ou Cerfi - animado pelo psiquiatra Feacutelix Guattari que

conclui entatildeo com Gilles Deleuze a redaccedilatildeo do seu Anti-Eacutediptldeg

19 B Eizykman Urbanismo Travme n 4 1976 citado por A Thalamy in PolltilJues tk lhabitat Corda

1977 p 14 (o nome Shaker designa um movimento de grupos religiosos fundado na Inglaterra no seacuteculo XVIII que - agrave semelhanccedila dos Amish- vivem em suas proacuteprias comunidades _ N da T) 20 G Deleuze F Guattari LAnti-CEdipe Paris Minuit 1972 (Trad bras de L B L Orlandi O Antishy-Eacutedipo Satildeo Paulo 34 2010 - N da T)

( rliacuteldo em 1965 com pesquisadores em ciecircncias sociais dissidenshy

trN do Partido Comunista Francecircs (PCF) o Cerfi apoacutes 1970 I()( em questatildeo sua cultura marxista submetendo-a a uma dupla

Inova 1) a do procedimento genealoacutegico praticado em Histoacuteria Ioucura e O Nascimento da cliacutenica 2) a de uma clarificaccedilatildeo

IIlN relaccedilotildees libidinais que todo pesquisador manteacutem com o

uhjeto de sua pesquisa (a ambivalecircncia da reflexatildeo urbaniacutestica

frente agrave racionalidade capitalista natildeo escapava a ningueacutem) e que

UIe pesquisadores mantecircm entre si como grupo social hierarquishy

uto e sexuado

O relato da realizaccedilatildeo dessa dupla prova publicada na revista

do Cerfi21 eacute provavelmente um dos mais interessantes diaacuterios de

hordo da travessia ideoloacutegica daqueles anos Ali se assiste como

lue em um laboratoacuterio agrave desagregaccedilatildeo da anaacutelise marxista e

~ emergecircncia daquilo que logo seraacute batizado de atitude poacutesshy

-moderna O empreendimento eacute descrito por seus autores como

uma estranha maacutequina feita de peccedilas e pedaccedilos emprestados do

Ilenealogista Foucault surrupiadas do depoacutesito do cientista biceacuteshy

falo Deleuze-Guattari

O genealogista Foucault eacute de fato uma nova imagem social

do filoacutesofo o procedimento genealoacutegico soacute estaraacute francamente

c()nfirmado a partir de seu ensino no Colge de France inaugurado

em dezembro de 1970 Ademais a partir de 1971 juntamente

com Deleuze ele anima um movimento militante o Grupo de

JI (eacuteneacutealogie du capital- I Les eacutequipements du pouvoir Recherches n 13 dezembro1973 Um s6 bullbullbullmplo de uma retomada das hettrotopias por H umre a propoacutesito de La Pensuuml marxiste de la vilte IIrlbullbull Casterman 1972

POSFAacuteCJO POSFAacuteCIO

44 45 informarao sobre as prisoes (GIP) enraizado na extrema esquerda

Foucault disc ute com 0 Cedi que trabalha sobre a cidade22

a abordagem genealogica dos equipamemos coletivos e a poe

em pritica sobretudo no seu seminario do College de France 0

seminario e consagrado aemergencia do medico como perito

no seculo XIX atraves da pericla psiquiatrica em medicina legal

por urn lado e por outro como engenheiro que comribui para

a definicao das normas e formas da arquitetura hospitalar Urn

arquiteto Bruno Fortier responsavel pelo Centro de estudos epesshy

quisas em arquitetura (Cera) participa doravame dos trabalhos

de pesquisa desse seminario

Se a expressao equipamemo coletivo nao figura nos textos

do seculo XVIII a maquina de curar definida pelo medico

Tenon como ideal do hospital moderno neles tern lugar A

arquitetura hospitalar escreve Tenon2 nao pode mais constishy

tuir-se de rotina c tateamemos devendo responder a multiplas

prcocupacentes estancar 0 contagio pela distribuicao das salas e

dns leiros a circuhlltao do ar tavorecer a diss()cia~ao dos doemes

c das d()cn~as a vigilancia dos dotntcs e do pessoal manifestar

a hierarquia do olhar medico ter em coma as necessidades da

populacao 0 que serve para curar nao e a regularidade do trashy

cado mas a justeza da arquitetura 0 modelo deve ser perfeito

- nao se podendo mais em nada muda-Io - acabado repetivel

Pela primeira vez em 1788 escreve Bruno Fortier propoe-se

22 Ruhhl1 n 13 op cir pp 27middot31 (Dits ~I fcrit n 129 n 130) 23 J-R Tenon M moirs sur It~middot api fl llX tie P1ris Paris 1788

aos arquitetos a imitacao como urn dever24 as tipologias norshy

mativas seguem os exemplos oferecidos pela historia A justeza

da arquitetura nasce do tratamemo de uma rede de questoes disshy

timas - c1imaticas demogdficas estatisticas higienicas medicas

disciplinares - que tern cada qual seu lugar de emergencia sua

racionalidade seus promotores que respondcm a uma multiplishy

cidade de taticas - tecnicas de vigilancia de producao de saber

de efetuacao de poderes de medica l iza~lo c de saude publica

Elas podem ser descritas como segmemos analogos Oll repetidos

ao infinito de urn so texto de um escrevcnrc unico Illitico e

unitario 0 capital

Certamente esses novos edificios incorporam dticas de

vigil an cia encomradas fora sob outras formas arquiteturais shy

colegios casernas - taticas e formas que puderam preceder e

sustemar a emergencia da organizacao capitalista do trabalho e

que poderao proliferar para alem dela por exemplo nos vast os

arquipelagos do socialismo siberiano Eque fundamemalmeme

nao estamos Iidando nem com formas arquiteturais nem com

modos de producao mas com tecnologias de poder Foi na busca

destas arquiteturas maquinas tao ajustadas aos seus objetishy

vos que Foucault veio a redescobrir 0 que logo tornou-se parashy

digma de sua obra 0 panoptico de Bcntham2 do qual Poyet26

24 M Fo ucault D Barrer-Kriegel A Thahmy F Btgllin B tllrlicr L-IVIi(Jilln II X4lrir (m4JI l)rigill ~1

de OJOpilil modnrl~) Paris lnsri ru[ de J cnvi ronncm cnt 1976 rccd Hruu lOl) Iirc M~rda8Q J~79

25 J Bcmham Le Panoptiqui p rcccdido de Loeil du pouI-vir cnrrcmiddotvisru Om Michel Fou~ult P~ ri s

Bdfond 1977 (faC-ltimik da cdjao franccsa de 179 1) (Trod bras d bullbullm rvi 0 Ih do poder por A L de S OU-1 in Microfli ra tQ pokr op Ci l pp209-227 - N d 1)

26 B Poyet M h noiu sur a niassili d( Iransera lt u collsrlli r tIf-fj rd-lhrm w ill dull pm)lmiddotr It

traminlioll k eel hopil4l Paris 1785

IOSFACIO pOSFAeiO

46

47 desenhara uma interpretaccedilatildeo para a reconstruccedilatildeo da Santa Casa de Misericoacuterdia Os trabalhos do seminaacuterio do College de Frante sobre a arquitetura hospitalar no final do seacuteculo XVIII recebeshy

ram duas ediccedilotildees uma em Paris em 1976 outra em Bruxelas em 1979 Les Machints agravegutrir27

O segundo estudo coletivo dirigido por Foucault teve por objeto o habitatentre 1800 e 185018 Foi conduzido por Franccedilois

Beacuteguin hoje historiador da paisagem e da arquitetura colonial29bull

Ametodologia ~ a mesma que a precedente no lugar de partir de

uma histoacuteria das formas da habitaccedilAo ou da cidade os pesquisashydores inventariaram as pr~tlcllll discursivas que circunscreveram e

codificaram o habitat como obJero de intervenccedilatildeo administrativa e politica entre 1800 e 1850 - a doenccedila o emprego a domestishycaccedilatildeo de equipamentos como a ~gua a iluminaccedilatildeo a ventilaccedilatildeo

e o desenvolvimento de uma crescente jurisdiccedilatildeo sobre o espaccedilo

puacuteblico em cuja intersecccedillo se connroacutei o habitat Eacute preciso prishy

meiramente desfazer-se da pregnAncla da casa desmineralizaacute-la desconstruiacute-la escreve F B6guln

Poder saber es~

Eacute a partir de vtgiar t punir (1975) e de sua raacutepida circulaccedilatildeo Iacutemernacional- traduzido rapidamente em cerca de vinte liacutenguas - que as anaacutelises foucaultianas do espaccedilo recebem uma visibilishy

dade nova como lugar de uma dupla articulaccedilio do poder sobre

27 M fucault B Barrer-Kriegd A Thalamy F Beacutepdn B fIorllr ln MtIthllltt 4 gubir op cit 28 ]-M A1Haume B Barret-Kriegcl F Seguin D Ranclere A lhalamy PDitifUtt tk lhabitat 18()() 1850 Paris Corda 1977 (estudo realizado sob a direccedilAo de M Poucaull)

29 De F Beacuteguin citemos principalmente ArabIacuteSlUlett dko illChlmhI4 ubitill Afoque du Norri 1830-1850 Paris Dunod 1983 e Paysagtt Paris Flammarlon 19

o corpo do indiviacuteduo e do saber ao poder Seguem-se numerosos estudos sobre a arquitetura da vigilacircncia publicados na Itaacutelia e na Gratilde-Bretanha principalmente3deg De modo mais geral socioacuteshy

logos e planificadores urbanos comeccedilam a referir-se a Foucault

A Leaman escreveu em Environment and Plannintl que a obra de Foucault eacute doravante importante para os urbanistas planifishy

cadores e arquitetos por sua anaacutelise das qualidades normativas

das estruturas e das instituiccedilotildees Sharon Zukin considera que a cidade estaacute doravante incluiacuteda nas anaacutelises de uma economia

do poder segundo o meacutetodo desenvolvido em vtgiar e punir32bull

Esse eacute o contexto em que reaparecem as heterotopias na escola de arquitetura de Veneza em dezembro de 1977 prishymeiro estudo sobre seu uso possiacutevel em uma histoacuteria dos espashyccedilos II dispositivo Foucault 33 que reuacutene ensaios de M Cacciari

F RelIa M Tafuri G Teyssot A capa como a de Machines agrave gueacuterir reproduz um plano de arquitetura panoacuteptico para um

hospital inglecircs Os autores se referem essencialmente a Vtgiar e punir e exceto T eyssot a uma reuniatildeo de textos de Foucault sobre o poder publicado neste mesmo ano pela editora Einaudi

Microfisica deipotert4 a incidecircncia poliacutetica desta uacuteltima coletacircnea

lO Ver especialmente HinmJmd primeiro ano n 3 maio-junho1978 n triliacutengue intitulado Segrtgazione corpo sociak consagrado agraves atquitetuta de vigilanda jl A Leaman in Environmmtand Planning n 111979 pp 1079-1082 H Sh Zukin Adecade cfilie new urban sociology 1heoryand Society 91980 pp 575-601 H M Cacdari F Relia M Tafuri G Teyssor II dispositillO Foucaut Veneza Cluva 1977 4 M Iltlucaullt MimfoIacuteCIJ rktpoYrt inkrUtntipoitici editado por Iltlnrana e Pasquino Turin Einudi 1977 retomado e completado pelo movimento alternativo berlinense Dispositive tkr Macht Betlin Merve 1978 (A reuniaacuteo d textos que compotildecm a ediccedilatildeo italiana a=sdda de oUtros textos reltebeu traduccedilaacuteo brasileira de R Machado e OUrtOS Micrufisica do potkr Rio de Janeiro Graal 1979 Foi publicada tambeacutem uma ediccedilaacuteo espanhola com algumas alteraccedilotildees dos tcxtos sdeclonados trad por J Varela e F A1varez-UrIacutell Madri La Piquem 1978 - N da T)

POSFAacuteCIO

POSFAclO

48 49 foi imediata logo reforccedilada pela traduccedilatildeo de Rhizome de Deleuze

e GuattarP livros que se tornaram referecircncias teoacuterico-poliacutetishy

cas do movimento chamado Autonomie (do poliacutetico subenshytenda-se) que incomodava a esquerda do PCI engajado na

estrateacutegia do compromisso histoacuterico ~ esta incidecircncia poliacutetica

que os italianos batizaram de leffeto Foucault36 que eacute o alvo de 1 dispositivo Poucault

A introduccedilatildeo agrave coletAnea escrita por F Rella eacute perfeitamente expliacutecita desde Jogo travare as anaacutelises foucaultianas da pluralishy

dade das relaccedilotildees de poder em uma metafisica do poder de um poder abstrato imaterial supostamente em toda parte e portanto

politicamente em parte alguma liA uacutenica histoacuteria dos poderes eacute

uma histoacuteria dos espaccedilos atraveacutes dos quais o poder se mostra E

apoiando-se no artigo de Teyssot como uacutenica fonte de conhecishy

mento das heterotopias prossegue O nlo lugar do poder situashy

-se no centro de uma infinidade de localizaccedilotildees heterotoacutepicas

A heterotopia torna-se entatildeo um dado central em Foucault

e a hetero topologia a fenomenologia da dlspersio anaacuterquica do

poder A conclusatildeo desta interpretaccedilatildeo eacute previsiacutevel Natildeo se comshy

bate mais o poder doravante investidp em uma miriacuteade de locashylizaccedilotildees [ou dispositivos] mas a tirania das teorias globalizantesraquo

Teorias que Rella explicita precisando em nota leffeto Marx37 Na verdade Teyssot38 natildeo comenta a confer~ncia de 1967

35 G Deleuu F Guattari Rhizo1M Paris Minuit 1976 Rizoma ParrnalL~uea Pradche 1977 36 Em italiano no original (N da T)

37 Em italiano no original (N da T)

38middotG Teyssot Eterotopia e storiadegli spazi II displJlitirm FOllcault pp 83-86 e HelerolOpies and the historyofspaccs Arcbiacutetlctureandurbaniacutesm 121 1980 pp 79-100

mas o uso taxinocircmico do prefaacutecio de As Palavras eas coisas aplishy

cando-o a um projeto de hospital do seacuteculo XVIII descrito pelo

historiador J-c Perrot39bull Seu plano distribui como uma grade

em oiro construccedilotildees distintas oito classes de pensionaacuterios tatildeo

heterogecircneos quanto as categorias de animais da enciclopeacutedia de

Borges a) os prisioneiros a pedido de suas famiacutelias b) os loucos

os prisioneiros por edito real c) as crianccedilas pobres e legiacutetimas

dedois a nove anos os idosos os mendigos as prostitutas acoshy

metidas de doenccedilas veneacutereas d) as crianccedilas bastardas de mais

de nove anos etc Eacute a incongruecircncia do conteuacutedo que designa

a arquitetura como heterotopia e naacuteo o jogo de oposiccedilatildeo ou de contestaccedilaacuteo qualitativa ou simboacutelica dos outros espaccedilos que este

uacuteltimo institui por sua funccedilaacuteo sua forma suas rupturas

O uso da heteroropia feito por T eyssot de modo algum transshy

creve a inscriccedilaacuteo profunda da espacialidade na ttalidade da

existecircncia humana a heterogeneidade e a descontinuidade dos

tempos vividos os limiares da vida as crises bioloacutegicas (iniciashy

ccedilatildeo puberdade defloraccedilatildeo) Eacuteros e Taacutenatos As espacializaccedilotildees

da subjetividade sob todas as suas formas da casa de toleracircncia agrave

sauna e natildeo somente as grandes funccedilotildees da carta de Atenas receshy

beram em todas as culturas uma inscriccedilatildeo especiacutefica no espaccedilo

em espaccedilos que entretecircm entre si natildeo uma relaccedilatildeo de divisatildeo como interioridadeexterioridade margemcentro puacuteblicol prishy

vado mas um jogo formal de diferenciaccedilatildeo e de reverberaccedilatildeo

em suma no registro da comunicaccedilatildeo Tanto Relia que faz do

W J-C Perrot Genes du vilk mo Cam ali XVII sdele Paris Mouton 1975

POSFAacuteCIO

POSgtAClO

51

50 espaccedilo foucaultiano o receptaacuteculo neutro e contiacutenuo das hetero- topias do poder - concepccedilatildeo globalizante - quanto T eyssot que

faz da heterotopia a articulaccedilatildeo arquitetural das incongruecircncias

do mundo - concepccedilatildeo loealista - carecem ambos da terceira dimensatildeo aquela propriedade do espaccedilo de se remeter a si mesmo

na espessura de um jogo formal e simboacutelico de contestaccedilatildeo e de

reverberaccedilatildeo em uma fragmentaccedilatildeo que natildeo eacute segmentaccedilatildeo este Thirding que E Soja assim teoriza no Instituto de urbanismo de LosAngtlts na UeLA the Thirding as othering40

Essa primeira recepccedilatildeo das heterotopias pela escola de arquitetura de Veneza representada por II dispositivo Foucault mostra a ambiguidade da noccedilatildeo de recepccedilatildeo natildeo se trata de uma compreensatildeo exata nem de uma real instrumentalizaccedilatildeo mas de uma reimplantaccedillo poUss~mica e poMmica em uma rede de

debates poJJticos por um lado e de um questionamento episteshymoloacutegico por outro

Em julho de 1976 Foucault relembra pela primeira vez sua confercncia de 1967 em uma entrevista sobre o panoacuteptico de

Bentham publicada em 1977 mencionada aliaacutes por Teyssot Seria necessaacuterio escrever toda uma histoacuteria dos espaccedilos que fosse

ao mesmo tempo uma histoacuteria dos poderes desde as grandes estrateacutegias da geopoliacutetica ateacute as pequenas taacuteticas do habitat da arquitetura institucional da sala de aula ou da organizaccedilatildeo hosshy

pitalar passando pelas implantaccedilotildees econOacutemico-poliacuteticas Eacute surshypreendente ver quanto o problema dos espaccedilos levou tanto tempo

40 Bd Soja 7huacutelspact Journeys to Los Angks a11( Othtr lUa11( ltilM Ptampts Cambridge (Mass)Blackdl 1996

para aparecer como um problema histoacuterico-poliacutetico Lembro-me que haacute cerca de dez anos falei destes problemas de uma poliacutetica

dos espaccedilos e de me terem respondido que era bastante readoshy

naacuterio insistir tanto sobre o espaccedilo e que o tempo o projeto era a vida e o progresso 41

Uma histoacuteria foucaultiana dos espaccedilos mais precisamente

da espacializaccedilatildeo do poder mais precisamente ainda da inscriccedilatildeo

no espaccedilo colonial- heterot6pico - desse regime de poder partishycular que se desenvolve a partir do seacuteculo XVIII e que Foucault designa de biopoder42 a partir do qual os problemas de espaccedilo tornam-se politicamente diferentes eacute o projeto que no comeccedilo dos anos oitenta empreendem o antropoacutelogo Paul Rabinow43 e a historiadora do habitat americano Gwendolyn Wright44bull Nem

eles nem Franccedilois Beacuteguin conheciam a conferecircncia de 1967

Em uma entrevista que Rabinow e Wright fizeram com

Foucault em 198245 publicada em Skyline46 revista americana de

arquitetura o filoacutesofo lembra suas obsessotildees pelo espaccedilo e como

atraveacutes destas obsessotildees cheguei ao que eacute fundamental para mim as relaccedilotildees que satildeo possiacuteveis entre o poder e o saber

41 MFoucault J Bentham Lotil pouvoir in L Panoptiacuteque Opcil (Veja-se em traduccedilaacuteo brasileira de A L de SOU7 O olho do poder in Microfiacutesica b podtr op cit- N da T) 42 M Foucaull La Volon tk savoir Paris Gallimard 1976 cap V Droil de mort et pouvoir SUl I vie (Trad bras de M T da C Albuquerque e J A Guilhon Albuquerque A Vontade tk saber Rio de Janeiro Graal 1977 - N d T) 43 P Rabinow Biopower in lhe Frrnch Coloits conferecircncia interdisciplinar sobr Foucault Knowledge Power HislOry Los Angeles 29-31 de oUlubrol1981 Frrneh Modn Norms and Forms of th SfJCial Enviacuteronmmt Cambridge (M) MIT Press 1989 44 G Wright 7he Poliacutetics ofDltsigns in the Frrnch Colonial Urbanism Chicago University Preso 1991 45F B~n Arabisanm op cil 46 M Foucaull Space knowledge power entrerien avec P Rabinow Skyline marccedilo11982 pp 16-20 retomada em Dits tt Eacutecrits t N n 340 pp 270-285

POSFAacuteCIO

POSFAacuteCIO

53

52

A arquitetUra e o urbanismo naacuteo constituem diz ele um campo isoshylaacutevel Misturam-se com muacuteltiplas praacuteticas e discursos mas o espaccedilo

eacute o lugar privilegiado de compreensatildeo de como o poder opera

Inversamente ele bane da praacutetica do arquiteto toda esperanccedila

utoacutepica Os homens sonharam com maacutequinas libertadoras Mas por definiccedilatildeo natildeo existem maacutequinas de liberdade Jamais

a estrutura das coisas tem competecircncia para garantir a liberdade Nada eacute funcionalmente libertador A liberdade eacute o que se deve exercer a garantia da liberdade eacute a liberdade

Mestre doravante de um discurso poliacutetico e epistemoloacutegico sobre o espaccedilo Foucault deixa entatildeo ressurgir seu antigo conceito de heterotopia Diga-se entre parecircnteses lembro-me de ter sido

convidado por um grupo de arquitetos em 1966 para realizar um estudo do espaccediloi tratava-se do que na eacutepoca chamei de heterotopias espaccedilos singulares que encontramos em alguns

espaccedilos sociais cujas funccedilOes satildeo diferentes das dos outros ou tershy

minantemente opostas Os arquitetos trabalhavam neste projeto e no final do estudo algueacutem tomou a palavra _ um psicoacutelogo

sanreano - para me bombardear que o espaccedilo era reacionaacuterio e capitalista enquanto a histoacuteria e o devir eram revolucionaacuterios

Agravequela eacutepoca este discurso absurdo de modo algum era inabitual Hoje em dia qualquer um se dobraria de rir ouvindo aquilo

Natildeo haacute como natildeo se impressionar com esta longa anamnese em dois tempos primeiro em 1976 relativamente agrave objeccedilatildeo poliacuteshy

tica feita em 1967 e em 1982 enfim relativamente ao proacuteprio conceito de heterotopia em 1984 Foucault podia acolher favoshy

ravelmente a reutilizaccedilatildeo de sua conferecircncia pelo IBA de Berlim

Os dois organizadores da exposiccedilatildeo o alematildeo Johannes Gachnang e o italiano Marco de Michelis conheciam esse texto

em sua publicaccedilatildeo de 1968 em Architteturri7bull Ele sintonizava

estranhamente com a estrateacutegia do IBA tal como foi exposta por

um de seus dois responsaacuteveis J-P Kleihues48 executar a ideia

de uma cidade por fragmentos falar de arquitetur~ urbana sem traccedilar primeiramente um plano global de urbanismo respeitar

a variedade histoacuterica e topograacutefica berlinense pensar a composhysiccedilatildeo da cidade por ilhotas e ateacute confiar a diversos arquitetos a

reconstruccedilatildeo das residecircncias em uma mesma ilhota E por ocashy

siatildeo de uma reunificaccedilatildeo eventual justificar a conservaccedilatildeo da arquitetura staliniana

Sua traduccedilatildeo americana ocorreu em 1986 publicada prishy

meiramente na revista interdisciplinar de ComeU Diacriticis depois na revista de arquitetura LOtu9 Inaugurava-se uma carshy

reira nova para a interpretaccedilatildeo qualitativa dos espaccedilos outros

Natildeo se compreenderia esta carreira sem a simultaneidade da trashy

duccedilatildeo dos volumes II e III de Histoacuteria da sexualidaJe5deg a partir

dos quais Foucault torna-se uma referecircncia para aquilo que os americanos denominam poliacuteticas da identidade Movimentos

feministas movimento gay grupos eacutetnicos constituem a nova

47 Infurmaccedilaacuteo obtida com e1cs e concedida por Franccediloise Jolr 48 J-r Kleihues Agrave propos de I viUe europeacuteenne entreVista com M Bourdeau AMeS outubroI984

pp 95-99 49 M Foucault Ofother spaces Diacritieacuteiacutes 16 n I 1986 pp 22-27 e Lotushmnational 1986 50 M Foucaulr lUage tUacutes pIAis Paris Gallimaa 1984 uacute Souci Je soi Paris Gtlimn 1984 trad

1ht Use ofPlrasU Harmondsworth Penguin 1985 1ht Ca Dfthe sg Harmondsworth Penguin 1986 (Trad bras de M T da C Albuquerque O USQ dos p e O CuiJmJo Je si Rio de Janeiro Graal 1984 e 1985 - N da T)

POSFAacuteCIO

POSFAacuteCIO

54 rede de inscriccedilatildeo e a nova avaliaccedilatildeo das heterotopias A histoacuteshy

ria dos modos de subjetivaccedilatildeo realizada por Foucault atravessa

textos como lhe spaces that diferences make do urbanista Ed

Soja51 Gendered Spaces da feminista Daphne Spain52 lhe New Cultural Politics ofDijforence de Cornel West53 ou Geographical lmaginations do geoacutegrafo Derek Gregory54

Lugar de emergecircncia da heterotopia a anaacutelise literaacuteria dela

se apropria com Brian McHale Michel de Certeau5S a anaacutelise

fiacutelmica com Giuliana Bruno56bull Foucault torna-se passagem obrishy

gatoacuteria para toda anaacutelise do espaccedilo constata Soja

O mesmo se passa com as artes plaacutesticas Apresentando as

obras do artista plaacutestico cubano Felix Gonzalez-Torres Nancy

Spector descreve uma experiecircncia de ambiente heterotoacutepico

realizada em Manhattan57bull Em vinte e quatro paineacuteis de anuacutencio

publicitaacuterio das instalaccedilotildees urbanas de Manhattan Gonzalezshy

-Torres afixou o contraespaccedilo constituiacutedo por imensa foto em preto

e branco da intimidade de uma cama exposta Desnudamento

absoluto de um puro roccedilar de lenccediloacuteis leve traccedilado de duas cabeshy

ccedilas no vaacuteo entre os dois travesseiros onde cada qual pode proshy

jetar ou a interrupccedilatildeo do sono ou o amor consumado ou mais

51 Ed Soja The spa= that dlfenna makc ln M Kelm e S PIlbullbull PI4u iI1III lhe Politics olidmtiacutety NQVlI Iorque Roudedge 1993 pp 183middot205 52 D Spain Glt1JIUacutertaacute Spam Chapei Ht11 Unlverlty ofCarolIna Pras 1992 53 CWest 1M Ntw Cultural Politict oIDifimut ot h 1M Dilm_ ofrJu BIa lnttlkcttuuacute Ferguson 1994 54 D Gregory Gtographicalmaginatiacuteons citado ln Ed Soj hitrlspace Carobridge Bladltwell 1994 55 B McHale Post Moaacuteernist Fietion Nova Iorque Routledge 1988~ M de Certeau HettrologitS Discouffl 01tlu Otbtr Manchester Manchester University Presa 1986 56 G Bruno Bodlly ArchirecturesAltrtmblag 19 dezembro1992 57 N Spector Ptilt GonzakzmiddotTorres The Solamon R Guggenheim Museum Nova Iorque 1995

radicalmente a advertecircncia do artista uma decisatildeo de 1986 da

Corte suprema autoriza doravante a justiccedila em todo Estado em

que a sodomia eacute ainda um crime a persegui-la mesmo quando consentida entre adultos em suma a intimidade do espaccedilo prishy

vado da cama acaba de entrar no espaccedilo puacuteblico Esta articulashy

ccedilatildeo entre o puacuteblico e o privado poderia criar segundo Spector uma histoacuteria mais silenciosa a marca vazia do companheiro do

artista morto de aids

Maravilhosa intuiccedilatildeo no comeccedilo da confer~ncia radiofocircnica

de Foucault em 1966 daquela passagem inexistente na conferecircnshy

cia para os arquitetos em 1967 em que o fil6sofo evocava como

primeira figura da heterotopia a cama dos pais que as crianccedilas

gostam de invadir com um prazer de transgressatildeo e de sonho das origens Naacuteo poderiacuteamos concluir que aqui a longa seacuterie de

rein~riccedilotildees do texto em muacuteltiplas redes e estrateacutegias que a longa

seacuterie de transformaccedilotildees da figura social de seu autor encontram

neste instante de sua trajetoacuteria a mais completa forma de recepshyccedilatilde0 58 Foucault natildeo declarara tantas vezes que almejava menos

leitores que utilizadores59

58 Ed Soja Heterotopies remembrance Df other spaccs in me citadd LAraquo Strattgies a jIJurna 01 tbeory culturt anaacute poines 3 1990 pp 1middot39 Post metropolis Critiacutecal Stuties 01 Ctti naacute Rtglgtnt Londle$ Blackwdl 2000 59 Em 200I uma associaccedilatildeo cultural italiana denominada EttrotpirJ publicou uma releitura de textos de Foucaulr sobre o espaccedilo sob o titulo Spnialtri

POSFAacuteCIO POSFAacuteCIO

36 37 que natildeo existe desabrocham contudo em um espaccedilo imaginaacuteshy

rio e por isso situam-se na linha reta do discurso pois desde

o fundo dos tempos a linguagem se entrecruza com o espaccedilo A lista de Borges ao contraacuterio estanca as palavras nelas proacuteprias pois a heterotopia arruiacutena natildeo somente a sintaxe das frases como

tambeacutem aquela menos manifesta que autoriza manter juntas as palavras e as coisas9

A impossibilidade em que se encontra nosso pensamento para pensar esse heteroacuteclito radical da classificaccedilatildeo de Borges tesshytemunha um limite do pensamento o mesmo limite que ainda

experimentamos diante das classificaccedilotildees proacuteprias agraves culturas que nos satildeo radicalmente estranhas Quando Victor TurnerlO descreve como os Ndembu da Zacircmbia reuacutenem em uma mesma

classe os caccediladores as viuacutevas os doentes e os guerreiros isto

natildeo implica um espaccedilo de pertenci menta concebido como tershyritoacuterio comum nem um espaccedilo de pertencimento concebido

como ramificaccedilotildees definidas por propriedades formais como

aquele no qual n6s distribuiacutemos os reinos da natureza nem a linearidade arbitraacuteria de uma ordem alfabeacutetica com a qual nosshy

sos dicionaacuterios ordenam o heteroclito no espaccedilo Ele descreve um sistema de analogias de similitudes entre propriedades simshyboacutelicas cujas interconexotildees precisamos traccedilar em uma paacutegina em branco a fim de compreender esse sistema ou o espaccedilo de similitudes Natildeo se pode pensar sem o suporte de um espaccedilo de ordem sem esta zona mediana que Foucault qualifica

9 M FOUaacutelulr Les MolJ ks Choses op dto prefaacutecio p 9 (Ar Plarmu l1li cow pp 5-8 _ N d T) 10 Victor Turner (1920-1983) antropoacutelogo britilnico (N da T)

de arqueoloacutegica por sob nossas percepccedilotildees nossos discursos nossos saberes onde se articulam o visiacutevel e o enunciaacutevel a linshy

guagem o olhar e o espaccedilo

Na emissatildeo radiofocircnica de 7 de dezembro de 1966 Foucault fez um uso totalmente diferente de sua noccedilaacuteo de heterotopia Primeiro ela eacute pertinente natildeo mais a uma anaacutelise dos discursos

mas dos espaccedilos Lugares tatildeo heteroacuteclitos como o espelho o cemiteacuterio a casa de toleracircncia ou a colocircnia polineacutesia de feacuterias em

Djerba entram em uma categoria especiacutefica de espaccedilos-tempos quer este tempo seja provisoacuterio como o tempo uacutenico da defloshy

raccedilatildeo no espaccedilo da viagem de nuacutepcias quer este tempo seja ao contraacuterio cumulativo de temporalidades - atemporal- no lugar da biblioteca ou do museu

Essas unidades espaccedilo-temporais esses espaccedilos-tempos tecircm em comum serem lugares onde estou e natildeo estou como o espeshy

lho ou o cemiteacuterio ou onde sou outro como na casa de toleracircnshy

cia na colocircnia de feacuterias ou na festa carnavalizaccedilotildees da existecircncia

ordinaacuteria Eles ritualizam cortes limiares desvios e os localizam As normas humanas natildeo satildeo todas universalizaacuteveis as da

disciplinarizaccedilatildeo do trabalho e as da transfiguraccedilatildeo pela festa

naacuteo podem desenrolar-se na linearidade de um mesmo espaccedilo ou de um mesmo tempo eacute preciso uma forte ritualizaccedilaacuteo das rupturas dos limiares das crises Estes contraespaccedilos poreacutem saacuteo

Interpenetrados por todos os outros espaccedilos que eles contestam o espelho onde natildeo estou reflete o contexto onde estou o cemishyteacuterio eacute planejado como a cidade haacute reverberaccedilatildeo dos espaccedilos uns nos outros e contudo descontinuidades e rupturas Haacute

POSlACIO

POSFACIO

38 39 enfim como que um eterno retorno desses rituais espaccedilo-temshy

porais e se natildeo universalizaccedilatildeo das mesmas formas ao menos

uma universalidade de sua existecircncia Eles satildeo apreendidos em

uma sincronia e uma diacronia especiacuteficas que fazem deles um

sistema significante entre os sistemas da arquitetura Natildeo refleshy

tem a estrutura social nem a da produccedilatildeo natildeo satildeo um sistema

soacutecio-histoacuterico nem uma ideologia mas rupturas da vida ordishy

naacuteria imaginaacuterios representaccedilotildees polifocircnicas da vida da morte

do amor de Eacuteros e Taacutenatos

A carta de Foucault de 2 de marccedilo de 1967 deixa vazar um

Utopias e heterotopias O Ciacuterculo de estudos arquiteturais era animado entre 1960 e

1970 por Jean Dubuisson seu presidente arquiteto do Museu

(te Artes e Tradiccedilotildees Populares do Bosque de Boulogne e Ionel

Schein que indicava os conferencistas a serem convidados ao

Boulevard Raspail nuacutemero 38 Era um dos raros ciacuterculos de

reflexatildeo de arquitetos sem corporativismo no qual nos anos

cinquenta e sessenta Ionel Schein gozava da lisonjeira reputaccedilatildeo

de agitador de ideias e de radicalismo em arquitetura I I Foi ele

segundo Jean Dubuisson quem convidou Foucault As confeshy

recircncias eram anotadas em estenografia e depois datilografadas e

do arquiteto Natildeo natildeo fora o livro (As Palavras e as coisas) que

desapontamento a arqueologia do olhar natildeo retivera o olhar entregues aos membros do Ciacuterculo Pierre Riboulet - arquiteto

trouxera em germe uma nova concepccedilatildeo do urbanismo livro do entre outros do hospital Robert-Debreacute - conservou sua coacutepia

qual o filoacutesofo esperava a provocaccedilatildeo de rupturas no pensamento Ele se lembra das precauccedilotildees oratoacuterias do filoacutesofo para introduzir

No entanto estas rupturas foram suficientemente ruidosas pelo seu propoacutesito a insistecircncia sobre sua ignoracircncia quanto agraves preshy

menos ateacute o ruiacutedo de 1968 para que Foucault viesse a deixar ocupaccedilotildees dos arquitetos As referecircncias -satildeo tomadas da histoacuteria

tanto o tumulto da gloacuteria quanto o das polecircmicas pela serenidade das ciecircncias (Koyreacute Bachelard) da criacutetica literaacuteria a-p Richard

da luminosa vila de Sidi Bou Sald no alto do golfo de Cartago e Ianchot) da psicanaacutelise existencial (Binswanger) assuntos

a paz - sempre difiacutecil - da escritura Heterotopia vivida O que todos eles sobre os quais Foucault jaacute havia desenvolvido suas

chegara aos ouvidos do arquiteto era uma linguagem menor obsessotildees do espaccedilo12

um daqueles jogos literaacuterios nos quais Foucault tinha um prazer Para marcar seu entusiasmo agrave saiacuteda dessa conferecircncia Robert

guloso juacutebilo incessantemente decepado pela ascese da escrishy Auzelle um dos pensadores da reconstruccedilatildeo da Franccedila a partir

tura contenccedilatildeo que se lecirc na didaacutetica da conferecircncia reescrita d()s anos cinquenta lhe entregou sua histoacuteria da arquitetura

esta para os arquitetos certamente mas os jogos literaacuterios ficam II ltuklt tas infOrmaccedilotildees sobre o Circulo de tstutIos arqumlumis me foram fOrnecidas por P Riboulet

aqui finalmente retranscritos com todo respeito agrave integralidade Illxprcssatildeo utilizada por Fouault in Quesdons agrave Michel Fouault sur la geacuteographie HiroIIote n I 1lt)76 pp 71-85 retomada em Diu et Eacutecriu t m n 169 Paris Gallimard 1994 p 33 (Trad bras de

sonora da qual nasceram K Machado e A L de Souza Sobre a geografia in Microflsica do potUacuter Rio de Janeiro Graal 1979 1IIU-165-N daT)

POSFAacuteCIOPOSFAco

40 41 funeraacuteria e dos cemiteacuterios13 uma das heterotopias de Foucault

Em O Nascimento da cllnica14 Foucault descrevera como a anatoshy

mopatologia havia integrado a morte no conhecimento da vida

oferecer-lhe a hist6ria da integraccedilatildeo dos cemiteacuterios na planificashy

ccedilatildeo urbana provava a perfeita cumplicidade entre seus ouvintes

e o conferencista a negatividade estava no cerne da racionalishy

dade Ela estava no cerne das anaacutelises de Foucault pelo menos ateacute Vigiar epunit5

Foi no final deste mesmo ano de 1967 que Jean-Luc Godard

em A Chinesa fez sua heroiacutena a estudante pr6-chinesa interpreshy

tada por Alme Wiazemsky jogar tomates em um exemplar de As Palavras eas coisas entio um livro siacutembolo por suas descontinuishy

dades abruptas do pensamento no tempo da negaccedilatildeo da hist6ria e portanto da negaccedillo da revoluccedilatildeo

A confercncia de 1967 poderia ter outra circulaccedilatildeo aleacutem da

c6pia datHografada entre os membros do Circulo O pr6prio

Circulo natildeo possuiacutea uma revista e nlo editava nenhuma de suas

conferecircncias Por outro lado as concepccedilotildees que entatildeo partilhashy

vam os arquitetos deviam muito a Le Corbusier e agrave Bauhaus agrave

racionalizaccedilatildeo das formas e agrave legibilidade do espaccedilo urbano

concebido como um texto pontuado com referecircncias espaccedilos

ou edifiacutecios Franccediloise Choay que Foucault frequentara nos anos

13 R AuzeUe Derniim Dmlnlm Paris ed do autor 13 PIace du Panrlleacuteon 1965 14 M Foucault Naissanct de la ClitlUacuteJue Paris PUF 1963(Trad bru de R Machado ONtUCimentIJ da clnCIt ruo d Janeiro Forense-Universitaacuteria 1977 - N da T) 15 M Foucaul Survdlkr tIPunir Paris Gallimard 1975 A obra apresenta o panoacuteptico de Benthrun como um acontecimento na histoacuteria do esplrito humanomiddot epropotildee uma anill1sc do poder em termos d produccedilatildeo e natildeo de repressatildeo (Trad bras de R Ramalhete VIgiar11mr Pett6poliacutes Vous 1987 _ N da T)

ttenta reconstitui essas problemaacuteticas em Urbanisme utopies et rtaiteacutesl6

Um urbanismo progressista humanista que se sustentava

111amp carta de Atenas l7 e em uma racionalidade crescente ou um

urbanismo culturalista para o qual cada forma eacute siacutembolo e que

(Ilha com nostalgia para a harmonia das cidades passadas estas

tmm as ideias reguladoras da razatildeo urbaniacutestica Estas ideias

rCguladoras jaacute natildeo talhavam em pontilhado o espaccedilo da utopia

em que viria a desdobrar-se ap6s 1968 o discurso arquitetural e

urbano em uma dissoluccedilatildeo do objeto cidade no seio das relaccedilotildees

udais capitalistas A cidade como totalidade formal ou racional

I1Ao foi deslocada pelo capitalismo O espaccedilo natildeo eacute uma imensa

paacutegina em branco onde se escreve desde cerca de dois seacuteculos a

Illetanarraccedilaacuteo do capital Naacuteo estaacute aiacute o impensado geral o natildeo

dito de todas essas divisoacuterias construiacutedas entre as classes os sexos

C as geraccedilotildees

O fasciacutenio das escolas de arquitetura pela visita a cidades

patronais estas utopias realizadas como o familisteacuterio de Guise

unstruiacuteda por Godin ou a cidade Menier de Noisiell8 testeshy

munha que o discurso arquitetural e urbaniacutestico francecircs dos anos

etenta se desdobrava no espaccedilo da utopia Os promotores dessas

cidades natildeo estariam entre os primeiros a inventar o consumo

em massa Um reduzia as dimensotildees da milenar e dispendiosa

1111( Choay UrbanisIM UtIJpits tt rlaitis Paris Seuil 1965 17 Carta de Atenas manifesto do IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (Ciam) Atn 1933 (N da T) I Pamllisteacuterio de Guise espeacutecie de comunidade ou cidade operaacuteria inspirada em Charles Fourier IIl1nmulda em 1846 por J-BGodln para habitaccedilatildeo de operaacuterios de sua induacutestria Menler de Noisiel IDmunldade de operaacuterios da ptoduccedilatildeo de chocolates fundada por A B Menier em 1925 nas imediaccedilotildees bull arl (N da T)

POSFAtildeCIO POSFAacuteCIO

42 43 lareira a um aquecedor domeacutestico outro um medicamento dos

exeacutercitos napoleocircnicos a um complemento alimentar industrial

o tablete de chocolate Natildeo teriam eles articulado da maneira

mais restrita a racionalizaccedilatildeo do consumo com a da ocupaccedilatildeo do

espaccedilo A racionalizaccedilatildeo da cidade patronal como a fragmentaccedilatildeo

do espaccedilo urbano o homog~neo como o heterogecircneo conduziam

a um mesmo crivo de leitura infalsificaacutevel a espacializaccedilatildeo do

capital O arquiteto tornava-se o teacutecnico passivo da operacionashy

lizaccedilatildeo das estrateacutegias e das normas do capital

Mostra-se uacutetil falar indiferentemente das utopias preacute-urshy

banistas das cidades operaacuterias de Haussmann da Bauhaus do

funcionalismo dos Shakers dos grandes conjuntos das cidades

novas por toda parte afirma-se perigosamente uma racionalishy

zaccedilatildeo do espaccedilo inerente agrave extensatildeo universal do capital uma

propensatildeo de sua ordem de troca ou da ordem simplesmente podia-se ler na revista Traverse19bull

Genealogia dos equipamento coletivol Eacute a partir de 1972 que Foucault desenvolve pesquishy

sas em equipe sobre a histoacuteria dos equipamentos coletivos

Primeiramente com o Centro de estudos pesquisas eformaccedilatildeo instishytucional- ou Cerfi - animado pelo psiquiatra Feacutelix Guattari que

conclui entatildeo com Gilles Deleuze a redaccedilatildeo do seu Anti-Eacutediptldeg

19 B Eizykman Urbanismo Travme n 4 1976 citado por A Thalamy in PolltilJues tk lhabitat Corda

1977 p 14 (o nome Shaker designa um movimento de grupos religiosos fundado na Inglaterra no seacuteculo XVIII que - agrave semelhanccedila dos Amish- vivem em suas proacuteprias comunidades _ N da T) 20 G Deleuze F Guattari LAnti-CEdipe Paris Minuit 1972 (Trad bras de L B L Orlandi O Antishy-Eacutedipo Satildeo Paulo 34 2010 - N da T)

( rliacuteldo em 1965 com pesquisadores em ciecircncias sociais dissidenshy

trN do Partido Comunista Francecircs (PCF) o Cerfi apoacutes 1970 I()( em questatildeo sua cultura marxista submetendo-a a uma dupla

Inova 1) a do procedimento genealoacutegico praticado em Histoacuteria Ioucura e O Nascimento da cliacutenica 2) a de uma clarificaccedilatildeo

IIlN relaccedilotildees libidinais que todo pesquisador manteacutem com o

uhjeto de sua pesquisa (a ambivalecircncia da reflexatildeo urbaniacutestica

frente agrave racionalidade capitalista natildeo escapava a ningueacutem) e que

UIe pesquisadores mantecircm entre si como grupo social hierarquishy

uto e sexuado

O relato da realizaccedilatildeo dessa dupla prova publicada na revista

do Cerfi21 eacute provavelmente um dos mais interessantes diaacuterios de

hordo da travessia ideoloacutegica daqueles anos Ali se assiste como

lue em um laboratoacuterio agrave desagregaccedilatildeo da anaacutelise marxista e

~ emergecircncia daquilo que logo seraacute batizado de atitude poacutesshy

-moderna O empreendimento eacute descrito por seus autores como

uma estranha maacutequina feita de peccedilas e pedaccedilos emprestados do

Ilenealogista Foucault surrupiadas do depoacutesito do cientista biceacuteshy

falo Deleuze-Guattari

O genealogista Foucault eacute de fato uma nova imagem social

do filoacutesofo o procedimento genealoacutegico soacute estaraacute francamente

c()nfirmado a partir de seu ensino no Colge de France inaugurado

em dezembro de 1970 Ademais a partir de 1971 juntamente

com Deleuze ele anima um movimento militante o Grupo de

JI (eacuteneacutealogie du capital- I Les eacutequipements du pouvoir Recherches n 13 dezembro1973 Um s6 bullbullbullmplo de uma retomada das hettrotopias por H umre a propoacutesito de La Pensuuml marxiste de la vilte IIrlbullbull Casterman 1972

POSFAacuteCJO POSFAacuteCIO

44 45 informarao sobre as prisoes (GIP) enraizado na extrema esquerda

Foucault disc ute com 0 Cedi que trabalha sobre a cidade22

a abordagem genealogica dos equipamemos coletivos e a poe

em pritica sobretudo no seu seminario do College de France 0

seminario e consagrado aemergencia do medico como perito

no seculo XIX atraves da pericla psiquiatrica em medicina legal

por urn lado e por outro como engenheiro que comribui para

a definicao das normas e formas da arquitetura hospitalar Urn

arquiteto Bruno Fortier responsavel pelo Centro de estudos epesshy

quisas em arquitetura (Cera) participa doravame dos trabalhos

de pesquisa desse seminario

Se a expressao equipamemo coletivo nao figura nos textos

do seculo XVIII a maquina de curar definida pelo medico

Tenon como ideal do hospital moderno neles tern lugar A

arquitetura hospitalar escreve Tenon2 nao pode mais constishy

tuir-se de rotina c tateamemos devendo responder a multiplas

prcocupacentes estancar 0 contagio pela distribuicao das salas e

dns leiros a circuhlltao do ar tavorecer a diss()cia~ao dos doemes

c das d()cn~as a vigilancia dos dotntcs e do pessoal manifestar

a hierarquia do olhar medico ter em coma as necessidades da

populacao 0 que serve para curar nao e a regularidade do trashy

cado mas a justeza da arquitetura 0 modelo deve ser perfeito

- nao se podendo mais em nada muda-Io - acabado repetivel

Pela primeira vez em 1788 escreve Bruno Fortier propoe-se

22 Ruhhl1 n 13 op cir pp 27middot31 (Dits ~I fcrit n 129 n 130) 23 J-R Tenon M moirs sur It~middot api fl llX tie P1ris Paris 1788

aos arquitetos a imitacao como urn dever24 as tipologias norshy

mativas seguem os exemplos oferecidos pela historia A justeza

da arquitetura nasce do tratamemo de uma rede de questoes disshy

timas - c1imaticas demogdficas estatisticas higienicas medicas

disciplinares - que tern cada qual seu lugar de emergencia sua

racionalidade seus promotores que respondcm a uma multiplishy

cidade de taticas - tecnicas de vigilancia de producao de saber

de efetuacao de poderes de medica l iza~lo c de saude publica

Elas podem ser descritas como segmemos analogos Oll repetidos

ao infinito de urn so texto de um escrevcnrc unico Illitico e

unitario 0 capital

Certamente esses novos edificios incorporam dticas de

vigil an cia encomradas fora sob outras formas arquiteturais shy

colegios casernas - taticas e formas que puderam preceder e

sustemar a emergencia da organizacao capitalista do trabalho e

que poderao proliferar para alem dela por exemplo nos vast os

arquipelagos do socialismo siberiano Eque fundamemalmeme

nao estamos Iidando nem com formas arquiteturais nem com

modos de producao mas com tecnologias de poder Foi na busca

destas arquiteturas maquinas tao ajustadas aos seus objetishy

vos que Foucault veio a redescobrir 0 que logo tornou-se parashy

digma de sua obra 0 panoptico de Bcntham2 do qual Poyet26

24 M Fo ucault D Barrer-Kriegel A Thahmy F Btgllin B tllrlicr L-IVIi(Jilln II X4lrir (m4JI l)rigill ~1

de OJOpilil modnrl~) Paris lnsri ru[ de J cnvi ronncm cnt 1976 rccd Hruu lOl) Iirc M~rda8Q J~79

25 J Bcmham Le Panoptiqui p rcccdido de Loeil du pouI-vir cnrrcmiddotvisru Om Michel Fou~ult P~ ri s

Bdfond 1977 (faC-ltimik da cdjao franccsa de 179 1) (Trod bras d bullbullm rvi 0 Ih do poder por A L de S OU-1 in Microfli ra tQ pokr op Ci l pp209-227 - N d 1)

26 B Poyet M h noiu sur a niassili d( Iransera lt u collsrlli r tIf-fj rd-lhrm w ill dull pm)lmiddotr It

traminlioll k eel hopil4l Paris 1785

IOSFACIO pOSFAeiO

46

47 desenhara uma interpretaccedilatildeo para a reconstruccedilatildeo da Santa Casa de Misericoacuterdia Os trabalhos do seminaacuterio do College de Frante sobre a arquitetura hospitalar no final do seacuteculo XVIII recebeshy

ram duas ediccedilotildees uma em Paris em 1976 outra em Bruxelas em 1979 Les Machints agravegutrir27

O segundo estudo coletivo dirigido por Foucault teve por objeto o habitatentre 1800 e 185018 Foi conduzido por Franccedilois

Beacuteguin hoje historiador da paisagem e da arquitetura colonial29bull

Ametodologia ~ a mesma que a precedente no lugar de partir de

uma histoacuteria das formas da habitaccedilAo ou da cidade os pesquisashydores inventariaram as pr~tlcllll discursivas que circunscreveram e

codificaram o habitat como obJero de intervenccedilatildeo administrativa e politica entre 1800 e 1850 - a doenccedila o emprego a domestishycaccedilatildeo de equipamentos como a ~gua a iluminaccedilatildeo a ventilaccedilatildeo

e o desenvolvimento de uma crescente jurisdiccedilatildeo sobre o espaccedilo

puacuteblico em cuja intersecccedillo se connroacutei o habitat Eacute preciso prishy

meiramente desfazer-se da pregnAncla da casa desmineralizaacute-la desconstruiacute-la escreve F B6guln

Poder saber es~

Eacute a partir de vtgiar t punir (1975) e de sua raacutepida circulaccedilatildeo Iacutemernacional- traduzido rapidamente em cerca de vinte liacutenguas - que as anaacutelises foucaultianas do espaccedilo recebem uma visibilishy

dade nova como lugar de uma dupla articulaccedilio do poder sobre

27 M fucault B Barrer-Kriegd A Thalamy F Beacutepdn B fIorllr ln MtIthllltt 4 gubir op cit 28 ]-M A1Haume B Barret-Kriegcl F Seguin D Ranclere A lhalamy PDitifUtt tk lhabitat 18()() 1850 Paris Corda 1977 (estudo realizado sob a direccedilAo de M Poucaull)

29 De F Beacuteguin citemos principalmente ArabIacuteSlUlett dko illChlmhI4 ubitill Afoque du Norri 1830-1850 Paris Dunod 1983 e Paysagtt Paris Flammarlon 19

o corpo do indiviacuteduo e do saber ao poder Seguem-se numerosos estudos sobre a arquitetura da vigilacircncia publicados na Itaacutelia e na Gratilde-Bretanha principalmente3deg De modo mais geral socioacuteshy

logos e planificadores urbanos comeccedilam a referir-se a Foucault

A Leaman escreveu em Environment and Plannintl que a obra de Foucault eacute doravante importante para os urbanistas planifishy

cadores e arquitetos por sua anaacutelise das qualidades normativas

das estruturas e das instituiccedilotildees Sharon Zukin considera que a cidade estaacute doravante incluiacuteda nas anaacutelises de uma economia

do poder segundo o meacutetodo desenvolvido em vtgiar e punir32bull

Esse eacute o contexto em que reaparecem as heterotopias na escola de arquitetura de Veneza em dezembro de 1977 prishymeiro estudo sobre seu uso possiacutevel em uma histoacuteria dos espashyccedilos II dispositivo Foucault 33 que reuacutene ensaios de M Cacciari

F RelIa M Tafuri G Teyssot A capa como a de Machines agrave gueacuterir reproduz um plano de arquitetura panoacuteptico para um

hospital inglecircs Os autores se referem essencialmente a Vtgiar e punir e exceto T eyssot a uma reuniatildeo de textos de Foucault sobre o poder publicado neste mesmo ano pela editora Einaudi

Microfisica deipotert4 a incidecircncia poliacutetica desta uacuteltima coletacircnea

lO Ver especialmente HinmJmd primeiro ano n 3 maio-junho1978 n triliacutengue intitulado Segrtgazione corpo sociak consagrado agraves atquitetuta de vigilanda jl A Leaman in Environmmtand Planning n 111979 pp 1079-1082 H Sh Zukin Adecade cfilie new urban sociology 1heoryand Society 91980 pp 575-601 H M Cacdari F Relia M Tafuri G Teyssor II dispositillO Foucaut Veneza Cluva 1977 4 M Iltlucaullt MimfoIacuteCIJ rktpoYrt inkrUtntipoitici editado por Iltlnrana e Pasquino Turin Einudi 1977 retomado e completado pelo movimento alternativo berlinense Dispositive tkr Macht Betlin Merve 1978 (A reuniaacuteo d textos que compotildecm a ediccedilatildeo italiana a=sdda de oUtros textos reltebeu traduccedilaacuteo brasileira de R Machado e OUrtOS Micrufisica do potkr Rio de Janeiro Graal 1979 Foi publicada tambeacutem uma ediccedilaacuteo espanhola com algumas alteraccedilotildees dos tcxtos sdeclonados trad por J Varela e F A1varez-UrIacutell Madri La Piquem 1978 - N da T)

POSFAacuteCIO

POSFAclO

48 49 foi imediata logo reforccedilada pela traduccedilatildeo de Rhizome de Deleuze

e GuattarP livros que se tornaram referecircncias teoacuterico-poliacutetishy

cas do movimento chamado Autonomie (do poliacutetico subenshytenda-se) que incomodava a esquerda do PCI engajado na

estrateacutegia do compromisso histoacuterico ~ esta incidecircncia poliacutetica

que os italianos batizaram de leffeto Foucault36 que eacute o alvo de 1 dispositivo Poucault

A introduccedilatildeo agrave coletAnea escrita por F Rella eacute perfeitamente expliacutecita desde Jogo travare as anaacutelises foucaultianas da pluralishy

dade das relaccedilotildees de poder em uma metafisica do poder de um poder abstrato imaterial supostamente em toda parte e portanto

politicamente em parte alguma liA uacutenica histoacuteria dos poderes eacute

uma histoacuteria dos espaccedilos atraveacutes dos quais o poder se mostra E

apoiando-se no artigo de Teyssot como uacutenica fonte de conhecishy

mento das heterotopias prossegue O nlo lugar do poder situashy

-se no centro de uma infinidade de localizaccedilotildees heterotoacutepicas

A heterotopia torna-se entatildeo um dado central em Foucault

e a hetero topologia a fenomenologia da dlspersio anaacuterquica do

poder A conclusatildeo desta interpretaccedilatildeo eacute previsiacutevel Natildeo se comshy

bate mais o poder doravante investidp em uma miriacuteade de locashylizaccedilotildees [ou dispositivos] mas a tirania das teorias globalizantesraquo

Teorias que Rella explicita precisando em nota leffeto Marx37 Na verdade Teyssot38 natildeo comenta a confer~ncia de 1967

35 G Deleuu F Guattari Rhizo1M Paris Minuit 1976 Rizoma ParrnalL~uea Pradche 1977 36 Em italiano no original (N da T)

37 Em italiano no original (N da T)

38middotG Teyssot Eterotopia e storiadegli spazi II displJlitirm FOllcault pp 83-86 e HelerolOpies and the historyofspaccs Arcbiacutetlctureandurbaniacutesm 121 1980 pp 79-100

mas o uso taxinocircmico do prefaacutecio de As Palavras eas coisas aplishy

cando-o a um projeto de hospital do seacuteculo XVIII descrito pelo

historiador J-c Perrot39bull Seu plano distribui como uma grade

em oiro construccedilotildees distintas oito classes de pensionaacuterios tatildeo

heterogecircneos quanto as categorias de animais da enciclopeacutedia de

Borges a) os prisioneiros a pedido de suas famiacutelias b) os loucos

os prisioneiros por edito real c) as crianccedilas pobres e legiacutetimas

dedois a nove anos os idosos os mendigos as prostitutas acoshy

metidas de doenccedilas veneacutereas d) as crianccedilas bastardas de mais

de nove anos etc Eacute a incongruecircncia do conteuacutedo que designa

a arquitetura como heterotopia e naacuteo o jogo de oposiccedilatildeo ou de contestaccedilaacuteo qualitativa ou simboacutelica dos outros espaccedilos que este

uacuteltimo institui por sua funccedilaacuteo sua forma suas rupturas

O uso da heteroropia feito por T eyssot de modo algum transshy

creve a inscriccedilaacuteo profunda da espacialidade na ttalidade da

existecircncia humana a heterogeneidade e a descontinuidade dos

tempos vividos os limiares da vida as crises bioloacutegicas (iniciashy

ccedilatildeo puberdade defloraccedilatildeo) Eacuteros e Taacutenatos As espacializaccedilotildees

da subjetividade sob todas as suas formas da casa de toleracircncia agrave

sauna e natildeo somente as grandes funccedilotildees da carta de Atenas receshy

beram em todas as culturas uma inscriccedilatildeo especiacutefica no espaccedilo

em espaccedilos que entretecircm entre si natildeo uma relaccedilatildeo de divisatildeo como interioridadeexterioridade margemcentro puacuteblicol prishy

vado mas um jogo formal de diferenciaccedilatildeo e de reverberaccedilatildeo

em suma no registro da comunicaccedilatildeo Tanto Relia que faz do

W J-C Perrot Genes du vilk mo Cam ali XVII sdele Paris Mouton 1975

POSFAacuteCIO

POSgtAClO

51

50 espaccedilo foucaultiano o receptaacuteculo neutro e contiacutenuo das hetero- topias do poder - concepccedilatildeo globalizante - quanto T eyssot que

faz da heterotopia a articulaccedilatildeo arquitetural das incongruecircncias

do mundo - concepccedilatildeo loealista - carecem ambos da terceira dimensatildeo aquela propriedade do espaccedilo de se remeter a si mesmo

na espessura de um jogo formal e simboacutelico de contestaccedilatildeo e de

reverberaccedilatildeo em uma fragmentaccedilatildeo que natildeo eacute segmentaccedilatildeo este Thirding que E Soja assim teoriza no Instituto de urbanismo de LosAngtlts na UeLA the Thirding as othering40

Essa primeira recepccedilatildeo das heterotopias pela escola de arquitetura de Veneza representada por II dispositivo Foucault mostra a ambiguidade da noccedilatildeo de recepccedilatildeo natildeo se trata de uma compreensatildeo exata nem de uma real instrumentalizaccedilatildeo mas de uma reimplantaccedillo poUss~mica e poMmica em uma rede de

debates poJJticos por um lado e de um questionamento episteshymoloacutegico por outro

Em julho de 1976 Foucault relembra pela primeira vez sua confercncia de 1967 em uma entrevista sobre o panoacuteptico de

Bentham publicada em 1977 mencionada aliaacutes por Teyssot Seria necessaacuterio escrever toda uma histoacuteria dos espaccedilos que fosse

ao mesmo tempo uma histoacuteria dos poderes desde as grandes estrateacutegias da geopoliacutetica ateacute as pequenas taacuteticas do habitat da arquitetura institucional da sala de aula ou da organizaccedilatildeo hosshy

pitalar passando pelas implantaccedilotildees econOacutemico-poliacuteticas Eacute surshypreendente ver quanto o problema dos espaccedilos levou tanto tempo

40 Bd Soja 7huacutelspact Journeys to Los Angks a11( Othtr lUa11( ltilM Ptampts Cambridge (Mass)Blackdl 1996

para aparecer como um problema histoacuterico-poliacutetico Lembro-me que haacute cerca de dez anos falei destes problemas de uma poliacutetica

dos espaccedilos e de me terem respondido que era bastante readoshy

naacuterio insistir tanto sobre o espaccedilo e que o tempo o projeto era a vida e o progresso 41

Uma histoacuteria foucaultiana dos espaccedilos mais precisamente

da espacializaccedilatildeo do poder mais precisamente ainda da inscriccedilatildeo

no espaccedilo colonial- heterot6pico - desse regime de poder partishycular que se desenvolve a partir do seacuteculo XVIII e que Foucault designa de biopoder42 a partir do qual os problemas de espaccedilo tornam-se politicamente diferentes eacute o projeto que no comeccedilo dos anos oitenta empreendem o antropoacutelogo Paul Rabinow43 e a historiadora do habitat americano Gwendolyn Wright44bull Nem

eles nem Franccedilois Beacuteguin conheciam a conferecircncia de 1967

Em uma entrevista que Rabinow e Wright fizeram com

Foucault em 198245 publicada em Skyline46 revista americana de

arquitetura o filoacutesofo lembra suas obsessotildees pelo espaccedilo e como

atraveacutes destas obsessotildees cheguei ao que eacute fundamental para mim as relaccedilotildees que satildeo possiacuteveis entre o poder e o saber

41 MFoucault J Bentham Lotil pouvoir in L Panoptiacuteque Opcil (Veja-se em traduccedilaacuteo brasileira de A L de SOU7 O olho do poder in Microfiacutesica b podtr op cit- N da T) 42 M Foucaull La Volon tk savoir Paris Gallimard 1976 cap V Droil de mort et pouvoir SUl I vie (Trad bras de M T da C Albuquerque e J A Guilhon Albuquerque A Vontade tk saber Rio de Janeiro Graal 1977 - N d T) 43 P Rabinow Biopower in lhe Frrnch Coloits conferecircncia interdisciplinar sobr Foucault Knowledge Power HislOry Los Angeles 29-31 de oUlubrol1981 Frrneh Modn Norms and Forms of th SfJCial Enviacuteronmmt Cambridge (M) MIT Press 1989 44 G Wright 7he Poliacutetics ofDltsigns in the Frrnch Colonial Urbanism Chicago University Preso 1991 45F B~n Arabisanm op cil 46 M Foucaull Space knowledge power entrerien avec P Rabinow Skyline marccedilo11982 pp 16-20 retomada em Dits tt Eacutecrits t N n 340 pp 270-285

POSFAacuteCIO

POSFAacuteCIO

53

52

A arquitetUra e o urbanismo naacuteo constituem diz ele um campo isoshylaacutevel Misturam-se com muacuteltiplas praacuteticas e discursos mas o espaccedilo

eacute o lugar privilegiado de compreensatildeo de como o poder opera

Inversamente ele bane da praacutetica do arquiteto toda esperanccedila

utoacutepica Os homens sonharam com maacutequinas libertadoras Mas por definiccedilatildeo natildeo existem maacutequinas de liberdade Jamais

a estrutura das coisas tem competecircncia para garantir a liberdade Nada eacute funcionalmente libertador A liberdade eacute o que se deve exercer a garantia da liberdade eacute a liberdade

Mestre doravante de um discurso poliacutetico e epistemoloacutegico sobre o espaccedilo Foucault deixa entatildeo ressurgir seu antigo conceito de heterotopia Diga-se entre parecircnteses lembro-me de ter sido

convidado por um grupo de arquitetos em 1966 para realizar um estudo do espaccediloi tratava-se do que na eacutepoca chamei de heterotopias espaccedilos singulares que encontramos em alguns

espaccedilos sociais cujas funccedilOes satildeo diferentes das dos outros ou tershy

minantemente opostas Os arquitetos trabalhavam neste projeto e no final do estudo algueacutem tomou a palavra _ um psicoacutelogo

sanreano - para me bombardear que o espaccedilo era reacionaacuterio e capitalista enquanto a histoacuteria e o devir eram revolucionaacuterios

Agravequela eacutepoca este discurso absurdo de modo algum era inabitual Hoje em dia qualquer um se dobraria de rir ouvindo aquilo

Natildeo haacute como natildeo se impressionar com esta longa anamnese em dois tempos primeiro em 1976 relativamente agrave objeccedilatildeo poliacuteshy

tica feita em 1967 e em 1982 enfim relativamente ao proacuteprio conceito de heterotopia em 1984 Foucault podia acolher favoshy

ravelmente a reutilizaccedilatildeo de sua conferecircncia pelo IBA de Berlim

Os dois organizadores da exposiccedilatildeo o alematildeo Johannes Gachnang e o italiano Marco de Michelis conheciam esse texto

em sua publicaccedilatildeo de 1968 em Architteturri7bull Ele sintonizava

estranhamente com a estrateacutegia do IBA tal como foi exposta por

um de seus dois responsaacuteveis J-P Kleihues48 executar a ideia

de uma cidade por fragmentos falar de arquitetur~ urbana sem traccedilar primeiramente um plano global de urbanismo respeitar

a variedade histoacuterica e topograacutefica berlinense pensar a composhysiccedilatildeo da cidade por ilhotas e ateacute confiar a diversos arquitetos a

reconstruccedilatildeo das residecircncias em uma mesma ilhota E por ocashy

siatildeo de uma reunificaccedilatildeo eventual justificar a conservaccedilatildeo da arquitetura staliniana

Sua traduccedilatildeo americana ocorreu em 1986 publicada prishy

meiramente na revista interdisciplinar de ComeU Diacriticis depois na revista de arquitetura LOtu9 Inaugurava-se uma carshy

reira nova para a interpretaccedilatildeo qualitativa dos espaccedilos outros

Natildeo se compreenderia esta carreira sem a simultaneidade da trashy

duccedilatildeo dos volumes II e III de Histoacuteria da sexualidaJe5deg a partir

dos quais Foucault torna-se uma referecircncia para aquilo que os americanos denominam poliacuteticas da identidade Movimentos

feministas movimento gay grupos eacutetnicos constituem a nova

47 Infurmaccedilaacuteo obtida com e1cs e concedida por Franccediloise Jolr 48 J-r Kleihues Agrave propos de I viUe europeacuteenne entreVista com M Bourdeau AMeS outubroI984

pp 95-99 49 M Foucault Ofother spaces Diacritieacuteiacutes 16 n I 1986 pp 22-27 e Lotushmnational 1986 50 M Foucaulr lUage tUacutes pIAis Paris Gallimaa 1984 uacute Souci Je soi Paris Gtlimn 1984 trad

1ht Use ofPlrasU Harmondsworth Penguin 1985 1ht Ca Dfthe sg Harmondsworth Penguin 1986 (Trad bras de M T da C Albuquerque O USQ dos p e O CuiJmJo Je si Rio de Janeiro Graal 1984 e 1985 - N da T)

POSFAacuteCIO

POSFAacuteCIO

54 rede de inscriccedilatildeo e a nova avaliaccedilatildeo das heterotopias A histoacuteshy

ria dos modos de subjetivaccedilatildeo realizada por Foucault atravessa

textos como lhe spaces that diferences make do urbanista Ed

Soja51 Gendered Spaces da feminista Daphne Spain52 lhe New Cultural Politics ofDijforence de Cornel West53 ou Geographical lmaginations do geoacutegrafo Derek Gregory54

Lugar de emergecircncia da heterotopia a anaacutelise literaacuteria dela

se apropria com Brian McHale Michel de Certeau5S a anaacutelise

fiacutelmica com Giuliana Bruno56bull Foucault torna-se passagem obrishy

gatoacuteria para toda anaacutelise do espaccedilo constata Soja

O mesmo se passa com as artes plaacutesticas Apresentando as

obras do artista plaacutestico cubano Felix Gonzalez-Torres Nancy

Spector descreve uma experiecircncia de ambiente heterotoacutepico

realizada em Manhattan57bull Em vinte e quatro paineacuteis de anuacutencio

publicitaacuterio das instalaccedilotildees urbanas de Manhattan Gonzalezshy

-Torres afixou o contraespaccedilo constituiacutedo por imensa foto em preto

e branco da intimidade de uma cama exposta Desnudamento

absoluto de um puro roccedilar de lenccediloacuteis leve traccedilado de duas cabeshy

ccedilas no vaacuteo entre os dois travesseiros onde cada qual pode proshy

jetar ou a interrupccedilatildeo do sono ou o amor consumado ou mais

51 Ed Soja The spa= that dlfenna makc ln M Kelm e S PIlbullbull PI4u iI1III lhe Politics olidmtiacutety NQVlI Iorque Roudedge 1993 pp 183middot205 52 D Spain Glt1JIUacutertaacute Spam Chapei Ht11 Unlverlty ofCarolIna Pras 1992 53 CWest 1M Ntw Cultural Politict oIDifimut ot h 1M Dilm_ ofrJu BIa lnttlkcttuuacute Ferguson 1994 54 D Gregory Gtographicalmaginatiacuteons citado ln Ed Soj hitrlspace Carobridge Bladltwell 1994 55 B McHale Post Moaacuteernist Fietion Nova Iorque Routledge 1988~ M de Certeau HettrologitS Discouffl 01tlu Otbtr Manchester Manchester University Presa 1986 56 G Bruno Bodlly ArchirecturesAltrtmblag 19 dezembro1992 57 N Spector Ptilt GonzakzmiddotTorres The Solamon R Guggenheim Museum Nova Iorque 1995

radicalmente a advertecircncia do artista uma decisatildeo de 1986 da

Corte suprema autoriza doravante a justiccedila em todo Estado em

que a sodomia eacute ainda um crime a persegui-la mesmo quando consentida entre adultos em suma a intimidade do espaccedilo prishy

vado da cama acaba de entrar no espaccedilo puacuteblico Esta articulashy

ccedilatildeo entre o puacuteblico e o privado poderia criar segundo Spector uma histoacuteria mais silenciosa a marca vazia do companheiro do

artista morto de aids

Maravilhosa intuiccedilatildeo no comeccedilo da confer~ncia radiofocircnica

de Foucault em 1966 daquela passagem inexistente na conferecircnshy

cia para os arquitetos em 1967 em que o fil6sofo evocava como

primeira figura da heterotopia a cama dos pais que as crianccedilas

gostam de invadir com um prazer de transgressatildeo e de sonho das origens Naacuteo poderiacuteamos concluir que aqui a longa seacuterie de

rein~riccedilotildees do texto em muacuteltiplas redes e estrateacutegias que a longa

seacuterie de transformaccedilotildees da figura social de seu autor encontram

neste instante de sua trajetoacuteria a mais completa forma de recepshyccedilatilde0 58 Foucault natildeo declarara tantas vezes que almejava menos

leitores que utilizadores59

58 Ed Soja Heterotopies remembrance Df other spaccs in me citadd LAraquo Strattgies a jIJurna 01 tbeory culturt anaacute poines 3 1990 pp 1middot39 Post metropolis Critiacutecal Stuties 01 Ctti naacute Rtglgtnt Londle$ Blackwdl 2000 59 Em 200I uma associaccedilatildeo cultural italiana denominada EttrotpirJ publicou uma releitura de textos de Foucaulr sobre o espaccedilo sob o titulo Spnialtri

POSFAacuteCIO POSFAacuteCIO

38 39 enfim como que um eterno retorno desses rituais espaccedilo-temshy

porais e se natildeo universalizaccedilatildeo das mesmas formas ao menos

uma universalidade de sua existecircncia Eles satildeo apreendidos em

uma sincronia e uma diacronia especiacuteficas que fazem deles um

sistema significante entre os sistemas da arquitetura Natildeo refleshy

tem a estrutura social nem a da produccedilatildeo natildeo satildeo um sistema

soacutecio-histoacuterico nem uma ideologia mas rupturas da vida ordishy

naacuteria imaginaacuterios representaccedilotildees polifocircnicas da vida da morte

do amor de Eacuteros e Taacutenatos

A carta de Foucault de 2 de marccedilo de 1967 deixa vazar um

Utopias e heterotopias O Ciacuterculo de estudos arquiteturais era animado entre 1960 e

1970 por Jean Dubuisson seu presidente arquiteto do Museu

(te Artes e Tradiccedilotildees Populares do Bosque de Boulogne e Ionel

Schein que indicava os conferencistas a serem convidados ao

Boulevard Raspail nuacutemero 38 Era um dos raros ciacuterculos de

reflexatildeo de arquitetos sem corporativismo no qual nos anos

cinquenta e sessenta Ionel Schein gozava da lisonjeira reputaccedilatildeo

de agitador de ideias e de radicalismo em arquitetura I I Foi ele

segundo Jean Dubuisson quem convidou Foucault As confeshy

recircncias eram anotadas em estenografia e depois datilografadas e

do arquiteto Natildeo natildeo fora o livro (As Palavras e as coisas) que

desapontamento a arqueologia do olhar natildeo retivera o olhar entregues aos membros do Ciacuterculo Pierre Riboulet - arquiteto

trouxera em germe uma nova concepccedilatildeo do urbanismo livro do entre outros do hospital Robert-Debreacute - conservou sua coacutepia

qual o filoacutesofo esperava a provocaccedilatildeo de rupturas no pensamento Ele se lembra das precauccedilotildees oratoacuterias do filoacutesofo para introduzir

No entanto estas rupturas foram suficientemente ruidosas pelo seu propoacutesito a insistecircncia sobre sua ignoracircncia quanto agraves preshy

menos ateacute o ruiacutedo de 1968 para que Foucault viesse a deixar ocupaccedilotildees dos arquitetos As referecircncias -satildeo tomadas da histoacuteria

tanto o tumulto da gloacuteria quanto o das polecircmicas pela serenidade das ciecircncias (Koyreacute Bachelard) da criacutetica literaacuteria a-p Richard

da luminosa vila de Sidi Bou Sald no alto do golfo de Cartago e Ianchot) da psicanaacutelise existencial (Binswanger) assuntos

a paz - sempre difiacutecil - da escritura Heterotopia vivida O que todos eles sobre os quais Foucault jaacute havia desenvolvido suas

chegara aos ouvidos do arquiteto era uma linguagem menor obsessotildees do espaccedilo12

um daqueles jogos literaacuterios nos quais Foucault tinha um prazer Para marcar seu entusiasmo agrave saiacuteda dessa conferecircncia Robert

guloso juacutebilo incessantemente decepado pela ascese da escrishy Auzelle um dos pensadores da reconstruccedilatildeo da Franccedila a partir

tura contenccedilatildeo que se lecirc na didaacutetica da conferecircncia reescrita d()s anos cinquenta lhe entregou sua histoacuteria da arquitetura

esta para os arquitetos certamente mas os jogos literaacuterios ficam II ltuklt tas infOrmaccedilotildees sobre o Circulo de tstutIos arqumlumis me foram fOrnecidas por P Riboulet

aqui finalmente retranscritos com todo respeito agrave integralidade Illxprcssatildeo utilizada por Fouault in Quesdons agrave Michel Fouault sur la geacuteographie HiroIIote n I 1lt)76 pp 71-85 retomada em Diu et Eacutecriu t m n 169 Paris Gallimard 1994 p 33 (Trad bras de

sonora da qual nasceram K Machado e A L de Souza Sobre a geografia in Microflsica do potUacuter Rio de Janeiro Graal 1979 1IIU-165-N daT)

POSFAacuteCIOPOSFAco

40 41 funeraacuteria e dos cemiteacuterios13 uma das heterotopias de Foucault

Em O Nascimento da cllnica14 Foucault descrevera como a anatoshy

mopatologia havia integrado a morte no conhecimento da vida

oferecer-lhe a hist6ria da integraccedilatildeo dos cemiteacuterios na planificashy

ccedilatildeo urbana provava a perfeita cumplicidade entre seus ouvintes

e o conferencista a negatividade estava no cerne da racionalishy

dade Ela estava no cerne das anaacutelises de Foucault pelo menos ateacute Vigiar epunit5

Foi no final deste mesmo ano de 1967 que Jean-Luc Godard

em A Chinesa fez sua heroiacutena a estudante pr6-chinesa interpreshy

tada por Alme Wiazemsky jogar tomates em um exemplar de As Palavras eas coisas entio um livro siacutembolo por suas descontinuishy

dades abruptas do pensamento no tempo da negaccedilatildeo da hist6ria e portanto da negaccedillo da revoluccedilatildeo

A confercncia de 1967 poderia ter outra circulaccedilatildeo aleacutem da

c6pia datHografada entre os membros do Circulo O pr6prio

Circulo natildeo possuiacutea uma revista e nlo editava nenhuma de suas

conferecircncias Por outro lado as concepccedilotildees que entatildeo partilhashy

vam os arquitetos deviam muito a Le Corbusier e agrave Bauhaus agrave

racionalizaccedilatildeo das formas e agrave legibilidade do espaccedilo urbano

concebido como um texto pontuado com referecircncias espaccedilos

ou edifiacutecios Franccediloise Choay que Foucault frequentara nos anos

13 R AuzeUe Derniim Dmlnlm Paris ed do autor 13 PIace du Panrlleacuteon 1965 14 M Foucault Naissanct de la ClitlUacuteJue Paris PUF 1963(Trad bru de R Machado ONtUCimentIJ da clnCIt ruo d Janeiro Forense-Universitaacuteria 1977 - N da T) 15 M Foucaul Survdlkr tIPunir Paris Gallimard 1975 A obra apresenta o panoacuteptico de Benthrun como um acontecimento na histoacuteria do esplrito humanomiddot epropotildee uma anill1sc do poder em termos d produccedilatildeo e natildeo de repressatildeo (Trad bras de R Ramalhete VIgiar11mr Pett6poliacutes Vous 1987 _ N da T)

ttenta reconstitui essas problemaacuteticas em Urbanisme utopies et rtaiteacutesl6

Um urbanismo progressista humanista que se sustentava

111amp carta de Atenas l7 e em uma racionalidade crescente ou um

urbanismo culturalista para o qual cada forma eacute siacutembolo e que

(Ilha com nostalgia para a harmonia das cidades passadas estas

tmm as ideias reguladoras da razatildeo urbaniacutestica Estas ideias

rCguladoras jaacute natildeo talhavam em pontilhado o espaccedilo da utopia

em que viria a desdobrar-se ap6s 1968 o discurso arquitetural e

urbano em uma dissoluccedilatildeo do objeto cidade no seio das relaccedilotildees

udais capitalistas A cidade como totalidade formal ou racional

I1Ao foi deslocada pelo capitalismo O espaccedilo natildeo eacute uma imensa

paacutegina em branco onde se escreve desde cerca de dois seacuteculos a

Illetanarraccedilaacuteo do capital Naacuteo estaacute aiacute o impensado geral o natildeo

dito de todas essas divisoacuterias construiacutedas entre as classes os sexos

C as geraccedilotildees

O fasciacutenio das escolas de arquitetura pela visita a cidades

patronais estas utopias realizadas como o familisteacuterio de Guise

unstruiacuteda por Godin ou a cidade Menier de Noisiell8 testeshy

munha que o discurso arquitetural e urbaniacutestico francecircs dos anos

etenta se desdobrava no espaccedilo da utopia Os promotores dessas

cidades natildeo estariam entre os primeiros a inventar o consumo

em massa Um reduzia as dimensotildees da milenar e dispendiosa

1111( Choay UrbanisIM UtIJpits tt rlaitis Paris Seuil 1965 17 Carta de Atenas manifesto do IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (Ciam) Atn 1933 (N da T) I Pamllisteacuterio de Guise espeacutecie de comunidade ou cidade operaacuteria inspirada em Charles Fourier IIl1nmulda em 1846 por J-BGodln para habitaccedilatildeo de operaacuterios de sua induacutestria Menler de Noisiel IDmunldade de operaacuterios da ptoduccedilatildeo de chocolates fundada por A B Menier em 1925 nas imediaccedilotildees bull arl (N da T)

POSFAtildeCIO POSFAacuteCIO

42 43 lareira a um aquecedor domeacutestico outro um medicamento dos

exeacutercitos napoleocircnicos a um complemento alimentar industrial

o tablete de chocolate Natildeo teriam eles articulado da maneira

mais restrita a racionalizaccedilatildeo do consumo com a da ocupaccedilatildeo do

espaccedilo A racionalizaccedilatildeo da cidade patronal como a fragmentaccedilatildeo

do espaccedilo urbano o homog~neo como o heterogecircneo conduziam

a um mesmo crivo de leitura infalsificaacutevel a espacializaccedilatildeo do

capital O arquiteto tornava-se o teacutecnico passivo da operacionashy

lizaccedilatildeo das estrateacutegias e das normas do capital

Mostra-se uacutetil falar indiferentemente das utopias preacute-urshy

banistas das cidades operaacuterias de Haussmann da Bauhaus do

funcionalismo dos Shakers dos grandes conjuntos das cidades

novas por toda parte afirma-se perigosamente uma racionalishy

zaccedilatildeo do espaccedilo inerente agrave extensatildeo universal do capital uma

propensatildeo de sua ordem de troca ou da ordem simplesmente podia-se ler na revista Traverse19bull

Genealogia dos equipamento coletivol Eacute a partir de 1972 que Foucault desenvolve pesquishy

sas em equipe sobre a histoacuteria dos equipamentos coletivos

Primeiramente com o Centro de estudos pesquisas eformaccedilatildeo instishytucional- ou Cerfi - animado pelo psiquiatra Feacutelix Guattari que

conclui entatildeo com Gilles Deleuze a redaccedilatildeo do seu Anti-Eacutediptldeg

19 B Eizykman Urbanismo Travme n 4 1976 citado por A Thalamy in PolltilJues tk lhabitat Corda

1977 p 14 (o nome Shaker designa um movimento de grupos religiosos fundado na Inglaterra no seacuteculo XVIII que - agrave semelhanccedila dos Amish- vivem em suas proacuteprias comunidades _ N da T) 20 G Deleuze F Guattari LAnti-CEdipe Paris Minuit 1972 (Trad bras de L B L Orlandi O Antishy-Eacutedipo Satildeo Paulo 34 2010 - N da T)

( rliacuteldo em 1965 com pesquisadores em ciecircncias sociais dissidenshy

trN do Partido Comunista Francecircs (PCF) o Cerfi apoacutes 1970 I()( em questatildeo sua cultura marxista submetendo-a a uma dupla

Inova 1) a do procedimento genealoacutegico praticado em Histoacuteria Ioucura e O Nascimento da cliacutenica 2) a de uma clarificaccedilatildeo

IIlN relaccedilotildees libidinais que todo pesquisador manteacutem com o

uhjeto de sua pesquisa (a ambivalecircncia da reflexatildeo urbaniacutestica

frente agrave racionalidade capitalista natildeo escapava a ningueacutem) e que

UIe pesquisadores mantecircm entre si como grupo social hierarquishy

uto e sexuado

O relato da realizaccedilatildeo dessa dupla prova publicada na revista

do Cerfi21 eacute provavelmente um dos mais interessantes diaacuterios de

hordo da travessia ideoloacutegica daqueles anos Ali se assiste como

lue em um laboratoacuterio agrave desagregaccedilatildeo da anaacutelise marxista e

~ emergecircncia daquilo que logo seraacute batizado de atitude poacutesshy

-moderna O empreendimento eacute descrito por seus autores como

uma estranha maacutequina feita de peccedilas e pedaccedilos emprestados do

Ilenealogista Foucault surrupiadas do depoacutesito do cientista biceacuteshy

falo Deleuze-Guattari

O genealogista Foucault eacute de fato uma nova imagem social

do filoacutesofo o procedimento genealoacutegico soacute estaraacute francamente

c()nfirmado a partir de seu ensino no Colge de France inaugurado

em dezembro de 1970 Ademais a partir de 1971 juntamente

com Deleuze ele anima um movimento militante o Grupo de

JI (eacuteneacutealogie du capital- I Les eacutequipements du pouvoir Recherches n 13 dezembro1973 Um s6 bullbullbullmplo de uma retomada das hettrotopias por H umre a propoacutesito de La Pensuuml marxiste de la vilte IIrlbullbull Casterman 1972

POSFAacuteCJO POSFAacuteCIO

44 45 informarao sobre as prisoes (GIP) enraizado na extrema esquerda

Foucault disc ute com 0 Cedi que trabalha sobre a cidade22

a abordagem genealogica dos equipamemos coletivos e a poe

em pritica sobretudo no seu seminario do College de France 0

seminario e consagrado aemergencia do medico como perito

no seculo XIX atraves da pericla psiquiatrica em medicina legal

por urn lado e por outro como engenheiro que comribui para

a definicao das normas e formas da arquitetura hospitalar Urn

arquiteto Bruno Fortier responsavel pelo Centro de estudos epesshy

quisas em arquitetura (Cera) participa doravame dos trabalhos

de pesquisa desse seminario

Se a expressao equipamemo coletivo nao figura nos textos

do seculo XVIII a maquina de curar definida pelo medico

Tenon como ideal do hospital moderno neles tern lugar A

arquitetura hospitalar escreve Tenon2 nao pode mais constishy

tuir-se de rotina c tateamemos devendo responder a multiplas

prcocupacentes estancar 0 contagio pela distribuicao das salas e

dns leiros a circuhlltao do ar tavorecer a diss()cia~ao dos doemes

c das d()cn~as a vigilancia dos dotntcs e do pessoal manifestar

a hierarquia do olhar medico ter em coma as necessidades da

populacao 0 que serve para curar nao e a regularidade do trashy

cado mas a justeza da arquitetura 0 modelo deve ser perfeito

- nao se podendo mais em nada muda-Io - acabado repetivel

Pela primeira vez em 1788 escreve Bruno Fortier propoe-se

22 Ruhhl1 n 13 op cir pp 27middot31 (Dits ~I fcrit n 129 n 130) 23 J-R Tenon M moirs sur It~middot api fl llX tie P1ris Paris 1788

aos arquitetos a imitacao como urn dever24 as tipologias norshy

mativas seguem os exemplos oferecidos pela historia A justeza

da arquitetura nasce do tratamemo de uma rede de questoes disshy

timas - c1imaticas demogdficas estatisticas higienicas medicas

disciplinares - que tern cada qual seu lugar de emergencia sua

racionalidade seus promotores que respondcm a uma multiplishy

cidade de taticas - tecnicas de vigilancia de producao de saber

de efetuacao de poderes de medica l iza~lo c de saude publica

Elas podem ser descritas como segmemos analogos Oll repetidos

ao infinito de urn so texto de um escrevcnrc unico Illitico e

unitario 0 capital

Certamente esses novos edificios incorporam dticas de

vigil an cia encomradas fora sob outras formas arquiteturais shy

colegios casernas - taticas e formas que puderam preceder e

sustemar a emergencia da organizacao capitalista do trabalho e

que poderao proliferar para alem dela por exemplo nos vast os

arquipelagos do socialismo siberiano Eque fundamemalmeme

nao estamos Iidando nem com formas arquiteturais nem com

modos de producao mas com tecnologias de poder Foi na busca

destas arquiteturas maquinas tao ajustadas aos seus objetishy

vos que Foucault veio a redescobrir 0 que logo tornou-se parashy

digma de sua obra 0 panoptico de Bcntham2 do qual Poyet26

24 M Fo ucault D Barrer-Kriegel A Thahmy F Btgllin B tllrlicr L-IVIi(Jilln II X4lrir (m4JI l)rigill ~1

de OJOpilil modnrl~) Paris lnsri ru[ de J cnvi ronncm cnt 1976 rccd Hruu lOl) Iirc M~rda8Q J~79

25 J Bcmham Le Panoptiqui p rcccdido de Loeil du pouI-vir cnrrcmiddotvisru Om Michel Fou~ult P~ ri s

Bdfond 1977 (faC-ltimik da cdjao franccsa de 179 1) (Trod bras d bullbullm rvi 0 Ih do poder por A L de S OU-1 in Microfli ra tQ pokr op Ci l pp209-227 - N d 1)

26 B Poyet M h noiu sur a niassili d( Iransera lt u collsrlli r tIf-fj rd-lhrm w ill dull pm)lmiddotr It

traminlioll k eel hopil4l Paris 1785

IOSFACIO pOSFAeiO

46

47 desenhara uma interpretaccedilatildeo para a reconstruccedilatildeo da Santa Casa de Misericoacuterdia Os trabalhos do seminaacuterio do College de Frante sobre a arquitetura hospitalar no final do seacuteculo XVIII recebeshy

ram duas ediccedilotildees uma em Paris em 1976 outra em Bruxelas em 1979 Les Machints agravegutrir27

O segundo estudo coletivo dirigido por Foucault teve por objeto o habitatentre 1800 e 185018 Foi conduzido por Franccedilois

Beacuteguin hoje historiador da paisagem e da arquitetura colonial29bull

Ametodologia ~ a mesma que a precedente no lugar de partir de

uma histoacuteria das formas da habitaccedilAo ou da cidade os pesquisashydores inventariaram as pr~tlcllll discursivas que circunscreveram e

codificaram o habitat como obJero de intervenccedilatildeo administrativa e politica entre 1800 e 1850 - a doenccedila o emprego a domestishycaccedilatildeo de equipamentos como a ~gua a iluminaccedilatildeo a ventilaccedilatildeo

e o desenvolvimento de uma crescente jurisdiccedilatildeo sobre o espaccedilo

puacuteblico em cuja intersecccedillo se connroacutei o habitat Eacute preciso prishy

meiramente desfazer-se da pregnAncla da casa desmineralizaacute-la desconstruiacute-la escreve F B6guln

Poder saber es~

Eacute a partir de vtgiar t punir (1975) e de sua raacutepida circulaccedilatildeo Iacutemernacional- traduzido rapidamente em cerca de vinte liacutenguas - que as anaacutelises foucaultianas do espaccedilo recebem uma visibilishy

dade nova como lugar de uma dupla articulaccedilio do poder sobre

27 M fucault B Barrer-Kriegd A Thalamy F Beacutepdn B fIorllr ln MtIthllltt 4 gubir op cit 28 ]-M A1Haume B Barret-Kriegcl F Seguin D Ranclere A lhalamy PDitifUtt tk lhabitat 18()() 1850 Paris Corda 1977 (estudo realizado sob a direccedilAo de M Poucaull)

29 De F Beacuteguin citemos principalmente ArabIacuteSlUlett dko illChlmhI4 ubitill Afoque du Norri 1830-1850 Paris Dunod 1983 e Paysagtt Paris Flammarlon 19

o corpo do indiviacuteduo e do saber ao poder Seguem-se numerosos estudos sobre a arquitetura da vigilacircncia publicados na Itaacutelia e na Gratilde-Bretanha principalmente3deg De modo mais geral socioacuteshy

logos e planificadores urbanos comeccedilam a referir-se a Foucault

A Leaman escreveu em Environment and Plannintl que a obra de Foucault eacute doravante importante para os urbanistas planifishy

cadores e arquitetos por sua anaacutelise das qualidades normativas

das estruturas e das instituiccedilotildees Sharon Zukin considera que a cidade estaacute doravante incluiacuteda nas anaacutelises de uma economia

do poder segundo o meacutetodo desenvolvido em vtgiar e punir32bull

Esse eacute o contexto em que reaparecem as heterotopias na escola de arquitetura de Veneza em dezembro de 1977 prishymeiro estudo sobre seu uso possiacutevel em uma histoacuteria dos espashyccedilos II dispositivo Foucault 33 que reuacutene ensaios de M Cacciari

F RelIa M Tafuri G Teyssot A capa como a de Machines agrave gueacuterir reproduz um plano de arquitetura panoacuteptico para um

hospital inglecircs Os autores se referem essencialmente a Vtgiar e punir e exceto T eyssot a uma reuniatildeo de textos de Foucault sobre o poder publicado neste mesmo ano pela editora Einaudi

Microfisica deipotert4 a incidecircncia poliacutetica desta uacuteltima coletacircnea

lO Ver especialmente HinmJmd primeiro ano n 3 maio-junho1978 n triliacutengue intitulado Segrtgazione corpo sociak consagrado agraves atquitetuta de vigilanda jl A Leaman in Environmmtand Planning n 111979 pp 1079-1082 H Sh Zukin Adecade cfilie new urban sociology 1heoryand Society 91980 pp 575-601 H M Cacdari F Relia M Tafuri G Teyssor II dispositillO Foucaut Veneza Cluva 1977 4 M Iltlucaullt MimfoIacuteCIJ rktpoYrt inkrUtntipoitici editado por Iltlnrana e Pasquino Turin Einudi 1977 retomado e completado pelo movimento alternativo berlinense Dispositive tkr Macht Betlin Merve 1978 (A reuniaacuteo d textos que compotildecm a ediccedilatildeo italiana a=sdda de oUtros textos reltebeu traduccedilaacuteo brasileira de R Machado e OUrtOS Micrufisica do potkr Rio de Janeiro Graal 1979 Foi publicada tambeacutem uma ediccedilaacuteo espanhola com algumas alteraccedilotildees dos tcxtos sdeclonados trad por J Varela e F A1varez-UrIacutell Madri La Piquem 1978 - N da T)

POSFAacuteCIO

POSFAclO

48 49 foi imediata logo reforccedilada pela traduccedilatildeo de Rhizome de Deleuze

e GuattarP livros que se tornaram referecircncias teoacuterico-poliacutetishy

cas do movimento chamado Autonomie (do poliacutetico subenshytenda-se) que incomodava a esquerda do PCI engajado na

estrateacutegia do compromisso histoacuterico ~ esta incidecircncia poliacutetica

que os italianos batizaram de leffeto Foucault36 que eacute o alvo de 1 dispositivo Poucault

A introduccedilatildeo agrave coletAnea escrita por F Rella eacute perfeitamente expliacutecita desde Jogo travare as anaacutelises foucaultianas da pluralishy

dade das relaccedilotildees de poder em uma metafisica do poder de um poder abstrato imaterial supostamente em toda parte e portanto

politicamente em parte alguma liA uacutenica histoacuteria dos poderes eacute

uma histoacuteria dos espaccedilos atraveacutes dos quais o poder se mostra E

apoiando-se no artigo de Teyssot como uacutenica fonte de conhecishy

mento das heterotopias prossegue O nlo lugar do poder situashy

-se no centro de uma infinidade de localizaccedilotildees heterotoacutepicas

A heterotopia torna-se entatildeo um dado central em Foucault

e a hetero topologia a fenomenologia da dlspersio anaacuterquica do

poder A conclusatildeo desta interpretaccedilatildeo eacute previsiacutevel Natildeo se comshy

bate mais o poder doravante investidp em uma miriacuteade de locashylizaccedilotildees [ou dispositivos] mas a tirania das teorias globalizantesraquo

Teorias que Rella explicita precisando em nota leffeto Marx37 Na verdade Teyssot38 natildeo comenta a confer~ncia de 1967

35 G Deleuu F Guattari Rhizo1M Paris Minuit 1976 Rizoma ParrnalL~uea Pradche 1977 36 Em italiano no original (N da T)

37 Em italiano no original (N da T)

38middotG Teyssot Eterotopia e storiadegli spazi II displJlitirm FOllcault pp 83-86 e HelerolOpies and the historyofspaccs Arcbiacutetlctureandurbaniacutesm 121 1980 pp 79-100

mas o uso taxinocircmico do prefaacutecio de As Palavras eas coisas aplishy

cando-o a um projeto de hospital do seacuteculo XVIII descrito pelo

historiador J-c Perrot39bull Seu plano distribui como uma grade

em oiro construccedilotildees distintas oito classes de pensionaacuterios tatildeo

heterogecircneos quanto as categorias de animais da enciclopeacutedia de

Borges a) os prisioneiros a pedido de suas famiacutelias b) os loucos

os prisioneiros por edito real c) as crianccedilas pobres e legiacutetimas

dedois a nove anos os idosos os mendigos as prostitutas acoshy

metidas de doenccedilas veneacutereas d) as crianccedilas bastardas de mais

de nove anos etc Eacute a incongruecircncia do conteuacutedo que designa

a arquitetura como heterotopia e naacuteo o jogo de oposiccedilatildeo ou de contestaccedilaacuteo qualitativa ou simboacutelica dos outros espaccedilos que este

uacuteltimo institui por sua funccedilaacuteo sua forma suas rupturas

O uso da heteroropia feito por T eyssot de modo algum transshy

creve a inscriccedilaacuteo profunda da espacialidade na ttalidade da

existecircncia humana a heterogeneidade e a descontinuidade dos

tempos vividos os limiares da vida as crises bioloacutegicas (iniciashy

ccedilatildeo puberdade defloraccedilatildeo) Eacuteros e Taacutenatos As espacializaccedilotildees

da subjetividade sob todas as suas formas da casa de toleracircncia agrave

sauna e natildeo somente as grandes funccedilotildees da carta de Atenas receshy

beram em todas as culturas uma inscriccedilatildeo especiacutefica no espaccedilo

em espaccedilos que entretecircm entre si natildeo uma relaccedilatildeo de divisatildeo como interioridadeexterioridade margemcentro puacuteblicol prishy

vado mas um jogo formal de diferenciaccedilatildeo e de reverberaccedilatildeo

em suma no registro da comunicaccedilatildeo Tanto Relia que faz do

W J-C Perrot Genes du vilk mo Cam ali XVII sdele Paris Mouton 1975

POSFAacuteCIO

POSgtAClO

51

50 espaccedilo foucaultiano o receptaacuteculo neutro e contiacutenuo das hetero- topias do poder - concepccedilatildeo globalizante - quanto T eyssot que

faz da heterotopia a articulaccedilatildeo arquitetural das incongruecircncias

do mundo - concepccedilatildeo loealista - carecem ambos da terceira dimensatildeo aquela propriedade do espaccedilo de se remeter a si mesmo

na espessura de um jogo formal e simboacutelico de contestaccedilatildeo e de

reverberaccedilatildeo em uma fragmentaccedilatildeo que natildeo eacute segmentaccedilatildeo este Thirding que E Soja assim teoriza no Instituto de urbanismo de LosAngtlts na UeLA the Thirding as othering40

Essa primeira recepccedilatildeo das heterotopias pela escola de arquitetura de Veneza representada por II dispositivo Foucault mostra a ambiguidade da noccedilatildeo de recepccedilatildeo natildeo se trata de uma compreensatildeo exata nem de uma real instrumentalizaccedilatildeo mas de uma reimplantaccedillo poUss~mica e poMmica em uma rede de

debates poJJticos por um lado e de um questionamento episteshymoloacutegico por outro

Em julho de 1976 Foucault relembra pela primeira vez sua confercncia de 1967 em uma entrevista sobre o panoacuteptico de

Bentham publicada em 1977 mencionada aliaacutes por Teyssot Seria necessaacuterio escrever toda uma histoacuteria dos espaccedilos que fosse

ao mesmo tempo uma histoacuteria dos poderes desde as grandes estrateacutegias da geopoliacutetica ateacute as pequenas taacuteticas do habitat da arquitetura institucional da sala de aula ou da organizaccedilatildeo hosshy

pitalar passando pelas implantaccedilotildees econOacutemico-poliacuteticas Eacute surshypreendente ver quanto o problema dos espaccedilos levou tanto tempo

40 Bd Soja 7huacutelspact Journeys to Los Angks a11( Othtr lUa11( ltilM Ptampts Cambridge (Mass)Blackdl 1996

para aparecer como um problema histoacuterico-poliacutetico Lembro-me que haacute cerca de dez anos falei destes problemas de uma poliacutetica

dos espaccedilos e de me terem respondido que era bastante readoshy

naacuterio insistir tanto sobre o espaccedilo e que o tempo o projeto era a vida e o progresso 41

Uma histoacuteria foucaultiana dos espaccedilos mais precisamente

da espacializaccedilatildeo do poder mais precisamente ainda da inscriccedilatildeo

no espaccedilo colonial- heterot6pico - desse regime de poder partishycular que se desenvolve a partir do seacuteculo XVIII e que Foucault designa de biopoder42 a partir do qual os problemas de espaccedilo tornam-se politicamente diferentes eacute o projeto que no comeccedilo dos anos oitenta empreendem o antropoacutelogo Paul Rabinow43 e a historiadora do habitat americano Gwendolyn Wright44bull Nem

eles nem Franccedilois Beacuteguin conheciam a conferecircncia de 1967

Em uma entrevista que Rabinow e Wright fizeram com

Foucault em 198245 publicada em Skyline46 revista americana de

arquitetura o filoacutesofo lembra suas obsessotildees pelo espaccedilo e como

atraveacutes destas obsessotildees cheguei ao que eacute fundamental para mim as relaccedilotildees que satildeo possiacuteveis entre o poder e o saber

41 MFoucault J Bentham Lotil pouvoir in L Panoptiacuteque Opcil (Veja-se em traduccedilaacuteo brasileira de A L de SOU7 O olho do poder in Microfiacutesica b podtr op cit- N da T) 42 M Foucaull La Volon tk savoir Paris Gallimard 1976 cap V Droil de mort et pouvoir SUl I vie (Trad bras de M T da C Albuquerque e J A Guilhon Albuquerque A Vontade tk saber Rio de Janeiro Graal 1977 - N d T) 43 P Rabinow Biopower in lhe Frrnch Coloits conferecircncia interdisciplinar sobr Foucault Knowledge Power HislOry Los Angeles 29-31 de oUlubrol1981 Frrneh Modn Norms and Forms of th SfJCial Enviacuteronmmt Cambridge (M) MIT Press 1989 44 G Wright 7he Poliacutetics ofDltsigns in the Frrnch Colonial Urbanism Chicago University Preso 1991 45F B~n Arabisanm op cil 46 M Foucaull Space knowledge power entrerien avec P Rabinow Skyline marccedilo11982 pp 16-20 retomada em Dits tt Eacutecrits t N n 340 pp 270-285

POSFAacuteCIO

POSFAacuteCIO

53

52

A arquitetUra e o urbanismo naacuteo constituem diz ele um campo isoshylaacutevel Misturam-se com muacuteltiplas praacuteticas e discursos mas o espaccedilo

eacute o lugar privilegiado de compreensatildeo de como o poder opera

Inversamente ele bane da praacutetica do arquiteto toda esperanccedila

utoacutepica Os homens sonharam com maacutequinas libertadoras Mas por definiccedilatildeo natildeo existem maacutequinas de liberdade Jamais

a estrutura das coisas tem competecircncia para garantir a liberdade Nada eacute funcionalmente libertador A liberdade eacute o que se deve exercer a garantia da liberdade eacute a liberdade

Mestre doravante de um discurso poliacutetico e epistemoloacutegico sobre o espaccedilo Foucault deixa entatildeo ressurgir seu antigo conceito de heterotopia Diga-se entre parecircnteses lembro-me de ter sido

convidado por um grupo de arquitetos em 1966 para realizar um estudo do espaccediloi tratava-se do que na eacutepoca chamei de heterotopias espaccedilos singulares que encontramos em alguns

espaccedilos sociais cujas funccedilOes satildeo diferentes das dos outros ou tershy

minantemente opostas Os arquitetos trabalhavam neste projeto e no final do estudo algueacutem tomou a palavra _ um psicoacutelogo

sanreano - para me bombardear que o espaccedilo era reacionaacuterio e capitalista enquanto a histoacuteria e o devir eram revolucionaacuterios

Agravequela eacutepoca este discurso absurdo de modo algum era inabitual Hoje em dia qualquer um se dobraria de rir ouvindo aquilo

Natildeo haacute como natildeo se impressionar com esta longa anamnese em dois tempos primeiro em 1976 relativamente agrave objeccedilatildeo poliacuteshy

tica feita em 1967 e em 1982 enfim relativamente ao proacuteprio conceito de heterotopia em 1984 Foucault podia acolher favoshy

ravelmente a reutilizaccedilatildeo de sua conferecircncia pelo IBA de Berlim

Os dois organizadores da exposiccedilatildeo o alematildeo Johannes Gachnang e o italiano Marco de Michelis conheciam esse texto

em sua publicaccedilatildeo de 1968 em Architteturri7bull Ele sintonizava

estranhamente com a estrateacutegia do IBA tal como foi exposta por

um de seus dois responsaacuteveis J-P Kleihues48 executar a ideia

de uma cidade por fragmentos falar de arquitetur~ urbana sem traccedilar primeiramente um plano global de urbanismo respeitar

a variedade histoacuterica e topograacutefica berlinense pensar a composhysiccedilatildeo da cidade por ilhotas e ateacute confiar a diversos arquitetos a

reconstruccedilatildeo das residecircncias em uma mesma ilhota E por ocashy

siatildeo de uma reunificaccedilatildeo eventual justificar a conservaccedilatildeo da arquitetura staliniana

Sua traduccedilatildeo americana ocorreu em 1986 publicada prishy

meiramente na revista interdisciplinar de ComeU Diacriticis depois na revista de arquitetura LOtu9 Inaugurava-se uma carshy

reira nova para a interpretaccedilatildeo qualitativa dos espaccedilos outros

Natildeo se compreenderia esta carreira sem a simultaneidade da trashy

duccedilatildeo dos volumes II e III de Histoacuteria da sexualidaJe5deg a partir

dos quais Foucault torna-se uma referecircncia para aquilo que os americanos denominam poliacuteticas da identidade Movimentos

feministas movimento gay grupos eacutetnicos constituem a nova

47 Infurmaccedilaacuteo obtida com e1cs e concedida por Franccediloise Jolr 48 J-r Kleihues Agrave propos de I viUe europeacuteenne entreVista com M Bourdeau AMeS outubroI984

pp 95-99 49 M Foucault Ofother spaces Diacritieacuteiacutes 16 n I 1986 pp 22-27 e Lotushmnational 1986 50 M Foucaulr lUage tUacutes pIAis Paris Gallimaa 1984 uacute Souci Je soi Paris Gtlimn 1984 trad

1ht Use ofPlrasU Harmondsworth Penguin 1985 1ht Ca Dfthe sg Harmondsworth Penguin 1986 (Trad bras de M T da C Albuquerque O USQ dos p e O CuiJmJo Je si Rio de Janeiro Graal 1984 e 1985 - N da T)

POSFAacuteCIO

POSFAacuteCIO

54 rede de inscriccedilatildeo e a nova avaliaccedilatildeo das heterotopias A histoacuteshy

ria dos modos de subjetivaccedilatildeo realizada por Foucault atravessa

textos como lhe spaces that diferences make do urbanista Ed

Soja51 Gendered Spaces da feminista Daphne Spain52 lhe New Cultural Politics ofDijforence de Cornel West53 ou Geographical lmaginations do geoacutegrafo Derek Gregory54

Lugar de emergecircncia da heterotopia a anaacutelise literaacuteria dela

se apropria com Brian McHale Michel de Certeau5S a anaacutelise

fiacutelmica com Giuliana Bruno56bull Foucault torna-se passagem obrishy

gatoacuteria para toda anaacutelise do espaccedilo constata Soja

O mesmo se passa com as artes plaacutesticas Apresentando as

obras do artista plaacutestico cubano Felix Gonzalez-Torres Nancy

Spector descreve uma experiecircncia de ambiente heterotoacutepico

realizada em Manhattan57bull Em vinte e quatro paineacuteis de anuacutencio

publicitaacuterio das instalaccedilotildees urbanas de Manhattan Gonzalezshy

-Torres afixou o contraespaccedilo constituiacutedo por imensa foto em preto

e branco da intimidade de uma cama exposta Desnudamento

absoluto de um puro roccedilar de lenccediloacuteis leve traccedilado de duas cabeshy

ccedilas no vaacuteo entre os dois travesseiros onde cada qual pode proshy

jetar ou a interrupccedilatildeo do sono ou o amor consumado ou mais

51 Ed Soja The spa= that dlfenna makc ln M Kelm e S PIlbullbull PI4u iI1III lhe Politics olidmtiacutety NQVlI Iorque Roudedge 1993 pp 183middot205 52 D Spain Glt1JIUacutertaacute Spam Chapei Ht11 Unlverlty ofCarolIna Pras 1992 53 CWest 1M Ntw Cultural Politict oIDifimut ot h 1M Dilm_ ofrJu BIa lnttlkcttuuacute Ferguson 1994 54 D Gregory Gtographicalmaginatiacuteons citado ln Ed Soj hitrlspace Carobridge Bladltwell 1994 55 B McHale Post Moaacuteernist Fietion Nova Iorque Routledge 1988~ M de Certeau HettrologitS Discouffl 01tlu Otbtr Manchester Manchester University Presa 1986 56 G Bruno Bodlly ArchirecturesAltrtmblag 19 dezembro1992 57 N Spector Ptilt GonzakzmiddotTorres The Solamon R Guggenheim Museum Nova Iorque 1995

radicalmente a advertecircncia do artista uma decisatildeo de 1986 da

Corte suprema autoriza doravante a justiccedila em todo Estado em

que a sodomia eacute ainda um crime a persegui-la mesmo quando consentida entre adultos em suma a intimidade do espaccedilo prishy

vado da cama acaba de entrar no espaccedilo puacuteblico Esta articulashy

ccedilatildeo entre o puacuteblico e o privado poderia criar segundo Spector uma histoacuteria mais silenciosa a marca vazia do companheiro do

artista morto de aids

Maravilhosa intuiccedilatildeo no comeccedilo da confer~ncia radiofocircnica

de Foucault em 1966 daquela passagem inexistente na conferecircnshy

cia para os arquitetos em 1967 em que o fil6sofo evocava como

primeira figura da heterotopia a cama dos pais que as crianccedilas

gostam de invadir com um prazer de transgressatildeo e de sonho das origens Naacuteo poderiacuteamos concluir que aqui a longa seacuterie de

rein~riccedilotildees do texto em muacuteltiplas redes e estrateacutegias que a longa

seacuterie de transformaccedilotildees da figura social de seu autor encontram

neste instante de sua trajetoacuteria a mais completa forma de recepshyccedilatilde0 58 Foucault natildeo declarara tantas vezes que almejava menos

leitores que utilizadores59

58 Ed Soja Heterotopies remembrance Df other spaccs in me citadd LAraquo Strattgies a jIJurna 01 tbeory culturt anaacute poines 3 1990 pp 1middot39 Post metropolis Critiacutecal Stuties 01 Ctti naacute Rtglgtnt Londle$ Blackwdl 2000 59 Em 200I uma associaccedilatildeo cultural italiana denominada EttrotpirJ publicou uma releitura de textos de Foucaulr sobre o espaccedilo sob o titulo Spnialtri

POSFAacuteCIO POSFAacuteCIO

40 41 funeraacuteria e dos cemiteacuterios13 uma das heterotopias de Foucault

Em O Nascimento da cllnica14 Foucault descrevera como a anatoshy

mopatologia havia integrado a morte no conhecimento da vida

oferecer-lhe a hist6ria da integraccedilatildeo dos cemiteacuterios na planificashy

ccedilatildeo urbana provava a perfeita cumplicidade entre seus ouvintes

e o conferencista a negatividade estava no cerne da racionalishy

dade Ela estava no cerne das anaacutelises de Foucault pelo menos ateacute Vigiar epunit5

Foi no final deste mesmo ano de 1967 que Jean-Luc Godard

em A Chinesa fez sua heroiacutena a estudante pr6-chinesa interpreshy

tada por Alme Wiazemsky jogar tomates em um exemplar de As Palavras eas coisas entio um livro siacutembolo por suas descontinuishy

dades abruptas do pensamento no tempo da negaccedilatildeo da hist6ria e portanto da negaccedillo da revoluccedilatildeo

A confercncia de 1967 poderia ter outra circulaccedilatildeo aleacutem da

c6pia datHografada entre os membros do Circulo O pr6prio

Circulo natildeo possuiacutea uma revista e nlo editava nenhuma de suas

conferecircncias Por outro lado as concepccedilotildees que entatildeo partilhashy

vam os arquitetos deviam muito a Le Corbusier e agrave Bauhaus agrave

racionalizaccedilatildeo das formas e agrave legibilidade do espaccedilo urbano

concebido como um texto pontuado com referecircncias espaccedilos

ou edifiacutecios Franccediloise Choay que Foucault frequentara nos anos

13 R AuzeUe Derniim Dmlnlm Paris ed do autor 13 PIace du Panrlleacuteon 1965 14 M Foucault Naissanct de la ClitlUacuteJue Paris PUF 1963(Trad bru de R Machado ONtUCimentIJ da clnCIt ruo d Janeiro Forense-Universitaacuteria 1977 - N da T) 15 M Foucaul Survdlkr tIPunir Paris Gallimard 1975 A obra apresenta o panoacuteptico de Benthrun como um acontecimento na histoacuteria do esplrito humanomiddot epropotildee uma anill1sc do poder em termos d produccedilatildeo e natildeo de repressatildeo (Trad bras de R Ramalhete VIgiar11mr Pett6poliacutes Vous 1987 _ N da T)

ttenta reconstitui essas problemaacuteticas em Urbanisme utopies et rtaiteacutesl6

Um urbanismo progressista humanista que se sustentava

111amp carta de Atenas l7 e em uma racionalidade crescente ou um

urbanismo culturalista para o qual cada forma eacute siacutembolo e que

(Ilha com nostalgia para a harmonia das cidades passadas estas

tmm as ideias reguladoras da razatildeo urbaniacutestica Estas ideias

rCguladoras jaacute natildeo talhavam em pontilhado o espaccedilo da utopia

em que viria a desdobrar-se ap6s 1968 o discurso arquitetural e

urbano em uma dissoluccedilatildeo do objeto cidade no seio das relaccedilotildees

udais capitalistas A cidade como totalidade formal ou racional

I1Ao foi deslocada pelo capitalismo O espaccedilo natildeo eacute uma imensa

paacutegina em branco onde se escreve desde cerca de dois seacuteculos a

Illetanarraccedilaacuteo do capital Naacuteo estaacute aiacute o impensado geral o natildeo

dito de todas essas divisoacuterias construiacutedas entre as classes os sexos

C as geraccedilotildees

O fasciacutenio das escolas de arquitetura pela visita a cidades

patronais estas utopias realizadas como o familisteacuterio de Guise

unstruiacuteda por Godin ou a cidade Menier de Noisiell8 testeshy

munha que o discurso arquitetural e urbaniacutestico francecircs dos anos

etenta se desdobrava no espaccedilo da utopia Os promotores dessas

cidades natildeo estariam entre os primeiros a inventar o consumo

em massa Um reduzia as dimensotildees da milenar e dispendiosa

1111( Choay UrbanisIM UtIJpits tt rlaitis Paris Seuil 1965 17 Carta de Atenas manifesto do IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (Ciam) Atn 1933 (N da T) I Pamllisteacuterio de Guise espeacutecie de comunidade ou cidade operaacuteria inspirada em Charles Fourier IIl1nmulda em 1846 por J-BGodln para habitaccedilatildeo de operaacuterios de sua induacutestria Menler de Noisiel IDmunldade de operaacuterios da ptoduccedilatildeo de chocolates fundada por A B Menier em 1925 nas imediaccedilotildees bull arl (N da T)

POSFAtildeCIO POSFAacuteCIO

42 43 lareira a um aquecedor domeacutestico outro um medicamento dos

exeacutercitos napoleocircnicos a um complemento alimentar industrial

o tablete de chocolate Natildeo teriam eles articulado da maneira

mais restrita a racionalizaccedilatildeo do consumo com a da ocupaccedilatildeo do

espaccedilo A racionalizaccedilatildeo da cidade patronal como a fragmentaccedilatildeo

do espaccedilo urbano o homog~neo como o heterogecircneo conduziam

a um mesmo crivo de leitura infalsificaacutevel a espacializaccedilatildeo do

capital O arquiteto tornava-se o teacutecnico passivo da operacionashy

lizaccedilatildeo das estrateacutegias e das normas do capital

Mostra-se uacutetil falar indiferentemente das utopias preacute-urshy

banistas das cidades operaacuterias de Haussmann da Bauhaus do

funcionalismo dos Shakers dos grandes conjuntos das cidades

novas por toda parte afirma-se perigosamente uma racionalishy

zaccedilatildeo do espaccedilo inerente agrave extensatildeo universal do capital uma

propensatildeo de sua ordem de troca ou da ordem simplesmente podia-se ler na revista Traverse19bull

Genealogia dos equipamento coletivol Eacute a partir de 1972 que Foucault desenvolve pesquishy

sas em equipe sobre a histoacuteria dos equipamentos coletivos

Primeiramente com o Centro de estudos pesquisas eformaccedilatildeo instishytucional- ou Cerfi - animado pelo psiquiatra Feacutelix Guattari que

conclui entatildeo com Gilles Deleuze a redaccedilatildeo do seu Anti-Eacutediptldeg

19 B Eizykman Urbanismo Travme n 4 1976 citado por A Thalamy in PolltilJues tk lhabitat Corda

1977 p 14 (o nome Shaker designa um movimento de grupos religiosos fundado na Inglaterra no seacuteculo XVIII que - agrave semelhanccedila dos Amish- vivem em suas proacuteprias comunidades _ N da T) 20 G Deleuze F Guattari LAnti-CEdipe Paris Minuit 1972 (Trad bras de L B L Orlandi O Antishy-Eacutedipo Satildeo Paulo 34 2010 - N da T)

( rliacuteldo em 1965 com pesquisadores em ciecircncias sociais dissidenshy

trN do Partido Comunista Francecircs (PCF) o Cerfi apoacutes 1970 I()( em questatildeo sua cultura marxista submetendo-a a uma dupla

Inova 1) a do procedimento genealoacutegico praticado em Histoacuteria Ioucura e O Nascimento da cliacutenica 2) a de uma clarificaccedilatildeo

IIlN relaccedilotildees libidinais que todo pesquisador manteacutem com o

uhjeto de sua pesquisa (a ambivalecircncia da reflexatildeo urbaniacutestica

frente agrave racionalidade capitalista natildeo escapava a ningueacutem) e que

UIe pesquisadores mantecircm entre si como grupo social hierarquishy

uto e sexuado

O relato da realizaccedilatildeo dessa dupla prova publicada na revista

do Cerfi21 eacute provavelmente um dos mais interessantes diaacuterios de

hordo da travessia ideoloacutegica daqueles anos Ali se assiste como

lue em um laboratoacuterio agrave desagregaccedilatildeo da anaacutelise marxista e

~ emergecircncia daquilo que logo seraacute batizado de atitude poacutesshy

-moderna O empreendimento eacute descrito por seus autores como

uma estranha maacutequina feita de peccedilas e pedaccedilos emprestados do

Ilenealogista Foucault surrupiadas do depoacutesito do cientista biceacuteshy

falo Deleuze-Guattari

O genealogista Foucault eacute de fato uma nova imagem social

do filoacutesofo o procedimento genealoacutegico soacute estaraacute francamente

c()nfirmado a partir de seu ensino no Colge de France inaugurado

em dezembro de 1970 Ademais a partir de 1971 juntamente

com Deleuze ele anima um movimento militante o Grupo de

JI (eacuteneacutealogie du capital- I Les eacutequipements du pouvoir Recherches n 13 dezembro1973 Um s6 bullbullbullmplo de uma retomada das hettrotopias por H umre a propoacutesito de La Pensuuml marxiste de la vilte IIrlbullbull Casterman 1972

POSFAacuteCJO POSFAacuteCIO

44 45 informarao sobre as prisoes (GIP) enraizado na extrema esquerda

Foucault disc ute com 0 Cedi que trabalha sobre a cidade22

a abordagem genealogica dos equipamemos coletivos e a poe

em pritica sobretudo no seu seminario do College de France 0

seminario e consagrado aemergencia do medico como perito

no seculo XIX atraves da pericla psiquiatrica em medicina legal

por urn lado e por outro como engenheiro que comribui para

a definicao das normas e formas da arquitetura hospitalar Urn

arquiteto Bruno Fortier responsavel pelo Centro de estudos epesshy

quisas em arquitetura (Cera) participa doravame dos trabalhos

de pesquisa desse seminario

Se a expressao equipamemo coletivo nao figura nos textos

do seculo XVIII a maquina de curar definida pelo medico

Tenon como ideal do hospital moderno neles tern lugar A

arquitetura hospitalar escreve Tenon2 nao pode mais constishy

tuir-se de rotina c tateamemos devendo responder a multiplas

prcocupacentes estancar 0 contagio pela distribuicao das salas e

dns leiros a circuhlltao do ar tavorecer a diss()cia~ao dos doemes

c das d()cn~as a vigilancia dos dotntcs e do pessoal manifestar

a hierarquia do olhar medico ter em coma as necessidades da

populacao 0 que serve para curar nao e a regularidade do trashy

cado mas a justeza da arquitetura 0 modelo deve ser perfeito

- nao se podendo mais em nada muda-Io - acabado repetivel

Pela primeira vez em 1788 escreve Bruno Fortier propoe-se

22 Ruhhl1 n 13 op cir pp 27middot31 (Dits ~I fcrit n 129 n 130) 23 J-R Tenon M moirs sur It~middot api fl llX tie P1ris Paris 1788

aos arquitetos a imitacao como urn dever24 as tipologias norshy

mativas seguem os exemplos oferecidos pela historia A justeza

da arquitetura nasce do tratamemo de uma rede de questoes disshy

timas - c1imaticas demogdficas estatisticas higienicas medicas

disciplinares - que tern cada qual seu lugar de emergencia sua

racionalidade seus promotores que respondcm a uma multiplishy

cidade de taticas - tecnicas de vigilancia de producao de saber

de efetuacao de poderes de medica l iza~lo c de saude publica

Elas podem ser descritas como segmemos analogos Oll repetidos

ao infinito de urn so texto de um escrevcnrc unico Illitico e

unitario 0 capital

Certamente esses novos edificios incorporam dticas de

vigil an cia encomradas fora sob outras formas arquiteturais shy

colegios casernas - taticas e formas que puderam preceder e

sustemar a emergencia da organizacao capitalista do trabalho e

que poderao proliferar para alem dela por exemplo nos vast os

arquipelagos do socialismo siberiano Eque fundamemalmeme

nao estamos Iidando nem com formas arquiteturais nem com

modos de producao mas com tecnologias de poder Foi na busca

destas arquiteturas maquinas tao ajustadas aos seus objetishy

vos que Foucault veio a redescobrir 0 que logo tornou-se parashy

digma de sua obra 0 panoptico de Bcntham2 do qual Poyet26

24 M Fo ucault D Barrer-Kriegel A Thahmy F Btgllin B tllrlicr L-IVIi(Jilln II X4lrir (m4JI l)rigill ~1

de OJOpilil modnrl~) Paris lnsri ru[ de J cnvi ronncm cnt 1976 rccd Hruu lOl) Iirc M~rda8Q J~79

25 J Bcmham Le Panoptiqui p rcccdido de Loeil du pouI-vir cnrrcmiddotvisru Om Michel Fou~ult P~ ri s

Bdfond 1977 (faC-ltimik da cdjao franccsa de 179 1) (Trod bras d bullbullm rvi 0 Ih do poder por A L de S OU-1 in Microfli ra tQ pokr op Ci l pp209-227 - N d 1)

26 B Poyet M h noiu sur a niassili d( Iransera lt u collsrlli r tIf-fj rd-lhrm w ill dull pm)lmiddotr It

traminlioll k eel hopil4l Paris 1785

IOSFACIO pOSFAeiO

46

47 desenhara uma interpretaccedilatildeo para a reconstruccedilatildeo da Santa Casa de Misericoacuterdia Os trabalhos do seminaacuterio do College de Frante sobre a arquitetura hospitalar no final do seacuteculo XVIII recebeshy

ram duas ediccedilotildees uma em Paris em 1976 outra em Bruxelas em 1979 Les Machints agravegutrir27

O segundo estudo coletivo dirigido por Foucault teve por objeto o habitatentre 1800 e 185018 Foi conduzido por Franccedilois

Beacuteguin hoje historiador da paisagem e da arquitetura colonial29bull

Ametodologia ~ a mesma que a precedente no lugar de partir de

uma histoacuteria das formas da habitaccedilAo ou da cidade os pesquisashydores inventariaram as pr~tlcllll discursivas que circunscreveram e

codificaram o habitat como obJero de intervenccedilatildeo administrativa e politica entre 1800 e 1850 - a doenccedila o emprego a domestishycaccedilatildeo de equipamentos como a ~gua a iluminaccedilatildeo a ventilaccedilatildeo

e o desenvolvimento de uma crescente jurisdiccedilatildeo sobre o espaccedilo

puacuteblico em cuja intersecccedillo se connroacutei o habitat Eacute preciso prishy

meiramente desfazer-se da pregnAncla da casa desmineralizaacute-la desconstruiacute-la escreve F B6guln

Poder saber es~

Eacute a partir de vtgiar t punir (1975) e de sua raacutepida circulaccedilatildeo Iacutemernacional- traduzido rapidamente em cerca de vinte liacutenguas - que as anaacutelises foucaultianas do espaccedilo recebem uma visibilishy

dade nova como lugar de uma dupla articulaccedilio do poder sobre

27 M fucault B Barrer-Kriegd A Thalamy F Beacutepdn B fIorllr ln MtIthllltt 4 gubir op cit 28 ]-M A1Haume B Barret-Kriegcl F Seguin D Ranclere A lhalamy PDitifUtt tk lhabitat 18()() 1850 Paris Corda 1977 (estudo realizado sob a direccedilAo de M Poucaull)

29 De F Beacuteguin citemos principalmente ArabIacuteSlUlett dko illChlmhI4 ubitill Afoque du Norri 1830-1850 Paris Dunod 1983 e Paysagtt Paris Flammarlon 19

o corpo do indiviacuteduo e do saber ao poder Seguem-se numerosos estudos sobre a arquitetura da vigilacircncia publicados na Itaacutelia e na Gratilde-Bretanha principalmente3deg De modo mais geral socioacuteshy

logos e planificadores urbanos comeccedilam a referir-se a Foucault

A Leaman escreveu em Environment and Plannintl que a obra de Foucault eacute doravante importante para os urbanistas planifishy

cadores e arquitetos por sua anaacutelise das qualidades normativas

das estruturas e das instituiccedilotildees Sharon Zukin considera que a cidade estaacute doravante incluiacuteda nas anaacutelises de uma economia

do poder segundo o meacutetodo desenvolvido em vtgiar e punir32bull

Esse eacute o contexto em que reaparecem as heterotopias na escola de arquitetura de Veneza em dezembro de 1977 prishymeiro estudo sobre seu uso possiacutevel em uma histoacuteria dos espashyccedilos II dispositivo Foucault 33 que reuacutene ensaios de M Cacciari

F RelIa M Tafuri G Teyssot A capa como a de Machines agrave gueacuterir reproduz um plano de arquitetura panoacuteptico para um

hospital inglecircs Os autores se referem essencialmente a Vtgiar e punir e exceto T eyssot a uma reuniatildeo de textos de Foucault sobre o poder publicado neste mesmo ano pela editora Einaudi

Microfisica deipotert4 a incidecircncia poliacutetica desta uacuteltima coletacircnea

lO Ver especialmente HinmJmd primeiro ano n 3 maio-junho1978 n triliacutengue intitulado Segrtgazione corpo sociak consagrado agraves atquitetuta de vigilanda jl A Leaman in Environmmtand Planning n 111979 pp 1079-1082 H Sh Zukin Adecade cfilie new urban sociology 1heoryand Society 91980 pp 575-601 H M Cacdari F Relia M Tafuri G Teyssor II dispositillO Foucaut Veneza Cluva 1977 4 M Iltlucaullt MimfoIacuteCIJ rktpoYrt inkrUtntipoitici editado por Iltlnrana e Pasquino Turin Einudi 1977 retomado e completado pelo movimento alternativo berlinense Dispositive tkr Macht Betlin Merve 1978 (A reuniaacuteo d textos que compotildecm a ediccedilatildeo italiana a=sdda de oUtros textos reltebeu traduccedilaacuteo brasileira de R Machado e OUrtOS Micrufisica do potkr Rio de Janeiro Graal 1979 Foi publicada tambeacutem uma ediccedilaacuteo espanhola com algumas alteraccedilotildees dos tcxtos sdeclonados trad por J Varela e F A1varez-UrIacutell Madri La Piquem 1978 - N da T)

POSFAacuteCIO

POSFAclO

48 49 foi imediata logo reforccedilada pela traduccedilatildeo de Rhizome de Deleuze

e GuattarP livros que se tornaram referecircncias teoacuterico-poliacutetishy

cas do movimento chamado Autonomie (do poliacutetico subenshytenda-se) que incomodava a esquerda do PCI engajado na

estrateacutegia do compromisso histoacuterico ~ esta incidecircncia poliacutetica

que os italianos batizaram de leffeto Foucault36 que eacute o alvo de 1 dispositivo Poucault

A introduccedilatildeo agrave coletAnea escrita por F Rella eacute perfeitamente expliacutecita desde Jogo travare as anaacutelises foucaultianas da pluralishy

dade das relaccedilotildees de poder em uma metafisica do poder de um poder abstrato imaterial supostamente em toda parte e portanto

politicamente em parte alguma liA uacutenica histoacuteria dos poderes eacute

uma histoacuteria dos espaccedilos atraveacutes dos quais o poder se mostra E

apoiando-se no artigo de Teyssot como uacutenica fonte de conhecishy

mento das heterotopias prossegue O nlo lugar do poder situashy

-se no centro de uma infinidade de localizaccedilotildees heterotoacutepicas

A heterotopia torna-se entatildeo um dado central em Foucault

e a hetero topologia a fenomenologia da dlspersio anaacuterquica do

poder A conclusatildeo desta interpretaccedilatildeo eacute previsiacutevel Natildeo se comshy

bate mais o poder doravante investidp em uma miriacuteade de locashylizaccedilotildees [ou dispositivos] mas a tirania das teorias globalizantesraquo

Teorias que Rella explicita precisando em nota leffeto Marx37 Na verdade Teyssot38 natildeo comenta a confer~ncia de 1967

35 G Deleuu F Guattari Rhizo1M Paris Minuit 1976 Rizoma ParrnalL~uea Pradche 1977 36 Em italiano no original (N da T)

37 Em italiano no original (N da T)

38middotG Teyssot Eterotopia e storiadegli spazi II displJlitirm FOllcault pp 83-86 e HelerolOpies and the historyofspaccs Arcbiacutetlctureandurbaniacutesm 121 1980 pp 79-100

mas o uso taxinocircmico do prefaacutecio de As Palavras eas coisas aplishy

cando-o a um projeto de hospital do seacuteculo XVIII descrito pelo

historiador J-c Perrot39bull Seu plano distribui como uma grade

em oiro construccedilotildees distintas oito classes de pensionaacuterios tatildeo

heterogecircneos quanto as categorias de animais da enciclopeacutedia de

Borges a) os prisioneiros a pedido de suas famiacutelias b) os loucos

os prisioneiros por edito real c) as crianccedilas pobres e legiacutetimas

dedois a nove anos os idosos os mendigos as prostitutas acoshy

metidas de doenccedilas veneacutereas d) as crianccedilas bastardas de mais

de nove anos etc Eacute a incongruecircncia do conteuacutedo que designa

a arquitetura como heterotopia e naacuteo o jogo de oposiccedilatildeo ou de contestaccedilaacuteo qualitativa ou simboacutelica dos outros espaccedilos que este

uacuteltimo institui por sua funccedilaacuteo sua forma suas rupturas

O uso da heteroropia feito por T eyssot de modo algum transshy

creve a inscriccedilaacuteo profunda da espacialidade na ttalidade da

existecircncia humana a heterogeneidade e a descontinuidade dos

tempos vividos os limiares da vida as crises bioloacutegicas (iniciashy

ccedilatildeo puberdade defloraccedilatildeo) Eacuteros e Taacutenatos As espacializaccedilotildees

da subjetividade sob todas as suas formas da casa de toleracircncia agrave

sauna e natildeo somente as grandes funccedilotildees da carta de Atenas receshy

beram em todas as culturas uma inscriccedilatildeo especiacutefica no espaccedilo

em espaccedilos que entretecircm entre si natildeo uma relaccedilatildeo de divisatildeo como interioridadeexterioridade margemcentro puacuteblicol prishy

vado mas um jogo formal de diferenciaccedilatildeo e de reverberaccedilatildeo

em suma no registro da comunicaccedilatildeo Tanto Relia que faz do

W J-C Perrot Genes du vilk mo Cam ali XVII sdele Paris Mouton 1975

POSFAacuteCIO

POSgtAClO

51

50 espaccedilo foucaultiano o receptaacuteculo neutro e contiacutenuo das hetero- topias do poder - concepccedilatildeo globalizante - quanto T eyssot que

faz da heterotopia a articulaccedilatildeo arquitetural das incongruecircncias

do mundo - concepccedilatildeo loealista - carecem ambos da terceira dimensatildeo aquela propriedade do espaccedilo de se remeter a si mesmo

na espessura de um jogo formal e simboacutelico de contestaccedilatildeo e de

reverberaccedilatildeo em uma fragmentaccedilatildeo que natildeo eacute segmentaccedilatildeo este Thirding que E Soja assim teoriza no Instituto de urbanismo de LosAngtlts na UeLA the Thirding as othering40

Essa primeira recepccedilatildeo das heterotopias pela escola de arquitetura de Veneza representada por II dispositivo Foucault mostra a ambiguidade da noccedilatildeo de recepccedilatildeo natildeo se trata de uma compreensatildeo exata nem de uma real instrumentalizaccedilatildeo mas de uma reimplantaccedillo poUss~mica e poMmica em uma rede de

debates poJJticos por um lado e de um questionamento episteshymoloacutegico por outro

Em julho de 1976 Foucault relembra pela primeira vez sua confercncia de 1967 em uma entrevista sobre o panoacuteptico de

Bentham publicada em 1977 mencionada aliaacutes por Teyssot Seria necessaacuterio escrever toda uma histoacuteria dos espaccedilos que fosse

ao mesmo tempo uma histoacuteria dos poderes desde as grandes estrateacutegias da geopoliacutetica ateacute as pequenas taacuteticas do habitat da arquitetura institucional da sala de aula ou da organizaccedilatildeo hosshy

pitalar passando pelas implantaccedilotildees econOacutemico-poliacuteticas Eacute surshypreendente ver quanto o problema dos espaccedilos levou tanto tempo

40 Bd Soja 7huacutelspact Journeys to Los Angks a11( Othtr lUa11( ltilM Ptampts Cambridge (Mass)Blackdl 1996

para aparecer como um problema histoacuterico-poliacutetico Lembro-me que haacute cerca de dez anos falei destes problemas de uma poliacutetica

dos espaccedilos e de me terem respondido que era bastante readoshy

naacuterio insistir tanto sobre o espaccedilo e que o tempo o projeto era a vida e o progresso 41

Uma histoacuteria foucaultiana dos espaccedilos mais precisamente

da espacializaccedilatildeo do poder mais precisamente ainda da inscriccedilatildeo

no espaccedilo colonial- heterot6pico - desse regime de poder partishycular que se desenvolve a partir do seacuteculo XVIII e que Foucault designa de biopoder42 a partir do qual os problemas de espaccedilo tornam-se politicamente diferentes eacute o projeto que no comeccedilo dos anos oitenta empreendem o antropoacutelogo Paul Rabinow43 e a historiadora do habitat americano Gwendolyn Wright44bull Nem

eles nem Franccedilois Beacuteguin conheciam a conferecircncia de 1967

Em uma entrevista que Rabinow e Wright fizeram com

Foucault em 198245 publicada em Skyline46 revista americana de

arquitetura o filoacutesofo lembra suas obsessotildees pelo espaccedilo e como

atraveacutes destas obsessotildees cheguei ao que eacute fundamental para mim as relaccedilotildees que satildeo possiacuteveis entre o poder e o saber

41 MFoucault J Bentham Lotil pouvoir in L Panoptiacuteque Opcil (Veja-se em traduccedilaacuteo brasileira de A L de SOU7 O olho do poder in Microfiacutesica b podtr op cit- N da T) 42 M Foucaull La Volon tk savoir Paris Gallimard 1976 cap V Droil de mort et pouvoir SUl I vie (Trad bras de M T da C Albuquerque e J A Guilhon Albuquerque A Vontade tk saber Rio de Janeiro Graal 1977 - N d T) 43 P Rabinow Biopower in lhe Frrnch Coloits conferecircncia interdisciplinar sobr Foucault Knowledge Power HislOry Los Angeles 29-31 de oUlubrol1981 Frrneh Modn Norms and Forms of th SfJCial Enviacuteronmmt Cambridge (M) MIT Press 1989 44 G Wright 7he Poliacutetics ofDltsigns in the Frrnch Colonial Urbanism Chicago University Preso 1991 45F B~n Arabisanm op cil 46 M Foucaull Space knowledge power entrerien avec P Rabinow Skyline marccedilo11982 pp 16-20 retomada em Dits tt Eacutecrits t N n 340 pp 270-285

POSFAacuteCIO

POSFAacuteCIO

53

52

A arquitetUra e o urbanismo naacuteo constituem diz ele um campo isoshylaacutevel Misturam-se com muacuteltiplas praacuteticas e discursos mas o espaccedilo

eacute o lugar privilegiado de compreensatildeo de como o poder opera

Inversamente ele bane da praacutetica do arquiteto toda esperanccedila

utoacutepica Os homens sonharam com maacutequinas libertadoras Mas por definiccedilatildeo natildeo existem maacutequinas de liberdade Jamais

a estrutura das coisas tem competecircncia para garantir a liberdade Nada eacute funcionalmente libertador A liberdade eacute o que se deve exercer a garantia da liberdade eacute a liberdade

Mestre doravante de um discurso poliacutetico e epistemoloacutegico sobre o espaccedilo Foucault deixa entatildeo ressurgir seu antigo conceito de heterotopia Diga-se entre parecircnteses lembro-me de ter sido

convidado por um grupo de arquitetos em 1966 para realizar um estudo do espaccediloi tratava-se do que na eacutepoca chamei de heterotopias espaccedilos singulares que encontramos em alguns

espaccedilos sociais cujas funccedilOes satildeo diferentes das dos outros ou tershy

minantemente opostas Os arquitetos trabalhavam neste projeto e no final do estudo algueacutem tomou a palavra _ um psicoacutelogo

sanreano - para me bombardear que o espaccedilo era reacionaacuterio e capitalista enquanto a histoacuteria e o devir eram revolucionaacuterios

Agravequela eacutepoca este discurso absurdo de modo algum era inabitual Hoje em dia qualquer um se dobraria de rir ouvindo aquilo

Natildeo haacute como natildeo se impressionar com esta longa anamnese em dois tempos primeiro em 1976 relativamente agrave objeccedilatildeo poliacuteshy

tica feita em 1967 e em 1982 enfim relativamente ao proacuteprio conceito de heterotopia em 1984 Foucault podia acolher favoshy

ravelmente a reutilizaccedilatildeo de sua conferecircncia pelo IBA de Berlim

Os dois organizadores da exposiccedilatildeo o alematildeo Johannes Gachnang e o italiano Marco de Michelis conheciam esse texto

em sua publicaccedilatildeo de 1968 em Architteturri7bull Ele sintonizava

estranhamente com a estrateacutegia do IBA tal como foi exposta por

um de seus dois responsaacuteveis J-P Kleihues48 executar a ideia

de uma cidade por fragmentos falar de arquitetur~ urbana sem traccedilar primeiramente um plano global de urbanismo respeitar

a variedade histoacuterica e topograacutefica berlinense pensar a composhysiccedilatildeo da cidade por ilhotas e ateacute confiar a diversos arquitetos a

reconstruccedilatildeo das residecircncias em uma mesma ilhota E por ocashy

siatildeo de uma reunificaccedilatildeo eventual justificar a conservaccedilatildeo da arquitetura staliniana

Sua traduccedilatildeo americana ocorreu em 1986 publicada prishy

meiramente na revista interdisciplinar de ComeU Diacriticis depois na revista de arquitetura LOtu9 Inaugurava-se uma carshy

reira nova para a interpretaccedilatildeo qualitativa dos espaccedilos outros

Natildeo se compreenderia esta carreira sem a simultaneidade da trashy

duccedilatildeo dos volumes II e III de Histoacuteria da sexualidaJe5deg a partir

dos quais Foucault torna-se uma referecircncia para aquilo que os americanos denominam poliacuteticas da identidade Movimentos

feministas movimento gay grupos eacutetnicos constituem a nova

47 Infurmaccedilaacuteo obtida com e1cs e concedida por Franccediloise Jolr 48 J-r Kleihues Agrave propos de I viUe europeacuteenne entreVista com M Bourdeau AMeS outubroI984

pp 95-99 49 M Foucault Ofother spaces Diacritieacuteiacutes 16 n I 1986 pp 22-27 e Lotushmnational 1986 50 M Foucaulr lUage tUacutes pIAis Paris Gallimaa 1984 uacute Souci Je soi Paris Gtlimn 1984 trad

1ht Use ofPlrasU Harmondsworth Penguin 1985 1ht Ca Dfthe sg Harmondsworth Penguin 1986 (Trad bras de M T da C Albuquerque O USQ dos p e O CuiJmJo Je si Rio de Janeiro Graal 1984 e 1985 - N da T)

POSFAacuteCIO

POSFAacuteCIO

54 rede de inscriccedilatildeo e a nova avaliaccedilatildeo das heterotopias A histoacuteshy

ria dos modos de subjetivaccedilatildeo realizada por Foucault atravessa

textos como lhe spaces that diferences make do urbanista Ed

Soja51 Gendered Spaces da feminista Daphne Spain52 lhe New Cultural Politics ofDijforence de Cornel West53 ou Geographical lmaginations do geoacutegrafo Derek Gregory54

Lugar de emergecircncia da heterotopia a anaacutelise literaacuteria dela

se apropria com Brian McHale Michel de Certeau5S a anaacutelise

fiacutelmica com Giuliana Bruno56bull Foucault torna-se passagem obrishy

gatoacuteria para toda anaacutelise do espaccedilo constata Soja

O mesmo se passa com as artes plaacutesticas Apresentando as

obras do artista plaacutestico cubano Felix Gonzalez-Torres Nancy

Spector descreve uma experiecircncia de ambiente heterotoacutepico

realizada em Manhattan57bull Em vinte e quatro paineacuteis de anuacutencio

publicitaacuterio das instalaccedilotildees urbanas de Manhattan Gonzalezshy

-Torres afixou o contraespaccedilo constituiacutedo por imensa foto em preto

e branco da intimidade de uma cama exposta Desnudamento

absoluto de um puro roccedilar de lenccediloacuteis leve traccedilado de duas cabeshy

ccedilas no vaacuteo entre os dois travesseiros onde cada qual pode proshy

jetar ou a interrupccedilatildeo do sono ou o amor consumado ou mais

51 Ed Soja The spa= that dlfenna makc ln M Kelm e S PIlbullbull PI4u iI1III lhe Politics olidmtiacutety NQVlI Iorque Roudedge 1993 pp 183middot205 52 D Spain Glt1JIUacutertaacute Spam Chapei Ht11 Unlverlty ofCarolIna Pras 1992 53 CWest 1M Ntw Cultural Politict oIDifimut ot h 1M Dilm_ ofrJu BIa lnttlkcttuuacute Ferguson 1994 54 D Gregory Gtographicalmaginatiacuteons citado ln Ed Soj hitrlspace Carobridge Bladltwell 1994 55 B McHale Post Moaacuteernist Fietion Nova Iorque Routledge 1988~ M de Certeau HettrologitS Discouffl 01tlu Otbtr Manchester Manchester University Presa 1986 56 G Bruno Bodlly ArchirecturesAltrtmblag 19 dezembro1992 57 N Spector Ptilt GonzakzmiddotTorres The Solamon R Guggenheim Museum Nova Iorque 1995

radicalmente a advertecircncia do artista uma decisatildeo de 1986 da

Corte suprema autoriza doravante a justiccedila em todo Estado em

que a sodomia eacute ainda um crime a persegui-la mesmo quando consentida entre adultos em suma a intimidade do espaccedilo prishy

vado da cama acaba de entrar no espaccedilo puacuteblico Esta articulashy

ccedilatildeo entre o puacuteblico e o privado poderia criar segundo Spector uma histoacuteria mais silenciosa a marca vazia do companheiro do

artista morto de aids

Maravilhosa intuiccedilatildeo no comeccedilo da confer~ncia radiofocircnica

de Foucault em 1966 daquela passagem inexistente na conferecircnshy

cia para os arquitetos em 1967 em que o fil6sofo evocava como

primeira figura da heterotopia a cama dos pais que as crianccedilas

gostam de invadir com um prazer de transgressatildeo e de sonho das origens Naacuteo poderiacuteamos concluir que aqui a longa seacuterie de

rein~riccedilotildees do texto em muacuteltiplas redes e estrateacutegias que a longa

seacuterie de transformaccedilotildees da figura social de seu autor encontram

neste instante de sua trajetoacuteria a mais completa forma de recepshyccedilatilde0 58 Foucault natildeo declarara tantas vezes que almejava menos

leitores que utilizadores59

58 Ed Soja Heterotopies remembrance Df other spaccs in me citadd LAraquo Strattgies a jIJurna 01 tbeory culturt anaacute poines 3 1990 pp 1middot39 Post metropolis Critiacutecal Stuties 01 Ctti naacute Rtglgtnt Londle$ Blackwdl 2000 59 Em 200I uma associaccedilatildeo cultural italiana denominada EttrotpirJ publicou uma releitura de textos de Foucaulr sobre o espaccedilo sob o titulo Spnialtri

POSFAacuteCIO POSFAacuteCIO

42 43 lareira a um aquecedor domeacutestico outro um medicamento dos

exeacutercitos napoleocircnicos a um complemento alimentar industrial

o tablete de chocolate Natildeo teriam eles articulado da maneira

mais restrita a racionalizaccedilatildeo do consumo com a da ocupaccedilatildeo do

espaccedilo A racionalizaccedilatildeo da cidade patronal como a fragmentaccedilatildeo

do espaccedilo urbano o homog~neo como o heterogecircneo conduziam

a um mesmo crivo de leitura infalsificaacutevel a espacializaccedilatildeo do

capital O arquiteto tornava-se o teacutecnico passivo da operacionashy

lizaccedilatildeo das estrateacutegias e das normas do capital

Mostra-se uacutetil falar indiferentemente das utopias preacute-urshy

banistas das cidades operaacuterias de Haussmann da Bauhaus do

funcionalismo dos Shakers dos grandes conjuntos das cidades

novas por toda parte afirma-se perigosamente uma racionalishy

zaccedilatildeo do espaccedilo inerente agrave extensatildeo universal do capital uma

propensatildeo de sua ordem de troca ou da ordem simplesmente podia-se ler na revista Traverse19bull

Genealogia dos equipamento coletivol Eacute a partir de 1972 que Foucault desenvolve pesquishy

sas em equipe sobre a histoacuteria dos equipamentos coletivos

Primeiramente com o Centro de estudos pesquisas eformaccedilatildeo instishytucional- ou Cerfi - animado pelo psiquiatra Feacutelix Guattari que

conclui entatildeo com Gilles Deleuze a redaccedilatildeo do seu Anti-Eacutediptldeg

19 B Eizykman Urbanismo Travme n 4 1976 citado por A Thalamy in PolltilJues tk lhabitat Corda

1977 p 14 (o nome Shaker designa um movimento de grupos religiosos fundado na Inglaterra no seacuteculo XVIII que - agrave semelhanccedila dos Amish- vivem em suas proacuteprias comunidades _ N da T) 20 G Deleuze F Guattari LAnti-CEdipe Paris Minuit 1972 (Trad bras de L B L Orlandi O Antishy-Eacutedipo Satildeo Paulo 34 2010 - N da T)

( rliacuteldo em 1965 com pesquisadores em ciecircncias sociais dissidenshy

trN do Partido Comunista Francecircs (PCF) o Cerfi apoacutes 1970 I()( em questatildeo sua cultura marxista submetendo-a a uma dupla

Inova 1) a do procedimento genealoacutegico praticado em Histoacuteria Ioucura e O Nascimento da cliacutenica 2) a de uma clarificaccedilatildeo

IIlN relaccedilotildees libidinais que todo pesquisador manteacutem com o

uhjeto de sua pesquisa (a ambivalecircncia da reflexatildeo urbaniacutestica

frente agrave racionalidade capitalista natildeo escapava a ningueacutem) e que

UIe pesquisadores mantecircm entre si como grupo social hierarquishy

uto e sexuado

O relato da realizaccedilatildeo dessa dupla prova publicada na revista

do Cerfi21 eacute provavelmente um dos mais interessantes diaacuterios de

hordo da travessia ideoloacutegica daqueles anos Ali se assiste como

lue em um laboratoacuterio agrave desagregaccedilatildeo da anaacutelise marxista e

~ emergecircncia daquilo que logo seraacute batizado de atitude poacutesshy

-moderna O empreendimento eacute descrito por seus autores como

uma estranha maacutequina feita de peccedilas e pedaccedilos emprestados do

Ilenealogista Foucault surrupiadas do depoacutesito do cientista biceacuteshy

falo Deleuze-Guattari

O genealogista Foucault eacute de fato uma nova imagem social

do filoacutesofo o procedimento genealoacutegico soacute estaraacute francamente

c()nfirmado a partir de seu ensino no Colge de France inaugurado

em dezembro de 1970 Ademais a partir de 1971 juntamente

com Deleuze ele anima um movimento militante o Grupo de

JI (eacuteneacutealogie du capital- I Les eacutequipements du pouvoir Recherches n 13 dezembro1973 Um s6 bullbullbullmplo de uma retomada das hettrotopias por H umre a propoacutesito de La Pensuuml marxiste de la vilte IIrlbullbull Casterman 1972

POSFAacuteCJO POSFAacuteCIO

44 45 informarao sobre as prisoes (GIP) enraizado na extrema esquerda

Foucault disc ute com 0 Cedi que trabalha sobre a cidade22

a abordagem genealogica dos equipamemos coletivos e a poe

em pritica sobretudo no seu seminario do College de France 0

seminario e consagrado aemergencia do medico como perito

no seculo XIX atraves da pericla psiquiatrica em medicina legal

por urn lado e por outro como engenheiro que comribui para

a definicao das normas e formas da arquitetura hospitalar Urn

arquiteto Bruno Fortier responsavel pelo Centro de estudos epesshy

quisas em arquitetura (Cera) participa doravame dos trabalhos

de pesquisa desse seminario

Se a expressao equipamemo coletivo nao figura nos textos

do seculo XVIII a maquina de curar definida pelo medico

Tenon como ideal do hospital moderno neles tern lugar A

arquitetura hospitalar escreve Tenon2 nao pode mais constishy

tuir-se de rotina c tateamemos devendo responder a multiplas

prcocupacentes estancar 0 contagio pela distribuicao das salas e

dns leiros a circuhlltao do ar tavorecer a diss()cia~ao dos doemes

c das d()cn~as a vigilancia dos dotntcs e do pessoal manifestar

a hierarquia do olhar medico ter em coma as necessidades da

populacao 0 que serve para curar nao e a regularidade do trashy

cado mas a justeza da arquitetura 0 modelo deve ser perfeito

- nao se podendo mais em nada muda-Io - acabado repetivel

Pela primeira vez em 1788 escreve Bruno Fortier propoe-se

22 Ruhhl1 n 13 op cir pp 27middot31 (Dits ~I fcrit n 129 n 130) 23 J-R Tenon M moirs sur It~middot api fl llX tie P1ris Paris 1788

aos arquitetos a imitacao como urn dever24 as tipologias norshy

mativas seguem os exemplos oferecidos pela historia A justeza

da arquitetura nasce do tratamemo de uma rede de questoes disshy

timas - c1imaticas demogdficas estatisticas higienicas medicas

disciplinares - que tern cada qual seu lugar de emergencia sua

racionalidade seus promotores que respondcm a uma multiplishy

cidade de taticas - tecnicas de vigilancia de producao de saber

de efetuacao de poderes de medica l iza~lo c de saude publica

Elas podem ser descritas como segmemos analogos Oll repetidos

ao infinito de urn so texto de um escrevcnrc unico Illitico e

unitario 0 capital

Certamente esses novos edificios incorporam dticas de

vigil an cia encomradas fora sob outras formas arquiteturais shy

colegios casernas - taticas e formas que puderam preceder e

sustemar a emergencia da organizacao capitalista do trabalho e

que poderao proliferar para alem dela por exemplo nos vast os

arquipelagos do socialismo siberiano Eque fundamemalmeme

nao estamos Iidando nem com formas arquiteturais nem com

modos de producao mas com tecnologias de poder Foi na busca

destas arquiteturas maquinas tao ajustadas aos seus objetishy

vos que Foucault veio a redescobrir 0 que logo tornou-se parashy

digma de sua obra 0 panoptico de Bcntham2 do qual Poyet26

24 M Fo ucault D Barrer-Kriegel A Thahmy F Btgllin B tllrlicr L-IVIi(Jilln II X4lrir (m4JI l)rigill ~1

de OJOpilil modnrl~) Paris lnsri ru[ de J cnvi ronncm cnt 1976 rccd Hruu lOl) Iirc M~rda8Q J~79

25 J Bcmham Le Panoptiqui p rcccdido de Loeil du pouI-vir cnrrcmiddotvisru Om Michel Fou~ult P~ ri s

Bdfond 1977 (faC-ltimik da cdjao franccsa de 179 1) (Trod bras d bullbullm rvi 0 Ih do poder por A L de S OU-1 in Microfli ra tQ pokr op Ci l pp209-227 - N d 1)

26 B Poyet M h noiu sur a niassili d( Iransera lt u collsrlli r tIf-fj rd-lhrm w ill dull pm)lmiddotr It

traminlioll k eel hopil4l Paris 1785

IOSFACIO pOSFAeiO

46

47 desenhara uma interpretaccedilatildeo para a reconstruccedilatildeo da Santa Casa de Misericoacuterdia Os trabalhos do seminaacuterio do College de Frante sobre a arquitetura hospitalar no final do seacuteculo XVIII recebeshy

ram duas ediccedilotildees uma em Paris em 1976 outra em Bruxelas em 1979 Les Machints agravegutrir27

O segundo estudo coletivo dirigido por Foucault teve por objeto o habitatentre 1800 e 185018 Foi conduzido por Franccedilois

Beacuteguin hoje historiador da paisagem e da arquitetura colonial29bull

Ametodologia ~ a mesma que a precedente no lugar de partir de

uma histoacuteria das formas da habitaccedilAo ou da cidade os pesquisashydores inventariaram as pr~tlcllll discursivas que circunscreveram e

codificaram o habitat como obJero de intervenccedilatildeo administrativa e politica entre 1800 e 1850 - a doenccedila o emprego a domestishycaccedilatildeo de equipamentos como a ~gua a iluminaccedilatildeo a ventilaccedilatildeo

e o desenvolvimento de uma crescente jurisdiccedilatildeo sobre o espaccedilo

puacuteblico em cuja intersecccedillo se connroacutei o habitat Eacute preciso prishy

meiramente desfazer-se da pregnAncla da casa desmineralizaacute-la desconstruiacute-la escreve F B6guln

Poder saber es~

Eacute a partir de vtgiar t punir (1975) e de sua raacutepida circulaccedilatildeo Iacutemernacional- traduzido rapidamente em cerca de vinte liacutenguas - que as anaacutelises foucaultianas do espaccedilo recebem uma visibilishy

dade nova como lugar de uma dupla articulaccedilio do poder sobre

27 M fucault B Barrer-Kriegd A Thalamy F Beacutepdn B fIorllr ln MtIthllltt 4 gubir op cit 28 ]-M A1Haume B Barret-Kriegcl F Seguin D Ranclere A lhalamy PDitifUtt tk lhabitat 18()() 1850 Paris Corda 1977 (estudo realizado sob a direccedilAo de M Poucaull)

29 De F Beacuteguin citemos principalmente ArabIacuteSlUlett dko illChlmhI4 ubitill Afoque du Norri 1830-1850 Paris Dunod 1983 e Paysagtt Paris Flammarlon 19

o corpo do indiviacuteduo e do saber ao poder Seguem-se numerosos estudos sobre a arquitetura da vigilacircncia publicados na Itaacutelia e na Gratilde-Bretanha principalmente3deg De modo mais geral socioacuteshy

logos e planificadores urbanos comeccedilam a referir-se a Foucault

A Leaman escreveu em Environment and Plannintl que a obra de Foucault eacute doravante importante para os urbanistas planifishy

cadores e arquitetos por sua anaacutelise das qualidades normativas

das estruturas e das instituiccedilotildees Sharon Zukin considera que a cidade estaacute doravante incluiacuteda nas anaacutelises de uma economia

do poder segundo o meacutetodo desenvolvido em vtgiar e punir32bull

Esse eacute o contexto em que reaparecem as heterotopias na escola de arquitetura de Veneza em dezembro de 1977 prishymeiro estudo sobre seu uso possiacutevel em uma histoacuteria dos espashyccedilos II dispositivo Foucault 33 que reuacutene ensaios de M Cacciari

F RelIa M Tafuri G Teyssot A capa como a de Machines agrave gueacuterir reproduz um plano de arquitetura panoacuteptico para um

hospital inglecircs Os autores se referem essencialmente a Vtgiar e punir e exceto T eyssot a uma reuniatildeo de textos de Foucault sobre o poder publicado neste mesmo ano pela editora Einaudi

Microfisica deipotert4 a incidecircncia poliacutetica desta uacuteltima coletacircnea

lO Ver especialmente HinmJmd primeiro ano n 3 maio-junho1978 n triliacutengue intitulado Segrtgazione corpo sociak consagrado agraves atquitetuta de vigilanda jl A Leaman in Environmmtand Planning n 111979 pp 1079-1082 H Sh Zukin Adecade cfilie new urban sociology 1heoryand Society 91980 pp 575-601 H M Cacdari F Relia M Tafuri G Teyssor II dispositillO Foucaut Veneza Cluva 1977 4 M Iltlucaullt MimfoIacuteCIJ rktpoYrt inkrUtntipoitici editado por Iltlnrana e Pasquino Turin Einudi 1977 retomado e completado pelo movimento alternativo berlinense Dispositive tkr Macht Betlin Merve 1978 (A reuniaacuteo d textos que compotildecm a ediccedilatildeo italiana a=sdda de oUtros textos reltebeu traduccedilaacuteo brasileira de R Machado e OUrtOS Micrufisica do potkr Rio de Janeiro Graal 1979 Foi publicada tambeacutem uma ediccedilaacuteo espanhola com algumas alteraccedilotildees dos tcxtos sdeclonados trad por J Varela e F A1varez-UrIacutell Madri La Piquem 1978 - N da T)

POSFAacuteCIO

POSFAclO

48 49 foi imediata logo reforccedilada pela traduccedilatildeo de Rhizome de Deleuze

e GuattarP livros que se tornaram referecircncias teoacuterico-poliacutetishy

cas do movimento chamado Autonomie (do poliacutetico subenshytenda-se) que incomodava a esquerda do PCI engajado na

estrateacutegia do compromisso histoacuterico ~ esta incidecircncia poliacutetica

que os italianos batizaram de leffeto Foucault36 que eacute o alvo de 1 dispositivo Poucault

A introduccedilatildeo agrave coletAnea escrita por F Rella eacute perfeitamente expliacutecita desde Jogo travare as anaacutelises foucaultianas da pluralishy

dade das relaccedilotildees de poder em uma metafisica do poder de um poder abstrato imaterial supostamente em toda parte e portanto

politicamente em parte alguma liA uacutenica histoacuteria dos poderes eacute

uma histoacuteria dos espaccedilos atraveacutes dos quais o poder se mostra E

apoiando-se no artigo de Teyssot como uacutenica fonte de conhecishy

mento das heterotopias prossegue O nlo lugar do poder situashy

-se no centro de uma infinidade de localizaccedilotildees heterotoacutepicas

A heterotopia torna-se entatildeo um dado central em Foucault

e a hetero topologia a fenomenologia da dlspersio anaacuterquica do

poder A conclusatildeo desta interpretaccedilatildeo eacute previsiacutevel Natildeo se comshy

bate mais o poder doravante investidp em uma miriacuteade de locashylizaccedilotildees [ou dispositivos] mas a tirania das teorias globalizantesraquo

Teorias que Rella explicita precisando em nota leffeto Marx37 Na verdade Teyssot38 natildeo comenta a confer~ncia de 1967

35 G Deleuu F Guattari Rhizo1M Paris Minuit 1976 Rizoma ParrnalL~uea Pradche 1977 36 Em italiano no original (N da T)

37 Em italiano no original (N da T)

38middotG Teyssot Eterotopia e storiadegli spazi II displJlitirm FOllcault pp 83-86 e HelerolOpies and the historyofspaccs Arcbiacutetlctureandurbaniacutesm 121 1980 pp 79-100

mas o uso taxinocircmico do prefaacutecio de As Palavras eas coisas aplishy

cando-o a um projeto de hospital do seacuteculo XVIII descrito pelo

historiador J-c Perrot39bull Seu plano distribui como uma grade

em oiro construccedilotildees distintas oito classes de pensionaacuterios tatildeo

heterogecircneos quanto as categorias de animais da enciclopeacutedia de

Borges a) os prisioneiros a pedido de suas famiacutelias b) os loucos

os prisioneiros por edito real c) as crianccedilas pobres e legiacutetimas

dedois a nove anos os idosos os mendigos as prostitutas acoshy

metidas de doenccedilas veneacutereas d) as crianccedilas bastardas de mais

de nove anos etc Eacute a incongruecircncia do conteuacutedo que designa

a arquitetura como heterotopia e naacuteo o jogo de oposiccedilatildeo ou de contestaccedilaacuteo qualitativa ou simboacutelica dos outros espaccedilos que este

uacuteltimo institui por sua funccedilaacuteo sua forma suas rupturas

O uso da heteroropia feito por T eyssot de modo algum transshy

creve a inscriccedilaacuteo profunda da espacialidade na ttalidade da

existecircncia humana a heterogeneidade e a descontinuidade dos

tempos vividos os limiares da vida as crises bioloacutegicas (iniciashy

ccedilatildeo puberdade defloraccedilatildeo) Eacuteros e Taacutenatos As espacializaccedilotildees

da subjetividade sob todas as suas formas da casa de toleracircncia agrave

sauna e natildeo somente as grandes funccedilotildees da carta de Atenas receshy

beram em todas as culturas uma inscriccedilatildeo especiacutefica no espaccedilo

em espaccedilos que entretecircm entre si natildeo uma relaccedilatildeo de divisatildeo como interioridadeexterioridade margemcentro puacuteblicol prishy

vado mas um jogo formal de diferenciaccedilatildeo e de reverberaccedilatildeo

em suma no registro da comunicaccedilatildeo Tanto Relia que faz do

W J-C Perrot Genes du vilk mo Cam ali XVII sdele Paris Mouton 1975

POSFAacuteCIO

POSgtAClO

51

50 espaccedilo foucaultiano o receptaacuteculo neutro e contiacutenuo das hetero- topias do poder - concepccedilatildeo globalizante - quanto T eyssot que

faz da heterotopia a articulaccedilatildeo arquitetural das incongruecircncias

do mundo - concepccedilatildeo loealista - carecem ambos da terceira dimensatildeo aquela propriedade do espaccedilo de se remeter a si mesmo

na espessura de um jogo formal e simboacutelico de contestaccedilatildeo e de

reverberaccedilatildeo em uma fragmentaccedilatildeo que natildeo eacute segmentaccedilatildeo este Thirding que E Soja assim teoriza no Instituto de urbanismo de LosAngtlts na UeLA the Thirding as othering40

Essa primeira recepccedilatildeo das heterotopias pela escola de arquitetura de Veneza representada por II dispositivo Foucault mostra a ambiguidade da noccedilatildeo de recepccedilatildeo natildeo se trata de uma compreensatildeo exata nem de uma real instrumentalizaccedilatildeo mas de uma reimplantaccedillo poUss~mica e poMmica em uma rede de

debates poJJticos por um lado e de um questionamento episteshymoloacutegico por outro

Em julho de 1976 Foucault relembra pela primeira vez sua confercncia de 1967 em uma entrevista sobre o panoacuteptico de

Bentham publicada em 1977 mencionada aliaacutes por Teyssot Seria necessaacuterio escrever toda uma histoacuteria dos espaccedilos que fosse

ao mesmo tempo uma histoacuteria dos poderes desde as grandes estrateacutegias da geopoliacutetica ateacute as pequenas taacuteticas do habitat da arquitetura institucional da sala de aula ou da organizaccedilatildeo hosshy

pitalar passando pelas implantaccedilotildees econOacutemico-poliacuteticas Eacute surshypreendente ver quanto o problema dos espaccedilos levou tanto tempo

40 Bd Soja 7huacutelspact Journeys to Los Angks a11( Othtr lUa11( ltilM Ptampts Cambridge (Mass)Blackdl 1996

para aparecer como um problema histoacuterico-poliacutetico Lembro-me que haacute cerca de dez anos falei destes problemas de uma poliacutetica

dos espaccedilos e de me terem respondido que era bastante readoshy

naacuterio insistir tanto sobre o espaccedilo e que o tempo o projeto era a vida e o progresso 41

Uma histoacuteria foucaultiana dos espaccedilos mais precisamente

da espacializaccedilatildeo do poder mais precisamente ainda da inscriccedilatildeo

no espaccedilo colonial- heterot6pico - desse regime de poder partishycular que se desenvolve a partir do seacuteculo XVIII e que Foucault designa de biopoder42 a partir do qual os problemas de espaccedilo tornam-se politicamente diferentes eacute o projeto que no comeccedilo dos anos oitenta empreendem o antropoacutelogo Paul Rabinow43 e a historiadora do habitat americano Gwendolyn Wright44bull Nem

eles nem Franccedilois Beacuteguin conheciam a conferecircncia de 1967

Em uma entrevista que Rabinow e Wright fizeram com

Foucault em 198245 publicada em Skyline46 revista americana de

arquitetura o filoacutesofo lembra suas obsessotildees pelo espaccedilo e como

atraveacutes destas obsessotildees cheguei ao que eacute fundamental para mim as relaccedilotildees que satildeo possiacuteveis entre o poder e o saber

41 MFoucault J Bentham Lotil pouvoir in L Panoptiacuteque Opcil (Veja-se em traduccedilaacuteo brasileira de A L de SOU7 O olho do poder in Microfiacutesica b podtr op cit- N da T) 42 M Foucaull La Volon tk savoir Paris Gallimard 1976 cap V Droil de mort et pouvoir SUl I vie (Trad bras de M T da C Albuquerque e J A Guilhon Albuquerque A Vontade tk saber Rio de Janeiro Graal 1977 - N d T) 43 P Rabinow Biopower in lhe Frrnch Coloits conferecircncia interdisciplinar sobr Foucault Knowledge Power HislOry Los Angeles 29-31 de oUlubrol1981 Frrneh Modn Norms and Forms of th SfJCial Enviacuteronmmt Cambridge (M) MIT Press 1989 44 G Wright 7he Poliacutetics ofDltsigns in the Frrnch Colonial Urbanism Chicago University Preso 1991 45F B~n Arabisanm op cil 46 M Foucaull Space knowledge power entrerien avec P Rabinow Skyline marccedilo11982 pp 16-20 retomada em Dits tt Eacutecrits t N n 340 pp 270-285

POSFAacuteCIO

POSFAacuteCIO

53

52

A arquitetUra e o urbanismo naacuteo constituem diz ele um campo isoshylaacutevel Misturam-se com muacuteltiplas praacuteticas e discursos mas o espaccedilo

eacute o lugar privilegiado de compreensatildeo de como o poder opera

Inversamente ele bane da praacutetica do arquiteto toda esperanccedila

utoacutepica Os homens sonharam com maacutequinas libertadoras Mas por definiccedilatildeo natildeo existem maacutequinas de liberdade Jamais

a estrutura das coisas tem competecircncia para garantir a liberdade Nada eacute funcionalmente libertador A liberdade eacute o que se deve exercer a garantia da liberdade eacute a liberdade

Mestre doravante de um discurso poliacutetico e epistemoloacutegico sobre o espaccedilo Foucault deixa entatildeo ressurgir seu antigo conceito de heterotopia Diga-se entre parecircnteses lembro-me de ter sido

convidado por um grupo de arquitetos em 1966 para realizar um estudo do espaccediloi tratava-se do que na eacutepoca chamei de heterotopias espaccedilos singulares que encontramos em alguns

espaccedilos sociais cujas funccedilOes satildeo diferentes das dos outros ou tershy

minantemente opostas Os arquitetos trabalhavam neste projeto e no final do estudo algueacutem tomou a palavra _ um psicoacutelogo

sanreano - para me bombardear que o espaccedilo era reacionaacuterio e capitalista enquanto a histoacuteria e o devir eram revolucionaacuterios

Agravequela eacutepoca este discurso absurdo de modo algum era inabitual Hoje em dia qualquer um se dobraria de rir ouvindo aquilo

Natildeo haacute como natildeo se impressionar com esta longa anamnese em dois tempos primeiro em 1976 relativamente agrave objeccedilatildeo poliacuteshy

tica feita em 1967 e em 1982 enfim relativamente ao proacuteprio conceito de heterotopia em 1984 Foucault podia acolher favoshy

ravelmente a reutilizaccedilatildeo de sua conferecircncia pelo IBA de Berlim

Os dois organizadores da exposiccedilatildeo o alematildeo Johannes Gachnang e o italiano Marco de Michelis conheciam esse texto

em sua publicaccedilatildeo de 1968 em Architteturri7bull Ele sintonizava

estranhamente com a estrateacutegia do IBA tal como foi exposta por

um de seus dois responsaacuteveis J-P Kleihues48 executar a ideia

de uma cidade por fragmentos falar de arquitetur~ urbana sem traccedilar primeiramente um plano global de urbanismo respeitar

a variedade histoacuterica e topograacutefica berlinense pensar a composhysiccedilatildeo da cidade por ilhotas e ateacute confiar a diversos arquitetos a

reconstruccedilatildeo das residecircncias em uma mesma ilhota E por ocashy

siatildeo de uma reunificaccedilatildeo eventual justificar a conservaccedilatildeo da arquitetura staliniana

Sua traduccedilatildeo americana ocorreu em 1986 publicada prishy

meiramente na revista interdisciplinar de ComeU Diacriticis depois na revista de arquitetura LOtu9 Inaugurava-se uma carshy

reira nova para a interpretaccedilatildeo qualitativa dos espaccedilos outros

Natildeo se compreenderia esta carreira sem a simultaneidade da trashy

duccedilatildeo dos volumes II e III de Histoacuteria da sexualidaJe5deg a partir

dos quais Foucault torna-se uma referecircncia para aquilo que os americanos denominam poliacuteticas da identidade Movimentos

feministas movimento gay grupos eacutetnicos constituem a nova

47 Infurmaccedilaacuteo obtida com e1cs e concedida por Franccediloise Jolr 48 J-r Kleihues Agrave propos de I viUe europeacuteenne entreVista com M Bourdeau AMeS outubroI984

pp 95-99 49 M Foucault Ofother spaces Diacritieacuteiacutes 16 n I 1986 pp 22-27 e Lotushmnational 1986 50 M Foucaulr lUage tUacutes pIAis Paris Gallimaa 1984 uacute Souci Je soi Paris Gtlimn 1984 trad

1ht Use ofPlrasU Harmondsworth Penguin 1985 1ht Ca Dfthe sg Harmondsworth Penguin 1986 (Trad bras de M T da C Albuquerque O USQ dos p e O CuiJmJo Je si Rio de Janeiro Graal 1984 e 1985 - N da T)

POSFAacuteCIO

POSFAacuteCIO

54 rede de inscriccedilatildeo e a nova avaliaccedilatildeo das heterotopias A histoacuteshy

ria dos modos de subjetivaccedilatildeo realizada por Foucault atravessa

textos como lhe spaces that diferences make do urbanista Ed

Soja51 Gendered Spaces da feminista Daphne Spain52 lhe New Cultural Politics ofDijforence de Cornel West53 ou Geographical lmaginations do geoacutegrafo Derek Gregory54

Lugar de emergecircncia da heterotopia a anaacutelise literaacuteria dela

se apropria com Brian McHale Michel de Certeau5S a anaacutelise

fiacutelmica com Giuliana Bruno56bull Foucault torna-se passagem obrishy

gatoacuteria para toda anaacutelise do espaccedilo constata Soja

O mesmo se passa com as artes plaacutesticas Apresentando as

obras do artista plaacutestico cubano Felix Gonzalez-Torres Nancy

Spector descreve uma experiecircncia de ambiente heterotoacutepico

realizada em Manhattan57bull Em vinte e quatro paineacuteis de anuacutencio

publicitaacuterio das instalaccedilotildees urbanas de Manhattan Gonzalezshy

-Torres afixou o contraespaccedilo constituiacutedo por imensa foto em preto

e branco da intimidade de uma cama exposta Desnudamento

absoluto de um puro roccedilar de lenccediloacuteis leve traccedilado de duas cabeshy

ccedilas no vaacuteo entre os dois travesseiros onde cada qual pode proshy

jetar ou a interrupccedilatildeo do sono ou o amor consumado ou mais

51 Ed Soja The spa= that dlfenna makc ln M Kelm e S PIlbullbull PI4u iI1III lhe Politics olidmtiacutety NQVlI Iorque Roudedge 1993 pp 183middot205 52 D Spain Glt1JIUacutertaacute Spam Chapei Ht11 Unlverlty ofCarolIna Pras 1992 53 CWest 1M Ntw Cultural Politict oIDifimut ot h 1M Dilm_ ofrJu BIa lnttlkcttuuacute Ferguson 1994 54 D Gregory Gtographicalmaginatiacuteons citado ln Ed Soj hitrlspace Carobridge Bladltwell 1994 55 B McHale Post Moaacuteernist Fietion Nova Iorque Routledge 1988~ M de Certeau HettrologitS Discouffl 01tlu Otbtr Manchester Manchester University Presa 1986 56 G Bruno Bodlly ArchirecturesAltrtmblag 19 dezembro1992 57 N Spector Ptilt GonzakzmiddotTorres The Solamon R Guggenheim Museum Nova Iorque 1995

radicalmente a advertecircncia do artista uma decisatildeo de 1986 da

Corte suprema autoriza doravante a justiccedila em todo Estado em

que a sodomia eacute ainda um crime a persegui-la mesmo quando consentida entre adultos em suma a intimidade do espaccedilo prishy

vado da cama acaba de entrar no espaccedilo puacuteblico Esta articulashy

ccedilatildeo entre o puacuteblico e o privado poderia criar segundo Spector uma histoacuteria mais silenciosa a marca vazia do companheiro do

artista morto de aids

Maravilhosa intuiccedilatildeo no comeccedilo da confer~ncia radiofocircnica

de Foucault em 1966 daquela passagem inexistente na conferecircnshy

cia para os arquitetos em 1967 em que o fil6sofo evocava como

primeira figura da heterotopia a cama dos pais que as crianccedilas

gostam de invadir com um prazer de transgressatildeo e de sonho das origens Naacuteo poderiacuteamos concluir que aqui a longa seacuterie de

rein~riccedilotildees do texto em muacuteltiplas redes e estrateacutegias que a longa

seacuterie de transformaccedilotildees da figura social de seu autor encontram

neste instante de sua trajetoacuteria a mais completa forma de recepshyccedilatilde0 58 Foucault natildeo declarara tantas vezes que almejava menos

leitores que utilizadores59

58 Ed Soja Heterotopies remembrance Df other spaccs in me citadd LAraquo Strattgies a jIJurna 01 tbeory culturt anaacute poines 3 1990 pp 1middot39 Post metropolis Critiacutecal Stuties 01 Ctti naacute Rtglgtnt Londle$ Blackwdl 2000 59 Em 200I uma associaccedilatildeo cultural italiana denominada EttrotpirJ publicou uma releitura de textos de Foucaulr sobre o espaccedilo sob o titulo Spnialtri

POSFAacuteCIO POSFAacuteCIO

44 45 informarao sobre as prisoes (GIP) enraizado na extrema esquerda

Foucault disc ute com 0 Cedi que trabalha sobre a cidade22

a abordagem genealogica dos equipamemos coletivos e a poe

em pritica sobretudo no seu seminario do College de France 0

seminario e consagrado aemergencia do medico como perito

no seculo XIX atraves da pericla psiquiatrica em medicina legal

por urn lado e por outro como engenheiro que comribui para

a definicao das normas e formas da arquitetura hospitalar Urn

arquiteto Bruno Fortier responsavel pelo Centro de estudos epesshy

quisas em arquitetura (Cera) participa doravame dos trabalhos

de pesquisa desse seminario

Se a expressao equipamemo coletivo nao figura nos textos

do seculo XVIII a maquina de curar definida pelo medico

Tenon como ideal do hospital moderno neles tern lugar A

arquitetura hospitalar escreve Tenon2 nao pode mais constishy

tuir-se de rotina c tateamemos devendo responder a multiplas

prcocupacentes estancar 0 contagio pela distribuicao das salas e

dns leiros a circuhlltao do ar tavorecer a diss()cia~ao dos doemes

c das d()cn~as a vigilancia dos dotntcs e do pessoal manifestar

a hierarquia do olhar medico ter em coma as necessidades da

populacao 0 que serve para curar nao e a regularidade do trashy

cado mas a justeza da arquitetura 0 modelo deve ser perfeito

- nao se podendo mais em nada muda-Io - acabado repetivel

Pela primeira vez em 1788 escreve Bruno Fortier propoe-se

22 Ruhhl1 n 13 op cir pp 27middot31 (Dits ~I fcrit n 129 n 130) 23 J-R Tenon M moirs sur It~middot api fl llX tie P1ris Paris 1788

aos arquitetos a imitacao como urn dever24 as tipologias norshy

mativas seguem os exemplos oferecidos pela historia A justeza

da arquitetura nasce do tratamemo de uma rede de questoes disshy

timas - c1imaticas demogdficas estatisticas higienicas medicas

disciplinares - que tern cada qual seu lugar de emergencia sua

racionalidade seus promotores que respondcm a uma multiplishy

cidade de taticas - tecnicas de vigilancia de producao de saber

de efetuacao de poderes de medica l iza~lo c de saude publica

Elas podem ser descritas como segmemos analogos Oll repetidos

ao infinito de urn so texto de um escrevcnrc unico Illitico e

unitario 0 capital

Certamente esses novos edificios incorporam dticas de

vigil an cia encomradas fora sob outras formas arquiteturais shy

colegios casernas - taticas e formas que puderam preceder e

sustemar a emergencia da organizacao capitalista do trabalho e

que poderao proliferar para alem dela por exemplo nos vast os

arquipelagos do socialismo siberiano Eque fundamemalmeme

nao estamos Iidando nem com formas arquiteturais nem com

modos de producao mas com tecnologias de poder Foi na busca

destas arquiteturas maquinas tao ajustadas aos seus objetishy

vos que Foucault veio a redescobrir 0 que logo tornou-se parashy

digma de sua obra 0 panoptico de Bcntham2 do qual Poyet26

24 M Fo ucault D Barrer-Kriegel A Thahmy F Btgllin B tllrlicr L-IVIi(Jilln II X4lrir (m4JI l)rigill ~1

de OJOpilil modnrl~) Paris lnsri ru[ de J cnvi ronncm cnt 1976 rccd Hruu lOl) Iirc M~rda8Q J~79

25 J Bcmham Le Panoptiqui p rcccdido de Loeil du pouI-vir cnrrcmiddotvisru Om Michel Fou~ult P~ ri s

Bdfond 1977 (faC-ltimik da cdjao franccsa de 179 1) (Trod bras d bullbullm rvi 0 Ih do poder por A L de S OU-1 in Microfli ra tQ pokr op Ci l pp209-227 - N d 1)

26 B Poyet M h noiu sur a niassili d( Iransera lt u collsrlli r tIf-fj rd-lhrm w ill dull pm)lmiddotr It

traminlioll k eel hopil4l Paris 1785

IOSFACIO pOSFAeiO

46

47 desenhara uma interpretaccedilatildeo para a reconstruccedilatildeo da Santa Casa de Misericoacuterdia Os trabalhos do seminaacuterio do College de Frante sobre a arquitetura hospitalar no final do seacuteculo XVIII recebeshy

ram duas ediccedilotildees uma em Paris em 1976 outra em Bruxelas em 1979 Les Machints agravegutrir27

O segundo estudo coletivo dirigido por Foucault teve por objeto o habitatentre 1800 e 185018 Foi conduzido por Franccedilois

Beacuteguin hoje historiador da paisagem e da arquitetura colonial29bull

Ametodologia ~ a mesma que a precedente no lugar de partir de

uma histoacuteria das formas da habitaccedilAo ou da cidade os pesquisashydores inventariaram as pr~tlcllll discursivas que circunscreveram e

codificaram o habitat como obJero de intervenccedilatildeo administrativa e politica entre 1800 e 1850 - a doenccedila o emprego a domestishycaccedilatildeo de equipamentos como a ~gua a iluminaccedilatildeo a ventilaccedilatildeo

e o desenvolvimento de uma crescente jurisdiccedilatildeo sobre o espaccedilo

puacuteblico em cuja intersecccedillo se connroacutei o habitat Eacute preciso prishy

meiramente desfazer-se da pregnAncla da casa desmineralizaacute-la desconstruiacute-la escreve F B6guln

Poder saber es~

Eacute a partir de vtgiar t punir (1975) e de sua raacutepida circulaccedilatildeo Iacutemernacional- traduzido rapidamente em cerca de vinte liacutenguas - que as anaacutelises foucaultianas do espaccedilo recebem uma visibilishy

dade nova como lugar de uma dupla articulaccedilio do poder sobre

27 M fucault B Barrer-Kriegd A Thalamy F Beacutepdn B fIorllr ln MtIthllltt 4 gubir op cit 28 ]-M A1Haume B Barret-Kriegcl F Seguin D Ranclere A lhalamy PDitifUtt tk lhabitat 18()() 1850 Paris Corda 1977 (estudo realizado sob a direccedilAo de M Poucaull)

29 De F Beacuteguin citemos principalmente ArabIacuteSlUlett dko illChlmhI4 ubitill Afoque du Norri 1830-1850 Paris Dunod 1983 e Paysagtt Paris Flammarlon 19

o corpo do indiviacuteduo e do saber ao poder Seguem-se numerosos estudos sobre a arquitetura da vigilacircncia publicados na Itaacutelia e na Gratilde-Bretanha principalmente3deg De modo mais geral socioacuteshy

logos e planificadores urbanos comeccedilam a referir-se a Foucault

A Leaman escreveu em Environment and Plannintl que a obra de Foucault eacute doravante importante para os urbanistas planifishy

cadores e arquitetos por sua anaacutelise das qualidades normativas

das estruturas e das instituiccedilotildees Sharon Zukin considera que a cidade estaacute doravante incluiacuteda nas anaacutelises de uma economia

do poder segundo o meacutetodo desenvolvido em vtgiar e punir32bull

Esse eacute o contexto em que reaparecem as heterotopias na escola de arquitetura de Veneza em dezembro de 1977 prishymeiro estudo sobre seu uso possiacutevel em uma histoacuteria dos espashyccedilos II dispositivo Foucault 33 que reuacutene ensaios de M Cacciari

F RelIa M Tafuri G Teyssot A capa como a de Machines agrave gueacuterir reproduz um plano de arquitetura panoacuteptico para um

hospital inglecircs Os autores se referem essencialmente a Vtgiar e punir e exceto T eyssot a uma reuniatildeo de textos de Foucault sobre o poder publicado neste mesmo ano pela editora Einaudi

Microfisica deipotert4 a incidecircncia poliacutetica desta uacuteltima coletacircnea

lO Ver especialmente HinmJmd primeiro ano n 3 maio-junho1978 n triliacutengue intitulado Segrtgazione corpo sociak consagrado agraves atquitetuta de vigilanda jl A Leaman in Environmmtand Planning n 111979 pp 1079-1082 H Sh Zukin Adecade cfilie new urban sociology 1heoryand Society 91980 pp 575-601 H M Cacdari F Relia M Tafuri G Teyssor II dispositillO Foucaut Veneza Cluva 1977 4 M Iltlucaullt MimfoIacuteCIJ rktpoYrt inkrUtntipoitici editado por Iltlnrana e Pasquino Turin Einudi 1977 retomado e completado pelo movimento alternativo berlinense Dispositive tkr Macht Betlin Merve 1978 (A reuniaacuteo d textos que compotildecm a ediccedilatildeo italiana a=sdda de oUtros textos reltebeu traduccedilaacuteo brasileira de R Machado e OUrtOS Micrufisica do potkr Rio de Janeiro Graal 1979 Foi publicada tambeacutem uma ediccedilaacuteo espanhola com algumas alteraccedilotildees dos tcxtos sdeclonados trad por J Varela e F A1varez-UrIacutell Madri La Piquem 1978 - N da T)

POSFAacuteCIO

POSFAclO

48 49 foi imediata logo reforccedilada pela traduccedilatildeo de Rhizome de Deleuze

e GuattarP livros que se tornaram referecircncias teoacuterico-poliacutetishy

cas do movimento chamado Autonomie (do poliacutetico subenshytenda-se) que incomodava a esquerda do PCI engajado na

estrateacutegia do compromisso histoacuterico ~ esta incidecircncia poliacutetica

que os italianos batizaram de leffeto Foucault36 que eacute o alvo de 1 dispositivo Poucault

A introduccedilatildeo agrave coletAnea escrita por F Rella eacute perfeitamente expliacutecita desde Jogo travare as anaacutelises foucaultianas da pluralishy

dade das relaccedilotildees de poder em uma metafisica do poder de um poder abstrato imaterial supostamente em toda parte e portanto

politicamente em parte alguma liA uacutenica histoacuteria dos poderes eacute

uma histoacuteria dos espaccedilos atraveacutes dos quais o poder se mostra E

apoiando-se no artigo de Teyssot como uacutenica fonte de conhecishy

mento das heterotopias prossegue O nlo lugar do poder situashy

-se no centro de uma infinidade de localizaccedilotildees heterotoacutepicas

A heterotopia torna-se entatildeo um dado central em Foucault

e a hetero topologia a fenomenologia da dlspersio anaacuterquica do

poder A conclusatildeo desta interpretaccedilatildeo eacute previsiacutevel Natildeo se comshy

bate mais o poder doravante investidp em uma miriacuteade de locashylizaccedilotildees [ou dispositivos] mas a tirania das teorias globalizantesraquo

Teorias que Rella explicita precisando em nota leffeto Marx37 Na verdade Teyssot38 natildeo comenta a confer~ncia de 1967

35 G Deleuu F Guattari Rhizo1M Paris Minuit 1976 Rizoma ParrnalL~uea Pradche 1977 36 Em italiano no original (N da T)

37 Em italiano no original (N da T)

38middotG Teyssot Eterotopia e storiadegli spazi II displJlitirm FOllcault pp 83-86 e HelerolOpies and the historyofspaccs Arcbiacutetlctureandurbaniacutesm 121 1980 pp 79-100

mas o uso taxinocircmico do prefaacutecio de As Palavras eas coisas aplishy

cando-o a um projeto de hospital do seacuteculo XVIII descrito pelo

historiador J-c Perrot39bull Seu plano distribui como uma grade

em oiro construccedilotildees distintas oito classes de pensionaacuterios tatildeo

heterogecircneos quanto as categorias de animais da enciclopeacutedia de

Borges a) os prisioneiros a pedido de suas famiacutelias b) os loucos

os prisioneiros por edito real c) as crianccedilas pobres e legiacutetimas

dedois a nove anos os idosos os mendigos as prostitutas acoshy

metidas de doenccedilas veneacutereas d) as crianccedilas bastardas de mais

de nove anos etc Eacute a incongruecircncia do conteuacutedo que designa

a arquitetura como heterotopia e naacuteo o jogo de oposiccedilatildeo ou de contestaccedilaacuteo qualitativa ou simboacutelica dos outros espaccedilos que este

uacuteltimo institui por sua funccedilaacuteo sua forma suas rupturas

O uso da heteroropia feito por T eyssot de modo algum transshy

creve a inscriccedilaacuteo profunda da espacialidade na ttalidade da

existecircncia humana a heterogeneidade e a descontinuidade dos

tempos vividos os limiares da vida as crises bioloacutegicas (iniciashy

ccedilatildeo puberdade defloraccedilatildeo) Eacuteros e Taacutenatos As espacializaccedilotildees

da subjetividade sob todas as suas formas da casa de toleracircncia agrave

sauna e natildeo somente as grandes funccedilotildees da carta de Atenas receshy

beram em todas as culturas uma inscriccedilatildeo especiacutefica no espaccedilo

em espaccedilos que entretecircm entre si natildeo uma relaccedilatildeo de divisatildeo como interioridadeexterioridade margemcentro puacuteblicol prishy

vado mas um jogo formal de diferenciaccedilatildeo e de reverberaccedilatildeo

em suma no registro da comunicaccedilatildeo Tanto Relia que faz do

W J-C Perrot Genes du vilk mo Cam ali XVII sdele Paris Mouton 1975

POSFAacuteCIO

POSgtAClO

51

50 espaccedilo foucaultiano o receptaacuteculo neutro e contiacutenuo das hetero- topias do poder - concepccedilatildeo globalizante - quanto T eyssot que

faz da heterotopia a articulaccedilatildeo arquitetural das incongruecircncias

do mundo - concepccedilatildeo loealista - carecem ambos da terceira dimensatildeo aquela propriedade do espaccedilo de se remeter a si mesmo

na espessura de um jogo formal e simboacutelico de contestaccedilatildeo e de

reverberaccedilatildeo em uma fragmentaccedilatildeo que natildeo eacute segmentaccedilatildeo este Thirding que E Soja assim teoriza no Instituto de urbanismo de LosAngtlts na UeLA the Thirding as othering40

Essa primeira recepccedilatildeo das heterotopias pela escola de arquitetura de Veneza representada por II dispositivo Foucault mostra a ambiguidade da noccedilatildeo de recepccedilatildeo natildeo se trata de uma compreensatildeo exata nem de uma real instrumentalizaccedilatildeo mas de uma reimplantaccedillo poUss~mica e poMmica em uma rede de

debates poJJticos por um lado e de um questionamento episteshymoloacutegico por outro

Em julho de 1976 Foucault relembra pela primeira vez sua confercncia de 1967 em uma entrevista sobre o panoacuteptico de

Bentham publicada em 1977 mencionada aliaacutes por Teyssot Seria necessaacuterio escrever toda uma histoacuteria dos espaccedilos que fosse

ao mesmo tempo uma histoacuteria dos poderes desde as grandes estrateacutegias da geopoliacutetica ateacute as pequenas taacuteticas do habitat da arquitetura institucional da sala de aula ou da organizaccedilatildeo hosshy

pitalar passando pelas implantaccedilotildees econOacutemico-poliacuteticas Eacute surshypreendente ver quanto o problema dos espaccedilos levou tanto tempo

40 Bd Soja 7huacutelspact Journeys to Los Angks a11( Othtr lUa11( ltilM Ptampts Cambridge (Mass)Blackdl 1996

para aparecer como um problema histoacuterico-poliacutetico Lembro-me que haacute cerca de dez anos falei destes problemas de uma poliacutetica

dos espaccedilos e de me terem respondido que era bastante readoshy

naacuterio insistir tanto sobre o espaccedilo e que o tempo o projeto era a vida e o progresso 41

Uma histoacuteria foucaultiana dos espaccedilos mais precisamente

da espacializaccedilatildeo do poder mais precisamente ainda da inscriccedilatildeo

no espaccedilo colonial- heterot6pico - desse regime de poder partishycular que se desenvolve a partir do seacuteculo XVIII e que Foucault designa de biopoder42 a partir do qual os problemas de espaccedilo tornam-se politicamente diferentes eacute o projeto que no comeccedilo dos anos oitenta empreendem o antropoacutelogo Paul Rabinow43 e a historiadora do habitat americano Gwendolyn Wright44bull Nem

eles nem Franccedilois Beacuteguin conheciam a conferecircncia de 1967

Em uma entrevista que Rabinow e Wright fizeram com

Foucault em 198245 publicada em Skyline46 revista americana de

arquitetura o filoacutesofo lembra suas obsessotildees pelo espaccedilo e como

atraveacutes destas obsessotildees cheguei ao que eacute fundamental para mim as relaccedilotildees que satildeo possiacuteveis entre o poder e o saber

41 MFoucault J Bentham Lotil pouvoir in L Panoptiacuteque Opcil (Veja-se em traduccedilaacuteo brasileira de A L de SOU7 O olho do poder in Microfiacutesica b podtr op cit- N da T) 42 M Foucaull La Volon tk savoir Paris Gallimard 1976 cap V Droil de mort et pouvoir SUl I vie (Trad bras de M T da C Albuquerque e J A Guilhon Albuquerque A Vontade tk saber Rio de Janeiro Graal 1977 - N d T) 43 P Rabinow Biopower in lhe Frrnch Coloits conferecircncia interdisciplinar sobr Foucault Knowledge Power HislOry Los Angeles 29-31 de oUlubrol1981 Frrneh Modn Norms and Forms of th SfJCial Enviacuteronmmt Cambridge (M) MIT Press 1989 44 G Wright 7he Poliacutetics ofDltsigns in the Frrnch Colonial Urbanism Chicago University Preso 1991 45F B~n Arabisanm op cil 46 M Foucaull Space knowledge power entrerien avec P Rabinow Skyline marccedilo11982 pp 16-20 retomada em Dits tt Eacutecrits t N n 340 pp 270-285

POSFAacuteCIO

POSFAacuteCIO

53

52

A arquitetUra e o urbanismo naacuteo constituem diz ele um campo isoshylaacutevel Misturam-se com muacuteltiplas praacuteticas e discursos mas o espaccedilo

eacute o lugar privilegiado de compreensatildeo de como o poder opera

Inversamente ele bane da praacutetica do arquiteto toda esperanccedila

utoacutepica Os homens sonharam com maacutequinas libertadoras Mas por definiccedilatildeo natildeo existem maacutequinas de liberdade Jamais

a estrutura das coisas tem competecircncia para garantir a liberdade Nada eacute funcionalmente libertador A liberdade eacute o que se deve exercer a garantia da liberdade eacute a liberdade

Mestre doravante de um discurso poliacutetico e epistemoloacutegico sobre o espaccedilo Foucault deixa entatildeo ressurgir seu antigo conceito de heterotopia Diga-se entre parecircnteses lembro-me de ter sido

convidado por um grupo de arquitetos em 1966 para realizar um estudo do espaccediloi tratava-se do que na eacutepoca chamei de heterotopias espaccedilos singulares que encontramos em alguns

espaccedilos sociais cujas funccedilOes satildeo diferentes das dos outros ou tershy

minantemente opostas Os arquitetos trabalhavam neste projeto e no final do estudo algueacutem tomou a palavra _ um psicoacutelogo

sanreano - para me bombardear que o espaccedilo era reacionaacuterio e capitalista enquanto a histoacuteria e o devir eram revolucionaacuterios

Agravequela eacutepoca este discurso absurdo de modo algum era inabitual Hoje em dia qualquer um se dobraria de rir ouvindo aquilo

Natildeo haacute como natildeo se impressionar com esta longa anamnese em dois tempos primeiro em 1976 relativamente agrave objeccedilatildeo poliacuteshy

tica feita em 1967 e em 1982 enfim relativamente ao proacuteprio conceito de heterotopia em 1984 Foucault podia acolher favoshy

ravelmente a reutilizaccedilatildeo de sua conferecircncia pelo IBA de Berlim

Os dois organizadores da exposiccedilatildeo o alematildeo Johannes Gachnang e o italiano Marco de Michelis conheciam esse texto

em sua publicaccedilatildeo de 1968 em Architteturri7bull Ele sintonizava

estranhamente com a estrateacutegia do IBA tal como foi exposta por

um de seus dois responsaacuteveis J-P Kleihues48 executar a ideia

de uma cidade por fragmentos falar de arquitetur~ urbana sem traccedilar primeiramente um plano global de urbanismo respeitar

a variedade histoacuterica e topograacutefica berlinense pensar a composhysiccedilatildeo da cidade por ilhotas e ateacute confiar a diversos arquitetos a

reconstruccedilatildeo das residecircncias em uma mesma ilhota E por ocashy

siatildeo de uma reunificaccedilatildeo eventual justificar a conservaccedilatildeo da arquitetura staliniana

Sua traduccedilatildeo americana ocorreu em 1986 publicada prishy

meiramente na revista interdisciplinar de ComeU Diacriticis depois na revista de arquitetura LOtu9 Inaugurava-se uma carshy

reira nova para a interpretaccedilatildeo qualitativa dos espaccedilos outros

Natildeo se compreenderia esta carreira sem a simultaneidade da trashy

duccedilatildeo dos volumes II e III de Histoacuteria da sexualidaJe5deg a partir

dos quais Foucault torna-se uma referecircncia para aquilo que os americanos denominam poliacuteticas da identidade Movimentos

feministas movimento gay grupos eacutetnicos constituem a nova

47 Infurmaccedilaacuteo obtida com e1cs e concedida por Franccediloise Jolr 48 J-r Kleihues Agrave propos de I viUe europeacuteenne entreVista com M Bourdeau AMeS outubroI984

pp 95-99 49 M Foucault Ofother spaces Diacritieacuteiacutes 16 n I 1986 pp 22-27 e Lotushmnational 1986 50 M Foucaulr lUage tUacutes pIAis Paris Gallimaa 1984 uacute Souci Je soi Paris Gtlimn 1984 trad

1ht Use ofPlrasU Harmondsworth Penguin 1985 1ht Ca Dfthe sg Harmondsworth Penguin 1986 (Trad bras de M T da C Albuquerque O USQ dos p e O CuiJmJo Je si Rio de Janeiro Graal 1984 e 1985 - N da T)

POSFAacuteCIO

POSFAacuteCIO

54 rede de inscriccedilatildeo e a nova avaliaccedilatildeo das heterotopias A histoacuteshy

ria dos modos de subjetivaccedilatildeo realizada por Foucault atravessa

textos como lhe spaces that diferences make do urbanista Ed

Soja51 Gendered Spaces da feminista Daphne Spain52 lhe New Cultural Politics ofDijforence de Cornel West53 ou Geographical lmaginations do geoacutegrafo Derek Gregory54

Lugar de emergecircncia da heterotopia a anaacutelise literaacuteria dela

se apropria com Brian McHale Michel de Certeau5S a anaacutelise

fiacutelmica com Giuliana Bruno56bull Foucault torna-se passagem obrishy

gatoacuteria para toda anaacutelise do espaccedilo constata Soja

O mesmo se passa com as artes plaacutesticas Apresentando as

obras do artista plaacutestico cubano Felix Gonzalez-Torres Nancy

Spector descreve uma experiecircncia de ambiente heterotoacutepico

realizada em Manhattan57bull Em vinte e quatro paineacuteis de anuacutencio

publicitaacuterio das instalaccedilotildees urbanas de Manhattan Gonzalezshy

-Torres afixou o contraespaccedilo constituiacutedo por imensa foto em preto

e branco da intimidade de uma cama exposta Desnudamento

absoluto de um puro roccedilar de lenccediloacuteis leve traccedilado de duas cabeshy

ccedilas no vaacuteo entre os dois travesseiros onde cada qual pode proshy

jetar ou a interrupccedilatildeo do sono ou o amor consumado ou mais

51 Ed Soja The spa= that dlfenna makc ln M Kelm e S PIlbullbull PI4u iI1III lhe Politics olidmtiacutety NQVlI Iorque Roudedge 1993 pp 183middot205 52 D Spain Glt1JIUacutertaacute Spam Chapei Ht11 Unlverlty ofCarolIna Pras 1992 53 CWest 1M Ntw Cultural Politict oIDifimut ot h 1M Dilm_ ofrJu BIa lnttlkcttuuacute Ferguson 1994 54 D Gregory Gtographicalmaginatiacuteons citado ln Ed Soj hitrlspace Carobridge Bladltwell 1994 55 B McHale Post Moaacuteernist Fietion Nova Iorque Routledge 1988~ M de Certeau HettrologitS Discouffl 01tlu Otbtr Manchester Manchester University Presa 1986 56 G Bruno Bodlly ArchirecturesAltrtmblag 19 dezembro1992 57 N Spector Ptilt GonzakzmiddotTorres The Solamon R Guggenheim Museum Nova Iorque 1995

radicalmente a advertecircncia do artista uma decisatildeo de 1986 da

Corte suprema autoriza doravante a justiccedila em todo Estado em

que a sodomia eacute ainda um crime a persegui-la mesmo quando consentida entre adultos em suma a intimidade do espaccedilo prishy

vado da cama acaba de entrar no espaccedilo puacuteblico Esta articulashy

ccedilatildeo entre o puacuteblico e o privado poderia criar segundo Spector uma histoacuteria mais silenciosa a marca vazia do companheiro do

artista morto de aids

Maravilhosa intuiccedilatildeo no comeccedilo da confer~ncia radiofocircnica

de Foucault em 1966 daquela passagem inexistente na conferecircnshy

cia para os arquitetos em 1967 em que o fil6sofo evocava como

primeira figura da heterotopia a cama dos pais que as crianccedilas

gostam de invadir com um prazer de transgressatildeo e de sonho das origens Naacuteo poderiacuteamos concluir que aqui a longa seacuterie de

rein~riccedilotildees do texto em muacuteltiplas redes e estrateacutegias que a longa

seacuterie de transformaccedilotildees da figura social de seu autor encontram

neste instante de sua trajetoacuteria a mais completa forma de recepshyccedilatilde0 58 Foucault natildeo declarara tantas vezes que almejava menos

leitores que utilizadores59

58 Ed Soja Heterotopies remembrance Df other spaccs in me citadd LAraquo Strattgies a jIJurna 01 tbeory culturt anaacute poines 3 1990 pp 1middot39 Post metropolis Critiacutecal Stuties 01 Ctti naacute Rtglgtnt Londle$ Blackwdl 2000 59 Em 200I uma associaccedilatildeo cultural italiana denominada EttrotpirJ publicou uma releitura de textos de Foucaulr sobre o espaccedilo sob o titulo Spnialtri

POSFAacuteCIO POSFAacuteCIO

46

47 desenhara uma interpretaccedilatildeo para a reconstruccedilatildeo da Santa Casa de Misericoacuterdia Os trabalhos do seminaacuterio do College de Frante sobre a arquitetura hospitalar no final do seacuteculo XVIII recebeshy

ram duas ediccedilotildees uma em Paris em 1976 outra em Bruxelas em 1979 Les Machints agravegutrir27

O segundo estudo coletivo dirigido por Foucault teve por objeto o habitatentre 1800 e 185018 Foi conduzido por Franccedilois

Beacuteguin hoje historiador da paisagem e da arquitetura colonial29bull

Ametodologia ~ a mesma que a precedente no lugar de partir de

uma histoacuteria das formas da habitaccedilAo ou da cidade os pesquisashydores inventariaram as pr~tlcllll discursivas que circunscreveram e

codificaram o habitat como obJero de intervenccedilatildeo administrativa e politica entre 1800 e 1850 - a doenccedila o emprego a domestishycaccedilatildeo de equipamentos como a ~gua a iluminaccedilatildeo a ventilaccedilatildeo

e o desenvolvimento de uma crescente jurisdiccedilatildeo sobre o espaccedilo

puacuteblico em cuja intersecccedillo se connroacutei o habitat Eacute preciso prishy

meiramente desfazer-se da pregnAncla da casa desmineralizaacute-la desconstruiacute-la escreve F B6guln

Poder saber es~

Eacute a partir de vtgiar t punir (1975) e de sua raacutepida circulaccedilatildeo Iacutemernacional- traduzido rapidamente em cerca de vinte liacutenguas - que as anaacutelises foucaultianas do espaccedilo recebem uma visibilishy

dade nova como lugar de uma dupla articulaccedilio do poder sobre

27 M fucault B Barrer-Kriegd A Thalamy F Beacutepdn B fIorllr ln MtIthllltt 4 gubir op cit 28 ]-M A1Haume B Barret-Kriegcl F Seguin D Ranclere A lhalamy PDitifUtt tk lhabitat 18()() 1850 Paris Corda 1977 (estudo realizado sob a direccedilAo de M Poucaull)

29 De F Beacuteguin citemos principalmente ArabIacuteSlUlett dko illChlmhI4 ubitill Afoque du Norri 1830-1850 Paris Dunod 1983 e Paysagtt Paris Flammarlon 19

o corpo do indiviacuteduo e do saber ao poder Seguem-se numerosos estudos sobre a arquitetura da vigilacircncia publicados na Itaacutelia e na Gratilde-Bretanha principalmente3deg De modo mais geral socioacuteshy

logos e planificadores urbanos comeccedilam a referir-se a Foucault

A Leaman escreveu em Environment and Plannintl que a obra de Foucault eacute doravante importante para os urbanistas planifishy

cadores e arquitetos por sua anaacutelise das qualidades normativas

das estruturas e das instituiccedilotildees Sharon Zukin considera que a cidade estaacute doravante incluiacuteda nas anaacutelises de uma economia

do poder segundo o meacutetodo desenvolvido em vtgiar e punir32bull

Esse eacute o contexto em que reaparecem as heterotopias na escola de arquitetura de Veneza em dezembro de 1977 prishymeiro estudo sobre seu uso possiacutevel em uma histoacuteria dos espashyccedilos II dispositivo Foucault 33 que reuacutene ensaios de M Cacciari

F RelIa M Tafuri G Teyssot A capa como a de Machines agrave gueacuterir reproduz um plano de arquitetura panoacuteptico para um

hospital inglecircs Os autores se referem essencialmente a Vtgiar e punir e exceto T eyssot a uma reuniatildeo de textos de Foucault sobre o poder publicado neste mesmo ano pela editora Einaudi

Microfisica deipotert4 a incidecircncia poliacutetica desta uacuteltima coletacircnea

lO Ver especialmente HinmJmd primeiro ano n 3 maio-junho1978 n triliacutengue intitulado Segrtgazione corpo sociak consagrado agraves atquitetuta de vigilanda jl A Leaman in Environmmtand Planning n 111979 pp 1079-1082 H Sh Zukin Adecade cfilie new urban sociology 1heoryand Society 91980 pp 575-601 H M Cacdari F Relia M Tafuri G Teyssor II dispositillO Foucaut Veneza Cluva 1977 4 M Iltlucaullt MimfoIacuteCIJ rktpoYrt inkrUtntipoitici editado por Iltlnrana e Pasquino Turin Einudi 1977 retomado e completado pelo movimento alternativo berlinense Dispositive tkr Macht Betlin Merve 1978 (A reuniaacuteo d textos que compotildecm a ediccedilatildeo italiana a=sdda de oUtros textos reltebeu traduccedilaacuteo brasileira de R Machado e OUrtOS Micrufisica do potkr Rio de Janeiro Graal 1979 Foi publicada tambeacutem uma ediccedilaacuteo espanhola com algumas alteraccedilotildees dos tcxtos sdeclonados trad por J Varela e F A1varez-UrIacutell Madri La Piquem 1978 - N da T)

POSFAacuteCIO

POSFAclO

48 49 foi imediata logo reforccedilada pela traduccedilatildeo de Rhizome de Deleuze

e GuattarP livros que se tornaram referecircncias teoacuterico-poliacutetishy

cas do movimento chamado Autonomie (do poliacutetico subenshytenda-se) que incomodava a esquerda do PCI engajado na

estrateacutegia do compromisso histoacuterico ~ esta incidecircncia poliacutetica

que os italianos batizaram de leffeto Foucault36 que eacute o alvo de 1 dispositivo Poucault

A introduccedilatildeo agrave coletAnea escrita por F Rella eacute perfeitamente expliacutecita desde Jogo travare as anaacutelises foucaultianas da pluralishy

dade das relaccedilotildees de poder em uma metafisica do poder de um poder abstrato imaterial supostamente em toda parte e portanto

politicamente em parte alguma liA uacutenica histoacuteria dos poderes eacute

uma histoacuteria dos espaccedilos atraveacutes dos quais o poder se mostra E

apoiando-se no artigo de Teyssot como uacutenica fonte de conhecishy

mento das heterotopias prossegue O nlo lugar do poder situashy

-se no centro de uma infinidade de localizaccedilotildees heterotoacutepicas

A heterotopia torna-se entatildeo um dado central em Foucault

e a hetero topologia a fenomenologia da dlspersio anaacuterquica do

poder A conclusatildeo desta interpretaccedilatildeo eacute previsiacutevel Natildeo se comshy

bate mais o poder doravante investidp em uma miriacuteade de locashylizaccedilotildees [ou dispositivos] mas a tirania das teorias globalizantesraquo

Teorias que Rella explicita precisando em nota leffeto Marx37 Na verdade Teyssot38 natildeo comenta a confer~ncia de 1967

35 G Deleuu F Guattari Rhizo1M Paris Minuit 1976 Rizoma ParrnalL~uea Pradche 1977 36 Em italiano no original (N da T)

37 Em italiano no original (N da T)

38middotG Teyssot Eterotopia e storiadegli spazi II displJlitirm FOllcault pp 83-86 e HelerolOpies and the historyofspaccs Arcbiacutetlctureandurbaniacutesm 121 1980 pp 79-100

mas o uso taxinocircmico do prefaacutecio de As Palavras eas coisas aplishy

cando-o a um projeto de hospital do seacuteculo XVIII descrito pelo

historiador J-c Perrot39bull Seu plano distribui como uma grade

em oiro construccedilotildees distintas oito classes de pensionaacuterios tatildeo

heterogecircneos quanto as categorias de animais da enciclopeacutedia de

Borges a) os prisioneiros a pedido de suas famiacutelias b) os loucos

os prisioneiros por edito real c) as crianccedilas pobres e legiacutetimas

dedois a nove anos os idosos os mendigos as prostitutas acoshy

metidas de doenccedilas veneacutereas d) as crianccedilas bastardas de mais

de nove anos etc Eacute a incongruecircncia do conteuacutedo que designa

a arquitetura como heterotopia e naacuteo o jogo de oposiccedilatildeo ou de contestaccedilaacuteo qualitativa ou simboacutelica dos outros espaccedilos que este

uacuteltimo institui por sua funccedilaacuteo sua forma suas rupturas

O uso da heteroropia feito por T eyssot de modo algum transshy

creve a inscriccedilaacuteo profunda da espacialidade na ttalidade da

existecircncia humana a heterogeneidade e a descontinuidade dos

tempos vividos os limiares da vida as crises bioloacutegicas (iniciashy

ccedilatildeo puberdade defloraccedilatildeo) Eacuteros e Taacutenatos As espacializaccedilotildees

da subjetividade sob todas as suas formas da casa de toleracircncia agrave

sauna e natildeo somente as grandes funccedilotildees da carta de Atenas receshy

beram em todas as culturas uma inscriccedilatildeo especiacutefica no espaccedilo

em espaccedilos que entretecircm entre si natildeo uma relaccedilatildeo de divisatildeo como interioridadeexterioridade margemcentro puacuteblicol prishy

vado mas um jogo formal de diferenciaccedilatildeo e de reverberaccedilatildeo

em suma no registro da comunicaccedilatildeo Tanto Relia que faz do

W J-C Perrot Genes du vilk mo Cam ali XVII sdele Paris Mouton 1975

POSFAacuteCIO

POSgtAClO

51

50 espaccedilo foucaultiano o receptaacuteculo neutro e contiacutenuo das hetero- topias do poder - concepccedilatildeo globalizante - quanto T eyssot que

faz da heterotopia a articulaccedilatildeo arquitetural das incongruecircncias

do mundo - concepccedilatildeo loealista - carecem ambos da terceira dimensatildeo aquela propriedade do espaccedilo de se remeter a si mesmo

na espessura de um jogo formal e simboacutelico de contestaccedilatildeo e de

reverberaccedilatildeo em uma fragmentaccedilatildeo que natildeo eacute segmentaccedilatildeo este Thirding que E Soja assim teoriza no Instituto de urbanismo de LosAngtlts na UeLA the Thirding as othering40

Essa primeira recepccedilatildeo das heterotopias pela escola de arquitetura de Veneza representada por II dispositivo Foucault mostra a ambiguidade da noccedilatildeo de recepccedilatildeo natildeo se trata de uma compreensatildeo exata nem de uma real instrumentalizaccedilatildeo mas de uma reimplantaccedillo poUss~mica e poMmica em uma rede de

debates poJJticos por um lado e de um questionamento episteshymoloacutegico por outro

Em julho de 1976 Foucault relembra pela primeira vez sua confercncia de 1967 em uma entrevista sobre o panoacuteptico de

Bentham publicada em 1977 mencionada aliaacutes por Teyssot Seria necessaacuterio escrever toda uma histoacuteria dos espaccedilos que fosse

ao mesmo tempo uma histoacuteria dos poderes desde as grandes estrateacutegias da geopoliacutetica ateacute as pequenas taacuteticas do habitat da arquitetura institucional da sala de aula ou da organizaccedilatildeo hosshy

pitalar passando pelas implantaccedilotildees econOacutemico-poliacuteticas Eacute surshypreendente ver quanto o problema dos espaccedilos levou tanto tempo

40 Bd Soja 7huacutelspact Journeys to Los Angks a11( Othtr lUa11( ltilM Ptampts Cambridge (Mass)Blackdl 1996

para aparecer como um problema histoacuterico-poliacutetico Lembro-me que haacute cerca de dez anos falei destes problemas de uma poliacutetica

dos espaccedilos e de me terem respondido que era bastante readoshy

naacuterio insistir tanto sobre o espaccedilo e que o tempo o projeto era a vida e o progresso 41

Uma histoacuteria foucaultiana dos espaccedilos mais precisamente

da espacializaccedilatildeo do poder mais precisamente ainda da inscriccedilatildeo

no espaccedilo colonial- heterot6pico - desse regime de poder partishycular que se desenvolve a partir do seacuteculo XVIII e que Foucault designa de biopoder42 a partir do qual os problemas de espaccedilo tornam-se politicamente diferentes eacute o projeto que no comeccedilo dos anos oitenta empreendem o antropoacutelogo Paul Rabinow43 e a historiadora do habitat americano Gwendolyn Wright44bull Nem

eles nem Franccedilois Beacuteguin conheciam a conferecircncia de 1967

Em uma entrevista que Rabinow e Wright fizeram com

Foucault em 198245 publicada em Skyline46 revista americana de

arquitetura o filoacutesofo lembra suas obsessotildees pelo espaccedilo e como

atraveacutes destas obsessotildees cheguei ao que eacute fundamental para mim as relaccedilotildees que satildeo possiacuteveis entre o poder e o saber

41 MFoucault J Bentham Lotil pouvoir in L Panoptiacuteque Opcil (Veja-se em traduccedilaacuteo brasileira de A L de SOU7 O olho do poder in Microfiacutesica b podtr op cit- N da T) 42 M Foucaull La Volon tk savoir Paris Gallimard 1976 cap V Droil de mort et pouvoir SUl I vie (Trad bras de M T da C Albuquerque e J A Guilhon Albuquerque A Vontade tk saber Rio de Janeiro Graal 1977 - N d T) 43 P Rabinow Biopower in lhe Frrnch Coloits conferecircncia interdisciplinar sobr Foucault Knowledge Power HislOry Los Angeles 29-31 de oUlubrol1981 Frrneh Modn Norms and Forms of th SfJCial Enviacuteronmmt Cambridge (M) MIT Press 1989 44 G Wright 7he Poliacutetics ofDltsigns in the Frrnch Colonial Urbanism Chicago University Preso 1991 45F B~n Arabisanm op cil 46 M Foucaull Space knowledge power entrerien avec P Rabinow Skyline marccedilo11982 pp 16-20 retomada em Dits tt Eacutecrits t N n 340 pp 270-285

POSFAacuteCIO

POSFAacuteCIO

53

52

A arquitetUra e o urbanismo naacuteo constituem diz ele um campo isoshylaacutevel Misturam-se com muacuteltiplas praacuteticas e discursos mas o espaccedilo

eacute o lugar privilegiado de compreensatildeo de como o poder opera

Inversamente ele bane da praacutetica do arquiteto toda esperanccedila

utoacutepica Os homens sonharam com maacutequinas libertadoras Mas por definiccedilatildeo natildeo existem maacutequinas de liberdade Jamais

a estrutura das coisas tem competecircncia para garantir a liberdade Nada eacute funcionalmente libertador A liberdade eacute o que se deve exercer a garantia da liberdade eacute a liberdade

Mestre doravante de um discurso poliacutetico e epistemoloacutegico sobre o espaccedilo Foucault deixa entatildeo ressurgir seu antigo conceito de heterotopia Diga-se entre parecircnteses lembro-me de ter sido

convidado por um grupo de arquitetos em 1966 para realizar um estudo do espaccediloi tratava-se do que na eacutepoca chamei de heterotopias espaccedilos singulares que encontramos em alguns

espaccedilos sociais cujas funccedilOes satildeo diferentes das dos outros ou tershy

minantemente opostas Os arquitetos trabalhavam neste projeto e no final do estudo algueacutem tomou a palavra _ um psicoacutelogo

sanreano - para me bombardear que o espaccedilo era reacionaacuterio e capitalista enquanto a histoacuteria e o devir eram revolucionaacuterios

Agravequela eacutepoca este discurso absurdo de modo algum era inabitual Hoje em dia qualquer um se dobraria de rir ouvindo aquilo

Natildeo haacute como natildeo se impressionar com esta longa anamnese em dois tempos primeiro em 1976 relativamente agrave objeccedilatildeo poliacuteshy

tica feita em 1967 e em 1982 enfim relativamente ao proacuteprio conceito de heterotopia em 1984 Foucault podia acolher favoshy

ravelmente a reutilizaccedilatildeo de sua conferecircncia pelo IBA de Berlim

Os dois organizadores da exposiccedilatildeo o alematildeo Johannes Gachnang e o italiano Marco de Michelis conheciam esse texto

em sua publicaccedilatildeo de 1968 em Architteturri7bull Ele sintonizava

estranhamente com a estrateacutegia do IBA tal como foi exposta por

um de seus dois responsaacuteveis J-P Kleihues48 executar a ideia

de uma cidade por fragmentos falar de arquitetur~ urbana sem traccedilar primeiramente um plano global de urbanismo respeitar

a variedade histoacuterica e topograacutefica berlinense pensar a composhysiccedilatildeo da cidade por ilhotas e ateacute confiar a diversos arquitetos a

reconstruccedilatildeo das residecircncias em uma mesma ilhota E por ocashy

siatildeo de uma reunificaccedilatildeo eventual justificar a conservaccedilatildeo da arquitetura staliniana

Sua traduccedilatildeo americana ocorreu em 1986 publicada prishy

meiramente na revista interdisciplinar de ComeU Diacriticis depois na revista de arquitetura LOtu9 Inaugurava-se uma carshy

reira nova para a interpretaccedilatildeo qualitativa dos espaccedilos outros

Natildeo se compreenderia esta carreira sem a simultaneidade da trashy

duccedilatildeo dos volumes II e III de Histoacuteria da sexualidaJe5deg a partir

dos quais Foucault torna-se uma referecircncia para aquilo que os americanos denominam poliacuteticas da identidade Movimentos

feministas movimento gay grupos eacutetnicos constituem a nova

47 Infurmaccedilaacuteo obtida com e1cs e concedida por Franccediloise Jolr 48 J-r Kleihues Agrave propos de I viUe europeacuteenne entreVista com M Bourdeau AMeS outubroI984

pp 95-99 49 M Foucault Ofother spaces Diacritieacuteiacutes 16 n I 1986 pp 22-27 e Lotushmnational 1986 50 M Foucaulr lUage tUacutes pIAis Paris Gallimaa 1984 uacute Souci Je soi Paris Gtlimn 1984 trad

1ht Use ofPlrasU Harmondsworth Penguin 1985 1ht Ca Dfthe sg Harmondsworth Penguin 1986 (Trad bras de M T da C Albuquerque O USQ dos p e O CuiJmJo Je si Rio de Janeiro Graal 1984 e 1985 - N da T)

POSFAacuteCIO

POSFAacuteCIO

54 rede de inscriccedilatildeo e a nova avaliaccedilatildeo das heterotopias A histoacuteshy

ria dos modos de subjetivaccedilatildeo realizada por Foucault atravessa

textos como lhe spaces that diferences make do urbanista Ed

Soja51 Gendered Spaces da feminista Daphne Spain52 lhe New Cultural Politics ofDijforence de Cornel West53 ou Geographical lmaginations do geoacutegrafo Derek Gregory54

Lugar de emergecircncia da heterotopia a anaacutelise literaacuteria dela

se apropria com Brian McHale Michel de Certeau5S a anaacutelise

fiacutelmica com Giuliana Bruno56bull Foucault torna-se passagem obrishy

gatoacuteria para toda anaacutelise do espaccedilo constata Soja

O mesmo se passa com as artes plaacutesticas Apresentando as

obras do artista plaacutestico cubano Felix Gonzalez-Torres Nancy

Spector descreve uma experiecircncia de ambiente heterotoacutepico

realizada em Manhattan57bull Em vinte e quatro paineacuteis de anuacutencio

publicitaacuterio das instalaccedilotildees urbanas de Manhattan Gonzalezshy

-Torres afixou o contraespaccedilo constituiacutedo por imensa foto em preto

e branco da intimidade de uma cama exposta Desnudamento

absoluto de um puro roccedilar de lenccediloacuteis leve traccedilado de duas cabeshy

ccedilas no vaacuteo entre os dois travesseiros onde cada qual pode proshy

jetar ou a interrupccedilatildeo do sono ou o amor consumado ou mais

51 Ed Soja The spa= that dlfenna makc ln M Kelm e S PIlbullbull PI4u iI1III lhe Politics olidmtiacutety NQVlI Iorque Roudedge 1993 pp 183middot205 52 D Spain Glt1JIUacutertaacute Spam Chapei Ht11 Unlverlty ofCarolIna Pras 1992 53 CWest 1M Ntw Cultural Politict oIDifimut ot h 1M Dilm_ ofrJu BIa lnttlkcttuuacute Ferguson 1994 54 D Gregory Gtographicalmaginatiacuteons citado ln Ed Soj hitrlspace Carobridge Bladltwell 1994 55 B McHale Post Moaacuteernist Fietion Nova Iorque Routledge 1988~ M de Certeau HettrologitS Discouffl 01tlu Otbtr Manchester Manchester University Presa 1986 56 G Bruno Bodlly ArchirecturesAltrtmblag 19 dezembro1992 57 N Spector Ptilt GonzakzmiddotTorres The Solamon R Guggenheim Museum Nova Iorque 1995

radicalmente a advertecircncia do artista uma decisatildeo de 1986 da

Corte suprema autoriza doravante a justiccedila em todo Estado em

que a sodomia eacute ainda um crime a persegui-la mesmo quando consentida entre adultos em suma a intimidade do espaccedilo prishy

vado da cama acaba de entrar no espaccedilo puacuteblico Esta articulashy

ccedilatildeo entre o puacuteblico e o privado poderia criar segundo Spector uma histoacuteria mais silenciosa a marca vazia do companheiro do

artista morto de aids

Maravilhosa intuiccedilatildeo no comeccedilo da confer~ncia radiofocircnica

de Foucault em 1966 daquela passagem inexistente na conferecircnshy

cia para os arquitetos em 1967 em que o fil6sofo evocava como

primeira figura da heterotopia a cama dos pais que as crianccedilas

gostam de invadir com um prazer de transgressatildeo e de sonho das origens Naacuteo poderiacuteamos concluir que aqui a longa seacuterie de

rein~riccedilotildees do texto em muacuteltiplas redes e estrateacutegias que a longa

seacuterie de transformaccedilotildees da figura social de seu autor encontram

neste instante de sua trajetoacuteria a mais completa forma de recepshyccedilatilde0 58 Foucault natildeo declarara tantas vezes que almejava menos

leitores que utilizadores59

58 Ed Soja Heterotopies remembrance Df other spaccs in me citadd LAraquo Strattgies a jIJurna 01 tbeory culturt anaacute poines 3 1990 pp 1middot39 Post metropolis Critiacutecal Stuties 01 Ctti naacute Rtglgtnt Londle$ Blackwdl 2000 59 Em 200I uma associaccedilatildeo cultural italiana denominada EttrotpirJ publicou uma releitura de textos de Foucaulr sobre o espaccedilo sob o titulo Spnialtri

POSFAacuteCIO POSFAacuteCIO

48 49 foi imediata logo reforccedilada pela traduccedilatildeo de Rhizome de Deleuze

e GuattarP livros que se tornaram referecircncias teoacuterico-poliacutetishy

cas do movimento chamado Autonomie (do poliacutetico subenshytenda-se) que incomodava a esquerda do PCI engajado na

estrateacutegia do compromisso histoacuterico ~ esta incidecircncia poliacutetica

que os italianos batizaram de leffeto Foucault36 que eacute o alvo de 1 dispositivo Poucault

A introduccedilatildeo agrave coletAnea escrita por F Rella eacute perfeitamente expliacutecita desde Jogo travare as anaacutelises foucaultianas da pluralishy

dade das relaccedilotildees de poder em uma metafisica do poder de um poder abstrato imaterial supostamente em toda parte e portanto

politicamente em parte alguma liA uacutenica histoacuteria dos poderes eacute

uma histoacuteria dos espaccedilos atraveacutes dos quais o poder se mostra E

apoiando-se no artigo de Teyssot como uacutenica fonte de conhecishy

mento das heterotopias prossegue O nlo lugar do poder situashy

-se no centro de uma infinidade de localizaccedilotildees heterotoacutepicas

A heterotopia torna-se entatildeo um dado central em Foucault

e a hetero topologia a fenomenologia da dlspersio anaacuterquica do

poder A conclusatildeo desta interpretaccedilatildeo eacute previsiacutevel Natildeo se comshy

bate mais o poder doravante investidp em uma miriacuteade de locashylizaccedilotildees [ou dispositivos] mas a tirania das teorias globalizantesraquo

Teorias que Rella explicita precisando em nota leffeto Marx37 Na verdade Teyssot38 natildeo comenta a confer~ncia de 1967

35 G Deleuu F Guattari Rhizo1M Paris Minuit 1976 Rizoma ParrnalL~uea Pradche 1977 36 Em italiano no original (N da T)

37 Em italiano no original (N da T)

38middotG Teyssot Eterotopia e storiadegli spazi II displJlitirm FOllcault pp 83-86 e HelerolOpies and the historyofspaccs Arcbiacutetlctureandurbaniacutesm 121 1980 pp 79-100

mas o uso taxinocircmico do prefaacutecio de As Palavras eas coisas aplishy

cando-o a um projeto de hospital do seacuteculo XVIII descrito pelo

historiador J-c Perrot39bull Seu plano distribui como uma grade

em oiro construccedilotildees distintas oito classes de pensionaacuterios tatildeo

heterogecircneos quanto as categorias de animais da enciclopeacutedia de

Borges a) os prisioneiros a pedido de suas famiacutelias b) os loucos

os prisioneiros por edito real c) as crianccedilas pobres e legiacutetimas

dedois a nove anos os idosos os mendigos as prostitutas acoshy

metidas de doenccedilas veneacutereas d) as crianccedilas bastardas de mais

de nove anos etc Eacute a incongruecircncia do conteuacutedo que designa

a arquitetura como heterotopia e naacuteo o jogo de oposiccedilatildeo ou de contestaccedilaacuteo qualitativa ou simboacutelica dos outros espaccedilos que este

uacuteltimo institui por sua funccedilaacuteo sua forma suas rupturas

O uso da heteroropia feito por T eyssot de modo algum transshy

creve a inscriccedilaacuteo profunda da espacialidade na ttalidade da

existecircncia humana a heterogeneidade e a descontinuidade dos

tempos vividos os limiares da vida as crises bioloacutegicas (iniciashy

ccedilatildeo puberdade defloraccedilatildeo) Eacuteros e Taacutenatos As espacializaccedilotildees

da subjetividade sob todas as suas formas da casa de toleracircncia agrave

sauna e natildeo somente as grandes funccedilotildees da carta de Atenas receshy

beram em todas as culturas uma inscriccedilatildeo especiacutefica no espaccedilo

em espaccedilos que entretecircm entre si natildeo uma relaccedilatildeo de divisatildeo como interioridadeexterioridade margemcentro puacuteblicol prishy

vado mas um jogo formal de diferenciaccedilatildeo e de reverberaccedilatildeo

em suma no registro da comunicaccedilatildeo Tanto Relia que faz do

W J-C Perrot Genes du vilk mo Cam ali XVII sdele Paris Mouton 1975

POSFAacuteCIO

POSgtAClO

51

50 espaccedilo foucaultiano o receptaacuteculo neutro e contiacutenuo das hetero- topias do poder - concepccedilatildeo globalizante - quanto T eyssot que

faz da heterotopia a articulaccedilatildeo arquitetural das incongruecircncias

do mundo - concepccedilatildeo loealista - carecem ambos da terceira dimensatildeo aquela propriedade do espaccedilo de se remeter a si mesmo

na espessura de um jogo formal e simboacutelico de contestaccedilatildeo e de

reverberaccedilatildeo em uma fragmentaccedilatildeo que natildeo eacute segmentaccedilatildeo este Thirding que E Soja assim teoriza no Instituto de urbanismo de LosAngtlts na UeLA the Thirding as othering40

Essa primeira recepccedilatildeo das heterotopias pela escola de arquitetura de Veneza representada por II dispositivo Foucault mostra a ambiguidade da noccedilatildeo de recepccedilatildeo natildeo se trata de uma compreensatildeo exata nem de uma real instrumentalizaccedilatildeo mas de uma reimplantaccedillo poUss~mica e poMmica em uma rede de

debates poJJticos por um lado e de um questionamento episteshymoloacutegico por outro

Em julho de 1976 Foucault relembra pela primeira vez sua confercncia de 1967 em uma entrevista sobre o panoacuteptico de

Bentham publicada em 1977 mencionada aliaacutes por Teyssot Seria necessaacuterio escrever toda uma histoacuteria dos espaccedilos que fosse

ao mesmo tempo uma histoacuteria dos poderes desde as grandes estrateacutegias da geopoliacutetica ateacute as pequenas taacuteticas do habitat da arquitetura institucional da sala de aula ou da organizaccedilatildeo hosshy

pitalar passando pelas implantaccedilotildees econOacutemico-poliacuteticas Eacute surshypreendente ver quanto o problema dos espaccedilos levou tanto tempo

40 Bd Soja 7huacutelspact Journeys to Los Angks a11( Othtr lUa11( ltilM Ptampts Cambridge (Mass)Blackdl 1996

para aparecer como um problema histoacuterico-poliacutetico Lembro-me que haacute cerca de dez anos falei destes problemas de uma poliacutetica

dos espaccedilos e de me terem respondido que era bastante readoshy

naacuterio insistir tanto sobre o espaccedilo e que o tempo o projeto era a vida e o progresso 41

Uma histoacuteria foucaultiana dos espaccedilos mais precisamente

da espacializaccedilatildeo do poder mais precisamente ainda da inscriccedilatildeo

no espaccedilo colonial- heterot6pico - desse regime de poder partishycular que se desenvolve a partir do seacuteculo XVIII e que Foucault designa de biopoder42 a partir do qual os problemas de espaccedilo tornam-se politicamente diferentes eacute o projeto que no comeccedilo dos anos oitenta empreendem o antropoacutelogo Paul Rabinow43 e a historiadora do habitat americano Gwendolyn Wright44bull Nem

eles nem Franccedilois Beacuteguin conheciam a conferecircncia de 1967

Em uma entrevista que Rabinow e Wright fizeram com

Foucault em 198245 publicada em Skyline46 revista americana de

arquitetura o filoacutesofo lembra suas obsessotildees pelo espaccedilo e como

atraveacutes destas obsessotildees cheguei ao que eacute fundamental para mim as relaccedilotildees que satildeo possiacuteveis entre o poder e o saber

41 MFoucault J Bentham Lotil pouvoir in L Panoptiacuteque Opcil (Veja-se em traduccedilaacuteo brasileira de A L de SOU7 O olho do poder in Microfiacutesica b podtr op cit- N da T) 42 M Foucaull La Volon tk savoir Paris Gallimard 1976 cap V Droil de mort et pouvoir SUl I vie (Trad bras de M T da C Albuquerque e J A Guilhon Albuquerque A Vontade tk saber Rio de Janeiro Graal 1977 - N d T) 43 P Rabinow Biopower in lhe Frrnch Coloits conferecircncia interdisciplinar sobr Foucault Knowledge Power HislOry Los Angeles 29-31 de oUlubrol1981 Frrneh Modn Norms and Forms of th SfJCial Enviacuteronmmt Cambridge (M) MIT Press 1989 44 G Wright 7he Poliacutetics ofDltsigns in the Frrnch Colonial Urbanism Chicago University Preso 1991 45F B~n Arabisanm op cil 46 M Foucaull Space knowledge power entrerien avec P Rabinow Skyline marccedilo11982 pp 16-20 retomada em Dits tt Eacutecrits t N n 340 pp 270-285

POSFAacuteCIO

POSFAacuteCIO

53

52

A arquitetUra e o urbanismo naacuteo constituem diz ele um campo isoshylaacutevel Misturam-se com muacuteltiplas praacuteticas e discursos mas o espaccedilo

eacute o lugar privilegiado de compreensatildeo de como o poder opera

Inversamente ele bane da praacutetica do arquiteto toda esperanccedila

utoacutepica Os homens sonharam com maacutequinas libertadoras Mas por definiccedilatildeo natildeo existem maacutequinas de liberdade Jamais

a estrutura das coisas tem competecircncia para garantir a liberdade Nada eacute funcionalmente libertador A liberdade eacute o que se deve exercer a garantia da liberdade eacute a liberdade

Mestre doravante de um discurso poliacutetico e epistemoloacutegico sobre o espaccedilo Foucault deixa entatildeo ressurgir seu antigo conceito de heterotopia Diga-se entre parecircnteses lembro-me de ter sido

convidado por um grupo de arquitetos em 1966 para realizar um estudo do espaccediloi tratava-se do que na eacutepoca chamei de heterotopias espaccedilos singulares que encontramos em alguns

espaccedilos sociais cujas funccedilOes satildeo diferentes das dos outros ou tershy

minantemente opostas Os arquitetos trabalhavam neste projeto e no final do estudo algueacutem tomou a palavra _ um psicoacutelogo

sanreano - para me bombardear que o espaccedilo era reacionaacuterio e capitalista enquanto a histoacuteria e o devir eram revolucionaacuterios

Agravequela eacutepoca este discurso absurdo de modo algum era inabitual Hoje em dia qualquer um se dobraria de rir ouvindo aquilo

Natildeo haacute como natildeo se impressionar com esta longa anamnese em dois tempos primeiro em 1976 relativamente agrave objeccedilatildeo poliacuteshy

tica feita em 1967 e em 1982 enfim relativamente ao proacuteprio conceito de heterotopia em 1984 Foucault podia acolher favoshy

ravelmente a reutilizaccedilatildeo de sua conferecircncia pelo IBA de Berlim

Os dois organizadores da exposiccedilatildeo o alematildeo Johannes Gachnang e o italiano Marco de Michelis conheciam esse texto

em sua publicaccedilatildeo de 1968 em Architteturri7bull Ele sintonizava

estranhamente com a estrateacutegia do IBA tal como foi exposta por

um de seus dois responsaacuteveis J-P Kleihues48 executar a ideia

de uma cidade por fragmentos falar de arquitetur~ urbana sem traccedilar primeiramente um plano global de urbanismo respeitar

a variedade histoacuterica e topograacutefica berlinense pensar a composhysiccedilatildeo da cidade por ilhotas e ateacute confiar a diversos arquitetos a

reconstruccedilatildeo das residecircncias em uma mesma ilhota E por ocashy

siatildeo de uma reunificaccedilatildeo eventual justificar a conservaccedilatildeo da arquitetura staliniana

Sua traduccedilatildeo americana ocorreu em 1986 publicada prishy

meiramente na revista interdisciplinar de ComeU Diacriticis depois na revista de arquitetura LOtu9 Inaugurava-se uma carshy

reira nova para a interpretaccedilatildeo qualitativa dos espaccedilos outros

Natildeo se compreenderia esta carreira sem a simultaneidade da trashy

duccedilatildeo dos volumes II e III de Histoacuteria da sexualidaJe5deg a partir

dos quais Foucault torna-se uma referecircncia para aquilo que os americanos denominam poliacuteticas da identidade Movimentos

feministas movimento gay grupos eacutetnicos constituem a nova

47 Infurmaccedilaacuteo obtida com e1cs e concedida por Franccediloise Jolr 48 J-r Kleihues Agrave propos de I viUe europeacuteenne entreVista com M Bourdeau AMeS outubroI984

pp 95-99 49 M Foucault Ofother spaces Diacritieacuteiacutes 16 n I 1986 pp 22-27 e Lotushmnational 1986 50 M Foucaulr lUage tUacutes pIAis Paris Gallimaa 1984 uacute Souci Je soi Paris Gtlimn 1984 trad

1ht Use ofPlrasU Harmondsworth Penguin 1985 1ht Ca Dfthe sg Harmondsworth Penguin 1986 (Trad bras de M T da C Albuquerque O USQ dos p e O CuiJmJo Je si Rio de Janeiro Graal 1984 e 1985 - N da T)

POSFAacuteCIO

POSFAacuteCIO

54 rede de inscriccedilatildeo e a nova avaliaccedilatildeo das heterotopias A histoacuteshy

ria dos modos de subjetivaccedilatildeo realizada por Foucault atravessa

textos como lhe spaces that diferences make do urbanista Ed

Soja51 Gendered Spaces da feminista Daphne Spain52 lhe New Cultural Politics ofDijforence de Cornel West53 ou Geographical lmaginations do geoacutegrafo Derek Gregory54

Lugar de emergecircncia da heterotopia a anaacutelise literaacuteria dela

se apropria com Brian McHale Michel de Certeau5S a anaacutelise

fiacutelmica com Giuliana Bruno56bull Foucault torna-se passagem obrishy

gatoacuteria para toda anaacutelise do espaccedilo constata Soja

O mesmo se passa com as artes plaacutesticas Apresentando as

obras do artista plaacutestico cubano Felix Gonzalez-Torres Nancy

Spector descreve uma experiecircncia de ambiente heterotoacutepico

realizada em Manhattan57bull Em vinte e quatro paineacuteis de anuacutencio

publicitaacuterio das instalaccedilotildees urbanas de Manhattan Gonzalezshy

-Torres afixou o contraespaccedilo constituiacutedo por imensa foto em preto

e branco da intimidade de uma cama exposta Desnudamento

absoluto de um puro roccedilar de lenccediloacuteis leve traccedilado de duas cabeshy

ccedilas no vaacuteo entre os dois travesseiros onde cada qual pode proshy

jetar ou a interrupccedilatildeo do sono ou o amor consumado ou mais

51 Ed Soja The spa= that dlfenna makc ln M Kelm e S PIlbullbull PI4u iI1III lhe Politics olidmtiacutety NQVlI Iorque Roudedge 1993 pp 183middot205 52 D Spain Glt1JIUacutertaacute Spam Chapei Ht11 Unlverlty ofCarolIna Pras 1992 53 CWest 1M Ntw Cultural Politict oIDifimut ot h 1M Dilm_ ofrJu BIa lnttlkcttuuacute Ferguson 1994 54 D Gregory Gtographicalmaginatiacuteons citado ln Ed Soj hitrlspace Carobridge Bladltwell 1994 55 B McHale Post Moaacuteernist Fietion Nova Iorque Routledge 1988~ M de Certeau HettrologitS Discouffl 01tlu Otbtr Manchester Manchester University Presa 1986 56 G Bruno Bodlly ArchirecturesAltrtmblag 19 dezembro1992 57 N Spector Ptilt GonzakzmiddotTorres The Solamon R Guggenheim Museum Nova Iorque 1995

radicalmente a advertecircncia do artista uma decisatildeo de 1986 da

Corte suprema autoriza doravante a justiccedila em todo Estado em

que a sodomia eacute ainda um crime a persegui-la mesmo quando consentida entre adultos em suma a intimidade do espaccedilo prishy

vado da cama acaba de entrar no espaccedilo puacuteblico Esta articulashy

ccedilatildeo entre o puacuteblico e o privado poderia criar segundo Spector uma histoacuteria mais silenciosa a marca vazia do companheiro do

artista morto de aids

Maravilhosa intuiccedilatildeo no comeccedilo da confer~ncia radiofocircnica

de Foucault em 1966 daquela passagem inexistente na conferecircnshy

cia para os arquitetos em 1967 em que o fil6sofo evocava como

primeira figura da heterotopia a cama dos pais que as crianccedilas

gostam de invadir com um prazer de transgressatildeo e de sonho das origens Naacuteo poderiacuteamos concluir que aqui a longa seacuterie de

rein~riccedilotildees do texto em muacuteltiplas redes e estrateacutegias que a longa

seacuterie de transformaccedilotildees da figura social de seu autor encontram

neste instante de sua trajetoacuteria a mais completa forma de recepshyccedilatilde0 58 Foucault natildeo declarara tantas vezes que almejava menos

leitores que utilizadores59

58 Ed Soja Heterotopies remembrance Df other spaccs in me citadd LAraquo Strattgies a jIJurna 01 tbeory culturt anaacute poines 3 1990 pp 1middot39 Post metropolis Critiacutecal Stuties 01 Ctti naacute Rtglgtnt Londle$ Blackwdl 2000 59 Em 200I uma associaccedilatildeo cultural italiana denominada EttrotpirJ publicou uma releitura de textos de Foucaulr sobre o espaccedilo sob o titulo Spnialtri

POSFAacuteCIO POSFAacuteCIO

51

50 espaccedilo foucaultiano o receptaacuteculo neutro e contiacutenuo das hetero- topias do poder - concepccedilatildeo globalizante - quanto T eyssot que

faz da heterotopia a articulaccedilatildeo arquitetural das incongruecircncias

do mundo - concepccedilatildeo loealista - carecem ambos da terceira dimensatildeo aquela propriedade do espaccedilo de se remeter a si mesmo

na espessura de um jogo formal e simboacutelico de contestaccedilatildeo e de

reverberaccedilatildeo em uma fragmentaccedilatildeo que natildeo eacute segmentaccedilatildeo este Thirding que E Soja assim teoriza no Instituto de urbanismo de LosAngtlts na UeLA the Thirding as othering40

Essa primeira recepccedilatildeo das heterotopias pela escola de arquitetura de Veneza representada por II dispositivo Foucault mostra a ambiguidade da noccedilatildeo de recepccedilatildeo natildeo se trata de uma compreensatildeo exata nem de uma real instrumentalizaccedilatildeo mas de uma reimplantaccedillo poUss~mica e poMmica em uma rede de

debates poJJticos por um lado e de um questionamento episteshymoloacutegico por outro

Em julho de 1976 Foucault relembra pela primeira vez sua confercncia de 1967 em uma entrevista sobre o panoacuteptico de

Bentham publicada em 1977 mencionada aliaacutes por Teyssot Seria necessaacuterio escrever toda uma histoacuteria dos espaccedilos que fosse

ao mesmo tempo uma histoacuteria dos poderes desde as grandes estrateacutegias da geopoliacutetica ateacute as pequenas taacuteticas do habitat da arquitetura institucional da sala de aula ou da organizaccedilatildeo hosshy

pitalar passando pelas implantaccedilotildees econOacutemico-poliacuteticas Eacute surshypreendente ver quanto o problema dos espaccedilos levou tanto tempo

40 Bd Soja 7huacutelspact Journeys to Los Angks a11( Othtr lUa11( ltilM Ptampts Cambridge (Mass)Blackdl 1996

para aparecer como um problema histoacuterico-poliacutetico Lembro-me que haacute cerca de dez anos falei destes problemas de uma poliacutetica

dos espaccedilos e de me terem respondido que era bastante readoshy

naacuterio insistir tanto sobre o espaccedilo e que o tempo o projeto era a vida e o progresso 41

Uma histoacuteria foucaultiana dos espaccedilos mais precisamente

da espacializaccedilatildeo do poder mais precisamente ainda da inscriccedilatildeo

no espaccedilo colonial- heterot6pico - desse regime de poder partishycular que se desenvolve a partir do seacuteculo XVIII e que Foucault designa de biopoder42 a partir do qual os problemas de espaccedilo tornam-se politicamente diferentes eacute o projeto que no comeccedilo dos anos oitenta empreendem o antropoacutelogo Paul Rabinow43 e a historiadora do habitat americano Gwendolyn Wright44bull Nem

eles nem Franccedilois Beacuteguin conheciam a conferecircncia de 1967

Em uma entrevista que Rabinow e Wright fizeram com

Foucault em 198245 publicada em Skyline46 revista americana de

arquitetura o filoacutesofo lembra suas obsessotildees pelo espaccedilo e como

atraveacutes destas obsessotildees cheguei ao que eacute fundamental para mim as relaccedilotildees que satildeo possiacuteveis entre o poder e o saber

41 MFoucault J Bentham Lotil pouvoir in L Panoptiacuteque Opcil (Veja-se em traduccedilaacuteo brasileira de A L de SOU7 O olho do poder in Microfiacutesica b podtr op cit- N da T) 42 M Foucaull La Volon tk savoir Paris Gallimard 1976 cap V Droil de mort et pouvoir SUl I vie (Trad bras de M T da C Albuquerque e J A Guilhon Albuquerque A Vontade tk saber Rio de Janeiro Graal 1977 - N d T) 43 P Rabinow Biopower in lhe Frrnch Coloits conferecircncia interdisciplinar sobr Foucault Knowledge Power HislOry Los Angeles 29-31 de oUlubrol1981 Frrneh Modn Norms and Forms of th SfJCial Enviacuteronmmt Cambridge (M) MIT Press 1989 44 G Wright 7he Poliacutetics ofDltsigns in the Frrnch Colonial Urbanism Chicago University Preso 1991 45F B~n Arabisanm op cil 46 M Foucaull Space knowledge power entrerien avec P Rabinow Skyline marccedilo11982 pp 16-20 retomada em Dits tt Eacutecrits t N n 340 pp 270-285

POSFAacuteCIO

POSFAacuteCIO

53

52

A arquitetUra e o urbanismo naacuteo constituem diz ele um campo isoshylaacutevel Misturam-se com muacuteltiplas praacuteticas e discursos mas o espaccedilo

eacute o lugar privilegiado de compreensatildeo de como o poder opera

Inversamente ele bane da praacutetica do arquiteto toda esperanccedila

utoacutepica Os homens sonharam com maacutequinas libertadoras Mas por definiccedilatildeo natildeo existem maacutequinas de liberdade Jamais

a estrutura das coisas tem competecircncia para garantir a liberdade Nada eacute funcionalmente libertador A liberdade eacute o que se deve exercer a garantia da liberdade eacute a liberdade

Mestre doravante de um discurso poliacutetico e epistemoloacutegico sobre o espaccedilo Foucault deixa entatildeo ressurgir seu antigo conceito de heterotopia Diga-se entre parecircnteses lembro-me de ter sido

convidado por um grupo de arquitetos em 1966 para realizar um estudo do espaccediloi tratava-se do que na eacutepoca chamei de heterotopias espaccedilos singulares que encontramos em alguns

espaccedilos sociais cujas funccedilOes satildeo diferentes das dos outros ou tershy

minantemente opostas Os arquitetos trabalhavam neste projeto e no final do estudo algueacutem tomou a palavra _ um psicoacutelogo

sanreano - para me bombardear que o espaccedilo era reacionaacuterio e capitalista enquanto a histoacuteria e o devir eram revolucionaacuterios

Agravequela eacutepoca este discurso absurdo de modo algum era inabitual Hoje em dia qualquer um se dobraria de rir ouvindo aquilo

Natildeo haacute como natildeo se impressionar com esta longa anamnese em dois tempos primeiro em 1976 relativamente agrave objeccedilatildeo poliacuteshy

tica feita em 1967 e em 1982 enfim relativamente ao proacuteprio conceito de heterotopia em 1984 Foucault podia acolher favoshy

ravelmente a reutilizaccedilatildeo de sua conferecircncia pelo IBA de Berlim

Os dois organizadores da exposiccedilatildeo o alematildeo Johannes Gachnang e o italiano Marco de Michelis conheciam esse texto

em sua publicaccedilatildeo de 1968 em Architteturri7bull Ele sintonizava

estranhamente com a estrateacutegia do IBA tal como foi exposta por

um de seus dois responsaacuteveis J-P Kleihues48 executar a ideia

de uma cidade por fragmentos falar de arquitetur~ urbana sem traccedilar primeiramente um plano global de urbanismo respeitar

a variedade histoacuterica e topograacutefica berlinense pensar a composhysiccedilatildeo da cidade por ilhotas e ateacute confiar a diversos arquitetos a

reconstruccedilatildeo das residecircncias em uma mesma ilhota E por ocashy

siatildeo de uma reunificaccedilatildeo eventual justificar a conservaccedilatildeo da arquitetura staliniana

Sua traduccedilatildeo americana ocorreu em 1986 publicada prishy

meiramente na revista interdisciplinar de ComeU Diacriticis depois na revista de arquitetura LOtu9 Inaugurava-se uma carshy

reira nova para a interpretaccedilatildeo qualitativa dos espaccedilos outros

Natildeo se compreenderia esta carreira sem a simultaneidade da trashy

duccedilatildeo dos volumes II e III de Histoacuteria da sexualidaJe5deg a partir

dos quais Foucault torna-se uma referecircncia para aquilo que os americanos denominam poliacuteticas da identidade Movimentos

feministas movimento gay grupos eacutetnicos constituem a nova

47 Infurmaccedilaacuteo obtida com e1cs e concedida por Franccediloise Jolr 48 J-r Kleihues Agrave propos de I viUe europeacuteenne entreVista com M Bourdeau AMeS outubroI984

pp 95-99 49 M Foucault Ofother spaces Diacritieacuteiacutes 16 n I 1986 pp 22-27 e Lotushmnational 1986 50 M Foucaulr lUage tUacutes pIAis Paris Gallimaa 1984 uacute Souci Je soi Paris Gtlimn 1984 trad

1ht Use ofPlrasU Harmondsworth Penguin 1985 1ht Ca Dfthe sg Harmondsworth Penguin 1986 (Trad bras de M T da C Albuquerque O USQ dos p e O CuiJmJo Je si Rio de Janeiro Graal 1984 e 1985 - N da T)

POSFAacuteCIO

POSFAacuteCIO

54 rede de inscriccedilatildeo e a nova avaliaccedilatildeo das heterotopias A histoacuteshy

ria dos modos de subjetivaccedilatildeo realizada por Foucault atravessa

textos como lhe spaces that diferences make do urbanista Ed

Soja51 Gendered Spaces da feminista Daphne Spain52 lhe New Cultural Politics ofDijforence de Cornel West53 ou Geographical lmaginations do geoacutegrafo Derek Gregory54

Lugar de emergecircncia da heterotopia a anaacutelise literaacuteria dela

se apropria com Brian McHale Michel de Certeau5S a anaacutelise

fiacutelmica com Giuliana Bruno56bull Foucault torna-se passagem obrishy

gatoacuteria para toda anaacutelise do espaccedilo constata Soja

O mesmo se passa com as artes plaacutesticas Apresentando as

obras do artista plaacutestico cubano Felix Gonzalez-Torres Nancy

Spector descreve uma experiecircncia de ambiente heterotoacutepico

realizada em Manhattan57bull Em vinte e quatro paineacuteis de anuacutencio

publicitaacuterio das instalaccedilotildees urbanas de Manhattan Gonzalezshy

-Torres afixou o contraespaccedilo constituiacutedo por imensa foto em preto

e branco da intimidade de uma cama exposta Desnudamento

absoluto de um puro roccedilar de lenccediloacuteis leve traccedilado de duas cabeshy

ccedilas no vaacuteo entre os dois travesseiros onde cada qual pode proshy

jetar ou a interrupccedilatildeo do sono ou o amor consumado ou mais

51 Ed Soja The spa= that dlfenna makc ln M Kelm e S PIlbullbull PI4u iI1III lhe Politics olidmtiacutety NQVlI Iorque Roudedge 1993 pp 183middot205 52 D Spain Glt1JIUacutertaacute Spam Chapei Ht11 Unlverlty ofCarolIna Pras 1992 53 CWest 1M Ntw Cultural Politict oIDifimut ot h 1M Dilm_ ofrJu BIa lnttlkcttuuacute Ferguson 1994 54 D Gregory Gtographicalmaginatiacuteons citado ln Ed Soj hitrlspace Carobridge Bladltwell 1994 55 B McHale Post Moaacuteernist Fietion Nova Iorque Routledge 1988~ M de Certeau HettrologitS Discouffl 01tlu Otbtr Manchester Manchester University Presa 1986 56 G Bruno Bodlly ArchirecturesAltrtmblag 19 dezembro1992 57 N Spector Ptilt GonzakzmiddotTorres The Solamon R Guggenheim Museum Nova Iorque 1995

radicalmente a advertecircncia do artista uma decisatildeo de 1986 da

Corte suprema autoriza doravante a justiccedila em todo Estado em

que a sodomia eacute ainda um crime a persegui-la mesmo quando consentida entre adultos em suma a intimidade do espaccedilo prishy

vado da cama acaba de entrar no espaccedilo puacuteblico Esta articulashy

ccedilatildeo entre o puacuteblico e o privado poderia criar segundo Spector uma histoacuteria mais silenciosa a marca vazia do companheiro do

artista morto de aids

Maravilhosa intuiccedilatildeo no comeccedilo da confer~ncia radiofocircnica

de Foucault em 1966 daquela passagem inexistente na conferecircnshy

cia para os arquitetos em 1967 em que o fil6sofo evocava como

primeira figura da heterotopia a cama dos pais que as crianccedilas

gostam de invadir com um prazer de transgressatildeo e de sonho das origens Naacuteo poderiacuteamos concluir que aqui a longa seacuterie de

rein~riccedilotildees do texto em muacuteltiplas redes e estrateacutegias que a longa

seacuterie de transformaccedilotildees da figura social de seu autor encontram

neste instante de sua trajetoacuteria a mais completa forma de recepshyccedilatilde0 58 Foucault natildeo declarara tantas vezes que almejava menos

leitores que utilizadores59

58 Ed Soja Heterotopies remembrance Df other spaccs in me citadd LAraquo Strattgies a jIJurna 01 tbeory culturt anaacute poines 3 1990 pp 1middot39 Post metropolis Critiacutecal Stuties 01 Ctti naacute Rtglgtnt Londle$ Blackwdl 2000 59 Em 200I uma associaccedilatildeo cultural italiana denominada EttrotpirJ publicou uma releitura de textos de Foucaulr sobre o espaccedilo sob o titulo Spnialtri

POSFAacuteCIO POSFAacuteCIO

53

52

A arquitetUra e o urbanismo naacuteo constituem diz ele um campo isoshylaacutevel Misturam-se com muacuteltiplas praacuteticas e discursos mas o espaccedilo

eacute o lugar privilegiado de compreensatildeo de como o poder opera

Inversamente ele bane da praacutetica do arquiteto toda esperanccedila

utoacutepica Os homens sonharam com maacutequinas libertadoras Mas por definiccedilatildeo natildeo existem maacutequinas de liberdade Jamais

a estrutura das coisas tem competecircncia para garantir a liberdade Nada eacute funcionalmente libertador A liberdade eacute o que se deve exercer a garantia da liberdade eacute a liberdade

Mestre doravante de um discurso poliacutetico e epistemoloacutegico sobre o espaccedilo Foucault deixa entatildeo ressurgir seu antigo conceito de heterotopia Diga-se entre parecircnteses lembro-me de ter sido

convidado por um grupo de arquitetos em 1966 para realizar um estudo do espaccediloi tratava-se do que na eacutepoca chamei de heterotopias espaccedilos singulares que encontramos em alguns

espaccedilos sociais cujas funccedilOes satildeo diferentes das dos outros ou tershy

minantemente opostas Os arquitetos trabalhavam neste projeto e no final do estudo algueacutem tomou a palavra _ um psicoacutelogo

sanreano - para me bombardear que o espaccedilo era reacionaacuterio e capitalista enquanto a histoacuteria e o devir eram revolucionaacuterios

Agravequela eacutepoca este discurso absurdo de modo algum era inabitual Hoje em dia qualquer um se dobraria de rir ouvindo aquilo

Natildeo haacute como natildeo se impressionar com esta longa anamnese em dois tempos primeiro em 1976 relativamente agrave objeccedilatildeo poliacuteshy

tica feita em 1967 e em 1982 enfim relativamente ao proacuteprio conceito de heterotopia em 1984 Foucault podia acolher favoshy

ravelmente a reutilizaccedilatildeo de sua conferecircncia pelo IBA de Berlim

Os dois organizadores da exposiccedilatildeo o alematildeo Johannes Gachnang e o italiano Marco de Michelis conheciam esse texto

em sua publicaccedilatildeo de 1968 em Architteturri7bull Ele sintonizava

estranhamente com a estrateacutegia do IBA tal como foi exposta por

um de seus dois responsaacuteveis J-P Kleihues48 executar a ideia

de uma cidade por fragmentos falar de arquitetur~ urbana sem traccedilar primeiramente um plano global de urbanismo respeitar

a variedade histoacuterica e topograacutefica berlinense pensar a composhysiccedilatildeo da cidade por ilhotas e ateacute confiar a diversos arquitetos a

reconstruccedilatildeo das residecircncias em uma mesma ilhota E por ocashy

siatildeo de uma reunificaccedilatildeo eventual justificar a conservaccedilatildeo da arquitetura staliniana

Sua traduccedilatildeo americana ocorreu em 1986 publicada prishy

meiramente na revista interdisciplinar de ComeU Diacriticis depois na revista de arquitetura LOtu9 Inaugurava-se uma carshy

reira nova para a interpretaccedilatildeo qualitativa dos espaccedilos outros

Natildeo se compreenderia esta carreira sem a simultaneidade da trashy

duccedilatildeo dos volumes II e III de Histoacuteria da sexualidaJe5deg a partir

dos quais Foucault torna-se uma referecircncia para aquilo que os americanos denominam poliacuteticas da identidade Movimentos

feministas movimento gay grupos eacutetnicos constituem a nova

47 Infurmaccedilaacuteo obtida com e1cs e concedida por Franccediloise Jolr 48 J-r Kleihues Agrave propos de I viUe europeacuteenne entreVista com M Bourdeau AMeS outubroI984

pp 95-99 49 M Foucault Ofother spaces Diacritieacuteiacutes 16 n I 1986 pp 22-27 e Lotushmnational 1986 50 M Foucaulr lUage tUacutes pIAis Paris Gallimaa 1984 uacute Souci Je soi Paris Gtlimn 1984 trad

1ht Use ofPlrasU Harmondsworth Penguin 1985 1ht Ca Dfthe sg Harmondsworth Penguin 1986 (Trad bras de M T da C Albuquerque O USQ dos p e O CuiJmJo Je si Rio de Janeiro Graal 1984 e 1985 - N da T)

POSFAacuteCIO

POSFAacuteCIO

54 rede de inscriccedilatildeo e a nova avaliaccedilatildeo das heterotopias A histoacuteshy

ria dos modos de subjetivaccedilatildeo realizada por Foucault atravessa

textos como lhe spaces that diferences make do urbanista Ed

Soja51 Gendered Spaces da feminista Daphne Spain52 lhe New Cultural Politics ofDijforence de Cornel West53 ou Geographical lmaginations do geoacutegrafo Derek Gregory54

Lugar de emergecircncia da heterotopia a anaacutelise literaacuteria dela

se apropria com Brian McHale Michel de Certeau5S a anaacutelise

fiacutelmica com Giuliana Bruno56bull Foucault torna-se passagem obrishy

gatoacuteria para toda anaacutelise do espaccedilo constata Soja

O mesmo se passa com as artes plaacutesticas Apresentando as

obras do artista plaacutestico cubano Felix Gonzalez-Torres Nancy

Spector descreve uma experiecircncia de ambiente heterotoacutepico

realizada em Manhattan57bull Em vinte e quatro paineacuteis de anuacutencio

publicitaacuterio das instalaccedilotildees urbanas de Manhattan Gonzalezshy

-Torres afixou o contraespaccedilo constituiacutedo por imensa foto em preto

e branco da intimidade de uma cama exposta Desnudamento

absoluto de um puro roccedilar de lenccediloacuteis leve traccedilado de duas cabeshy

ccedilas no vaacuteo entre os dois travesseiros onde cada qual pode proshy

jetar ou a interrupccedilatildeo do sono ou o amor consumado ou mais

51 Ed Soja The spa= that dlfenna makc ln M Kelm e S PIlbullbull PI4u iI1III lhe Politics olidmtiacutety NQVlI Iorque Roudedge 1993 pp 183middot205 52 D Spain Glt1JIUacutertaacute Spam Chapei Ht11 Unlverlty ofCarolIna Pras 1992 53 CWest 1M Ntw Cultural Politict oIDifimut ot h 1M Dilm_ ofrJu BIa lnttlkcttuuacute Ferguson 1994 54 D Gregory Gtographicalmaginatiacuteons citado ln Ed Soj hitrlspace Carobridge Bladltwell 1994 55 B McHale Post Moaacuteernist Fietion Nova Iorque Routledge 1988~ M de Certeau HettrologitS Discouffl 01tlu Otbtr Manchester Manchester University Presa 1986 56 G Bruno Bodlly ArchirecturesAltrtmblag 19 dezembro1992 57 N Spector Ptilt GonzakzmiddotTorres The Solamon R Guggenheim Museum Nova Iorque 1995

radicalmente a advertecircncia do artista uma decisatildeo de 1986 da

Corte suprema autoriza doravante a justiccedila em todo Estado em

que a sodomia eacute ainda um crime a persegui-la mesmo quando consentida entre adultos em suma a intimidade do espaccedilo prishy

vado da cama acaba de entrar no espaccedilo puacuteblico Esta articulashy

ccedilatildeo entre o puacuteblico e o privado poderia criar segundo Spector uma histoacuteria mais silenciosa a marca vazia do companheiro do

artista morto de aids

Maravilhosa intuiccedilatildeo no comeccedilo da confer~ncia radiofocircnica

de Foucault em 1966 daquela passagem inexistente na conferecircnshy

cia para os arquitetos em 1967 em que o fil6sofo evocava como

primeira figura da heterotopia a cama dos pais que as crianccedilas

gostam de invadir com um prazer de transgressatildeo e de sonho das origens Naacuteo poderiacuteamos concluir que aqui a longa seacuterie de

rein~riccedilotildees do texto em muacuteltiplas redes e estrateacutegias que a longa

seacuterie de transformaccedilotildees da figura social de seu autor encontram

neste instante de sua trajetoacuteria a mais completa forma de recepshyccedilatilde0 58 Foucault natildeo declarara tantas vezes que almejava menos

leitores que utilizadores59

58 Ed Soja Heterotopies remembrance Df other spaccs in me citadd LAraquo Strattgies a jIJurna 01 tbeory culturt anaacute poines 3 1990 pp 1middot39 Post metropolis Critiacutecal Stuties 01 Ctti naacute Rtglgtnt Londle$ Blackwdl 2000 59 Em 200I uma associaccedilatildeo cultural italiana denominada EttrotpirJ publicou uma releitura de textos de Foucaulr sobre o espaccedilo sob o titulo Spnialtri

POSFAacuteCIO POSFAacuteCIO

54 rede de inscriccedilatildeo e a nova avaliaccedilatildeo das heterotopias A histoacuteshy

ria dos modos de subjetivaccedilatildeo realizada por Foucault atravessa

textos como lhe spaces that diferences make do urbanista Ed

Soja51 Gendered Spaces da feminista Daphne Spain52 lhe New Cultural Politics ofDijforence de Cornel West53 ou Geographical lmaginations do geoacutegrafo Derek Gregory54

Lugar de emergecircncia da heterotopia a anaacutelise literaacuteria dela

se apropria com Brian McHale Michel de Certeau5S a anaacutelise

fiacutelmica com Giuliana Bruno56bull Foucault torna-se passagem obrishy

gatoacuteria para toda anaacutelise do espaccedilo constata Soja

O mesmo se passa com as artes plaacutesticas Apresentando as

obras do artista plaacutestico cubano Felix Gonzalez-Torres Nancy

Spector descreve uma experiecircncia de ambiente heterotoacutepico

realizada em Manhattan57bull Em vinte e quatro paineacuteis de anuacutencio

publicitaacuterio das instalaccedilotildees urbanas de Manhattan Gonzalezshy

-Torres afixou o contraespaccedilo constituiacutedo por imensa foto em preto

e branco da intimidade de uma cama exposta Desnudamento

absoluto de um puro roccedilar de lenccediloacuteis leve traccedilado de duas cabeshy

ccedilas no vaacuteo entre os dois travesseiros onde cada qual pode proshy

jetar ou a interrupccedilatildeo do sono ou o amor consumado ou mais

51 Ed Soja The spa= that dlfenna makc ln M Kelm e S PIlbullbull PI4u iI1III lhe Politics olidmtiacutety NQVlI Iorque Roudedge 1993 pp 183middot205 52 D Spain Glt1JIUacutertaacute Spam Chapei Ht11 Unlverlty ofCarolIna Pras 1992 53 CWest 1M Ntw Cultural Politict oIDifimut ot h 1M Dilm_ ofrJu BIa lnttlkcttuuacute Ferguson 1994 54 D Gregory Gtographicalmaginatiacuteons citado ln Ed Soj hitrlspace Carobridge Bladltwell 1994 55 B McHale Post Moaacuteernist Fietion Nova Iorque Routledge 1988~ M de Certeau HettrologitS Discouffl 01tlu Otbtr Manchester Manchester University Presa 1986 56 G Bruno Bodlly ArchirecturesAltrtmblag 19 dezembro1992 57 N Spector Ptilt GonzakzmiddotTorres The Solamon R Guggenheim Museum Nova Iorque 1995

radicalmente a advertecircncia do artista uma decisatildeo de 1986 da

Corte suprema autoriza doravante a justiccedila em todo Estado em

que a sodomia eacute ainda um crime a persegui-la mesmo quando consentida entre adultos em suma a intimidade do espaccedilo prishy

vado da cama acaba de entrar no espaccedilo puacuteblico Esta articulashy

ccedilatildeo entre o puacuteblico e o privado poderia criar segundo Spector uma histoacuteria mais silenciosa a marca vazia do companheiro do

artista morto de aids

Maravilhosa intuiccedilatildeo no comeccedilo da confer~ncia radiofocircnica

de Foucault em 1966 daquela passagem inexistente na conferecircnshy

cia para os arquitetos em 1967 em que o fil6sofo evocava como

primeira figura da heterotopia a cama dos pais que as crianccedilas

gostam de invadir com um prazer de transgressatildeo e de sonho das origens Naacuteo poderiacuteamos concluir que aqui a longa seacuterie de

rein~riccedilotildees do texto em muacuteltiplas redes e estrateacutegias que a longa

seacuterie de transformaccedilotildees da figura social de seu autor encontram

neste instante de sua trajetoacuteria a mais completa forma de recepshyccedilatilde0 58 Foucault natildeo declarara tantas vezes que almejava menos

leitores que utilizadores59

58 Ed Soja Heterotopies remembrance Df other spaccs in me citadd LAraquo Strattgies a jIJurna 01 tbeory culturt anaacute poines 3 1990 pp 1middot39 Post metropolis Critiacutecal Stuties 01 Ctti naacute Rtglgtnt Londle$ Blackwdl 2000 59 Em 200I uma associaccedilatildeo cultural italiana denominada EttrotpirJ publicou uma releitura de textos de Foucaulr sobre o espaccedilo sob o titulo Spnialtri

POSFAacuteCIO POSFAacuteCIO