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Do Teatro Performativo e das vanguardas: anotações sobre o Encontro Mundial de Artes Cênicas Abro algumas anotações sobre duas conferências do 6o Encontro Mundial de Artes Cênicas A cena emergente. - Josethe Féral apresentou uma conferência intitulada “Por uma poética da performatividade”. O conceito de performatividade é colocada no lugar de teatro-pós moderno e teatro pós- dramático. - Por que performatividade? Féral entede que o conceito de performatividade está no centro do teatro hoje. Ela discutiu o conceito de performance, que subtende duas visões: a) o conceito antropológico, estudado e difundido por Richard Schechner e b) o conceito oriundo do campo da performance art. Féral fará uso das duas fontes para construir a noção de performatividade. No primeiro caso, ela considera que o termo performance toma um sentido muito amplo, ao abarcar, na trilha de Shechner, todos os domínios da área da cultura, desde os ritos, esportes, eventos espetaculares etc. O conceito, então, perderia muito de sua eficácia teórica. - Féral contextualiza essa linha de pensamento: no desejo político dos anos 80 de reinscrever a arte no cotidiano, combatendo ainda a separção entre cultura popular e cultura erudita. A obra que teria impactado decisivamente o contexto

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Do Teatro Performativo e das vanguardas: anotações sobre o Encontro Mundial de Artes Cênicas

Abro algumas anotações sobre duas conferências do 6o Encontro Mundial de Artes Cênicas A cena emergente.

- Josethe Féral apresentou uma conferência intitulada “Por uma poética da performatividade”. O conceito de performatividade é colocada no lugar de teatro-pós moderno e teatro pós-dramático.

- Por que performatividade? Féral entede que o conceito de performatividade está no centro do teatro hoje. Ela discutiu o conceito de performance, que subtende duas visões: a) o conceito antropológico, estudado e difundido por Richard Schechner e b) o conceito oriundo do campo da performance art. Féral fará uso das duas fontes para construir a noção de performatividade. No primeiro caso, ela considera que o termo performance toma um sentido muito amplo, ao abarcar, na trilha de Shechner, todos os domínios da área da cultura, desde os ritos, esportes, eventos espetaculares etc. O conceito, então, perderia muito de sua eficácia teórica.

- Féral contextualiza essa linha de pensamento: no desejo político dos anos 80 de reinscrever a arte no cotidiano, combatendo ainda a separção entre cultura popular e cultura erudita. A obra que teria impactado decisivamente o contexto cultural nesta perspectiva é The end of humanism, de Richard Shecnner, publicada em 1982.- Josette Féral ainda citou outro autor e obra, que não consegui anotar, e que teria focado a performace como pensamento artístico. Renato Cohen, um autor, criador e difusor desse campo no Brasil, seguia justo pelas trilhas de uma performance como linguagem. A performance, nesse sentido, redefiniu, para Féral, os parâmetros da arte e do teatro.

- Portanto, para construir o conceito de performatividade ela utiliza, numa via, a visão antropológica, via Schechner, para quem o ato performativo caraceteriza-se como um jogo ritual sob três aspectos: being (ser), doing (fazer) showing (mostrar). E noutra via, as pesquisas e criações da performance art.

- No teatro perfomartivo, não estamos mais na esfera da representação, mas no acontecimento - no real. Tais realizações

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não podem mais serem julgadas, diz Féral, como sendo verdadeiras ou falsas: elas simplesmente acontecem. Pertecem à ordem da ocorrência (eventness). Coloca-se em cena o processo, realçando o aspecto lúdico do acontecimento, num risco real do performer.

- Josette Féral mostra ainda que a performatividadade tem a ver com os elementos de desconstrução e intertextualidade, de escrita como obra performática (Derrida). Nesta ordem, pode-se ou não, no teatro performativo, que o objetivo seja atingido. Há uma desconstrução dos signos e o espectador descobre o prazer em participar disso. O objetivo da performance não é o de produzir signos, como é o caso do teatro, mas sim de flutuar na ambiguidade das significações.

- No final de sua exposição, ela pergunta se a performatividade, ao se contrapor à representação, não estaria se diferenciando também da teatralidade.

- Richard Schechner fez teleconferência intitulada “Cinco vanguardas… ou nenhuma”. Alguns traços por ele realizados me chamam a atenção: a) se ainda podemos falar de vanguardas quando em todos os lugares (festivais, encontros etc.) o que temos são os procedimentos e realizações da performance, das linhas de experimentação em arte; b) a economia global; c) a transformação da arte em evento (vide o 11 de Setembro nos EUA); d) as relações entre arte e ritual. Apesar de não estarem situadas no mesmo dia, a fala de Schechner me coloca muito mais em continuidade e contraponto à de Josette Féral - por isso as apresento juntas.

- A exposição de Schechner sobre a globalização e a performance, assim como a transformação da arte em evento trouxe muitas perguntas. Schechner citou dois comentários de artistas sobre os ataques às torres gêmeas, sem falar no seu comentário pessoal, já que ele assistiu à destruição do seu próprio apartamento. O que ele afirma é que não se tratava, naquele caso, de uma ofensiva puramente militar, mas de uma investida no plano mental, na transformação do evento num espetáculo: no efeito do medo. Schechner cita dois comentários de artistas sobre o ataque às torres gêmeas. Primeiro, o músico Karlheinz Stockhausen, que afirmou sobre o ataque terrorista: "O que

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aconteceu lá, e agora todos vocês têm de reajustar seus cérebros, é a maior obra de arte que já existiu"

- O segundo, Dario Fo, que disse ser a destruição de vidas produto da mesma lógica, capitalista, que mantém milhares de pessoas em condições sub-humanas no planeta, quando não simplesmente mortas dia após dia. O que chocou a mídia e muitas outras pessoas, diz Schechner, não foi a fala de Dario Fo, mas a de Stockhausen, porque este cita a arte. Equivale um ataque terrorista à categoria de obra de arte? É a pergunta que Richard Schechner deixa no ar.

- Muitas e muitas pessoas no mundo dedicam-se à arte como vida, realizando o sagrado, não buscando recursos ou fama. Lembremos que, no contexto do pensamento de Schechner a performance está ligada às dimensões simbólicas do agir humano, se posso dizer assim. Portanto, como ele mesmo disse na teleconferência, se há os que procuram na arte a chance de se tornarem inseridos no mercado, há os que se dedicam aos aspectos religiosos e cotidianos. Há, aqui, ecos de John Cage, que Allan Kaprow teria se apropriado ao falar de uma arte como vida, diferentemente de uma arte como arte. Se esta última segue na linha de tradição da obra de arte a outra tem por necessidade as pequenas ritualizações cotidianas que formam experiências possíveis experiências estéticas.

- John Cage, apropriando-se do Zen Budismo, trouxe esse plano possível: o de que não há nenhuma experiência do sagrado (em religião ou arte) que seja superior à nossa experiência cotidiana.

- Penso que, num mundo globalizado, de um capitalismo que se faz cognitivo e cultural, a performance art e os planos de experimentação passam a fazer parte daquilo que Maurizzio Lazzarato e Antonio Negri chamam de “trabalho imaterial”.

- Além disso, penso que Shechner está falando não somente de uma performance num sentido amplo, que é o antropológico (ritos e modos de ser, fazer e mostrar), mais do que isso, ele abala definitivamente as fronteiras e limites da arte, trazendo-a para o plano da mente e da impossiibilidade de categorização. A arte explode para fora dos seus redutos de desenvolvimento e passa por mutações

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Do teatro dramático e do teatro performativo I

Pequenos Milagres/Grupo Galpão - Foto Joâo Marcos Rosa

A análise de Lehmann sobre o pós-dramático traz em si um problema: a idéia subjacente ao título de uma superação. No entanto, não é esse, o foco dos estudos de Lehmann. Ele discute, entre outras coisas, a crise da noção de tempo histórico, subjacente ao drama. Aponta, portanto, para as respostas produzidas pelos artistas cênicos. Ocorre que Lehmann expõe as rupturas com o universo engendrado pela junção teatro e drama. Neste aspecto, até mesmo o teatro épico estaria ainda preso à forma dramática, apesar de ter vislumbrado e contribuído para outras teatralidades.

I. Superação do drama?

A condição pós-dramática vem no âmbito dos estudos realizados por Peter Szondi relativos ao drama moderno. Tem a ver, também, com os textos de Heinner Muller, que não mais podem ser entendidos como subjacentes ao universo do teatro dramático.

O problema dessa abordagem é que ela tem como ponto de partida a evolução e crise do drama moderno, nas trilhas de Szondi. Como se o epicentro de um outro teatro (para não dizer novo) surgisse somente em função desse universo.

Fernando Villar, por exemplo, relaciona as criações cênicas que radicalizam procedimentos que ultrapassam as fronteiras do drama muito mais ao âmbito da performance art, mas não exclusivamente às artes plásticas (a teatralidade que despontaria aí), mas também às experiências teatrais da Rússia revolucionária (Meyerhold, formalismo e construtivismo), ao movimento dadaísta, ao Happening etc. Por isso, Villar fala mais de um teatro pós-performance art. Não no sentido de superação, mas que vem contaminado pela performance.

Já o conceito de teatro performativo, formulado por Josette Féral, apesar de não se apresentar, pelo menos no que é do meu

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conhecimento, numa publicação mais ampla, aponta para uma outra taxonomia. Obviamente, são planos diferentes - cada um desses autores resolvendo ou tentanto resolver problemas específicos: num, a fratura do drama, noutro, a radicalidade performática, localizada no ato performativo.

Digo isso porque há começa a surgir em torno do conceito de pós-dramático um equívoco: de conceito passa a virar uma "coisa". Além disso, ocorre o risco de meramente produzirmos um filtro classificatório. Não existe a "coisa" que seria um teatro pós-dramático, a ser classificado num conjunto, mas sim um conceito que abordaria as forças e potências que, entre outros elementos, fazem eclodir o real na relação atores e espectadores. Aliás, Deleuze é mestre em taxonomias criativas. Não parte de uma sucessão disso depois daquilo, como se o que viesse depois fosse melhor. Até porque seu pensamento é geográfico e não histórico - opera por camadas, extratificações, topologias etc. Quando discute a imagem-movimento e a imagem-tempo, desenvolve dois conceitos que nos fazem entender modos de operar com as narrativas no cinema. Há diferença e é isso, afinal, o que provoca o pensamento. Lehmann, por sua vez, não se enveredou pelo pós-modernismo. Ao contrário disso, ele abordou, com lentes poderosas, o fenômeno de um teatro que não mais possui vínculo interno com o drama. Sintoniza, assim, com o seu tempo e contribui com suas análises para o entendimento de uma vasta e audaciosa produção cênica que não cabe ser classificada de pós-moderna. O problema reside na difusão de uma opinião que busca o must do momento. É sempre algo assim: a última novidade.

O pensamento criativo passa oblíquo sobre isso. Até porque as coisas não se encaixam nessas classificações. A criação cênica, quando instaura poéticas, é singular - opera resistências com as armas de que dispõem e inventam.

Pequenos Milagres, do Grupo Galpão trilha o teatro dramático. E com uma competência maravilhosa. Não é algo anterior às inovações do que seria um teatro pós-dramático. Porém, competências, em arte, como em filosofia e ciência, são singularidades. Ninguém as confere e não serve de modelo para ninguém - se quiser, como inspiração, problema, impulso para a criação. Deleuze, no texto O ato de criação, avisa, entretanto,

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para tomarmos cuidado com o "sonhos dos outros", para não ser capturado. Você não cria, você mingua. Fabrique seu sonho.

No caso de Pequenos Milagres, vemos as influências que vão do melodrama (uma vertente brasileira e popular que o Galpão, em alguns momentos, assim como outros criadores, como Eid Ribeiro, souberam utilizar nos seus próprios planos inventivos) ao drama moderno, incluindo procedimentos de composição cênica contemporânea. Temos enquadramentos do cinema, proporcionando imagens muito bonitas. Não se pode ver tal espetáculo querendo ver outro, comparando com outra coisa.

Numa das cenas, o ator manipula uma cama de ferro, produzindo um som - a trilha - sublinhando sonoramente o seu diálogo com a mulher. A ação do ator, no caso, tem a ver com a dimensão da teatralidade - das ferramentas que a encenação convoca. Os atores movimentam o cenário no sentido de produzir, também, enquadramentos, recortes etc. Não são funções dos personagens, mas da cena. Nesse sentido, não mais vinculam ao drama, apesar de estarem à serviço do desenvolvimento dramático. São elementos que apontam para uma materialidade cênica presente, por exemplo, no teatro performativo (ou pós-dramático, se quiserem).

Toda a beleza das misturas impuras, como bem lembra Marcelo Kraiser, a partir de Barthes. Ainda bem.

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Teatro Pós-dramático: por um programa de desfiguração/ despersonalização.

Artes Cênicas - Arena LivrePor Luiz Carlos de Almeida Garrocho 12 de junho de 2008Sobre o autor

Muito se pergunta sobre a função-personagem e a função-fábula no teatro pós-dramático, teatro performativo etc.

Quando penso as forças de um teatro físico, que carrega as potências performativas e pós-dramáticas, configuro um programa de desfiguração/despersonalização.O que vem a ser isso?

fabula

Faço alguns apontamentos sobre o assunto. Algumas pessoas sempre discutem isso comigo e, invariavelmente, nas oficinas de treinamento em e como criação, assim como nos processos criativos, sei que enveredo por um caminho outro de criação cênico-corpórea.

Para o público, uma experiência estética em que a fábula é construída na sua cabeça. Que não se espere símbolos a serem decifrados, apenas afecções. Ninguém, por exemplo, espera traduzir uma composição puramente musical. Ela não ilustra nada. O mesmo ocorre com os teatros físicos, na esteira dos teatros pós-dramáticos e performativos: trabalham com sensações e sentidos, não com significados. Estes são inevitáveis, mas não são procurados.Para quem se arrisca nesse tipo de criação, outras angústias o acometem. Isso é comum porque as escolas de teatro conhecem e difundem os teatros dramáticos. Mais do que isso: estabelecem um vínculo interno (e eterno) entre teatro e drama.

Teatro ou dança? Teatro e dança? O que vem a ser um teatro físico? Para quem tem dúvidas sobre o tema, Lúcia Romano, no

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seu belo livro, Teatro do corpo manifesto: teatro físico, apresenta um execelente histórico e conceitos.

Faço minhas anotações (não classificatórias, procurando antes cartografar um desejo):

1. Pensar negativamente é pensar o que falta ao outro. Ou o que ele não é. Isso comumente ajuda, mas torna o pensamento preso a um referente. Temos que avançar e dizer a que viemos: qual o programa de um teatro físico? Não basta dizer que é um teatro sem personagens e sem drama.2. E é sempre bom insistir: tal programa não nos salva nem nos redime do fracasso. Além disso, não é um teatro melhor que os outros. O que ele busca é responder às tormentas que o acometem. Mais nada do que isso. Se está na moda, isso preocupa e não.

3. Compor com as forças da desfiguração. Deleuze, em Francis Bacon - lógica da sensação, discorre sobre tais potências que nos fazem passar da Figuração para a desfiguração: "quando a sensação visual confronta a força invisível que a condiciona". Assim, Bacon não quer pintar a figura do horror, mas sim produzir a figuração do grito. O grito como a captação de uma força invisível, diz Deleuze sobre Bacon.4. Fazer a distinção entre figura de figuração. As Figuras são forças visíveis. Deleuze diz que a função das Figuras é a de tornar visíveis as forças invisíveis. São aparições. Mas as Figuras são, comumente, presas à figuração, narração, ilustração. Deleuze mostra que "o figurativo (a representação) implica, com efeito, a relação entre uma imagem e um objeto que ela deve ilustrar..." E a narrativa funciona como o correlato da ilustração: "uma história que se insinua ou tende a se insinur para animar o conjunto ilustrado".5. Desfiguraçâo: programa em que "o corpo visível enfrenta, como um lutador, as potências do invisível".

6. Há seres. Há figuras. Insisto muito nisso. Daí a diferença do teatro físico com a dança conceitual (contemporânea) e mesmo a dança expressiva (moderna). Há seres e relações. No sentido de forças, violências, atravessamentos. De um lado, são ações poéticas e de outro relações a-significantes (que modificam expectativas e significados). Mas são relações, sempre.

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7. O teatro clássico moderno constrói fábulas sobre personas em conflito. Num teatro físico trata-se de forças que atuam sobre corpos. Não há eu. Não há núcleos de subjetividade em conflito intersubjetivo ou com o mundo. Há epifânias do performer e da cena. Vide o teatro de Robert Wilson.

8. Para esse plano interessa muito o movimento contemporâneo da dança, principalmente quando ela ultrapassa a estética do movimento extensivo para adentrar nas tormentas do movimento intensivo (Artaud).

9. Matteo Bonfitto, noutra articulação diversa mas muito apropriada para este programa, em O Ator compositor, fala de três actantes: a) máscara; b) texto e c) estado. O actante máscara remete à persona (psicológica) e ao tipo. O actante texto é uma característica de Heinner Müller: como se poderia, a partir de Medeia Material falar de um núcleo subjetivo em desenvolvimento? Há seres textuais, digamos assim. E o terceiro, o actante estado, diz justamente das pulsões corporais.

10.O universo dos seres é aquele que transita entre a fábula e sua dissipação, instaurando o que Bonfitto chama de actante estado, produzindo Figura com potências desfigurativas. Ou, ainda, que conduz à espacialização desses seres. Você pode identificar, isto mesmo, classificar numa identidade, um determinado ser: uma caracterização cênica. No entanto, esta última logo varia e subtrai tudo o que poderia trazer uma história com lógica causal, organizada do passado ao futuro e vice-versa (drama).

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O teatro-narrativo performático e as concepções de sujeito nas performances de Denise Stoklos

estudo comparativo com a obra de Marcel Duchamp por Francine Jallageas (Vinculado ao projeto intitulado: Narração e sujeito no teatro brasileiro contemporâneo: estudo sobre a constituição fronteiriça e diaspórica da escrita cênico-dramatúrgica atual. De responsabilidade do professor orientador José Da Costa)

Em 1992 Denise Stoklos, no livro onde organizou as premissas que constituem seu projeto teatral, o Teatro Essencial, afirmou:

"Não cito, não reproduzo, não ponho idéias de outros em cena, não estou interessada em ser comparada com ninguém, nem em ser classificável em nenhuma categoria específica: faço ‘Teatro Essencial’" (Stoklos: 50, 92)

Ao longo dos mais de dez anos subseqüentes a essa afirmação o que se verificou em sua extensa produção, me parece, foi, em muitos sentidos, o desfazimento, desses cinco ‘nãos’ enumerados pela performer.

Pudemos ver em seu teatro citações de ordens múltiplas. Vejamos alguns exemplos. Primeiramente, no solo de 1994, Des-Medéia, onde a menção extrapola o contexto mitológico grego fundador do pensamento ocidental e incide sobre a tradição teatral. Nesta peça, os personagens Medéia e Coro, comuns ao texto homônimo do autor trágico Eurípides, estão localizados na ‘Grécia e/ou Brasil’ e seu tempo é ‘431 a.c. e/ou presente’, o que nos leva a compreender que o procedimento que Stoklos operou, foi, além da citação, a colagem, pois nesse local e tempo, estão dois lugares e dois tempos distintos, que só podem estar juntos e simultâneos se não estão apenas recortados de seu contexto original, mas também colados lado a lado.

Outro bom exemplo, entre muitos, do uso da citação em seu teatro está em Denise Stoklos in Mary Stuart, de 87, cujo roteiro

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publicado permite elencar, para além da personagem título, a rainha da Escócia, um conjunto de nomes citados, são eles: Gandhi, Shakespeare, Molière, Artaud, Hamlet, Van Gogh, Gertrud Stein, Leonardo da Vinci, Guttemberg e outros.

Um terceiro exemplo nos permite perceber ainda que há citações presentes nos solos de Denise Stoklos que são enunciadas como tais, retiro três fragmentos onde isto fica claro, da transcrição que fiz do texto de seu último espetáculo, Olhos Recém Nascidos:

Primeiro fragmento: "O primeiro filósofo brasileiro Matias Aires escreve em 1752: Nascem os homens iguais. Um mesmo e igual princípio os anima e os conserva. Somos organizados pela mesma ordem e por isso estamos sujeitos às mesmas paixões e as mesmas vaidades..."

Segundo fragmento: "...como diria a grande escritora brasileira Clarice Lispector, que vai ser muito citada aqui."

Terceiro fragmento: "Acabo de rever uma das únicas entrevistas que Clarice Lispector concedeu à televisão. Quando lhe perguntam algo como o que ela espera mudar com sua literatura, ela diz: Nada. Não acredito que a literatura possa mudar nada."

Para além desses exemplos, me pergunto quantas são as citações e/ou auto-citações que constituem não apenas o texto dramatúrgico, mas a cena teatral de Stoklos, e nesse sentido, retiro o exemplo do mesmo Olhos Recém Nascidos, solo onde Denise Stoklos cita Spalding Gray, reproduzindo uma imagem do performer por meio de um projetor. Quando nos deparamos com o vídeo do performer observamos que neste solo, Stoklos está sentada, assim como Gray, diante de uma mesa com um microfone, alguns papéis e um copo d’água e, desse modo, o espetáculo como um todo pode ser compreendido como uma citação, que se dá por meio de dois procedimentos de reprodução.

O primeiro está na exibição da reprodução vídeográfica do performer Spalding Gray. O segundo está na conformação cênica de Denise Stoklos no espaço, a reproduzir a conformação que podemos observar na imagem de Gray, além disso, Stoklos assim como o performer americano, está a narrar acontecimentos autobiográficos. Ela nos diz, simultaneamente à projeção da imagem, cito Olhos Recém Nascidos:

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"Eu me dispus a despir-me de minha mímica, de minha expressão corporal, de meus gestos, de quase nenhuma expressão facial ou vocal. Uso-me da sinfonia de Mahler na sua quinta sinfonia, em repetição de apenas um movimento, o adagieto. E algum longínquo eco do estilo de um autor-ator norte-americano, chamado Spalding Gray, falecido há pouco tempo, que se sentava e com o texto sobre a mesa, lia-o, simplesmente. Acreditando que a narrativa da vida é em si dramática o suficiente. Ok! Pode tirar o vídeo. Tira o vídeo. Eu falei tira o vídeo. Eles já entenderam as semelhanças e as diferenças. Eles não são bobos. Redundância não, por favor tira o vídeo. Tira o vídeo! Chega! A gente nunca tem o controle da situação inteira."

Outro procedimento muito parecido, isto é, onde a citação se dá por meio da reprodução, acontece em Elis Regina. Dentro da peça de mesmo nome, a reprodução das músicas vem a constituir a sonoridade completa do espetáculo. Neste solo não há a fala de Denise Stoklos e nem um outro ruído. Segundo a ficha técnica:

"Este espetáculo foi criado por Denise Stoklos para homenagear algumas interpretações de Elis Regina. Traz ao palco uma coreografia sobre suas interpretações musicais. Não é uma abordagem biográfica, mas uma complementação corporal à entonação e respiração interpretativa da grande cantora brasileira. Espetáculo de uma hora de duração que encena diversas canções através da expressão gestual e de mudanças de iluminação. Nenhuma palavra é dita pela atriz em cena. A cantora enuncia todas as palavras do espetáculo e a mímica oferece sua movimentação como uma das possíveis versões gestuais dessas canções em cena."

Distanciando-se da proposição de 1987 contida no Manifesto do Teatro Essencial de Stoklos: "Quero o palco nu. Os figurinos, cenários e discursos radiofônicos muitas vezes acoplam parasitárias imagens no ator. Não quero decoração." (Stoklos:1992, 6)

A experiência de colocar as idéias de Louise Bourgeois em cena produziu um espetáculo onde a intertextualidade pôde expandir-se para o espaço cênico, ocupado então pelas esculturas da artista francesa, especialmente concebidas para Louise Bourgeois - Faço, Desfaço e Refaço. Em 1997, do fecundo diálogo Stoklos-

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Bourgeois, a performer relata: "Durante o processo de criação, eu apresentava as cenas diretamente para ela, em sua casa. O texto do espetáculo é fruto da compilação de seus escritos, entrevistas e declarações. Ela assistia a tudo e participava do processo. Desde o envio do material cenográfico para o teatro até a divulgação da lista de contatos de seu estúdio. Não faço nada que não tenha tido aprovação dela como expressão legítima de Louise Bourgeois." (Revista E, número 97, Sesc SP)

Além disso, a sobreposição do trabalho dessas duas artistas neste espetáculo nos leva mais uma vez a pensar os procedimentos que os colocaram justapostos. Se definirmos a colagem como um procedimento que foi utilizado por diversos artistas a partir da primeira década do século XX, como uma técnica através da qual inclui-se o objeto mesmo no lugar de sua representação e isso podemos observar, por exemplo, nas pinturas de Pablo Picasso onde pedaços de jornal ou tecidos (ou ainda outros objetos) eram colados sobre as telas pintadas em substituição à pintura representando o jornal, então, nesse caso, estou por retomar a discussão que inaugurou meu subprojeto de pesquisa, isto é, precisamente a discussão em torno das aproximações possíveis entre certos traços do teatro de Stoklos e algumas características presentes nas artes do início do século XX, cujo principal expoente seria a obra de Marcel Duchamp. Nesse sentido, a colagem, enquanto procedimento utilizado por Denise Stoklos no interior de seus espetáculos, conforme os exemplos levantados, muito se aproxima da obra de Marcel Duchamp, que notadamente levou o princípio da colagem ao máximo em seu famoso ready-made Fonte, de 1917, onde um urinol de porcelana, o objeto, foi deslocado de um banheiro para ser "colado" não mais em uma tela, mas em um espaço maior, tridimensional.

O teatro de Denise Stoklos, a despeito do desejo expresso em sua máxima: "não estou interessada em ser comparada com ninguém", como qualquer obra de relevância sobre a qual nos debruçamos, inspira comparações. Uma vez que para estabelecer qualquer pensamento critico, em maior ou menor grau, operamos um exercício em que colocamos a obra em questão em confronto com outras, e as examinamos simultaneamente, a fim de conhecer as semelhanças, as diferenças ou as relações entre elas. Curiosamente, Denise Stoklos é objeto de comparação não só da crítica especializada proveniente da Finlândia que escreveu: "Stoklos é como um Dom Quixote, em sua solitária

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guerra contra o cinismo e o egoísmo." (Stoklos: 92, 68) Mas também do meu atual subprojeto de pesquisa, que partiu precisamente da tentativa de estabelecer um estudo comparativo entre sua obra e os traços performáticos presentes na obra de Marcel Duchamp.

Do que se trata então o manifesto do Teatro Essencial escrito por Denise Stoklos? Trata-se de uma proposta de teatro? Constitui um programa estético? Expressa os fundamentos de uma experiência teatral que ainda não se concluiu? Pretende normatizar essa experiência teatral? Fixar um nome, uma categoria específica?

Quem sabe o teatro e o percurso artístico de Stoklos manifestem-se por si mesmos. E expressem a tensão e as contradições que parecem haver entre o pensamento delineado no fim da década de 80 e início de 90 - em forma de manifesto, tratado ou entrevista, agrupados no interior do que Stoklos chamou Teatro Essencial - e o que veio a constituir nas décadas seguintes o pensamento e a escritura cênica de seus espetáculos solos.

Denise Stoklos nasceu em Irati, Paraná, em 14 de julho de 1950. Em Curitiba, aos 18 anos, junto ao Grupo Ferramente, começou seu trabalho como autora, diretora e atriz, com a peça Círculo na Lua, Lama na Rua, publicada em sua cidade natal.

A estréia dessa primeira peça rendeu-lhe o convite para trabalhar com Oraci Gemba, sob sua direção atuou em montagens locais tais como Arena Conta Zumbi, Arena Conta Tiradentes e Via Crucis. Graduada em jornalismo pela Universidade Federal do Paraná e em ciências sociais pela Puc, Denise Stoklos parte primeiro pro Rio de Janeiro e depois para São Paulo, para as respectivas montagens das peças, Missa Leiga, com a direção de Ademar Guerra e, Bonitinha, mas Ordinária, dirigida por Antunes Filho. Nesse período Stoklos trabalha com atores como Fregolente, Margarida Reis e Miriam Mehler. Mais tarde trabalhou com Luiz Antonio Martinez Corrêa e Cacá Rosset em peças curtas de Brecht, como Sai de mim, Tinhoso, participou de peças dirigidas por Mario Masetti, Roberto Vignati e Fauzi Arap, sob a direção de Antonio Abujamra, trabalhou em teleteatros da TV Cultura.

Em 1977 Denise Stoklos, muda-se para Londres a fim de aprofundar seus estudos em mímica, onde desenvolve e

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apresenta seu primeiro solo, Denise Stoklos - One Woman Show, retornando ao Brasil, em 1980, além de ficar em cartaz com esse espetáculo, passa a ministrar cursos de mímica. No ano de 1982 estuda na Califórnia e elabora Elis Regina, o seu segundo solo. Depois de Elis Regina apresenta-se durante dois anos em Um Orgasmo Adulto Escapa do Zoológico e, em 1986 trabalha na co-autoria e atuação da peça Habeas Corpus.

O ano de1987 marca a estréia de Denise Stoklos in Mary Stuart no teatro La Mama, em Nova York, e o subseqüente convite de estrear nesse teatro, todos os anos, seus novos trabalhos. Sobre o La Mama, talvez seja interessante acrescentar a seguinte contextualização feita por Sylvia Fernandes: "O La Mama e o Living Theatre surgiram praticamente de forma concomitante, mas enquanto o Living enveredava por caminhos mais próximos ao happening, o La Mama dava vazão ao teatro experimental novaiorquino dos anos 60. O teatro viu nascer as carreiras de Robert Wilson, Philip Glass, Andrei Serban, Meredith Monk, além de abrigar trabalhos experimentais vindos de todo o mundo, como os espetáculos de Grotowski e de Tadeuz Kantor." (Fernandes: 1996, 7)

Seguiram-se então as criações dos solos Hamlet in Irati, Casa, e 500 anos - um fax de Denise Stoklos para Cristóvão Colombo. No início da década de noventa Stoklos passa a publicar alguns de seus textos dramatúrgicos e reflexões. Em 1993 escreve Amanhã Será Tarde e Depois de Amanhã nem Existe, em 1994, Des-Medéia e nos três próximos anos, respectivamente: Elogio, Mais Pesado Que o Ar/Santos Dumont e Desobediência Civil. Encerra a década de noventa com o espetáculo Vozes Dissonantes, solo de 1999 que cita, entre outros, os pensamentos de Padre Antônio Vieira, José Bonifácio e Milton Santos.

Os trabalhos mais recentes de Denise Stoklos são: Louise Bourgeois - Faço, Desfaço, Refaço, de 2000, Calendário de Pedra, de 2001, cuja estrutura inspira-se no poema de Gertrude Stein chamado "Book of Anniversary " e finalmente Olhos Recém Nascidos, espetáculo de 2004, que veio a ser o principal objeto de análise do meu subprojeto de pesquisa e do qual Denise Stoklos diz o seguinte: "Em novembro, impulsionada pela morte de meu pai, eu havia começado a escrever um texto sobre morte e vida, fins e recomeços. Pensei que, desafiando-me desta vez, mínimos deveriam ser meus movimentos e máxima a tentativa emocional

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com o público, como eu sempre quis, só que desta vez desprezando qualquer efeito de movimentação, baseada tão só na narrativa.

Praticamente lendo um papel, sentada numa cadeira atrás de uma mesa, quase como Spalding Gray. A tragédia da vida dele realizou-se e eu continuei minha busca. Era inevitável que meu impulso se transformasse numa homenagem à dramaturgia daquele homem tão confiante na emoção do som de suas palavras.

Fui adiante. Quis falar também do envolvimento de cada um com sua profissão. Usei-me para isso. Espero que valha a pena. Estou me arriscando no desconhecido." (Stoklos, programa da peça)

Escapando, por meio das singularidades que lhes são próprias, assim como desejou Stoklos, de categorias, e denunciando perversamente quão categórico pode ser o desejo afoito por um Teatro Essencial, o Teatro que Denise Stoklos vem realizando parece possibilitar à recepção, a construção de significações ou a verificação de procedimentos de construção que nada mais são do que extenuantes dos fundamentos, forjados pela autora, anteriores ao seu teatro.