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O CORPO É O ZERO Experimentalismo e Participação. Os anos 90 da Arte Portuguesa Mafalda Marcos Silva Novembro 2015 Dissertação de Mestrado em História da Arte Contemporânea

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OCORPOÉOZERO

ExperimentalismoeParticipação.Osanos90daArtePortuguesa

MafaldaMarcosSilva

Novembro2015

DissertaçãodeMestradoemHistóriadaArteContemporânea

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OCORPOÉOZERO

ExperimentalismoeParticipação.Osanos90daArtePortuguesa

MafaldaMarcosSilva

Novembro2015

DissertaçãodeMestradoemHistóriadaArteContemporânea

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Dissertação apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do

grau de Mestre em História da Arte Contemporânea, realizada sob a orientação

científica de Doutora Margarida Brito Alves

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O CORPO É O ZERO

Experimentalismo e Participação. Os anos 90 da Arte Portuguesa

Mafalda Marcos Silva

PALAVRAS-CHAVE: Corpo; Experimentalismo; Participação; Anos 90; Portugal;

Século XX; Arte Contemporânea

RESUMO

Tendo como ponto de partida o experimentalismo que marcou os anos sessenta em Portugal, a presente dissertação procura analisar e compreender os desenvolvimentos da produção artística portuguesa da última década do século XX. Centrando o discurso nos domínios do corpo na esfera artística portuguesa, reflectimos acerca do espectador contemporâneo e da produção que o convoca, segundo uma problemática que vai ao encontro da questão do corpo na obra de arte enquanto tema, processo e objecto. Convocando a linguagem interventiva que se evidencia na década de 1970, em continuidade com o panorama artístico dos anos sessenta, procuramos desenvolver um percurso organizado sequencialmente e pautado por diversas ramificações. Neste contexto, destacamos a figura de Ernesto de Sousa e, em particular, a Alternativa Zero — Tendências Polémicas na Arte Portuguesa Contemporânea enquanto paradigma de grande relevo para a mais recente história da arte portuguesa.

Com vista à interpretação e contextualização da lógica artística da década de noventa, a primeira parte deste trabalho toma como referência os códigos de ruptura inaugurados nos anos sessenta e sedimentados nas propostas da Alternativa Zero, em 1977, estendendo-se pela década seguinte. Naturalmente, é destacada a inauguração do Museu de Arte Contemporânea da Fundação de Serralves e a exposição então comissariada por João Fernandes em 1997, Perspectiva: Alternativa Zero, que revisitou o evento de 1977. Este projecto expositivo vem esclarecer uma nova geração de artistas, actualizando a compreensão da história da arte portuguesa e deixando ressurgir um conjunto de ideias que propunham um campo de acção ao nível dos programas internacionais, com base nos diferentes modos de abordagem do papel do espectador enquanto presença fundamental. Numa segunda parte, recorrendo ao estudo de um conjunto de propostas de artistas activos no panorama artístico português da última década do século XX, é desenvolvida uma reflexão acerca dos diferentes modos de abordagem do conceito de corpo, a partir da identificação de três vectores – corpo ausente, corpo presente, corpo do espectador – e segundo um discurso centrado na amplitude participativa da obra de arte.

Não pretendendo secundarizar a importância da matéria, esta dissertação propõe uma interpretação da obra de arte enquanto dinâmica multi-sensorial tendo por base o conceito de imaterialidade, expresso por meio da convocação de uma lógica de diálogo com a audiência.

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THE BODY IS THE ZERO

Experimentalism and Participation. Portuguese Art of the 90’s

Mafalda Marcos Silva

KEYWORDS: Body; Experimentalism; Participation; 90’s; Portugal; Twentieth

Century; Contemporary Art

ABSTRACT

Taking as a starting point the 1960’s experimentalism in Portugal, the current dissertation aims to examine and understand the developments of the Portuguese artistic production of the last decade of the twentieth century. Focusing the discussion on the field of the body within the Portuguese artistic scene, we propose to consider both the contemporary spectator and the production that invites him, according to an interpretation of the body as subject, process and object of the work of art. Invoking the interventional language that is evident in the 1970’s, keeping up the founding premises of the preceding decade, we aim to develop a chronologically organized path. In this context, we have decided to highlight the Alternativa Zero — Tendências Polémicas na Arte Portuguesa Contemporânea, curated by Ernesto de Sousa, as one of the most influential hallmarks in recent Portuguese art history.

In order to understand and contextualize 1990’s artistic logic, the first part of the presented work takes as a reference the subversive language of the 1960’s and its subsequent incorporation in the work of Alternativa Zero in 1977, prolonging itself through the following decade. Naturally, the Serralves Foundation’s Museum of Contemporary Art opening is featured, as well as the revisitation of the event from 1977: Perspectiva: Alternativa Zero, curated by João Fernandes in 1997. This exhibition project was able to clarify a new wave of artists, updating the knowledge about Portuguese art as well as reinterpreting a set of ideas which focus on a field of action levelled with the international proposals, based upon different approaches on the spectator’s role as a fundamental presence. In a second part, considering a set of artistic proposals produced in the final decade of the twentieth century, we explore the body as a concept through its diverse ways of approach in light of three vectors – absent body, present body, spectator’s body – and according to a dialogue centred in the depth of participatory art.

Not intending to underestimate the importance of the visible and material, this dissertation proposes an interpretation of the artwork as a multi-sensory dynamic based on the concept of immateriality, expressed through the dialogue with the audience.

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ÍNDICE

INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 1

PARTE I

O EXPERIMENTALISMO EM PORTUGAL NA 2.ª METADE DO SÉCULO XX

I. 1. Dos anos 60 à Alternativa Zero .......................................................................... 16

I. 2. As múltiplas dinâmicas de 80 .............................................................................. 42

I. 3. Os novos códigos da década de 90 ....................................................................... 49

I. 4. Perspectiva: Alternativa Zero .............................................................................. 63

PARTE II

O CORPO ENQUANTO TEMA, PROCESSO E OBJECTO ..................................... 67

II. 1. Corpo Ausente ....................................................................................................... 79

II. 2. Corpo Presente ....................................................................................................... 88

II. 3. Corpo do Espectador .............................................................................................. 94

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 105

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 110

ÍNDICE DE FIGURAS .............................................................................................. 122

APÊNDICE A: FIGURAS ............................................................................................... i

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1

INTRODUÇÃO

Tendo como ponto de partida o experimentalismo que marcou os anos

sessenta em Portugal, a presente dissertação procura compreender os

desenvolvimentos da produção artística portuguesa da última década do século XX.

Centrando o discurso nos domínios do corpo e do espaço na esfera artística

portuguesa, pretendemos reflectir acerca do espectador contemporâneo e,

correlativamente, acerca da produção que o convoca, segundo uma problemática que

vai ao encontro da questão da obra de arte enquanto dinâmica multi-sensorial.

Convocando a linguagem interventiva que se evidencia na década de 1970, em

continuidade com o panorama artístico dos anos sessenta, procuramos desenvolver

um percurso organizado sequencialmente e pautado por diversas ramificações. Neste

contexto, tomamos como referência a figura de Ernesto de Sousa e, em particular, a

exposição que organizou em Lisboa em 1977, Alternativa Zero — Tendências

Polémicas na Arte Portuguesa Contemporânea, enquanto paradigma de grande relevo

para a mais recente história da arte portuguesa.

Embora o vínculo entre a obra, o espaço e a sua audiência seja um dos

argumentos determinantes para a criação artística do século XX, importa salientar

que, a par do desejo pela interligação com o público, existe nos artistas a preocupação

de pensar os limites do corpo, que se assume como uma das ferramentas de trabalho

decisivas na procura de novas linguagens artísticas. Desafiando convenções,

sobretudo desde os primeiros anos do século XX até à actualidade, os artistas

propuseram-se a instigar as inúmeras significações que o corpo é capaz de alcançar.

Neste domínio, importa também ter em conta que esta tendência se verifica no seio

das mais variadas áreas, revelando-se o corpo como um objecto de estudo ilimitado e

de dimensão multidisciplinar.

Este facto deve-se, em grande medida, às transformações no entendimento

sobre o mesmo ao longo da construção da sociedade ocidental. Deste modo, é

precisamente a partir de uma reflexão sobre esse corpo dinâmico, composto por via de

mutações culturais e sociais, que pretendemos inaugurar o nosso percurso.

Com vista a uma melhor compreensão acerca do entendimento do corpo na

actualidade, importa percorrer brevemente as particularidades de determinados

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períodos da história. No processo evolutivo da civilização moderna, entendemos o

corpo como um objecto mutável, em constante transformação e fragmentação, em

conformidade com as premissas da sua época. Desde a Grécia Antiga, berço da

cultura ocidental, filósofos como Sócrates, Platão ou Aristóteles reflectiam as

concepções do corpo. A saúde e a beleza seriam dois dos bens mais preciosos do

homem e o mundo dividir-se-ia em duas realidades distintas: o mundo inteligível (do

qual fazem parte os conceitos e as ideias) e o mundo sensível, correspondente ao

corpo e às imagens, aos objectos sensíveis.1 Na tentativa de desvendar os mistérios do

sensível, desenvolveu-se o interesse pela anatomia e pelo corpo humano. Por outro

lado, na busca pela proporção e por uma beleza exacta que permitisse uma

aproximação ao mundo dos deuses, escultores como Fídias erguiam personagens

divinas à semelhança do homem. A imagem do corpo grego, ainda hoje considerada

como uma referência, corresponderia à imagem de glorificação do Estado, ao qual o

cidadão deveria aspirar e, segundo Michel Foucault2, os filósofos enfatizavam, de

facto, a necessidade dos indivíduos cuidarem do corpo como forma de alcançar a vida

plena. Num outro momento, e embora a arte romana se tenha mantido orientada para

a expressão do ideal de beleza grego, as representações do corpo adquiririam

dimensões de carácter místico e simbólico, associando-se ao Cristianismo. O controlo

da Igreja sobre a comunidade partia da repressão e censura do corpo através de

severas práticas religiosas segundo uma nova percepção, dominante durante a Idade

Média, que se impunha de forma dogmática. Contrariando o desapego pela realidade

terrena que se fez sentir na época medieval, o Renascimento trouxe consigo uma nova

concepção guiada por métodos científicos, revelando uma maior preocupação pelo

estudo do corpo. O teocentrismo dá lugar ao antropocentrismo e o corpo passa a servir

a razão e a arte ao longo dos tempos, na constante procura por uma renovação do

olhar, das sensações e dos sentidos. Não esqueçamos ainda que, a partir do século

XVII, a forma de produção do sistema capitalista e o início da revolução industrial

causam uma drástica mudança na movimentação do corpo dos trabalhadores, que vêm

a sua actividade reduzida a uma simples acção fisiológica com o trabalho em série.

Deste modo, na passagem de oitocentos para os anos de 1900, inúmeras são as

1 Conforme vol. VII d’A República de Platão, editado pela Fundação Calouste Gulbenkian, 2014. 2 O autor ressalva ainda que este interesse particular provocou, no mundo helenístico e depois na era romana, a noção de individualismo e uma maior valorização da conduta pessoal, instaurando-se o que apelidou de “cultura de si”. Cf. FOUCAULT, Michel, História da Sexualidade – III: o cuidado de si, Lisboa: Relógio d’Água, 1994.

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circunstâncias que apontam para o desenvolver de um novo entendimento acerca do

corpo enquanto ferramenta e enquanto objecto gerador de conhecimento: a criação do

Musée d’Ethnographie du Trocadéro (Paris, 1878 – que deu lugar ao Musée de

l’Homme, em 1937); o trabalho de Jean-Martin Charcot na clínica do Hospital de La

Salpêtrière3 (Paris, 1882); a uniformização do processo de identificação fotográfica

criminal, o mugshot, associado ao sistema de identificação por impressão digital

(Alphonse Bertillon, 1888/Juan Vicetich, 1891, respectivamente); a apresentação do

primeiro raio-X (Wilhelm Conrad Röntgen, 1895); a Lição de Anatomia de Menotti

Cattaneo4 (Galleria Umberto I, Nápoles, 1899); a publicação d’A Interpretação dos

Sonhos (Sigmund Freud, 1899); assim como o estabelecer dos princípios da

fenomenologia (Edmund Husserl, 1900), entre outros.

O corpo pode, desde logo, ser assumido como parte de uma narrativa

estruturada e independente, isto é, enquanto objecto interdisciplinar intrinsecamente

análogo à linguagem. Assim, é capaz de alcançar o poder de destabilizar as

formulações convencionais e convocar um conjunto amplo de problemáticas inerentes

às concepções de género, classe social, raça, etnia, identidade ou universalidade.

Importa, por isso, pensar o século XX enquanto o tempo de afirmação da figura do

corpo mas também da sua dual desmaterialização: corpo representado, corpo

apresentado, corpo ausente, corpo desfigurado (entre outras e inumeráveis

designações possíveis); dá-se o abandono, quase definitivo, da concepção do corpus

de essência divina, é desenvolvido o materialismo – que reforça as bases do ‘homem-

máquina’ segundo uma relação mais técnica do que estética5 – e, como consequência

3 Na Salpêtrière, Charcot dedicava-se ao estudo de doenças do foro neurológico, de entre as quais a histeria, fazendo uso da indução hipnótica como meio para a compreensão das mesmas. As suas sessões de estudo, que consistiam na observação de diversas mulheres em convulsão, reuniam uma larga audiência de alunos e revelavam-se como verdadeiras performances de interesse clínico. Ainda, o desejo de analisar os mais diversos impulsos momentâneos associou-se à necessidade de produção de registos fotográficos e ilustrações – Paul Régnard e Paul Richer, respectivamente, eram os principais responsáveis pelas funções. Enquanto arquivo documental, sugerimos a consulta de duas obras: CHARCOT, Jean-Martin, RICHER, Paul, Les Démoniaques dans l’Art, Paris: Adrien Delahaye et Émile Lecrosnier, 1887; e Les Difformes et les Malades dans l’Art, Paris: Lecrosnier et Balé, 1889. Deste modo, na sequência das aulas leccionadas por Charcot, identificamos de imediato a noção de corpo-conhecimento em paralelo, porém, com o conceito de corpo-espectáculo. 4 Veja-se o artigo de BRUNO, Giuliana, “Spectatorial Embodiments: anatomies of the visiable and the female bodyscape”, in Camera Obscura, vol. 10, n.º 28, Janeiro 1992, pp. 238-261; que esclarece o leitor acerca do espectáculo/exibição cinematográfica de Cattaneo e no qual a autora sugere que esta lição de anatomia “exhibits an analytic drive, an obsession with the body, upon which acts of dismemberment are performed” (p. 241). 5 É Walter Benjamin quem defende esta ideia no seu ensaio de 1936, The Work of Art in the Age of Mechanical Reproduction, in Illuminations: essays and reflections, Nova Iorque: Schocken Books,

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das guerras, o humanismo entra numa crise profunda e anunciadora. Com efeito, as

propostas desenvolvidas ao longo do século exploram o corpo enquanto expressão de

uma identidade. Ainda que, como referimos anteriormente, esse mesmo corpo é visto

como um elemento com forte potencial de comunicação, agenciando diferentes

possibilidades de percepção e reflexão. Tal facto implica, naturalmente, uma recepção

capaz de ser orientada para a corporalização de uma experiência colaborativa: o

impulso de mover os espectadores para lá do papel de observadores passivos e o

alcançar de autoridade enquanto participantes da acção, produtores e, no limite, co-

autores – uma das marcas mais proeminentes da história da arte do século XX.

“Even the most perfect reproduction of a work of art is lacking in one element: its

presence in time and space, its unique existence at the place where it happens to be.”6

Recuando à cronologia histórica da arte, é possível identificar diversos

exemplos capazes de sugerir e mesmo antecipar, desde logo, tais premissas.

Apoiando-nos na cronografia percorrida por Oliver Grau7, damos nota de uma

sequência de obras que se relacionam com o espectador e que procuram a imersão do

mesmo a partir de espaços de ilusão que comunicam segundo diferentes estratégias,

como o próprio autor assim o designa: primeiramente, Grau introduz os frescos da

Villa dei Misteri (60 a. C.) em Pompeia, aludindo que a cena abrange quase na

totalidade o campo de visão do espectador8, numa unidade de espaço e tempo;

seguidamente, os frescos do Chambre du Cerf (1343) no Palácio Papal de Avignon,

que ocupam os 360º da divisão e que, de forma exemplar, não sugerem qualquer

enquadramento arquitectónico; são também incluídas obras de tradição europeia como

as pinturas da Salla dele Prospettive (1516-18) da villa romana Farnesina; inúmeras

criações nos tectos de diversas igrejas renascentistas e barrocas, assim como os

panoramas circulares desenvolvidos a partir do século XVIII (processo patenteado por

1969, pp. 217-252. O autor analisa o declínio da autenticidade da obra de arte por via do efeito dos novos meios de produção e reprodução técnicos propondo, em última instância, um eventual fim da arte moderna enquanto uma arte estética, em prol de uma arte politizada. É focada a questão da fotografia como instauradora de um novo nível de produção, de concepção e de recepção da obra de arte, e do cinema enquanto agente de reprodutibilidade de massas. 6 Ibidem, p. 118. 7 GRAU, Oliver, Virtual Art: from illusion to immersion, Cambridge: The MIT Press, 2003. 8 Noção que imediatamente relacionamos com algumas das propostas da Color Field Painting, na segunda metade do século XX: obras de grande escala com vista à imersão do espectador no amplo campo de cor, segundo propósitos que visam à reação da audiência em contacto directo com a tela.

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Robert Barker em 1787, sob a designação La Nature à Coup d’Ooeil); ou a criação de

uma única e contínua tela ilusória, sob a temática dos nenúfares, por Claude Monet

em Giverny (1915-1917).

Num outro plano, parece-nos de interesse salientar ainda outras três obras que,

pelas suas características, marcam diferentes momentos decisivos na história da

pintura, permitindo-nos estabelecer uma ponte para a directa inclusão da audiência na

produção artística contemporânea. Destacamos, por isso, a afamada obra Las Meninas

(1656), de Diego Velásquez, tela que vem sendo profundamente estudada (com

destaque para as propostas de Jacques Lacan e, obrigatoriamente, de Michel

Foucault), na qual o pintor espanhol instaurou um encadeamento de olhares entre o

visível e o invisível, estabelecendo uma possível inversão de papéis entre o corpo do

espectador e o corpo do modelo que se calcula estar a ser retratado na própria pintura

– o observador é sujeito e é objecto, tornando-se visível a partir da imagem do artista9.

Por sua vez, em Le Pont des Arts (1868), de Pierre-Auguste Renoir, e à luz da

conjuntura social, cultural e artística da modernidade oitocentista (como afirma

Charles Baudelaire, a mesma diz respeito ao efémero e ao fugitivo, tendo o

intemporal e o imutável como seus directos correspondentes10), isolamos o trabalho

da sombra11 que, sendo alcançada através de um elemento que está ausente da

imagem, denuncia a presença do artista e abre caminho para a entrada em cena do

espectador, que toma o lugar de personagem na obra e, ainda, o lugar do próprio

pintor, conquistando o seu espaço imediatamente no centro do plano compositivo,

onde estaria esse corpo do artista. Finalmente, o jogo de ilusões criado em Un Bar aux

Folies-Bergère (1882), de Édouard Manet, apresenta-nos uma multiplicidade de 9 Devido à complexidade artística e à densidade interpretativa da obra de Velásquez, parece-nos pouco consequente elaborar uma síntese explicativa acerca da mesma. Por isso, decidimos não fazer menção às inúmeras especificidades da pintura de 1656. Para uma melhor compreensão acerca da mesma, consultar a publicação que reúne os comentários de Lacan sobre Las Meninas, extraídos do seminário XIII, realizado entre 1965 e 1966 – LACAN, Jacques, The Seminar of Jacques Lacan XIII: the object of psychoanalysis, London: Karnac Books, 2002; e ainda o capítulo “Las Meninas” patente em FOUCAULT, Michel, As Palavras e as Coisas, Lisboa: Portugália Editora, 1968. Neste último, Foucault declara que o olhar do pintor “aceita tantos modelos quantos os espectadores que lhe apareçam”, sendo que “o contemplador e o contemplado permutam-se incessantemente” (p. 19). Ainda, o autor afirma que, “no momento em que colocam o espectador no campo do seu olhar, os olhos do pintor captam-no, obrigam-no a entrar no quadro, determinam-lhe um lugar e um tempo privilegiado” (p. 20). 10 BAUDELAIRE, Charles, O Pintor da Vida Moderna, Lisboa: Vega, 1993; capítulo “A Modernidade”, p. 21. 11 Veja-se STOICHITA, Victor, A Short History of the Shadow, London: Reaktion Books, 1997 – obra na qual o autor expõe interessantes argumentos acerca do papel decisivo da sombra na cronologia da história da arte ocidental (particularmente no que respeita ao género pictórico).

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perspectivas por meio da representação de um espelho que, para além de assumir uma

função de organizador do espaço, impõe noções temporais e acolhe, mais uma vez, o

observador. Novamente, o corpo do espectador é capaz de penetrar a obra, não apenas

enquanto observador da cena mas também enquanto personagem da tela.12

No século XX, a convocação da audiência ao nível do espaço real é uma

tendência desde logo assinalada de forma determinante por Marcel Duchamp.

Podemos afirmar que Duchamp, uma das figuras tutelares do século, se constitui

como uma influência-chave para a geração de artistas que lhe seguiu, sendo o grande

percursor do questionamento em torno do establishment e das convenções da

produção artística. Roue de Bicyclette, produzida em finais de 1913, favorecia

imediatamente uma relação com a acção do corpo: a acção do corpo da audiência, que

poderia fazer mover a roda da frente de uma bicicleta, montada sobre um banco de

madeira. Do mesmo modo, a obra representava determinantemente a possibilidade

dos objectos do quotidiano, saindo do seu universo particular, fazerem parte dos

domínios da arte, como foi o caso de Pharmacie e Porte-Bouteilles em 1914 ou In

Advance of a Broken Arm, no ano seguinte. Mas foi em 1917 que os seus

readymades13 apelaram a um alargado debate, por via da proposta de apresentação de

Fountain, inscrita na primeira exposição realizada pela ainda recente Society of

Independent Artists. A mesma instituição que, contrariando aliás as regras que

internamente foram estabelecidas para o evento14, não admitiu a exibição pública de

12 Importa fazer referência ao debate em torno de Un Bar aux Folies-Bergère, obra que se estabeleceu enquanto um dos maiores e mais pertinentes desafios da história da arte na actualidade. Como tal, sugerimos a leitura de CLARK, T. J., “A Bar at the Folies-Bergère”, The Painting of Modern Life: Paris in the art of Manet and his followers, New Jersey: Princeton University Press, 1999, pp. 205-258; e o debate teórico entre Thierry de Duve e James Elkins. Cf. respectivamente: DE DUVE, Thierry, “How Manet’s «A Bar at the Folies-Bergère» is Constructed”, in Critical Inquiry, vol. 25, n.º 1, Outono 1998, pp. 136-168; ELKINS, James, “Precision, Misprecision, Misprision”, in Critical Inquiry, vol. 25, n.º 1, Outono 1998, pp. 169-180; e, novamente, DE DUVE, Thierry, “Intuition, Logic, Intuition”, in Critical Inquiry, vol. 25, n.º 1, Outono 1998, pp. 181-189. 13 Duchamp, como forma a designar as suas peças, adoptou o termo readymade, “bastante conveniente para essas coisas que não eram obras de arte, não eram desenhos, e não se encaixavam em nenhum dos termos aceites no mundo da arte.” – DUCHAMP, Marcel, “The Creative Act”, in Marcel Duchamp, coord. Robert Lebel, New York: Paragraphic Books, 1959, p. 77. Os readymades seriam, portanto, uma espécie de encontro ou diálogo entre o autor e o objecto, o que implica desde logo a existência prévia do objecto, noção que rompe peremptoriamente com as tradicionais concepções de obra de arte. 14 Quando a Society of Independent Artist abriu as inscrições para a exposição, tinha sido definido que qualquer obra que fosse submetida teria o direito a ser exposta. Com 2125 obras em exibição, pertencentes a 1235 artistas diferentes, apenas a escolha de Duchamp tinha sido recusada.

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Fountain (nem mesmo a sua inclusão no catálogo).15 Esta obra, um urinol rodado a

180º, tinha sido assinada sob o pseudónimo de R. Mutt e apresentava a data da sua

criação. Destacamos o conceito de criação que, a partir daqui, se revelou sobejamente

ampliado pela possibilidade de se constituir na mera acção de escolha do artista. A

criação enquanto escolha e desvelamento, isto é, um fazer autoral que não diz apenas

respeito a questões técnicas, mas igualmente à acção do artista.

“They say any artist paying six dollars may exhibit. Mr. Richard Mutt sent in a

fountain. Without any discussion this article disappeared and never was exhibited.

What were the grounds for refusing Mr. Mutt’s fountain: 1. Some contended it was

immoral, vulgar. 2. Other, it was a plagiarism, a plain piece of plumbing. [...]

Whether Mr. Mutt with his own hands made the fountain or not has no importance.

He CHOSE it. He took an ordinary article of life, placed it so that its useful

significance disappeared under the new title and point of view – created a new

thought for that object.”16

Fazer é, de facto, escolher.17 Esta “fonte”, um objecto recontextualizado,

desfigurado e assinado pelo artista, seria uma provocação ou um teste? Acreditamos

que seria ambos. Marcel Duchamp não desafia apenas as convenções da Society of

Independent Artists, desafia a noção de obra de arte, como até então era conhecida.

Mas o gesto do artista, a sua acção, é apenas uma parte daquilo que constitui o objecto

como obra de arte, como certifica Duchamp na conferência The Creative Act18: o

público é igualmente fundamental no processo. Mas essa questão discutiremos mais

adiante, a par com as propostas dada (1916-1923) e do Surrealismo (cujo Manifesto

data de 1924), visto que as suas abordagens vão também ao encontro da importância

dada ao receptor e a um confronto directo – essencialmente provocatório – para com o

15 Para uma melhor compreensão acerca da sequência de acontecimentos que envolveu a recusa de Fountain na exposição de 1917, consulte-se a análise detalhada de Thierry de Duve em “Given the Richard Mutt Case” disponível em DE DUVE, Thierry, Kant after Duchamp, Cambridge: The MIT Press, 1996. 16 “The Richard Mutt Case”, publicado em The Blind Man, n.º 2, p. 5. Disponível em http://sdrc.lib.uiowa.edu. 17 Como afirmou Duchamp em entrevista a Georges Charbonnier em 1961, “the word «art», etymologically speaking, means to make, simply to make. Now what is making? Making something is choosing a tube of blue, a tube of red, putting some of it in the palette, and always choosing the quality of blue, the quality of red, and always choosing the place to put it on the canvas, it’s always choosing.” DUCHAMP, Marcel apud DE DUVE, op. cit., p. 161. 18 The Creative Act foi proferido em Abril de 1957, em Houston, num encontro promovido pela American Federation of Art. Disponível em Marcel Duchamp, coord. Robert Lebel, New York: Paragraphic Books, 1959, pp. 77-78.

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espectador. Procurando, aliás, desafiar a sua atitude meramente contemplativa, e com

vista a desencadear uma reação colectiva, alcançando uma participação activa por

parte da audiência.

De facto, este envolvimento violento da arte na vida atravessa

transversalmente o século e nele estão inerentes as noções de destruição, com vista à

criação, e o reclamar da emancipação e de uma liberdade artística descolada dos

dogmas e de uma tradição académica convencional. Pelo mesmo motivo, a vanguarda

partilha o desejo pela comunicação com a sociedade e pela reacção inesperada da

audiência na constituição dos seus modelos expressivos, que não representam apenas

formas de apelo estético mas também, em concordância com a sua actualidade,

exibem dinâmicas do quotidiano ou, mais directamente, a vivência de experiências

concretas: assistimos ao desejo pelo revelar, eminente, do real. O paradigma vai sendo

continuamente explorado na primeira metade do século a partir de diversas práticas e

projectos que vão desde as construções de Kurt Schwitters e El Lissitzky às propostas

da Bauhaus e, na segunda metade do século, rompendo por entre vários níveis de

abstracção – segundo as dinâmicas da Color Field Painting, da Post-Painterly

Abstraction, do Hard Edge ou dos “objectos arbitrários”19 de Robert Rauschenberg e

Frank Stella, que enfatizam a exploração da pintura enquanto construção escultórica

e, logo, o desfasamento do medium específico de cada categoria20 –, passando pela

19 Denominação inaugurada por Clement Greenberg num breve folheto a respeito da pintura modernista, publicado pela Voice of America no ano de 1960 (Forum Lectures, Washington, D. C.). O mesmo texto, “Modernist Painting”, foi posteriormente divulgado na emissão rádio do mesmo programa e, cinco anos mais tarde, surge, com pequenas alterações, na publicação Art and Literature (Primavera de 1965). Em 1966 é novamente convocado, desta vez na antologia de Gregory Battcock, The New Art. Greenberg defende, com vista à definição dos supracitados “objectos arbitrários”, que as normas e as convenções de cada categoria artística (como a pintura ou a escultura) são essenciais para a constituição das mesmas pois são, ao mesmo tempo, condições limitadoras para que a imagem seja experimentada apenas enquanto imagem; ainda assim, aponta, o Modernismo descobriu que esses limites podem ser indefinidamente desfasados: a imagem deixa de pertencer ao campo da imagem e passa a estabelecer-se como um “objecto arbitrário” – GREENBERG, Clemente, “Modernist Painting” para consulta em Modern Art and Modernism: a critical anthology, ed. Francis Frascina e Charles Harrison, New York: Harper & Row, 1982, pp. 5-10 (p. 8 para referência de citação). O autor nova iorquino tinha já anunciado o mesmo pensamento, que funcionaria como cartilha para os artistas norte-americanos do Expressionismo Abastracto, na sua obra Avant-Garde and Kitsch (1939), na qual indica que todos os artistas devem apenas concentrar-se nas características definidoras do medium específico da sua produção. Cf. GREENBERG, Clement, “Avant-Garde and Kitsch”, in Clement Greenberg: the collected essays and criticism, ed. John O’Brian, vol. I – “Perceptions and Judgments (1939-1944)”, Chicago: The University Press, 1988, pp. 5-22. 20 Importa dar nota de que os artistas mencionados não inauguram a exploração simultânea de diferentes meios plásticos na arte, embora o conceito de assemblage tenha ampliado largamente o seu reconhecimento público no ano de 1961, graças à exposição The Art of Assemblage, patente no MoMA (4 Out. – 12 Nov.), e que incluiu obras de cerca de 140 artistas, de entre os quais “cubist collage by Picasso, Braque, and Gris; 13 «readymades» and other works by Duchamp, 35 collages by Schwitters,

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acção performativa nos drippings de Jackson Pollock, a experimentação dos Gutai, a

componente abusiva ateada pelos happenings de Allan Kaprow (como nos descreve

Susan Sontag21) ou de Yves Klein e do Nouveau Réalisme, culminando nos novos

códigos do Minimalismo, do Pós-Minimalismo 22 , da Land Art e de uma

environmental art, onde a escala humana é totalmente posta em causa e é ampliada a

relação entre corpo e espaço. O mesmo nos mostra, por exemplo, a produção dos

artistas brasileiros do Concretismo e, particularmente, do Neoconcretismo, que

propunham a passagem da arte para o contexto da realidade da vida, a transposição da

representação para a apresentação e a presença do espectador no espaço artístico

habitado, que ao participar na manipulação da obra de arte se tornava parte da

mesma.23 Não podemos, aliás, deixar de apontar a influência latino-americana na arte

da segunda metade do século XX, tanto ao nível internacional como no seio da cultura

portuguesa. Como é o caso do trabalho de poesia experimental – ou de pintura de

14 «boxes» by Cornell, dada and surrealist collages and objects by Ernst, Miro, Breton, Masson, Man Ray and Tanguy, later work by Dubuffet, Burri, Motherwell, de Kooning and Rauschenberg” (Schedule of Exhibitions and Events, The Museum of Modern Art, New York, 1 Outubro 1961, p. 1 – disponível em http://www.moma.org). A inclusão e a saliência de objectos reais e de materiais diversos, que não apenas se conjugam entre si segundo processos de colagem (particularmente no caso da produção de Rauschenberg, onde se distinguem autênticas “combine paintings”) distende a ponte entre a arte e a vida e permite o desenvolvimento de um percurso que vai ao encontro do modelo da participação. Cf. SEITZ, William Chapin, The Art of Assemblage, Nova Iorque: Museum of Modern Art, 1961. 21 SONTAG, Susan, “Happenings: an art of radical juxtaposition”, in Against Interpretation, London: Vintage, 2001, pp. 263-274. 22 De salientar o texto de Donald Judd, “Specific Objects” (1964) – originalmente publicado no n.º 8 da Arts Yearbook, edição sob o tema “Contemporary Sculpture”, 1965, pp. 74-82 –, cujo título vai, desde logo, de encontro à definição de Clement Greenberg, no sentido em que ambas as teorizações anunciam a criação de uma nova formulação artística em ruptura com o modelo tradicional, desta feita, surgindo do libertar progressivo da pintura para a tridimensionalidade. Disponível em JUDD, Donald, “Specific Objects”, in Donald Judd – Complete Writings (1959-1975): gallery reviews, book reviews, articles, letters to the editor, reports, statements, complains, Nova Scotia: The Press of the N. S. College of Art and Design/New York: University Press, 2005, pp. 181-189. 23 Ferreira Gullar, um dos participantes do grupo, descreve a acção do Neoconcretismo: “Tirando a pintura do espaço bidimensional e levando-a para o espaço real (multidimensional) criaram formas abertas à participação do espectador; romperam os limites que separavam o manuseio do livro como ação formuladora do poema, corporificaram o poema em objecto (não-objecto) espacial e chegaram a levar o leitor a penetrar fisicamente no poema, como num ambiente ritual.” Ainda, paralelamente à dinâmica internacional, Gullar discute a “Teoria do Não-Objeto” – formulação que surge pela primeira vez num artigo editado pelo Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, a 19 de Dezembro de 1959, como contribuição à II Exposição Neoconcreta, realizada no salão do Palácio da Cultura, no antigo Estado da Guanabara (actual Rio de Janeiro), patente de 21 de Novembro de 1960 a dia 20 do mês seguinte –, afirmando conscientemente que esse mesmo «não-objeto não é um anti-objeto mas um objeto especial em que se pretende realizada a síntese de experiências sensoriais e mentais: um corpo transparente ao conhecimento fenomenológico, integralmente perceptível, que se dá à percepção sem deixar resto. Uma pura aparência.» Consultar, respectivamente, GULLAR, Ferreira, “Arte Neoconcreta: uma experiência radical”, in Neoconcretismo (1959-1961), ed. Ferreira Gullar e Wilson Coutinho, col. Ciclo de Exposições sobre Arte no Rio de Janeiro – 1, Rio de Janeiro: Galeria de Arte Banerj, 1984, s/p; e “Teoria do Não-Objeto” in Experiência Neoconcreta: momento-limite da arte, São Paulo: Cosac Naify, 2007, pp. 90-100.

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signos – de Ana Hatherly, que, reiterando uma lógica pictográfica, estabelece um

diálogo entre o visível e o invisível, onde o corpo ocupa lugar essencial. O corpo

como forma de conhecimento, por meio da acção directa do público presente.24

A arte enquanto domínio participativo e de dimensão social é premissa-chave

do trabalho desenvolvido por Guy Debord – como mostra A Sociedade do

Espectáculo, de 1967 –, assim como pelos artistas que integram o panorama da arte

pública e das dinâmicas artísticas pautadas pela problematização de especificidades

sociais e locais, que emergiram na década de sessenta. Nesta tendência, o projecto

artístico está, naturalmente, comprometido com a acção directa do seu público e com

o proporcionar de experiências físicas e materializadas que aproximam a arte das

práticas comuns do dia-a-dia e que, do mesmo modo, a libertam de um domínio

transcendente, desfasado do real. Seguindo esta orientação, a participação tornou-se

um dos argumentos fundamentais da produção artística da segunda metade do século,

tal como indica Claire Bishop quando enumera um variado leque de experiências

intangíveis “such as dancing samba (Hélio Oiticica), or funk (Adrian Piper); drinking

beer (Tom Marioni); discussing philosophy (Ian Wilson) or politics (Joseph Beuyes);

organizing a garage sale (Martha Rosler); running a café (Allen Ruppersberg;

Daniel Spoerri; Gordon Matta-Clark), a hotel (Alighiero Boetti; Ruppersberg) or a

travel agency (Christo and Jeanne-Claude).”25 Ainda, no âmbito da convocação da

audiência e do aprofundar da sua relação com a obra de arte, propostas como as de

Damien Hirst, ou as de Feliz Gonzalez-Torres nas séries Visual Candy levam ao

limite os contornos que poderiam ainda existir entre a produção artística e o corpo

físico visto que a obra existe para ser tateada, movida, engolida e levada para fora do

espaço da galeria. Deste modo, atingindo a extrema vulnerabilidade, relacionando-se

não apenas com a audiência e o seu corpo mas ainda, num gesto peremptório,

actuando directamente sobre o organismo do espectador, levantando questões cruciais

24 A própria artista reconhece que a própria criatividade “passa por aí, ou mesmo a relação com o sagrado, por querer tornar visível o invisível, o que talvez nunca seja totalmente possível. Não se trata necessariamente de querer ver, mas de ver por dentro. (…) Não há criação sem erotismo, sem um profundo empenhamento do corpo e da alma. Essa é a grande criação que nos emocionou ao longo dos tempos. Sem entrega não há criação.” – HATHERLY, Ana apud GASTÃO, Ana Marques, “Ana Hatherly: meditações sobre a escrita e o acto criador”, in suplemento DNA do Diário de Notícias, 12 de Julho de 2003, s/p. Consultar ainda GIL, José, Metamorfoses do Corpo, Lisboa, Relógio d’Água, 1980, pp. 73-91. 25 BISHOP, Claire (ed.), Participation, col. Whitechapel: Documents of Contemporary Art, London: Whitechapel Art Gallery/Cambridge: The MIT Press, 2006, p. 10.

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acerca do actual valor sócio-cultural da participação, os seus limites e limitações:

“Collaboration is the answer but what is the question?”26

Nos mesmos termos e a par dos desenvolvimentos do panorama internacional,

também em Portugal, sobretudo desde os anos sessenta, os artistas têm vindo a

ampliar progressivamente as fronteiras da sua produção, pensando o espectador como

interveniente essencial na constituição da obra de arte e maturando a consciência

acerca do corpo enquanto substância de trabalho – como temática, objecto e processo.

O Poema para Bailar, realizado em 1961 pelo pintor João Vieira, poderá ser

um marco inicial dessa tendência experimental em contexto português. Baseado num

poema de Ana Hatherly, a obra de João Vieira incide nos domínios da

performatividade, impondo uma leitura mediada pelo movimento em virtude da

composição estrutural do poema. Tendo por base a música e a poesia experimental,

ocorreram então as primeiras experiências de performance em Portugal. Aquele que

ficou conhecido como o primeiro happening aconteceu em 1965, na Galeria

Divulgação, e os seus intervenientes foram Ernesto Melo e Castro, Salette Tavares,

Jorge Peixinho, Clotilde Rosa, António Aragão e Mário Falcão. O Concerto e

Audição Pictórica, apresentado como concerto experimental/teatro musical e

posteriormente descrito como sendo uma “manifestação de neo-dadaísmo” 27 ,

desencadeando ainda um importante debate público em torno do esclarecimento das

linhas de orientação do experimentalismo no panorama internacional.28

É neste contexto que iniciamos a primeira parte da nossa dissertação, tomando

como referência os novos códigos artísticos propostos em Portugal nos anos sessenta

que, estendendo-se à produção das décadas seguintes, se multiplicam por entre

dinâmicas de continuidade, ruptura e maturação. Com particular foco na exposição da

Alternativa Zero e no seu registo de vanguarda, percorremos o que resta da segunda

26 OBRIST, Hans-Ulrich apud FOSTER, HAL, “Chat Rooms”, in Participation, ed. Claire Bishop, col. Whitechapel: Documents of Contemporary Art, London: Whitechapel Art Gallery/Cambridge: The MIT Press, 2006, p. 194. 27 Conforme avançado por Ana Hatherly num artigo para o Diário Popular, em 1965. Cf. HATHERLY, Ana, “Uma Manifestação de Neo-dadaísmo”, in Diário Popular, Lisboa, 28 de Janeiro de 1965. 28 Debate protagonizado pelo crítico Manuel de Lima e Jorge Peixinho, no Jornal de Letras e Artes. Referimo-nos a LIMA, Manuel, “Concerto e Audição Pictórica sob a orientação de Jorge Peixinho na Galeria Divulgação”, in Jornal de Letras e Artes, Lisboa, 20 de Janeiro de 1965, p. 11; e PEIXINHO, Jorge, “Resposta a Manuel de Lima”, in Jornal de Letras e Artes, Lisboa, 10 de Fevereiro de 1965, p. 5.

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metade do século XX com vista à interpretação e contextualização das lógicas

artísticas a partir de 1990. Naturalmente, não podemos deixar de destacar a

inauguração do novo Museu de Arte Contemporânea da Fundação de Serralves em

1997 – exactamente vinte anos depois do evento concebido por Ernesto de Sousa – e a

revisitação da exposição de 1977, comissariada por João Fernandes, que vem

esclarecer uma nova geração de artistas portugueses. Actualizando a compreensão da

história da arte portuguesa e deixando ressurgir um conjunto de ideias que, à época,

propunham um campo de acção ao nível dos programas internacionais, com base nos

diferentes modos de abordagem do papel do espectador enquanto presença

fundamental no espaço e no tempo. Nesta medida, desobstruindo caminho ao

encontro de novas configurações artísticas e de uma renovação dos meios

comunicacionais, o que corresponde aos desafios da entrada no século da

globalização sob a emergência do altermodern 29 e que permite, sobretudo, a

manipulação do público segundo múltiplos princípios de interacção e subversão.

Na segunda parte, desenvolvemos uma reflexão que implica a obra de arte

segundo a sua amplitude participativa, começando pela pontuação dos momentos

definidores que se distinguiram enquanto fios condutores no percurso que

compreende a passagem da contemplação para a participação activa por parte do

público. Recorrendo ao estudo de um corpo de obra dilatado nas suas concepções mas

que abrange um pequeno conjunto de artistas activos no panorama artístico português

da última década do século XX, analisamos o diálogo patente entre a obra de arte que

exige violentamente a presença do espectador-participante e a audiência que se

assume criadora, convocando a noção de corpo – ideia e matéria – enquanto medium

privilegiado. Examinando paralelamente a problemática e as diversas obras que a

ilustram (cujo enfoque está na produção nacional dos anos acima destacados, ainda

que simultaneamente a par com os programas internacionais), desenvolvemos um

discurso centrado em noções que evidenciamos como sendo determinantes na lógica

relacional existente entre o espectador, o seu corpo e a ideia estética sensível – o

objecto artístico. Objecto que, neste contexto, apenas se concretiza por via do

contacto directo com o público, o que nos permite convocar a imaterialidade da obra 29 Termo proposto por Nicolas Bourriaud por ocasião da Trienal da Tate (Londres, 2009) e premissa-chave na interpretação da exposição colectiva ali patente. O altermodern é a forma emergente e contemporânea da modernidade que corresponde aos desafios da sua época, particularmente no que respeita ao momento histórico actual e à globalização. Para uma melhor compreensão, consulte-se BOURRIAUD, Nicolas, Altermodern, Londres: Tate Publishing, 2009.

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de arte. Não pretendemos secundarizar, por defeito, a importância da matéria, mas

pretendemos, pelo contrário, tornar visível o corpo a partir do qual a imaterialidade é

expressa: por meio da convocação da totalidade dos sentidos humanos. Logo, por

meio de um trabalho que não é unicamente feito a partir de elementos visuais mas

sim, e essencialmente, da desmaterialização do próprio objecto artístico – extensão

que vai ao encontro da questão da arte enquanto dinâmica multi-sensorial. Nesta

medida, é imperativo pensar amplamente o objecto, possibilitando que a obra de arte

possa adquirir uma existência olfactiva ou mesmo auditiva, apenas quando em

contacto directo com o espectador. Consequentemente, o presente estudo propõe

ainda uma reflexão em torno do conceito de desmistificação do objecto artístico –

indissociável da noção de desmaterialização – em prol da relação que esse mesmo

objecto deve estabelecer com a audiência que o encara, reconhecendo que a

contemporaneidade – desde as primeiras vanguardas do século XX – tende a retirar o

objecto do seu pedestal heroicizado e mitificado, permitindo que a obra se assuma

como parte do quotidiano; não só está ao alcance directo do espectador como é

possível de ser manuseada, atravessada e habitada pelo mesmo, num impulso que

apela de imediato ao legado “duchampiano”. Para tal, é necessário que o público – e

aqui podemos adoptar o conceito de comunidade – esteja disponível para ver,

experienciar e pensar o objecto que o convoca numa reflexão individual e colectiva.30

Na imensa amplitude que o plano da participação física envolve, discutimos

imperativamente a ideia de autor – diferente de artista 31 – que a experiência

participativa encerra, enquanto concepção colectiva e colaborativa no processo de

criação – pensamento que vem sendo discutido desde o início do século XX e cuja

diversidade de propostas faz parte do inegável legado do experimentalismo português.

O mesmo que foi consolidado segundo códigos internacionais adaptados a um 30 Comunidade enquanto o conjunto de espectadores que vê determinada obra e que se constitui como uma minoria. De facto, numa entrevista dada à revista Atual, publicada pelo jornal Expresso, o artista Rui Chafes defende que a arte é feita para o espectador e é por ele completada. Por outro lado, Chafes afirma também, sem quaisquer constrangimentos, que a arte é, taxativamente, para minorias (aqueles que ouvem e vêm), definindo o artista popular – no sentido de popularidade – enquanto aquele “que cumpre o seu papel na máquina” fazendo crer às massas (aqueles que não vêm a obra, mesmo que ela seja gigantesca) – continua – “que finalmente têm acesso àquilo que lhes parecia estar negado”. Disponível em CARITA, Alexandra, “A Religião do Ferro” – Entrevista a Rui Chafes, in Atual, Expresso, 8 de Fevereiro de 2014, pp. 6-11. 31 Não podemos deixar de fazer referência a Michel Foucault e ao seu ensaio sobre o significado e o alcance do “autor”, no qual o teórico francês se propõe a percorrer os mecanismos que nos levam a reconhecer a singularidade ou a originalidade do génio criativo. No texto, Foucault defende o conceito de autor enquanto uma invenção e prevê a morte do mesmo, a par com a morte do sujeito. Cf. FOUCAULT, Michel, O que é um Autor?, Lisboa: Vega, 1992.

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contexto próprio, sedimentado e interventivo, que nos sugerem que o significado de

uma obra não é nunca inteiramente dependente da intenção do artista mas é, na sua

soma, dependente da interpretação individual do receptor activo que com a mesma

estabelece um diálogo. O artista não é suficiente, o seu papel é afastado de um

primeiro plano, passando a dividir a sua índole criadora com o espectador. Da mesma

forma, salientamos a possibilidade da existência de um desfasamento entre o estágio

inicial da expressão artística e a ideia estética em constante movimento, sendo que a

audiência alcança uma posição distinta na sua tarefa de concretização e validação da

obra: é contempladora, é participante, é crítica e é criadora. O apelo para que o

espectador crie a obra partindo da sua presença e impressão físicas assume-se como

um domínio privilegiado, capaz de fazer da obra de arte um lugar oblíquo, denso,

libertador e de infinita amplitude comunicativa. Por isso, o entendimento da arte

enquanto forma de conhecimento possibilita aos mais diversos artistas o

desenvolvimento de uma série de novas tácticas que lhes permitam subverter o seu

impacto sobre a audiência.

Assinalamos, do mesmo modo, a contínua crítica à instituição com vista ao

acolhimento do objecto conceptual que, longe de servir exclusivamente como veículo

de dissecação de comodidades estabelecidas, se assume como uma estratégia eficaz

no desvelar dos limites entre a arte e a vida. Sugerimos por isso a possibilidade da

obra de arte poder subverter totalmente o seu puro valor artístico por um valor

comunicativo, sobretudo, o que situa estas práticas em diferentes registos que não

mais permanecem erroneamente vinculados a uma pura estética ou à esfera autónoma

da arte enquanto transcendência, ou seja, enquanto domínio à parte do real.

Em suma, admitimos que esta dissertação, mais do que analisar unicamente o

cenário artístico de um tempo e as suas características definidoras, se propõe a

reflectir acerca dos limites do corpo. Um corpo que se movimenta de forma

inesperada e que assim se relaciona com os objectos nos quais participa activamente

pela sua constituição: o habitar da obra que dissolve o contorno que se poderia pensar

ainda existir entre a arte (enquanto objecto exterior ao mundo e à prática do

quotidiano) e o real. Com base nas diferentes concepções que o contexto da

participação activa assume, pensamos o espectador em movimento, no espaço e no

tempo que a experiência convoca, direccionando o foco para as noções de processo,

recepção e audiência (ao invés de incidir exclusivamente sobre o objecto, a produção

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e o artista) e inscrevendo criticamente o espaço relacional numa espécie de

environment artístico e social do qual o espectador faz parte no exacto momento da

sua participação.

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I. O EXPERIMENTALISMO EM PORTUGAL

NA 2.ª METADE DO SÉCULO XX

I. 1. Dos anos 60 à Alternativa Zero (1977)

A demarcação que este título nos sugere, tomando como referência a

exposição da Alternativa Zero, não significa que não trataremos de assegurar a

enunciação crítica e o promover do debate acerca da década de setenta e dos anos que

a antecederam, e muito menos pretende levar a crer que durante esses mesmos anos o

pensamento e a prática artística não se tenham distinguido do evento de 1977. Com

efeito, a limitação que fazemos está unicamente relacionada com o facto dessa

exposição se destacar enquanto momento decisivo na viragem de uma época e de, no

mesmo, se evidenciarem algumas das premissas fundamentais a partir das quais

constituímos a presente investigação. Deste modo, sentimos a necessidade de nos

demorarmos um pouco mais no desenvolvimento da discussão que compreende o

evento promovido por Ernesto de Sousa. Pretende-se, contudo, estabelecer um

percurso e contextualizar o desenvolvimento do meio artístico em Portugal no período

em causa, focando sobretudo os momentos lacerantes das duas décadas que o

antecedem.

Reflectir acerca da década de setenta em Portugal, das suas principais

dinâmicas e dos personagens-chave que a pontuam é pensar simultaneamente na

continuidade de uma linguagem sedimentada, mas também numa procura

experimental por novos códigos de vanguarda. 32 Deste modo, assume-se como

32 Citando João Lima Pinharanda, “os anos 60 são os mais decisivos da arte portuguesa depois dos anos 10 – como se se pudesse falar de uma «segunda década» instauradora”. Os anos sessenta iniciam-se com a consciência de uma grande abertura formal e temática, o que se verifica no campo da criação artística com a pulverização de nomes, tendências e acções. “A apresentação das imagens segundo um novo conceito de figura-objecto, a instauração definitiva da indiferenciação nas linguagens, na relação interdisciplinar ou nos programas, o recurso a temáticas de um quotidiano subjectivizado”, a organização do espaço e a construção do tempo são rupturas críticas, e estéticas, marcantes. Por seu lado, a década de setenta pode ser considerada como uma década contraditória e complexa. Foi um período de consagração das dinâmicas dos anos que a antecedem – por aprofundamento e maturidade –, mas foi também o momento que deu maior visibilidade a actividades de acompanhamento ao pós-conceptualismo internacional; actividades que se situavam num “lado menos conhecido, mais marginal, indistinto, disperso e radical”. Em PINHARANDA, João Lima, “O

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imperativo fazer breve referência à linguagem artística desenvolvida durante os anos

sessenta, comummente considerados como um momento de ruptura33, começando por

destacar alguns autores que se dedicaram à sua análise.

José Augusto França, autor de uma ainda hoje notável obra sobre a arte

portuguesa do século XX34, interrompeu o seu estudo no final da década de cinquenta

e deixou a problematização dos ditos anos de ruptura em aberto. No entanto, outros

autores como, por exemplo, Rui Mário Gonçalves, Raquel Henriques da Silva e João

Lima Pinharanda35 desenvolveram então investigações em torno da década de 1960,

acabando por defini-la como um tempo em expectativa pelo aparecimento do que

apelidaram de “novas linguagens”, em estreita relação com o panorama internacional

paralelo, assim como a recuperação do impulso dinâmico das primeiras vanguardas

do século XX, particularmente no que respeita aos seus processos de questionamento

em relação aos limites do espaço expositivo.

Nos finais dos anos de 1950, novos foram os desafios e reflexões que as

igualmente novas correntes estéticas exigiram, em grande parte graças à economia

florescente dos Estados Unidos da América36, cuja vitalidade criativa tem forte

Declínio das Vanguardas: dos anos 50 ao fim do milénio”, in História da Arte Portuguesa, dir. Paulo Pereira, vol. III, Lisboa: Círculo de Leitores, 1997, pp. 593-649. 33 Veja-se o catálogo da exposição Anos 60/Anos de Ruptura, de António Rodrigues, que se constitui como um organizado levantamento da produção artística da mesma década – RODRIGUES, António (coord.), Anos 60/Anos de Ruptura: uma perspectiva da arte portuguesa nos anos sessenta [catálogo], Lisboa: Livros Horizonte, 1994; e ainda ALMEIDA, Bernardo Pinto de, “1960-1970: Anos 60 – Os anos sessenta ou o princípio do fim do processo da modernidade”, in Panorama da Arte Portuguesa no Século XX, coord. Fernando Pernes, Porto: Campo das Letras/Fundação de Serralves, 1999, pp. 213-248. 34 Fazemos referência a A Arte em Portugal no Século XX, Lisboa: Bertrand, 1974. 35 Para uma melhor compreensão acerca dos “anos de ruptura”, consultar, respectivamente: GONÇALVES, Rui Mário, “1961-1974 – Signo. Objecto. Ambiente. «Pop». «Op». Nova Figuração. Nova Abstracção. Conceptualismo” in A Arte Portuguesa do Século XX, Lisboa: Temas e Debates, 1998, pp. 84-99; o CD editado por iniciativa do ex-Instituto Português de Museus (IPM); assim como o artigo sobre o período em questão no 3.º volume da História da Arte Portuguesa, edição do Círculo de Leitores – PINHARANDA, João Lima, “O Declínio das Vanguardas: dos anos 50 ao fim do milénio”, in História da Arte Portuguesa, dir. Paulo Pereira, vol. III, Lisboa: Círculo de Leitores, 1997, pp. 602-611. 36 O racionar do pão (uma fina fatia por dia) era constrangedor, anunciava o jornal londrino News Chronicle. Protestos e greves causavam distúrbios, não só na Alemanha então dividida, mas também na região ocupada por norte-americanos. A catástrofe de fome ameaçava afundar grande parte da Europa numa crise incontrolável, em meados de 1947. De forma a contrariar a situação de falência que o continente europeu atravessava, a 5 de Junho de 1947, o general George Marshall divulgou a intenção norte-americana de apoiar todos os países arruinados pela II.ª Guerra Mundial. Esta ambiciosa proposta, fundamentalmente destinada à recuperação económica e à reconstrução europeia no segundo pós-guerra, passou à história sob a designação de Plano Marshall. Da mesma forma que financiou a Europa com uma brutal injecção de capital ao longo de quatro anos, o programa de recuperação projectou também the American way of life no velho continente, espalhanço influência e despertando

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repercussão na Europa. Por outro lado, também diversos factores políticos e sociais,

ocorridos durante a década de cinquenta, contribuíram para as múltiplas alterações

artísticas que se manifestaram nos seguintes anos: referimo-nos a acontecimentos

como a Crise do Suez37, a invasão da Hungria pela URSS ou o discurso de Nikita

Krutchev no congresso do Partido Comunista38; dos quais resultou o empobrecimento

do Império Inglês e o crescimento, do outro lado do Atlântico, de uma nova sociedade

de consumo. Naturalmente, neste contexto, também a arte norte-americana se

reinventou – na sua cultura popular que advém do desenvolvimento do mercado e do

consumo em massa39 –, arrogando-se como forte influência na cultura do velho

continente. Os anos sessenta, num contexto global, são ainda marcados pelas viagens

do homem ao espaço; o fenómeno de massas que The Beatles representaram; Mary

Quant e a revolução da mini-saia; o activismo social e político levado a cabo em Maio

de ‘68; entre tantos outros acontecimentos que assinalaram uma mudança social ao

abrigo da curiosidade, da experimentação e de novos signos que fizeram os artistas

repensar a vivência quotidiana e a valorização material que o novo paradigma

implicava.

uma nova sociedade de consumo, que se reflecte a partir dos anos cinquenta. Para um melhor entendimento acerca do Plano Marshall, cf. HOGAN, Michael J., The Marshall Plan: American, Britain and the reconstruction of Western Europe (1947-1952), série Studies in Economic History and Policy: USA in the twentieth century, Cambridge: University Press, 1989. 37 Também conhecida como a Guerra de Suez, foi uma crise política que teve início a Outubro de 1956, quando Israel, com o apoio de França e do Reino Unido, declarou guerra ao Egipto. 38 Momento de denúncia do regime de brutalidade levado a cabo por Estaline, cuja base não era o terror, mas o monopólio da informação. As revelações de Krutchev no vigésimo congresso socialista deram início ao longo processo de revisão do Estalinismo, o que, consequentemente, deu origem a uma revisão no seio da União Soviética e a uma crise na velha Esquerda. 39 É neste contexto de transformação da sociedade urbana moderna que surge a Pop Art, cujo poder e vitalidade se manifestam na exposição multidisciplinar “This is Tomorrow”, patente em Londres na Whitechapel Gallery, de Agosto a Setembro de 1956 – Cf. BLAZWICK, Iwona, YIAKOUMAKI, Nayia (ed.), This is Tomorrow [catálogo publicado por ocasião da exposição homónima realizada em 2010 na Whitechapel Gallery; exposição original de 1956], Londres: Whitechapel Gallery, 2010. O core do evento foi a apresentação do Independent Group (grupo heterogéneo que se conheceu Institute of Contemporary Arts (ICA), Londres – e do qual faziam parte artistas, críticos, teóricos e curadores como Lawrence Alloway, Richard Hamilton, Nigel Henderson, John McHale, Eduardo Paolozzi, Reyner Banham, Toni del Renzio, William Turnbull e Alison e Peter Smithson). Em Inglaterra, a reflexão centrava-se na cultura contemporânea, na celebração e na sátira à nova sociedade de consumo que o mundo vinha a conhecer (em jeito de crítica deslumbrada). Sobre o Independent Group, consulte-se ROBBINS, David (ed.), The Independent Group: postwar Britain and the aesthetics of plenty, Cambridge: MIT Press, 1990. Por seu lado, nos Estados Unidos, comemorava-se o American way of life...and death. Andy Warhol, persona pop, e artistas como Roy Lichenstein, Jasper Johns ou Claes Oldenburg, exibiam também o lado negro da produção em série, das dinâmicas sociais de desperdício, da materialidade. O termo Pop Art foi oficialmente introduzido em Dezembro de 1962, por ocasião do “Symposium on Pop Art”, organizado no MoMA. Para um melhor entendimento acerca da Pop Art, veja-se MADOFF, Steven Henry, Pop Art: a critical history, Berkeley: University of California Press, 1997.

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Internacionalmente, é neste quadro que se afirmam artistas como Robert

Rauschenberg, que deixa para trás a representação e assume a apresentação em

propostas de objectos compostos a partir de desperdícios; ou dinâmicas como a

American Action Painting, com destaque para a figura de Jackson Pollock que,

através de um gesto livre de grande expressão performativa, se insere na própria tela.

De facto, os seus drippings em acrílico (tinta que, ao surgir, foi capaz de renovar as

possibilidades da pintura) exibem a pintura enquanto acto que, mesmo concentrada no

seu medium, se alia ao movimento do corpo – quebrando qualquer tentativa de

distinção entre a arte e o real. Nesta medida, o Expressionismo Abstracto de Pollock

transforma-se, também ele, numa obra de arte total: o processo de criação, isto é, a

dança do corpo sobre a tela, adquire valor artístico per se e afirma-se enquanto evento

(ou mesmo happening). Também Franz Kline, Shozo Shimamoto, Saburo Murakami

dos Gutai, ou Lucio Fontana concretizam a obra plástica por meio do movimento

físico, numa lógica de acção que abre caminho para a body art de Chris Burden, Yoko

Ono ou Marina Abramović. Estes últimos, levando ao limite a consagração do corpo

como ferramenta de criação e expressão artística, num desafio àquilo que é um

espectáculo, e interrogando a consciência social. Do mesmo modo, devemos realçar a

tónica fenomenológica suscitada pelas propostas do Minimalismo – e, a partir de

1968, do Pós-Minimalismo –, agentes activos na actualização das dinâmicas espaciais

do objecto à escala do espectador (as quais abordaremos adiante) e na constituição do

conceito de site-specific. Significativa é também a concepção de Claes Oldenberg em

The Street, de 1960, como menciona Barbara Rose na primeira grande monografia

sobre o artista40, que funciona como uma metáfora em três dimensões: reunindo

pintura, escultura e arquitectura, introduz ao espectador a discussão em torno da

cultura urbana e dos efeitos da publicidade, passando do espaço interior do museu

para o espaço exterior do quotidiano. Não esqueçamos a presença de Marcel

Duchamp em Nova Iorque – cuja vida e obra serve de modelo para toda a vanguarda

do século XX e por diante – e o resultante reactivar de conceitos dada, desta vez

associados a outros artistas numa nova vanguarda multidisciplinar: combinando a

música de John Cage com os objectos de Jasper Johns e Robert Rauschenberg, o

teatro de Merce Cunningham e, evidentemente, a performance de Allan Kaprow.

40 Referimo-nos a ROSE, Barbara, Claes Oldenburg, Nova Iorque: Museum of Modern Art, 1984.

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Inspirado pelas propostas de Pollock, Kaprow é uma das figuras centrais neste

contexto.41 Privilegiando a acção, em oposição à criação plástica, propõe happenings

moldados à participação do público.42

O ser contemporâneo é encarar a experiência do real, da modernidade,

segundo os próprios limites da condição humana e segundo uma estética que

condensa o social e o político, criando a sua própria autonomia. Formam-se inúmeros

grupos de artistas que se propõem a assinalar um novo entendimento na relação entre

a arte e a vida. É o caso do Manifesto dos Nouveaux Réalismes (Paris, 1960),

assinado por Pierre Restany43 – que defende o diálogo directo com o mundo moderno

do consumo e dos media –, o grupo espanhol El Paso ou ainda o movimento Fluxos,

cuja figura principal é Joseph Beuys, autor que vai protagonizar um discurso teórico

41 Em 1958, no artigo intitulado “The Legacy of Jackson Pollock” - disponível em KAPROW, Allan, “The Legacy of Jackson Pollock” in Essays on the Blurring of Art and Life, Berkeley/Los Angeles: University of California Press, 2003, pp. 1-9), é Allan Kaprow quem sugere pela primeira vez que o conceito de “action painting” poderia ser desenvolvido para incluir a acção como art in itself. As telas de Pollock, como escreve, “ceased to become paintings and became environments.” E – continua – os artistas contemporâneos não precisam de se apresentar enquanto pintores, poetas ou bailarinos, “they are simply ‘artists’. All of life will be open to them. They will discover out of ordinary things the meaning of ordinariness (...). People will be delighted or horrified, critics will be confused or amused, but these, I am certain, will be the alchemies of the 1960s.” 42 Mas, afinal, o que é um happening? Para tal esclarecimento, servimo-nos da leitura – em cima do acontecimento – proposta por Susan Sontag, como descrito em “Happenings: an art of radical juxtaposition” (1962). A autora esclarece, desde logo, que tal acontecimento não tinha lugar num palco convencional, mas antes num denso cenário repleto de objectos comuns ao quotidiano. Mas a característica que mais impressionava a habitual frequentadora destes eventos era o “tratamento” da audiência: “Perhaps the most striking feature of the Happening is its treatment (this is the only word for it) of the audience. The event seems designed to tease and abuse the audience” (curiosa a palavra “tratamento”, que se adequa muitas vezes ao trabalho na pintura). No mesmo contexto, Sontag afirma que este “envolvimento abusivo” da audiência, em detrimento de qualquer outra coisa, parecia fornecer o vector dramático decisivo para o happening. E remata, “When the Happening is more purely spectacle (...) the event is considerably less dense and compelling.” SONTAG, Susan, op. cit., p. 265. 43 Aproximando-se teoricamente de propostas Pop Art, o manifesto Les Nouveaux Réalistes (disponível em HARRISON, Charles, WOOD, Paul (ed.), Art in Theory (1900-2000): an anthology of changing ideas, Malden: Blackwell Publishing, 2002, pp. 724-725) anuncia que a pintura de cavalete chegou ao fim. O grupo, composto por Yves Klein, Arman, Daniel Spoerri, Jean Tinguely, Niki de Saint Phalle, César e Christo, propõe ultrapassar o gap existente entre a arte a vida, lidando directamente com os elementos que compõem a realidade. Destaque para o sub-grupo Les Affichistes, que recolhem cartaz das ruas a partir dos quais compõem a sua obra; Arman, que com a exposição Le Plein e as suas séries de retratos chama a atenção para a acumulação e para o desperdício; e, particularmente, as Anthropométries (1960) de Yves Klein, um exercício de arte conceptual em formato happening que coincide totalmente com o real na apropriação do corpo enquanto pincel e tela – ou, antes, a obra coincide inteiramente com o acto. Sobre Yves Klein, e particularmente sobre este conceito de “corpo no espaço”, consulte-se ALVES, Margarida Brito, O Espaço na Criação Artística do Século XX – Heterogeneidade, Tridimensionalidade, Performatividade, col. Teses/Estudos de Arte Contemporânea, Lisboa: Edições Colibri/Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2012, pp. 121-124 – acerca de Le Saut dans le Vide, aquela que é “a imagem que cristaliza o mergulho do artista no espaço no início da década de 1960”, Anthropométries e a exposição Le Vide.

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sobre a arte e o seu envolvimento com a política.44 O foco do artista contemporâneo

deixa de ser o estilo ou um movimento estilístico canonizado e passa a ser o acto

criativo, “an impulse rather than a character.”45

Neste período, existe também em Portugal uma sensibilidade que apela a uma

realidade espacial em detrimento daquela que a pintura é capaz de consagrar. “A

pintura e a escultura em si mesmos carecem de um aprofundamento de sentido que

requer novas formas de expressão”, como referiu Margarida Acciaiuoli.46

A ditadura protagonizada por António de Oliveira Salazar, apesar de ter sido

talvez menos cruel e aparatosa que as restantes ditaduras fascistas europeias, foi muito

mais longa que as demais (1926-1974) e não menos castradora em relação a todos os

domínios de desenvolvimento económico, social e cultural em Portugal. Uma época

em que imperou uma postura oficial de isolamento em relação às correntes artísticas

que iam construindo a história, no panorama internacional. Chegada a década de

sessenta, a sociedade portuguesa, considerada no seu conjunto e salvo pontuais

excepções, mantinha-se afastada das dinâmicas de produção da cena artística do

estrangeiro e privada do acesso a exposições ou iniciativas capazes de dar ao seu

público uma formação artística elementar e de fornecer notícias actualizadas à

comunidade especializada. Em termos políticos, a frustração era crescente face ao

prolongamento do regime ditatorial, dilatado durante a Primavera Marcelista (1968-

1974), e crescia também a revolta perante a Guerra Colonial sem solução que se

arrastava desde 1961. No sector da cultura, no meio estudantil e entre os jovens,

aumentava-se a desilusão e propagava-se a contestação face ao contexto de alienação

44 Beuys defendia a acção humana, o activismo social e político e a criatividade pessoal, em detrimento de qualquer outra definição do real que tivesse por base padrões tradicionais de "normalidade", ou códigos sociais standard. Durante duas décadas, Beuys desenvolve situações de confronto directo entre as suas performances e o público. Com vista ao aprofundamento do tema, veja-se MESCH, Claudia, MICHELY, Viola (ed.), Joseph Beuys: the reader, Londres/Nova Iorque: I. B. Tauris, 2007; e ainda a obra publicada por ocasião da exposição organizada e patente na Menil Collection (2004) e na Tate Modern (2005), ROSENTHAL, Mark, RAINBIRD, Sean, SCHMUCKLI, Claudia, Joseph Beuys: actions, vitrines, environments [catálogo], Houston/Londres: Menil Collection/Tate Publishing, 2004. 45 Este impulso que autoriza e guia a emergência por novas formas, e que determina a sua identidade, é um impulso paradoxal – como temos vindo a apurar – que aproxima destruição e criação. Destruição que visa a criação e criar com vista a destruir: “A clean slate, chaos, and the revolution that artists summoned up by their own volition, represented and still do represente the fermente of an art which, in exalting life, subjects aesthetics to the existential imperative.” – GRENIER, Catherine, “The modern Big Bang” (pp. 13-20), in Big Bang: destruction et création dans l’art du XXe siècle, Paris: Editions du Centre Pompidou, 2005, p. 13. 46 ACCIAIUOLI, Margarida (coord.), KWY: Paris (1958-1968) [catálogo], Lisboa: Centro Cultural de Belém/Assírio & Alvim, 2001, p. 22.

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que o Estado mantinha face às grandes mutações sociais e culturais que

internacionalmente marcavam a década. Em 1959, graças já à então recentemente

criada Fundação Calouste Gulbenkian47, Lisboa contou com uma exposição de

esculturas de Henry Moore e com exposições de artistas contemporâneos vindos de

Itália, da Alemanha, do Brasil e de Espanha, mais precisamente da Catalunha

(exposições que ocorreram entre 1958 e 1960, algumas parte integrante de programas

ocasionais levados a cabo pelo Secretariado Nacional de Informação – SNI48). Por

questões de influência estética e em busca de contactos e relações no meio

internacional, muitos artistas recorrem a temporadas no estrangeiro.

A geração de artistas de sessenta em Portugal rompe de uma nova consciência

política assumida a par de uma consciência estética renascida que se vê traduzida em

novas abordagens práticas na cena artística, como veremos adiante. É neste contexto

que os artistas portugueses se encontram; numa procura por crescimento pessoal e

oportunidades criativas inseridas na conjuntura artística da sua época face às novas

formas artísticas emergentes.

A partir de 1963, um grupo de artistas independentes e de intelectuais de

oposição fundaram a Cooperativa Árvore, no Porto, e, na capital, ao longo da década,

abriam entretanto galerias e espaços alternativos (como a Galeria Divulgação ou a

Galeria 111) cujo papel foi fundamental para a concretização do novo projecto

estético que seria definido pela intervenção de artistas como João Cutileiro, Joaquim

Bravo, Ana Hatherly, Eurico Gonçalves, António Sena, António Paolo, Eduardo

Nery, Manuel Baptista, Jorge Martins, Ângelo de Sousa, Jorge Pinheiro, Armando

Alves, José Rodrigues (os quatro últimos, também formando Os Quatro Vintes, no

Porto49), Álvaro Lapa, Noronha da Costa, Helena Almeida, Alberto Carneiro, Ana

Vieira, Ricardo Cruz Filipe, Fernando Calhau, Júlio Pomar ou Nikias Skapinakis,

47 Os estatutos da instituição privada de utilidade pública foram aprovados pelo Estado Português a 18 de Julho de 1956. Desde as suas primeiras actividades, na década de cinquenta, a Fundação respondeu às necessidades mais prementes da sociedade portuguesa. Foi a época das primeiras intervenções em matérias de educação, de investigação científica, de formação artística, de expressão cultural, de saúde pública e de assistência aos mais carenciados. 48 Antigo SPN – Secretariado de Propaganda Nacional. 49 Grupo que, por via de propostas individualizadas e inovadoras, se tornou decisivo e foi capaz de se afirmar com sucesso no contexto português. O nome, “Os Quatro Vintes”, ironizava e ostentava em simultâneo as classificações finais obtidas na Escola Superior de Belas Artes do Porto. Veja-se a edição concebida e executada de modo a acompanhar e servir de introdução à exposição “Os Quatro Vintes, Quinze Anos Depois”, efectuada na Casa do Infante, Porto, sob a co-autoria de Fernando Pernes, José Augusto França e Eugénio de Andrade, Março de 1985.

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entre muitos outros (tratando-se de artistas que adiante abordaremos de forma mais

aprofundada). Afortunadamente, uma instituição como a Fundação Calouste

Gulbenkian, sediada em Lisboa, viria a incrementar o mais marcante papel na arte

portuguesa dos anos que lhe seguiriam, tanto a partir da definição de uma nova

política de exposições como pela subsidiação, que consideramos ter sido fundamental,

de artistas que desejavam dar continuidade à sua formação através do desenvolver de

investigações e pós-graduações no estrangeiro – como foi o caso de António Carneiro

e Ângelo Rodrigues, assim como tantos outros.

Significativamente, o ano de 1960 é o ano da realização da primeira exposição

colectiva dos KWY50 – grupo constituído por Lourdes Castro, René Bertholo, João

Vieira, José Escada, Costa Pinheiro, Gonçalo Duarte, Christo e Jan Voss, aos quais se

associariam, posteriormente, um leque alargado de artistas, amigos e colaboradores

seus contemporâneos.

Nessa primeira exposição, organizada na Sociedade Nacional de Belas Artes

(SNBA), em Lisboa, o grupo assinalava a sua entrada na década “de ruptura” com um

modelo de experimentação alheio a agrupamentos por tendências e à definição de um

movimento unificado. Isto é, ao invés, associaram-se a colectivos de intervenção onde

as obras dos respectivos participantes não tinham a necessidade de assumir formas ou

concepções estéticas comuns – não exigiam uma corrente, um programa ou um

manifesto –, porque a analogia estava na acção efectiva que propunham as suas

obras.51 Na mostra da SNBA predominava o abstracionismo que, com excepção de

João Vieira, não foi o que acabou por notabilizar os seus intervenientes. Foram antes

50 Denominação que inclui as três letras ausentes do alfabeto português, K-W-Y (que poderia significar ainda “K/Cá W/Vamos Y/Indo”). Da revista homónima saíram 12 números que reúnem um conjunto diverso de trabalhos no campo das artes, da literatura e da historiografia. Deram ainda corpo a quatro exposições (Saarbrücken e Lisboa em 1960, Paris em 1961 e Bolonha no ano seguinte) e a várias publicações. Veja-se o catálogo da exposição realizada na Sociedade Nacional de Belas Artes de Lisboa, de 11 a 20 de Dezembro de 1960, editado no mesmo ano pela Fundação Calouste Gulbenkian. 51 No editorial de KWY 6 (Paris, Junho de 1960), pode ler-se, naquilo que compreendemos ser, não uma justificação, mas antes uma nota explicativa acerca dos propósitos da revista, que “embora unidos por um mesmo espírito” – aquele que julgavam ser o do seu tempo – os pontos de vista particulares de cada um nem sempre teriam o acordo unânime do grupo e, nisso, nenhum dos artistas via qualquer desvantagem; pelo contrário, seria “pretexto para debates e controvérsias com os quais todos temos a aproveitar e que darão à nossa revista o carácter francamente aberto que gostaríamos que ela tivesse”, asseguram. De facto, em entrevista ao jornal Público (por Alexandra Lucas Coelho, 16 de Março de 2001), Lourdes Castro relata a dinâmica artística de sessenta e sintetiza afirmando que a experiência do colectivo é algo “que não se pode agarrar”. “Cada um fez o que quis, estando na mesma aventura. Não tínhamos dinheiro, imprimimos os três primeiros números no nosso quarto. Foi como uma carta aos amigos. E o René [Bertholo] chamou-lhe KWY porque nós queríamos mesmo sair de Portugal, ser outra coisa”, remata.

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as simulações caligráficas, as transparências, as sugestões de um espaço de trabalho

autêntico, os objectos de atelier que surgiam nas obras como elementos do quotidiano

do artista e parte do processo de criação. Os artistas, no próprio espaço da exposição,

mostravam pastas de desenhos, estudos e pinturas aos visitantes e as caixas embaladas

de Christo podiam ser livremente agrupadas pela audiência – um impulso

participativo idêntico àquele que se praticava no meio artístico internacional, como

atestámos previamente. Fernando Guedes, num artigo dedicado à exposição, reflectia

sobre as “embalagens” de Christo: “Por dentro, quero acreditar que as caixas estejam

vazias. Seria uma traição se não estivessem. E sabê-las vazias acentua a plasticidade

do exterior.”52 De facto, as caixas estavam vazias e o apelo à participação do público

permitia essa verificação. Acreditamos, efectivamente, ser possível referir os KWY

como um dos grupos a que se devem os primeiros passos desta nova era de

sedimentação artística em Portugal no começo natural da década de sessenta (mesmo

que datações rigorosas não sejam empiricamente sinónimo de mudanças operativas no

que diz respeito a marcos sociais, culturais ou artísticos).53

O próprio Pierre Restany, à época tutelar na trama do Nouveau Réalisme,

aplaudiu as premissas dos jovens portugueses54, capazes de se destacar apesar da

resistência e incompreensão do público, que ainda não entendia esta necessidade por

uma “renovação total do gosto”, como relembra Margarida Acciaiuoli, reconhecendo

que em Portugal “os pintores eram obrigados a trabalhar em outros ofícios; os

ateliers não podiam ser rentabilizados; o Museu de Arte Contemporânea não

expunha obras contemporâneas (...); não havia galerias ou só existia uma – a

Galeria Pórtico; para exporem tinham que se desmultiplicar na preparação de

catálogos, envio de convites, arranjo de salas e outras tarefas similares.”55 Por esse

52 Fernando Guedes, no Diário da Manhã de 7 de Janeiro de 1981, conforme referência de Rui Mário Gonçalves no 13.º volume da História da Arte em Portugal – De 1945 à actualidade, Lisboa: Publicações Alfa, 1993, p. 100. 53 Para uma melhor compreensão acerca do grupo KWY, consultar o catálogo da retrospectiva que esteve patente no Centro Cultural de Belém (Lisboa, 15 de Março a 22 de Julho de 2001) – onde estiveram reunidos os oito artistas –, coordenado por Margarida Acciaiuoli, comissária da exposição: KWY: Paris (1958-1968), 2001; e, ainda, a dissertação de mestrado em História da Arte Contemporânea orientada por Acciaiuoli, da autoria de Ana Filipa Candeias – CANDEIAS, Ana Filipa Osório, Revista KWY: da abstração lírica à nova figuração (1958-1964) [dissertação de mestrado pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, orientação por Margarida Acciaiuoli], Lisboa, 1996 [não publicado]. 54 Veja-se Restany, “Lourdes Castro: A Presença da Ausência” in Além da Sombra [catálogo], Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian/Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão, 1992, 36-38. 55 ACCIAIUOLI, Margarida, op. cit., p. 26.

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mesmo motivo, o trabalho dos artistas de sessenta não foi desde logo capaz de

alcançar com ímpeto a sua audiência e alargar a sua amplitude.

No ano seguinte, foi a vez de Maria Helena Vieira da Silva se destacar ao

arrecadar o Grande Prémio Internacional de Pintura da Bienal de São Paulo, algo que,

em tempo de ditadura política e cultural, serviu como incentivo para os artistas

nacionais.56 Na época, e visto que a esfera do poder se mostrava cada vez mais

distante das actividades culturais, coube à Fundação Calouste Gulbenkian – que,

nesse ano de 1961, concretizava a sua 2.ª Exposição de Artes Plásticas – o

protagonismo na definição de um campo artístico em Portugal e a função de

patrocinar e divulgar a arte e os artistas portugueses.

Verificou-se, nesta década, uma grande transformação na linguagem artística

da década. Desde o cinema, à música, à literatura. Nas artes plásticas aprofundou-se a

expressão abstracta numa vontade de reconsiderar os elementos segundo uma nova

figuração, em função do novo espaço urbano sobrecarregado de signos pop. É no

novo discurso da arte portuguesa – como no panorama internacional – que se

massificam os meios de comunicação e se enuncia progressivamente uma outra

orientação conceptual e diferentes eixos de entendimento no que respeita ao lugar da

arte, a sua função, os seus objectivos e as suas formas. Com efeito, como afirma

Bernardo Pinto de Almeida – colocando em questão a consensual noção de ruptura

definida segundo o entendimento crítico e historiográfico dos diversos autores que

abordaram a mesma época –, operou-se, nos anos sessenta, “a passagem de uma

situação a outra, de uma consciência a outra e, mais em particular, de uma ideia e de

uma estética da forma a uma ideia e a uma estética da atitude.”57 Desta feita, o autor

discute a década à luz do paradigma modernista, noticiando o que de radicalmente

novo aconteceu: os movimentos artísticos deixaram de se situar nesse mesmo âmbito

ideológico, em prol de uma outra orientação teórica – questionando assim o conceito

de vanguarda e a sua validação crítica enquanto meio de organização do discurso

estético ao longo de todo o século XX.

56 Vieira da Silva viria a ser alvo de uma primeira grande retrospectiva no museu da Fundação Calouste Gulbenkian, no ano de 1970, exposição que ofereceu à artista o merecido reconhecimento público e institucional. No mesmo ano, as galerias 111 e São Mamede, através de Manuel e Arlete de Brito e de Mário Cesariny, respectivamente, apresentam também um panorama bastante completo da sua obra. 57 ALMEIDA, Bernardo Pinto de, “1960-1970: Anos 60 – Os anos sessenta ou o princípio do fim do processo da modernidade”, in Panorama da Arte Portuguesa no Século XX, coord. Fernando Pernes, Porto: Campo das Letras/Fundação de Serralves, 1999, p. 214.

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Da mesma forma, não podemos deixar de fazer referência aos factores

geográficos e de mercado; particularmente a perda de uma certa hegemonia europeia

e, sobretudo, parisiense, e a ascendente importância da dinâmica norte-americana.

Ainda assim, e apesar de uma grande parte dos artistas portugueses de então se dirigir

para Londres, como Alberto Carneiro ou Rolando Sá Nogueira, alguns críticos

nacionais – nomeadamente José Augusto França, Rui Mário Gonçalves ou António

Areal – elegem Paris como o único centro de formação de referência, manifestando

uma posição crítica e de recusa historicista em relação aos valores da Pop Art e a uma

afirmação abrupta da cultura anglo-americana.

Os anos sessenta foram, em suma, um momento de transformação sócio-

cultural em Portugal. O regime capitalista e a sociedade burguesa hierarquizada

sofreram a violenta contestação por parte de uma juventude que não se revia nos

valores vigentes e que desejava transformar o mundo num local à medida do seu

cenário. Questionando o establishment da sua época, os artistas procuraram

reformular e discutir valores considerados imutáveis (como a família, a religião ou a

conduta sexual), de forma a encontrar novas respostas para o seu tempo. Tal como

aconteceu no panorama internacional, também expressões como o desenho e a

fotografia beneficiaram, progressivamente, de autonomia própria e adquiriram o

estatuto de arte por entre as demais. Por seu lado, a performance e o happening,

disciplinas que se aliavam, muitas vezes, a meios artísticos como a pintura, a dança, o

teatro e a música, foram intensificando os seus programas, tateando terreno e testando

uma audiência ainda desconfiada, abrindo caminho para os artistas das gerações

seguintes. Admitimos, por isso, que a década de setenta, no seu essencial, deverá ser

analisada como um prolongamento evolutivo da anterior – que preparou o meio

intelectual e estético – sendo que o paradigma definidor do seu carácter de vanguarda

(uma vanguarda renovada à luz de uma outra consciência e de novos códigos

programáticos) serão, em grande medida, as dinâmicas experimentais apresentadas

por uma Alternativa Zero, organizada em 1977 pela figura ímpar de Ernesto de Sousa

que, então já claramente demarcado do pensamento neo-realista, desenha o percurso

fundamental que faria a ponte entre o raciocínio que foi sendo constituído ao longo de

sessenta e as ideias emergentes de um núcleo artístico jovem, do qual sairiam as

figuras-maiores da arte portuguesa da década seguinte.

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No âmbito da presente dissertação, de acordo com os novos códigos de

expressão artística anunciados, consideramos que a entrada nos anos setenta é

marcada pela realização da performance O Espírito da Letra, de João Vieira, na

Galeria Judite Dacruz (Lisboa)58, a publicação de Imagination and Ironie, de Costa

Pinheiro ou, como já referimos, a retrospectiva dedicada a Vieira da Silva na

Fundação Calouste Gulbenkian59, no ano 1970. De facto, podemos mesmo considerar

a década como um tempo contraditório e complexo, de consagração – por

aprofundamento ou maturidade –, de artistas antes no activo, de dinamismo no que

respeita ao mercado da arte e, fundamentalmente, de um entusiasmo criativo que

acompanhou o que internacionalmente acontecia ao nível da arte.

Tornar-se-ia penoso e desapropriado estabelecer uma cronologia que limitasse

o momento inaugural da década e o seu consequente término, e nem sequer nos

parece pertinente fazê-lo. Ainda assim, de forma a compreender a lógica artística que

se vinha estabelecendo, é necessário considerar o 25 de Abril de 1974 como uma data

definidora, sendo o acontecimento mais marcante da década. A Revolução de Abril

manifestou-se, evidentemente – prévia e posteriormente –, através das mais variadas

dinâmicas sociais e culturais de resistência, sendo que as transformações de carácter

político determinam não apenas rupturas históricas, como alteram significativamente

a análise da própria realidade artística. A esperança nas transformações sociais e em

novas perspectivas culturais são resultado da revolução, que surpreendeu o meio

artístico activo, que sempre se havia manifestado actualizado e interventivo apesar da

polícia política (vulgo PIDE-DGS) ir tentando descodificar sinais de oposição ao

governo de Marcello Caetano; censura que era ridicularizada pelos artistas e pelos

intelectuais ao nível da prosa literária, da informação jornalística, do cinema, das artes

plásticas, dos sectores universitários e mesmo em conversas de café.

Aproximadamente, e até à década de oitenta, os artistas de vanguarda, na sua

generalidade, mantinham-se afastados das áreas do poder e da arte institucionalizada,

isto é, aquela que era defendida pelo Estado e que deveria representar a sua doutrina, 58 Um conjunto de letras de madeira, de grandes formato, que constituía a exposição de 1970, foi destruído pela acção do artista e de um conjunto de crianças, numa “destruição quase neodadaísta do alfabeto” (FERNANDES, A Letra e o Corpo, p. 27). Foi atribuído ao seu “autor-inventor” (SOUSA, Da Letra ao Texto, p. 30) uma Menção Honrosa Soquil, pela originalidade da sua proposta, e o júri era composto por José-Augusto França, Fernando Pernes e Rui Mário Gonçalves. 59 Entre inúmeros acontecimentos que não serão possíveis de elencar, não porque os consideramos como de menor importância (que não o são, de todo), mas sim por necessidade de prosseguir de encontro à discussão central da nossa investigação.

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mantendo-se nos domínios de uma produção independente e de oposição. Ainda

assim, podemos afirmar que a liberdade conquistada em Abril transformou

significativamente as movimentações da cena artística portuguesa. Assiste-se à

ascendência de uma vontade colectiva (da qual resultaram inúmeras colaborações

entre artistas e organizações)60, no seio de instituições que mesmo antes funcionavam

um pouco à margem das estruturas governamentais; tais como a Cooperativa Árvore,

a Sociedade Nacional de Belas Artes, a Cooperativa Gravura, algumas galerias de

arte, a Fundação Calouste Gulbenkian e alguns suplementos literários com actividade

crítica – como é o caso da revista Colóquio/Artes61, defensora dos valores da arte

portuguesa de vanguarda e em prol da sua divulgação. Iniciou-se a reforma do ensino

artístico em Portugal, incorporando disciplinas teóricas nos programas de Belas-Artes

e introduzindo cursos como o de Design de Equipamento e de Comunicação, antes

60 Menos de dois meses depois da revolução de Abril, no dia 10 de Junho de 1974, o Movimento Democrático dos Artistas Plásticos, em colaboração com o Movimentos das Forças Armadas e com o apoio da Rádio Televisão Portuguesa (que se propôs transmitir o acontecimento em directo), resolveu produzir uma enorme tela pintada por 48 artistas (tantos quantos os anos de ditadura em Portugal), na Galeria de Arte Moderna, em Belém, junto do Mercado do Povo e do Museu de Arte Popular (Lisboa). Simultaneamente, produziram-se um sem número de manifestações culturais, quer dentro do espaço da galeria, quer no seu exterior. Entre os 48 artistas é possível destacar inúmeros nomes que então apareciam como os mais prestigiados pela crítica e pelo mercado e que, ainda hoje, se mantêm entre os mais cotados: Júlio Pomar, Nikias Skapinakis, João Abel Manta, Costa Pinheiro, Rolando Sá Nogueira, entre outros. O painel do 10 de Junho, enorme homenagem ao 25 de Abril (24 x 4,5 m), desapareceu em 1981, no incêndio que destruiu a Galeria de Arte Moderna, a mesma galeria onde se realiza a Alternativa Zero – associada ao Mercado do Povo e não ao Museu, demasiado relacionado com o regime – A “Alternativa Zero, manifestação cultural da vanguarda portuguesa, surge em Belém, na Galeria de Arte Moderna, integrada no Mercado do Povo. Convém que disto se dê alvoraçada notícia”, escrevia Eduardo Prado Coelho, recente ex-director-geral da Acção Cultural, em 1975-76, e nessa condição impulsionador e patrocinador da exposição comissariada por Ernesto de Sousa (cf. Coelho, 1977, p. 41). Constituíram-se ainda grupos de intervenção, dos quais são exemplo o grupo ACRE, formado por três artistas do Porto (Clara Manéres, Lima de Carvalho e Alfredo Queiroz Ribeiro) ou o Grupo 5+1, em Lisboa (Teresa Magalhães, João Hogan, Sérgio Pombo, Guilherme Parente, Júlio Pereira e Virgílio Domingues). 61 Dirigida por José Augusto França e publicada entre Fevereiro de 1971 e Outubro de 1996 pela Fundação Calouste Gulbenkian, a Colóquio/Artes, foi a única revista de publicação regular que se concentrou inteiramente na divulgação e na problematização da produção artística em Portugal. Durante 26 anos, a revista revelou-se como um valioso arquivo do espólio artístico português e da sua evolução. Como reflexo da diversificação de conteúdos e perspectivas, em quase todos os seus números eram introduzidos novos colaboradores (portugueses e estrangeiros). Aproveitando a sua difusão internacional, a coordenação da Colóquio/Artes concebeu a estratégia de exibir – sempre – uma obra portuguesa na capa, e assim apresentar a arte portuguesa ao mundo. De facto, a Colóquio/Artes dedicou-se, em grande medida, ao universo da arte contemporânea e acompanhou o percurso de muitos artistas (não apenas portugueses), enquanto noticiava a emergência de múltiplas tendências artística do seu tempo, “podendo, neste sentido e num plano editorial, ser considerada uma primeira tentativa de articulação do contexto português com o contexto internacional”. Cf. ALVES, Margarida, “Colóquio/Artes, uma revista da Fundação Calouste Gulbenkian” (p. 417), in Espacio, Tiempo y Forma, Serie VII, H.a del Arte, t. 18-19, 2005-2006, pp. 407-421. Para uma melhor compreensão, consultar ainda, da mesma autora, A Revista Colóquio/Artes, col. Teses/Estudos de Arte Contemporânea, Lisboa: Edições Colibri/Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2007.

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inexistentes. Fernando Pernes, crítico que viria a ser o autor do importante trabalho

desenvolvido no Museu Nacional Soares dos Reis e, mais tarde, na Fundação de

Serralves62, fazia o Levantamento da Arte do Século XX no Porto, em 1975. Em 1976

é criado o primeiro Mestrado em História da Arte – pela mão de José Augusto França

–, na recentemente inaugurada Universidade Nova de Lisboa, o que criou as

condições necessárias a uma mais rigorosa profissionalização da história, teoria e

crítica de arte em Portugal, contribuindo assim para o enriquecimento do meio

intelectual e universitário. Ainda, há que salientar, no final dos anos setenta, a criação

da Bienal de Vila Nova de Cerveira, em 1978, evento impulsionador de criação

colectiva e que, durante largos anos, manteve aceso o espírito progressista da

revolução de Abril.

As propostas de vanguarda de então, que expressavam uma vontade de

actualização e inserção no contexto internacional, reflectiam-se ainda a partir da

experimentação na pintura, mas as mais inovadoras experiências ao nível da nova

linguagem artística manifestavam-se no domínio da escultura, da instalação e da

performance. Neste âmbito, importa-nos destacar, a título de exemplo, as experiências

do pintor Espiga Pinto, que em 1972 realizou o happening Egetemponírico, em

Valadares (Vila Nova de Gaia), ou os Encontros Internacionais de Arte, realizados

entre 1975 e 1977 que, percorrendo inúmeras cidades portuguesas, dinamizaram a

realização de acções performativas e intervenções de artistas portugueses e

internacionais, de entre os quais o Grupo Puzzle, Albuquerque Mendes, Artur Barrio,

Gerardo Burmester, Manoel Barbosa, Ernesto de Melo e Castro, entre outros.

Segundo João Pinharanda, podemos mesmo datar os eixos de impulso para a

nova década artística deixando de parte os géneros tradicionais: as obras de Alberto

Carneiro, O Canavial: memória-metamorfose de um corpo ausente, realizado entre

1968 e 197063, ou Uma Floresta para os Teus Sonhos, de 197064, enquanto marcos

62 Instituição que é, actualmente, o suporte por excelência da divulgação e exposição de arte contemporânea portuguesa e internacional em Portugal. 63 Alberto Carneiro propõe-se a descontextualizar os elemento da natureza para o espaço real; o espaço da galeria. N’O Canavial, a matéria é disposta de modo a recriar a natureza, de modo a permitir o contacto do corpo. A mera representação não é suficiente e, por isso, a instalação de Carneiro ocupa um alargado espaço, sendo quase possível caminhar por entre as canas que constituem a obra. 64 Instalação realizada na Galeria Bucholz, então dirigida por Rui Mário Gonçalves, e depois exibida na Alternativa Zero, composta por uma “floresta” de troncos de pinheiro, de dimensões variáveis: “A partir do momento em que o espaço da exposição foi escolhido, tornou-se evidente que a obra a expor seria “Uma floresta para os teus sonhos” e que se organizaria como um centro. Assim a floresta desenhou uma casa na qual se mostrava a si mesma e se tornava una com o edifício através da

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inaugurais; e, demarcando o seu término, a Alternativa Zero65 (onde teve destaque a

instalação de 1970 de Carneiro), não deixando por isso de se considerar todo o

restante tecido artístico em redor – como as sínteses de grande imaginação plástica de

António Paolo; o geometrismo cromático iniciado por Julião Sarmento nesse mesmo

período; a investigação land art de Graça Pereira Coutinho, em Londres; as pesquisas

de Fernando Calhau ou Zulmiro de Carvalho, entre tantos outros nomes dignos de

atenção.

Ora, Pinharanda, embora sem pretender balizar rigorosamente a década de

setenta, aponta o que cremos também serem as suas mais vigorosas e firmes linhas de

força. Neste contexto, vale a pena destacar Alberto Carneiro, artista já estabelecido na

conjuntura anterior e cuja carreira se vai consolidando – critica e comercialmente –

durantes estes mesmos anos, enquanto figura-ímpar para a construção de uma história

da arte portuguesa contemporânea, determinante na concepção de imagens para uma

época (e as que lhe seguiram). Carneiro é pioneiro no que respeita ao conceito de arte

ecológica, no sentido de comunhão ou integração da terra enquanto algo sensorial. As

suas instalações, com referências land art, assumem uma linguagem própria; os

elementos naturais estão presentes no espaço da galeria: a árvore deixa de ser

desenhada e passa a existir no lugar museológico, por via da sua

apresentação/presença física, podendo ser habitada pelo espectador. É dada

preferência a este envolvimento, na procura por uma imersão total, de modo a tocar os

sentidos do espectador – e o seu corpo.

No anteriormente referido O Canavial (...), identificamos desde logo a noção

de lugar e a criação simbólica de uma ideia de paisagem. E é na construção destes

espaços de significação que a obra de Alberto Carneiro se concentrará, sobretudo ao

longo destes anos setenta, como reitera Catarina Rosendo66, afirmando tratar-se de

uma “consciência adquirida de uma paisagem vivida e inscrita pelo e no seu próprio amarração a um dos pilares. Esta opção foi consensual, como a mutação da forma relativamente ao espaço, o que sempre acontece com as minhas obras de envolvimento, dado que o espaço-entre se torna factor da dinâmica da percepção e das mobilidades do espectador.” (Alberto Carneiro em entrevista a Patrícia Trindade Filipe, Alternativa Um: Respostas Polémicas à Alternativa Zero, tese de mestrado, 2008). 65 Veja-se o 3.º volume da História da Arte Portuguesa, dirigido por Paulo Pereira, no qual Pinharanda reflecte sobre os “Anos 70: um tempo de passagem”, como parte do capítulo “O Declínio das Vanguardas: dos anos 50 ao fim do milénio”, p. 612. 66 ROSENDO, Catarina, Alberto Carneiro: os primeiros anos (1963-1975), col. Teses/Estudos de Arte Contemporânea, Lisboa: Edições Colibri/Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2007, p. 91.

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corpo, que se assume como um outro lugar, também ele gerador dos sentidos e das

experiências que a sua presença no mundo implica”. A obra é constituída por um

conjunto de canas distribuídas na vertical e obliquamente que cerram o topo da

construção, sugerindo assim a ideia de abrigo; ainda, cada cana apresenta uma tira de

cor vermelha, amarela, azul ou verde, com a inscrição de uma letra do alfabeto ou um

algarismo que funciona como um código para a “recriação de um corpo ausente”,

como menciona a mesma autora. Uma instalação que ocupa a totalidade do espaço de

exposição em que se insere e que, desta forma, estabelece uma envolvência sensorial

que é, desde logo, uma das premissas-chave no trabalho de Carneiro. Desta forma,

obedecendo “ao princípio fenomenológico de que o espaço está à nossa volta para

dele fazermos parte e com ele nos relacionarmos a partir da percepção da sua

realidade quer matérica quer imaginante”67, são introduzidas as ideias de memória,

de ausência, de corpo. Um corpo ausente que não é apenas o do sujeito-artista mas

que é, também, o do espectador, que tem um papel essencial para a formulação do

discurso.

Num outro pólo, a “primeira exposição de arte contemporânea em Portugal

desde há muito tempo”, como afirmava José Augusto França numa das primeiras

páginas da Colóquio/Artes de Fevereiro de 1977, preconizando a promessa de

contemporaneidade que a exposição do mesmo ano anunciava – “Alternativa Zero –

porque outra não há... 68 ” –, que funcionou quase como um levantamento de

actividades conceptuais, pós-minimalistas e, fundamentalmente, performativas,

servindo como um balanço expositivo num regime pós-revolucionário e enquanto

plataforma de experimentação e de influência para as gerações futuras.

“A arte portuguesa dorme; os artistas mais jovens procuram acordar. Ousarão,

poderão eles, verdadeiramente?... No entanto, uma coisa é certa e segura: os envios

desta exposição lisboeta não se adicionam uns aos outros, mas multiplicam-se –

procurando o seu menor múltiplo comum, como em toda e qualquer exposição que

hoje se interrogue colectivamente. Porque, para além das fronteias dum país em

crise, no seio duma conjuntura onde pesa um passado ancilosado, cheio da imagem

do Pai odiado, tal é, em 1977, a situação de qualquer exposição que, como esta,

67 ROSENDO, Catarina, op. cit., p. 92. 68 FRANÇA, José Augusto, “Alternativa Zero”, in Colóquio Artes, n.º 31, Fevereiro 1977, p. 4.

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pretenda «ser mais do que uma exposição». Daí a sua contemporaneidade tanto

quanto a sua originalidade.”69

Antes de mais, é fundamental compreender que a figura de Ernesto de Sousa é

o principal gerador desta intervenção artística. Ernesto de Sousa era simultaneamente

artista, cineasta, crítico de arte, comissário de exposições e um dos maestros do

panorama cultural do seu tempo, funcionado como personagem catalisadora de uma

geração e de uma prática artística inserida num contexto particular. A este último

atributo será dada visibilidade através da iniciativa Alternativa Zero, particularmente

pela polémica que projectou, embora Ernesto de Sousa tenha também organizado

outras mostras significativas, como Do Vazio à Pró-Vocação (1972) e Projectos-

Ideias (1974), ambas incorporadas nas exposições da Associação Internacional de

Críticos de Arte e da Sociedade Nacional de Belas Artes.70 No ano seguinte à

Alternativa Zero, Ernesto de Sousa realizou ainda, na Galeria Quadrum, em Lisboa, o

Ciclo Performing Arts, no qual apresentou documentação e vídeos acerca de

propostas performativas. Mas, para já, recuemos um pouco.

Em Maio de 1976, o Departamento de Artes Plásticas da Secretaria de Estado

da Cultura envia uma carta a Ernesto de Sousa, convidando-o para a organização de

uma “exposição de vanguarda”, na qual “muito agradecemos que nos informasse da

possibilidade que tem de se encarregar da mesma, com a maior brevidade

possível.”71 A exposição tinha sido planeada para esse mesmo ano, mais precisamente

para o mês de Setembro, e com o claro objectivo de coincidir com a 28.ª Assembleia

Geral da Associação Internacional de Críticos de Arte, que se realizava em Lisboa

justamente nesse período.72 Infortunadamente, e como esclarece Ernesto de Sousa73,

“dificuldades administrativas” – alegadas pela Secretaria de Estado da Cultura74 –, a

iniciativa não se pôde realizar na data inicialmente prevista, devido ao facto do

69 FRANÇA, José Augusto, op. cit., p. 4. 70 CARLOS, Isabel, “Sem Plinto nem Parede: anos 70-90” in História da Arte Portuguesa, dir. Paulo Pereira, vol. III, Lisboa: Círculo de Leitores, 1995, p. 642. 71 Ernesto de Sousa, Espólio D6, Biblioteca Nacional de Lisboa, Caixa 31, doc. 1.5 – 9. 72 SANTOS, Mariana Pinto dos, Vanguarda & Outras Loas: percurso teórico de Ernesto de Sousa, Lisboa: Assírio & Alvim, 2007, p. 113. 73 Conferir o documento registado por Ernesto de Sousa, constante do Espólio D6, Biblioteca Nacional de Lisboa, Caixa 31, doc. 1.5 – 9. 74 Segundo o relatório apresentado por Ernesto de Sousa à Secretaria de Estado da Cultura. Documento datado de 23 de Março de 1978 (incluído em Perspectiva: Alternativa Zero, Fundação de Serralves, 1997).

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mesmo organismo não ter disponibilizado oportunamente os meios financeiros

necessários para a concretização do evento.75 Como tal, não foi possível cumprir a

execução da exibição para Setembro de 1976, nem as duas seguintes datas

propostas.76 Finalmente, após novo adiamento, é no dia 28 de Fevereiro de 1977 que

inaugura, cremos que ainda oportunamente, o evento – ou exposição, enquanto obra-

total – desta Alternativa Zero, na Galeria Nacional de Arte Moderna de Belém77, à

época dirigida por João Vieira (que esteve também presente enquanto artista).

O evento estava dividido em três exposições distintas e o espaço – um

pavilhão construído na década de quarenta para acolher e fazer parte da Exposição do

Mundo Português –, sofreu alterações no seu interior. Estas alterações ocorreram para

que fosse possível acolher as diversas obras e, sobretudo, de forma a apelar à

participação directa do público, pela interactividade entre os presentes, os artistas

intervenientes e as obras apresentadas.

A primeira das três exposições foi concebida para ser dedicada aos primeiros

modernistas portugueses. Com o título Os Pioneiros do Modernismo em Portugal,

pretendia conceder homenagem a três figuras-chave da arte portuguesa do início do

século XX através de uma exposição fotográfica documental – Amadeo de Souza-

Cardoso, José de Almada Negreiros e Guilherme de Santa Rita Pintor.78 Na mesma

75 Ainda assim – segundo o relatório –, mesmo posteriormente, o apoio financeiro concedido terá sido geralmente escasso e, por isso, dependido muitas vezes da boa vontade e da contribuição dos intervenientes – consoante a sua disponibilidade financeira – sobretudo por parte do próprio comissário, Ernesto de Sousa. Além da falta de meios, era ainda necessário reunir tempo suficiente para preparar convenientemente a exposição, o que não seria possível apenas três meses antes da data apontada para a realização da mesma; segundo carta de Ernesto destinada à secretaria de estado, é notório que o evento, em Julho, ainda estaria longe da sua concretização: “(...) temos em preparação um plano extensivo de actividades, de que já Vos demos participação oral e que em breve submeteremos à Vossa apreciação em forma de Relatório. entretanto, e para aproveitar a próxima realização em Portugal da 28.ª Assembleia Geral da AICA, submetemos à V. apreciação o plano junto de uma exposição de relativamente fácil montagem: a qual constituiria uma espécie de introdução a outras actividades de maior fundo. Tal como temos considerado, trata-se de uma exposição sem júri, por convites, e da exclusiva responsabilidade do organizador – segundo fórmula a combinar. Eventualmente, e se o tempo disponível o permitir, pode abrir-se uma espécie de concurso a operadores jovens, ou de qualquer maneira desconhecidos. Atentamente, Ernesto de Sousa.” (Espólio D6, idem). Um secretariado para a organização da Alternativa Zero só seria criado a 15 de Agosto e funcionando no espaço que estava destinado a acolher o evento, a Galeria Nacional de Arte Moderna, em Belém (Espólio D6, idem). 76 De facto, o primeiro adiamento, estabelecido para Novembro do mesmo ano, deu lugar a um segundo adiamento (desta feita, para Janeiro do ano seguinte). 77 SANTOS, Mariana Pinto dos, op. cit., p. 126. 78 Na verdade, Ernesto de Sousa teria tido antes a intenção de aprofundar, no espaço da Alternativa Zero, a ligação que o mesmo tinha tido com Almada Negreiros desde os finais dos anos sessenta. Inicialmente, quando ainda programava a exposição para Setembro de 1976, Ernesto teria a ideia de realizar uma apresentação pública dos painéis de Almada para o cine San Carlos de Madrid.

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exposição, eram expostas reproduções ampliadas de fotografias dos mesmos artistas e

de documentos que testemunhavam a intervenção futurista; tal como alguns desenhos

e, maioritariamente, textos literários de avultada polémica ou conferências

teatralizadas que violentamente provocavam o público. Todas as obras documentais

estavam dispostas ao longo de painéis. Funcionando enquanto preâmbulo à

Alternativa Zero, a primeira exposição apresentada na Galeria Nacional de Arte

Moderna de Belém operava também enquanto mecanismo pedagógico, anunciador e,

mais que isso, legitimador da produção contemporânea que os espectadores veriam

nas salas seguintes: a audiência sairia da primeira sala com um olhar e uma

consciência mais instruída e aprimorada. Através da observação do espólio da

vanguarda futurista dos anos dez, o espectador menos informado preparava-se para a

análise, ou mera observação, da arte que se apresentaria nas salas seguintes – a arte do

seu tempo, que se assumia enquanto continuadora do projecto modernista que

inaugurou o século. Com efeito, Ernesto de Sousa e os artistas presentes nesta

Alternativa Zero desejavam mesmo, como reconhece Mariana Pinto dos Santos79, a

diluição ou mesmo a eliminação das quatro décadas de arte portuguesa que os

separam da intervenção levada a cabo pelas três figuras maiores do Futurismo em

Portugal (entre cerca de 1915 a 1918). Mas este esforço por dissolver quarenta anos

de história da arte deve ser lido “não só como tentativa de estabelecer uma

genealogia entre o início do século e os anos setenta”, mas ainda, paralelamente,

“como uma tentativa de sincronização de acontecimentos muito afastados

cronologicamente, por neles se encontrar uma mesma atitude, ou intencionalidade.”80

Ou seja, não quer isto dizer que os intervenientes da mostra de 1977 se considerassem

contemporâneos directos dos futuristas portugueses; muito pelo contrário, é enquanto

potenciadores de uma acção percursora que os artistas de setenta neles se revêm. Para

estes últimos, ambas as intenções se assemelham na vontade por uma renascida

experimentação artística em contacto directo com o seu observador, no desejo por

inovação, renovação e actualidade. Ainda, não devemos esquecer que a intervenção

Apresentação que antecederia o evento, numa visita guiada ao Instituto de Restauro José de Figueiredo, onde mostraria ainda um documento audiovisual sobre o artista de Orpheu (“Almada, Nome de Guerra” 1969), explicitando a relevância do mesmo para a vanguarda de setenta. Cf. SANTOS, Mariana Pinto dos, op. cit., p. 127. 79 Idem. 80 Idem.

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futurista seria o momento em que Portugal mais se teria aproximado de uma

vanguarda artística em sincronia com o panorama internacional.81

A segunda exposição que os visitantes podiam encontrar na galeria de Belém

estava destinada à exibição de cartazes de exposições internacionais e intitulava-se A

Vanguarda e os Meios de Comunicação – O Cartaz. Ostentava diversos posters

recolhidos por Ernesto de Sousa e referentes a exposições que o mesmo visitou em

períodos que passou no estrangeiro, onde contactou com as várias dinâmicas artísticas

da época. De facto, Ernesto anunciava desde logo, a partir dos anos quarenta, um

entendimento alargado acerca das diferentes formulações artísticas, das suas

limitações e das suas preocupações estéticas, formais e conceptuais. Tal não fosse, o

comissário da Alternativa Zero não teria proposto a divulgação da pintura através do

cartaz e, mais ainda, afirmado que a linguagem da pintura exigia a busca por novos

suportes, de forma a que esta categoria se adaptasse “ao espírito da cultura em

questão”: “Não haverá outras superfícies, em que seja possível divulgar a pintura – a

sua linguagem – como é exigido pelo próprio modo de ser desta?82 Não é um

problema fácil de resolver: é necessário uma superfície que corresponda exactamente

ao espírito da cultura em questão. Por ora, uma coisa me parece não ser para

desprezar: o cartaz.”, e continuava, fazendo assinalar a sua consciência pedagógica e

o seu espírito de vanguarda, “Porque não utilizá-lo em associações recreativas e

culturais, clubes, escolas, etc., para uma grande divulgação duma nova arte que não

consente ficar na sala de jantar ou sala de visitas?83”

No cartaz que comunicava a existência de uma Alternativa Zero podia então

ler-se:

81 A exposição não tardou a ser alvo de críticas por parte de João Manuel Rocha de Sousa, professor, crítico e artista plástico português no activo durante os mesmos anos. Na sua crítica, acusa a exposição de se fixar excessivamente em modelos internacionais, naquilo que acreditava ser uma importação acrítica da arte que se fazia no estrangeiro, quando a Alternativa Zero tinha o dever de criar, pelo contrário, uma arte portuguesa para exportação. Ainda, critica ferozmente a associação de Almada Negreiros, ele sim, artista de valor no panorama português. Ernesto de Sousa responde prontamente às acusações levantadas por Rocha de Sousa, fazendo um paralelismo com as reacções críticas que os primeiros modernistas experimentaram aquando das primeiras exposições públicas do seu trabalho, sobretudo no que respeita à resistência ao Futurismo, entendido, à época, como “doença contagiosa”. 82 Anúncio relação entre pintura e escultura internacional. Desmistificação. Ernesto de Sousa no catálogo da exposição: “O quadro não consente moldura, e a escultura não consente plinto que os separem do envolvimento real de que fazem parte.” 83 Idem.

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“Alternativa Zero. Tendências Polémicas na Arte Portuguesa Contemporânea.

objectos objecções projectos atitudes formas ideias conceitos acontecimentos

expansão exposição comportamentos arte antiarte diálogo culinária acordos

desacordos meditação cinema vídeo teatro pintura escultura movimento arquitectura

fotografia desenho música jogo comunicação festa object.”84

Aqui, o jogo tipográfico que potenciaria a reflexão do espectador, com a

última palavra cortada, como se se pudesse continuar, ou melhor, recomeçar e

continuar indefinidamente - em círculos – o circuito de vanguarda (tal como teria

acontecido nos anos dez, com Almada e os seus contemporâneos). A última palavra

cortada (em falta está a sua última letra), como o zero necessário para se olhar o

mundo como se fosse a primeira vez, assim como o olhar naïf “husserliano”. Ainda

assim, a mesma legenda carecia de uma palavra fundamental para a descrição que

Ernesto de Sousa e os artistas convidados da exposição faziam do evento; palavra que

constava, convenientemente assinalada, do convite que foi endereçado para a

concretização da Alternativa Zero: “vanguarda”.

A segunda sala, na qual estava patente a exposição de cartazes, concedia assim

ao poster a sua função primordial – a de divulgação – e procurava dar continuidade e

aliar-se à exposição da primeira sala – a dos primeiros modernistas portugueses –,

procurando demonstrar que as propostas de Amadeo de Souza-Cardoso, Almada e

Santa Rita estabeleciam pontos de contacto com o panorama artístico internacional

seu contemporâneo e, no limite, os artistas de setenta dariam seguimento ao seu

projecto de actualidade. Ainda, os cartazes prosseguiriam o guião no que diz respeito

ao exercício pedagógico e de preparação para a última entrada, que se faria na terceira

sala, onde era apresentada aquela que seria a derradeira exposição Alternativa Zero85.

O terceiro e mais importante núcleo patente na Galeria Nacional de Arte

Moderna tinha como título Tendências Polémicas na Arte Portuguesa

84 Idem. 85 Importante destacar o medium de suporte que é o cartaz, objecto efémero e gráfico, geralmente com a função de condutor de informação e não representante da informação per si. Esta escolha prende-se, acreditamos, com a relação que Ernesto de Sousa estabeleceu com as artes gráficas desde cedo, sendo que nos anos cinquenta chegara mesmo a formar uma Sociedade de Artes Gráficas intitulada Sequência e responsável pela edição de livros de carácter educacional sobre o cinema – tema que muito apraz ao autor (como exemplo, “O Argumento Cinematográfico: como se escreve um filme”, publicação datada de 1956). Nos anos sessenta, Ernesto teoriza a importância das artes gráficas num artigo que produz para o catálogo que acompanhava a exposição do artista Armando Alves, onde pode ler que as artes gráficas são “veículo de intimidade”.

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Contemporânea. Esta ficou conhecida como a exposição Alternativa Zero

propriamente dita, onde eram apresentadas as obras dos artistas que tinham aceite o

convite do comissário86 e que constituíam o propósito fundamental da mostra, sendo

que as outras duas salas serviriam para seu anúncio e para o preparo do espectador.

Como menciona João Fernandes87, houve a preocupação, por parte de Ernesto de

Sousa, de alargar o núcleo duro de artistas que vinha defendendo ao longo do seu

percurso enquanto crítico e, por isso, criando na exposição uma convivência saudável

entre artistas e tendências artísticas divergentes, em prol da divulgação e dos

conceitos de “operador estético” e de “obra aberta” que ali predominavam.

A entrada fazia-se por entre uma “floresta labiríntica” feita de tiras de papel

instaladas pelo Círculo de Artes Plásticas de Coimbra (CAPC) e penetráveis de

encontro às obras produzidas pelos artistas Armando Azevedo, Albuquerque Mendes

e Túlia Saldanha.88 De seguida, o espectador defrontava-se com as mais variadas

obras produzidas pelos nomes que haviam sido selecionados para fazer o ponto de

situação da arte em Portugal. Na impossibilidade de destacar todos os artistas que

pontuavam o espaço, faremos apenas breve menção àqueles que nos parecem, pela

desenvoltura das suas pesquisas, compreenderem mais cruamente a investigação

sobre o corpo, tema central da nossa dissertação.

Não podemos deixar de assinalar as duas séries fotográficas apresentadas por

Helena Almeida, nas quais a artista prolonga a sua investigação acerca do corpo – o

86 Segundo dados recolhidos no espólio referente ao evento, enunciamos o nome dos artistas que foram considerados e participaram na mostra de 1977 que se realizou em Belém: Helena Almeida, André Gomes, Clara Menéres, Areal, Armando Azevedo, Vítor Belém, Júlio Bragança, João Brehem, Fernando Calhau, Constança Capdeville, Alberto Carneiro, Melo e Castro, Noronha da Costa, João Dixo, Ferraz, Lisa Chaves Ferreira, Carlos Gentil-Homem, José Manual Costa Alves, Ana Hatherly, Álvaro Lapa, Albuquerque Mendes, Jorge Nesbitt, Jorge Peixinho, Jorge Pinheiro, Ernesto de Melo e Castro, Filipe Pires, José Rodrigues, Joana Rosa, Túlia Saldanha, Julião Sarmento, António Sena, Sena da Silva, Ângelo de Sousa, Ernesto de Sousa, Salette Tavares, Mário Varela, Ana Vieira, João Vieira, Pires Vieira, José Carvalho, José Conduto, António Palolo; os grupos e instituições de entre os quais Companhia de Ópera Bufa, Grupo Acre, Grupo de Música contemporânea, Grupo Os Quatro Vintes, ArCo, CAPC, Curso de Formação Artística da SNBA, Galeria Ogiva; e ainda um conjunto de artistas portugueses que residiam no estrangeiro (ou mesmo artistas estrangeiros que reuniam fortes afinidades com Portugal ou com figuras portuguesas), como Pedro Andrade, René Bertholo, Lourdes Castro, Graça Pereira Coutinho, Costa Pinheiro, Leonor Moura, Vítor Pomar, Da Rocha, Alberto Tavares, Artur Varela, Robin Fior, António Lagarto & Nigel Coates, Alvess. Cf. Ernesto de Sousa, Espólio D6, op. cit., caixa 31. 87 João Fernandes, “Perspectiva: Alternativa Zero – Vinte anos depois...”, in FERNANDES, João, RAMOS, Maria (coord.), Perspectiva: Alternativa Zero [catálogo], Porto: Fundação de Serralves, 1997, pp. 26-27. 88 Projecto apresentado antes na Galeria Alvarez, no Porto, e desde logo assumindo de forma colectiva uma ideia anteriormente concretizada por Fernando Pinto Coelho na cidade de Coimbra.

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seu – e da auto-representação; ou a obra de Alberto Carneiro, Uma Floresta para os

Teus Sonhos, já mencionada anteriormente, situada exactamente no centro do

pavilhão mas cuja montagem é diferente daquela que foi apresentada em 1971 na

Galeria Buchholz: em vez da disposição dos troncos de árvores de dimensões

variáveis e instalados verticalmente, desta vez alguns dos troncos desenham no chão o

espaço de uma casa inserida numa outra casa, por onde irrompem árvores com alguns

elementos atados por uma corda – uma alusão a noções de liberdade.

Melo e Castro expõe sinais de trânsito inscritos na inauguração pelo público,

que depois os movimenta de forma variável pelo espaço no decorrer do evento; José

Conduto relaciona referências performativas com influências da filosofia; Noronha da

Costa, por sua vez, a par com outros trabalhos, oferece uma tela branca cujo destino é

a inscrição dos debates do público mas à qual André Gomes recorre para escrever

“Depois da Exposição do Mundo Português, a exposição do mundo pequeno-

burguês...”. Ana Hatherly89, naquela que consideramos ser uma das obras que mais

violentamente exigiu a participação do público durante a Alternativa Zero, propõe-se

a ocupar um espaço fechado através de uma coluna de luz com o seu Poema d’Entro.

Porque nem sempre a ambição do artista é alcançada devido às contingências que

envolvem a obra de arte – o que, cremos nós, é mesmo capaz de engrandecer a

criação, na medida em que lhe acrescenta obstáculos imprevistos que,

consequentemente, darão origem a novas possibilidades na experimentação artística –

revelou-se tecnologicamente impossível concretizar a ideia proposta. Assim, Hatherly

decide colar, numa sala escura iluminada por luzes intermitentes, algumas folhas de

cartaz em branco, que viria a rasgar durante a inauguração. Do mesmo modo, o

público teria a possibilidade de dar continuidade ao mesmo processo durante o

decorrer do evento, rasgando as folhas – indo ao encontro de um dos pressupostos

primários da exposição: a interacção com a audiência, convocando fisicamente o

espectador.

Por seu lado, Albuquerque Mendes disponibiliza documentação das suas

experiências performativas; enquanto Túlia Saldanha constitui um projecto antigo,

metamorfoseado, numa sala escura, onde se ouvem sons provenientes dos cafés de

Coimbra. Já Ana Vieira projecta Déjeuner sur l’Herbe sobre um ambiente de

89 Ana Hatherly que, no mesmo ano, realizou a intervenção/performance Ruptura, na Galeria Quadrum, em Lisboa.

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piquenique em espaço fechado; entre outras obras que fazem parte de uma acção livre

– segundo o paradigma de “obra aberta” –, que esta “alternativa” comportava.

Isolamos ainda, por isso, entre performances inesperadas de visitantes, artistas e

músicos, o momento em que André Gomes, perto do término do evento, realiza um

conferência-espectáculo à qual apelida de O Culto da Vanguarda... or the Importance

Of Being Ernest; por último, foi ainda apresentada uma obra-projecto exibida

anonimamente que se revelou como sendo uma “sala de descontracção.”90 Tornou-se,

por isso, num símbolo da inovação que compôs todo o evento: um novo modelo para

ver, visitar e, fundamentalmente, participar numa exposição do século XX, reforçando

a proposta “zero” de interacção com o espectador contemporâneo. De facto, sem a

presença do público o paradigma da Alternativa Zero não teria, sequer, existido, já

que não existiria ninguém a assistir e a testemunhar a exposição e porque,

principalmente, não existiria ninguém capaz de transformar e renovar – por via de

uma relação directa – as obras ali em exposição.

Durante o tempo da exposição foram vários os artistas que realizaram

performances e todas as manifestações espontâneas do público foram de imediato

recepcionadas pelo grupo como a componente fundamental para o validar das obras

exibidas e da própria exposição.91 Ainda, a Alternativa Zero foi pontuada por

concertos de música experimental, conferências, debates, leituras, projecção de filmes

e vídeos, o agendamento e realização de visitas escolares com actividades lúdicas e

pedagógicas para os mais novos, entre muitos outros acontecimentos. Especialmente

marcante foi ainda a participação do Living Theatre, de Julian Beck e Judith Malina,

pela primeira vez em Portugal92 – actuação particularmente cara para Ernesto de

Sousa que, pelas suas pesquisas radicais e fortemente politizadas no teatro, partindo

de ideias cujas referências eram Bertolt Brecht e o teatro da crueldade de Antoine

Artaud em cruzamento com o happening, pretendia chegar a uma experiência limite

no trabalho com o corpo em associação ao choque da assistência, princípios inerentes

90 Instalação proposta por Túlia Saldanha e que consistia na constituição de uma pequena sala instalada no espaço da galeria (uma estrutura fechada e rodeada por quatro paredes) cujo chão estava totalmente preenchido por inúmeras camadas de tiras de papel cortado/triturado. Na “Sala de descontração”, qualquer visitante poderia entrar (através de uma pequena porta) e ali ficar à conversa, deitado ou apenas apoiado sobre o papel. 91 Uma espécie de alusão às dinâmicas performativas inaugurais no Cabaret Voltaire, protagonizadas por Hugo Ball e seus companheiros, ou mesmo aos Happenings de Allan Kaprow. 92 Com dois espectáculos em Lisboa e outros em Coimbra e no Porto, tanto na rua como em espaços expositivos.

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à natureza dos espetáculos realizados pelo Living Theatre, de forte intensidade na

relação física e emocional que estabeleciam entre o corpo dos actores e o dos

espectadores.93 Com efeito, na década de 1970, a prática da performance em Portugal

conhece um desenvolvimento distinto que desencadeia uma dinâmica de

experimentação e radicalização dos modos de realização e recepção do objecto

artístico.

“O quadro não consente moldura, e a escultura não consente plinto que os separem

do envolvimento real de que fazem parte.”94

Muitos dos artistas presentes na Alternativa Zero não apresentaram progressos

significativos na sua carreira, factor que, mesmo assim, não os impossibilitou de

terem sido um sinal vivo do seu tempo, no qual foram capazes de ser

contemporâneos. A enorme diversidade de materiais, técnicas e suportes, assim como

o advento do que eram então novas linguagens artísticas em vias de legitimação no

panorama artístico do nosso país – vídeo, fotografia, música, instalação, em paralelo

com uma interdisciplinaridade ainda pouco familiar –, concebeu um novo

environment para as exposições portuguesas (apesar do contexto ainda pobre em

termos de infra-estruturas e dispositivos capazes de assegurar um ritmo normal de

apresentações dedicadas à arte contemporânea). Com efeito, Ernesto de Sousa e os

“seus” artistas lançaram as bases para uma reformulação do que significaria ser

contemporâneo em Portugal e alteraram, em definitivo, os seus modos de abordagem.

Tendo sido de sobremaneira visitada e experienciada pela audiência, a

Alternativa Zero despertou, como já referimos, a atenção da imprensa da época,

tratando-se mesmo da exposição mais divulgada e polemicamente discutida no

período em questão – conforme acontece com qualquer acontecimento que transgrida

as trivialidades do contexto em que se insere. Também, e como é do entendimento

comum, o distanciamento possibilita uma mais clara observação do que antes dizia

respeito ao presente (raros são aqueles capazes de compreender “o que é o

93 De modo a conferir detalhadamente o carácter experimental e/ou conceptual das obras apresentadas na exposição da Alternativa Zero, consultar o catálogo exaustivamente documentado da exposição dos vinte anos do evento, em 1977, da Fundação de Serralves. Referência. 94 Ernesto de Sousa, [Catálogo Alternativa Zero], em FERNANDES, João, RAMOS, Maria, op. cit., p. 64.

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contemporâneo”95), sendo que toda a geração de críticos de arte que emergiu depois

dos anos oitenta nunca deixou de salientar, ou mesmo acentuar, a relevância desta

Alternativa Zero. “Zero” que, segundo José Augusto-França e enquanto seu

contemporâneo directo, era válido porque outro não existia: “Qual o «Zero» de que

falava, não o mostrou, porém, Ernesto de Sousa, e antes hesitou no texto. O zero era

já difícil de atingir, em extremo, que nunca pode tal ponto ser tão zero como isso,

para dele se partir – escrevi eu. (...) Mas também acrescentei, em conclusão, algures,

que a alternativa era o zero porque, na verdade, outra não havia96. (...) E a questão

repõe-se aqui: foi a exposição conclusão de um período mais ou menos breve (e foi-o

certamente, em história que se escreva)? Foi ela mudança de sentido? Sim, na

medida do imediatamente possível. (...) As contas que em 1983 se pediram (na

exposição deles) aos anos 40 portugueses (...) poderão já agora começar a ser

pedidas aos anos 80 – e isso porque houve, em 1977, uma «Alternativa Zero»...”97

Hoje, a Alternativa Zero continua a ser um epílogo de vanguarda, do gesto e

dos sentidos, pela sua competência estética e pelo alcance plural. A intenção primária

deste, e de outros eventos, foi a reunião de artistas nacionais e a problematização dos

valores da obra de arte. Não só na “alternativa”, mas também em colóquios, debates,

intervenções e exposições, eram questionadas as novas tendências de vanguarda

globais, numa convivência elementar e indispensável entre criadores, críticos e

público. Mas se o período de setenta se caracterizou pelas suas acções colectivas, a

seguinte década distinguiu-se pelo individualismo, por uma consciência “de si” como

artista. E em simultâneo, “a uma estética de ruptura sucedia-se uma estética

revivalista, recuperadora, marcando o discurso pós-moderno, as suas implicações e

particularidades.98”

95 Fazer breve referência a “O que é o Contemporâneo?” de AGAMBEN, Giorgio, Nudities, Stanford: University Press, 2011, pp. 19-29. 96 Texto de José Augusto França referente a Fevereiro de 1977. Conferir “Alternativa Zero”, in Colóquio Artes, n.º 31, Fevereiro 1977. p. 4. 97 Escrevia Augusto França em Maio de 1997 para o catálogo que acompanhou a exposição retrospectiva patente em Serralves. 98 NOGUEIRA, Isabel, Artes plásticas e pensamento crítico em Portugal nos anos setenta e oitenta: problemáticas da operacionalidade dos conceitos de vanguarda e pós-modernismo [tese de doutoramento, FLUL], 2009, p. 339.

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I. 2. As múltiplas dinâmicas de 80

“Os anos 80 nunca existiram”99, enuncia imperativamente Alexandre Melo.

Desde logo, apontando para as mutações culturais e ideológicas que a década de oitenta

comporta e cujas especificidades culturais são decididamente relevantes na

transformação dos conteúdos artísticos ao longo do mesmo período. Se a década de

setenta tinha sido marcada, politica e socialmente, pelo 25 de Abril e pela construção

democrática, a década de oitenta seria fortemente dominada pela consolidação do

regime democrático e de adesão à Europa, pelo crescimento acelerado do consumo

privado e pelas constantes inovações dos novos centros de consumo. Transformações

essas que, ainda assim, não deram origem à agrupação de movimentos, tendências ou

correntes estéticas e formais suficientemente coesas para as demarcarmos como

definidoras de um modelo característico para a época em questão. Podemos dizer que a

performance, por exemplo, quando comparada com outros contextos, surge tardiamente

em Portugal e decorre na continuidade de uma série de experiências dos anos setenta.

Interessante, porém, é esse cruzamento de propostas – entre as correntes experimentais

provenientes da década anterior e uma espécie de retorno à ordem (recorrendo à

pintura), os anos oitenta foram, de facto, um momento de transição. Ainda assim,

apesar de não se estabelecer como um período de ruptura, as idiossincrasias de oitenta

constituem um marcar de passo necessário para a releitura da História.

Corroborando com os argumentos de Melo, consideraremos os artistas da

década no que respeita à sua criação artística de intervenção cultural no meio

português e não segundo um modelo artístico dos mesmos anos, isto é, segundo

movimentos ou estilos de uma “arte dos anos oitenta”. Visto que esta última

designação tende a sugerir a definição de um conjunto de artistas cujo trabalho –

devido às suas características concordantes –, corresponderia a uma convergência

estética comum e definidora de uma década, facto que não se verifica. Esta tendência

não se manifesta apenas em Portugal, mas em todo o panorama internacional, sendo

que é no caso português, devido à sua conjuntura política – coincidente com a

solidificação da democracia e a demanda pela crescente integração europeia –, que o

99 Cf. MELO, Alexandre, “1980-1990: Anos 80 – Os anos 80 nunca existiram”, in Panorama da Arte Portuguesa no Século XX, coord. Fernando Pernes, Porto: Campo das Letras/Fundação de Serralves, 1999, pp. 285-315.

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paradigma de multiplicidade da arte de oitenta se manifesta mais nitidamente, como

veremos de seguida.

Tal como na década anterior, nos anos oitenta emergiram um conjunto vasto

de artistas e de agentes no campo das artes em Portugal100, numa contínua vaga de

espaços expositivos e instituições de apoio às artes, assim como galeristas, críticos e

académicos que contribuíram para a difusão do circuito. A inauguração do Centro de

Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian em 1983101 desencadeou uma acção

museológica generalizada e impôs, junto do grande público, um novo prestígio das

obras de arte moderna e dos nomes do panorama artístico português do século XX.

No que respeita à conjuntura da sociedade de então, é imperativo realçar o recente

desenvolvimento do mecenato de empresas, o que fez eclodir apoios financeiros

privados aos artistas, assim como a sede por capital estrangeiro. Entre estes

parâmetros, cercando os intervenientes artísticos da década, começaram a valorizar-se

peças pela assinatura do seu autor e, assim, algumas obras de arte eram assumidas

enquanto um objecto de luxo. Ainda assim, não diminuíram as propostas por parte dos

mais diversos artistas que, após uma época aparentemente dominada pelo

conceptualismo e a experimentação do objecto no seus domínios performativos e

espaciais, retornam à pintura e à escultura. Tal como é o caso de António Dacosta,

que interrompera a pintura no final da década de quarenta, ou Alberto Carneiro que,

depois de alguns anos dedicado a pesquisas em torno da land art, reaparece na Galeria

Quadrum (1983) com trabalhos em madeira que evidenciavam o valor das superfícies

e das suas texturas. A própria Bienal de Cerveira que, a partir de 1978, reunia um

numeroso conjunto de artistas e visitantes e onde eram realizadas performances em

contacto vivo com o público, sossegou. A participação “com o corpo todo” do

espectador deixou de ser tão expressamente convocada pelas obras apresentadas em

1986, sendo que a Bienal passou, dois anos depois, a cingir-se apenas às artes gráficas

e deixou de apresentar o carácter de convívio festivo que caracterizou as suas

primeiras quatro edições.

100 Não discutimos, evidentemente, apenas artistas que se revelaram exclusivamente nos anos oitenta, mas sim do cruzamento e sobreposição de obras de diferentes gerações que dão corpo a uma conjuntura particularmente dinâmica e diversificada, incluindo por isso artistas cujo trabalho e o reconhecimento foram alcançados anteriormente mas que, em oitenta, mantiveram uma renovada actualidade. 101 Sob a direcção de Sommer Ribeiro, este núcleo veio revelar-se como um instrumento imprescindível para a propagação da cultura em Portugal. Naturalmente, no momento da sua abertura de portas, o CAM concentrou-se em divulgar os artistas portugueses pioneiros, sendo que o acto inaugural foi acompanhado por uma retrospectiva de Amadeo de Souza-Cardoso.

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Fazendo eco do que seria o espírito dos anos oitenta, tanto na Europa como nos

Estados Unidos, realiza-se em Lisboa, em 1983, a exposição Depois do Modernismo,

coordenada por Luís Serpa102 e patente na Sociedade Nacional de Belas Artes de

Lisboa103. A exposição introduziu em Portugal os temas e debates pós-modernos e

correspondeu à instauração de uma situação plástica balizada pelo “regresso à pintura”,

a transvanguarda, o neo-expressionismo, a bad painting e as novas figurações, o que se

traduzia num predomínio da figuração humana, frequentemente exercitado num registo

espontâneo. Neste contexto, segundo elementos que reportam à inspiração pop, é

importante dar nota de alguns artistas que produzem uma obra significativa para a

década de oitenta, mas cujo trabalho foi, desde logo, sobejamente importante na história

dos anos setenta. Referimo-nos a figuras associadas ao Nouveau Réalisme e a uma

figuração narrativa, tal como Lourdes de Castro, René Bertholo, Costa Pinheiro,

António Palolo ou Eduardo Batarda, não esquecendo aqueles que se afirmam pelas

práticas pós-conceptuais, provenientes da resenha concretizada na Alternativa Zero, de

entre os quais Helena Almeida, Julião Sarmento ou Alberto Carneiro.104 Carneiro,

nome que destacamos pela intervenção nas dinâmicas relacionais entre a arte, o corpo, a

natureza e o próprio espaço expositivo em diálogo com o espectador.

102 Luís Serpa foi um dos mais salientes agentes culturais que lideraram a transformação do panorama das artes visuais em Portugal. Desde 1984, fez da Galeria Cómicos (depois, Luís Serpa Projectos), em Lisboa, um espaço de forte dinâmica artística, cuja capacidade de afirmação internacional foi fundamental para a cena artística da época, conjugando sistematicamente projectos interdisciplinares. Alexandre Melo lembra mesmo que, até cerca de 1995, a Galeria Cómicos foi a única galeria de arte portuguesa capaz de dinamizar amplamente a dinâmica artística de oitenta e que, por isso, atingiu merecido reconhecimento num curto espaço de tempo. Nenhuma outra, segundo Melo, terá conseguido realmente afirmar-se em linha com o panorama internacional das galerias de arte contemporânea. Cf. MELO, Alexandre, Arte e Mercado em Portugal: inquérito às galerias e uma carreira de artista, p. 29-79. 103 Assinalamos, desde já, a enorme subtileza da expressão escolhida para título da exposição. “Depois do Modernismo”, ao invés de Pós-Modernismo. De qualquer modo, os participantes vivenciaram a onda de pós-modernidade que se viveu nos mesmo anos, particularmente evidente no caso da pintura, com o Neo-Expressionismo. 104 Apontamos ainda o trajecto de um outro conjunto de artistas que, apesar de fugirem à temática que constitui fundamentalmente a nossa reflexão, importam ser brevemente anunciados enquanto nomes relevantes para a cultura da época. Entre eles, Joaquim Rodrigo, que, tendo iniciado a sua carreira no pós-guerra seguindo uma estética abstracionista, se organiza, a partir dos anos sessenta, segundo um código de signos e regras de significação pictórica. Por outro lado, António Dacosta, proveniente da corrente do realismo histórico, volta à actividade nestes mesmo anos. Também Júlio Pomar vai desenvolvendo diferentes modos de organizar a figura do corpo e o seu movimento, tal como Menez e Paula Rego, esta última reconhecida por ter de facto revolucionado o seu método, assegurando o seu domínio autoral até à actualidade. Numa outra via, segundo abordagens que dizem respeito aos elementos formas e estruturantes da pintura – como o plano, a luz, a cor, o signo ou o traço –, reafirmam-se artistas como Ângelo de Sousa, António Sena, Jorge Martins, João Vieira, Manuel Baptista, Álvaro Lapa ou mesmo Fernando Calhau, Pires Vieira ou, numa primeira fase, Michael Biberstein – os três últimos, segundo um percurso mais intelectualizado e de carácter conceptual que os demais enunciados.

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Também a fotografia enquanto plataforma artística é capaz, ao longo dos anos

oitenta, de finalmente se integrar no domínio das artes plásticas e afirmar o seu valor

junto do público.105

É no contexto da exposição de 1983 que se revelam artistas como Julião

Sarmento, cujo trabalho de invenção e criação plástica deve ser entendido como uma

dinâmica fulcral no processo de configuração do desejo nas suas infinitas modelações,

onde a atitude dos artistas se manifesta na dualidade entre energia e tensão, assegurando

assim a natureza infindavelmente aberta e em constante renovação da sua obra.

Dirigindo-se à imaginação dos espectadores, coloca questões para as quais nunca dá

uma resposta, criando assim uma interação constante entre a obra e a imaginação de

quem a percepciona. Na mesma via podemos incluir Albuquerque Mendes, autor que

desde os anos setenta se move entre a instalação, a performance e a pintura, cruzando

um corpo de obra que questiona ironicamente a própria História da Arte. O artista

pertenceu ao Grupo Puzzle (1976-1980), ao qual pertencia, também, Gerardo

Burmester, e com o qual fundou a Associação de Arte Espaço Lusitano (Porto, 1982).

Burmester, que seguiu um percurso semelhante ao de Mendes, passa, na década de

oitenta, a utilizar o objecto e a instalação espacial como propostas de um teatro dos

lugares por ela reinventados. Isto é, o artista vai aproximando e distanciando o

espectador segundo jogos de sedução visualmente atractivos, tendo por base o uso de

materiais como a madeira folheada, o alumínio polido ou o feltro industrial. Desta

forma, ambos os autores transferem para a audiência a competência de acrescentar

sentido à obra e finalizá-la. A constante animação cultural nos anos oitenta, dinamizada

através de exposições e entrevistas aos seus intervenientes e a constituição de grupos

de trabalho (como aliás vinha sendo modelo recorrente desde as décadas anteriores),

determinou o aparecimento de um nova vaga de artistas, jovens nomes do panorama

artístico português que rapidamente conheceram a autonomia individual que lhes

permitiu estabelecer consistentes carreiras e atingir o reconhecimento público que se

verifica actualmente, tal como foi o caso de José Pedro Croft, Pedro Cabrita Reis, Rui

Sanches ou Pedro Calapez, entre outros.

105 Salientamos o trabalho de Paulo Nozolino, que se mantem numa área especificamente ligada a componente documental sob uma concepção autoral, e de Jorge Molder que, recorrendo sistematicamente ao retrato, se desdobra em representações de mundo paralelos, num jogo enigmático e contra a corrente da ordem, entre a realidade e a ficção.

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Com efeito, José Pedro Croft é um dos artistas que domina a dinâmica

relacional entre obra, o espectador e, fundamentalmente, o espaço que acolhe ambos. O

valor geométrico das suas obras, a modelação e a desconstrução no espaço, convocam o

olhar e o próprio corpo do espectador, que se movimenta em torno da obra. Isto porque

a questão espacial é, também, a questão do equilíbrio, equilíbrio que, mais

recentemente, vem sendo apoiado na utilização de espelhos – complexificando a

dinâmica da obra no espaço e a sua interacção com o observador; o espelho que

direciona o olhar e que recria, de forma variável e imprevisível, o objecto. De facto, a

acção criativa, “com a máxima economia de formas e de processos, de situações no

limite entre a estabilidade e a instabilidade é uma das características mais marcantes

de Croft.”106 E é o mesmo que promove, fugindo de uma rigorosa esfera hierárquica da

obra de arte, a incorporação de objetos de uso quotidiano (que fazem parte do real),

para o meio expositivo – ainda que, paralelamente, o artista se mantenha fiel à evocação

da simplicidade inerente às formas geométricas elementares, evocando a depuração

material que lhe é desde logo atribuída.

Não podemos deixar de referir ainda a dimensão metafórica da obra de Pedro

Cabrita Reis, cuja produção pode ser vista como um trabalho de construção formal da

qual resulta uma emergência de significados inteligíveis. A sua produção pertence a um

território livre de fórmulas exactas e que pretendem satisfazer “o absoluto desejo de

metáfora”107, expandido as suas possibilidades. O seu léxico nos anos oitenta, cujas

pesquisas plásticas se verificam direcionadas para o exercício da pintura e do desejo,

sofrerá posteriormente uma viragem na passagem para a década de noventa, dando

lugar à produção de objectos, construções e instalações que, como veremos,

intensificaram as dinâmicas de interacção – não apenas com a audiência, mas com a

própria realidade. Do mesmo modo, também a dialéctica fundamental entre o

geométrico e o orgânico instaurada pelas criações de Rui Sanches, que desenvolve uma

análise estrutural das formas – tendencialmente geométricas –, é capaz de evocar,

simultaneamente, modelos orgânicos, de fácil conexão com o corpo, os seus fluxos, as

suas convulsões e circunvoluções. Com efeito, em ambos os autores observamos uma

formulação sistemática que, longe de corresponder a um programa conceptual fechado, 106 MELO, Alexandre, “1980-1990: Anos 80 – Os anos 80 nunca existiram”, in Panorama da Arte Portuguesa no Século XX, coord. Fernando Pernes, Porto: Campo das Letras/Fundação de Serralves, 1999, pp. 311. 107 Pedro Cabrita Reis [sessenta e oito textos de Pedro Cabrita Reis] in Pedro Cabrita Reis, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian/Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão, 1992, p. 148.

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é antes divulgada enquanto um jogo livre, aberto e em permanente constituição

(construção, desconstrução e reconstrução) das infindáveis possibilidades de leitura a

que o espaço ocupado pelo corpo convida.

Outro artista que inaugura a sua exploração plástica nos anos oitenta é Pedro

Tudela, que apresentou sempre a materialidade do corpo, no que respeita às suas

dimensões mais viscerais e orgânicas, como principal eixo de força do seu trabalho, que

conjuga instalações multimédia com uma pintura claramente sensível. Também Pedro

Casqueiro, por via da pintura, e Manuel Rosa, na escultura, se situam no mesmo

contexto cronológico e cultivam até hoje a afirmação pública da sua produção, assim

como Rui Chafes. Chafes, mais jovem que os anteriores autores enunciados,

acompanha a criação escultórica com os seus registos em desenho e, particularmente

importante, com uma produção textual fortemente marcada pela reflexão em torno do

encadeamento com o espectador da arte contemporânea e os limites da relação da

audiência com a obra que a convoca.

Fernanda Fragateiro, artista que destacaremos num capítulo posterior, parte

também da prática do desenho, produz instalações de grande escala e impacto que

estabelecem um registo íntimo de articulação com o espaço e o sujeito que o habita. A

problemática do espaço permite-nos ainda evocar o trabalho de Patrícia Garrido – que

nos remete para um lugar doméstico em contacto com o corpo –, ou o de Carlos

Nogueira, que, do mesmo modo, articula na sua produção conceitos de espacialidade,

circulando em torno do íntimo, do natural e do espaço construído.

De um modo geral, e como apontou Bernardo Pinto de Almeida108, verificou-se

uma certa deslocação do centro de acção, surgindo uma nova categoria na cena artística,

a art people. O plano deslocou-se do projecto para a forma e instaura-se uma espécie de

creditação do autor independente do contexto, isto é, deixa de existir uma tendência

artística de uma época e passam a existir os autores/artistas de uma época. O território

artístico da década de oitenta verificou-se, por isso, bastante híbrido e algo impreciso,

entre a frente de vanguarda e o Pós-Modernismo. O mesmo aponta José Bragança de

Miranda, afirmando que a arte de vanguarda foi enfraquecendo e integrando em si os

diversos objetos da vivência quotidiana; na obra de arte estavam imbuídos “todos os

fragmentos do mundo”, que serviam de motor económico e movimentavam os sectores 108 Cf. ALMEIRA, Bernardo Pinto de, “O Centro fora do Centro” in Artes & Leilões, n.º 3, Lisboa, Fevereiro-Março 1990, pp. 37-39.

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do marketing, dos museus e da crítica.109 Assistimos, nos anos oitenta, a uma nova

orgânica disciplinar, nomeadamente no que respeita ao desfasamento das fronteiras

artísticas e do território da criação, resultado deste processo de multiplicação formal e

conceptual – um desdobramento de linguagens que representou uma transformação no

olhar autoral, crítico e teórico110 e que se estende para os anos noventa, a par com uma

atitude crítica face ao movimento de "retorno à pintura" que marcara o início da década

anterior, como veremos de seguida.

109 Cf. MIRANDA, José Bragança de, “Uma arte bem instalada” in Revista de Comunicação e Linguagens, n.º 30, Lisboa, Outubo 1001, pp- 35-44. 110 Como considera o próprio Ferreira Gullar, acrescentando que esta materialização diversa de linguagens se verifica como uma “simples” mudança de paradigma, longe de se revelar, seguramente, como retrocesso ou evolução. Cf. GULLAR, Ferreira, Argumentação contra a morte da arte, Rio de Janeiro: Editora Revan, 1993, pp. 133-134.

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I. 3. Os novos códigos da década de 90

A última década do século XX é marcada pela generalização de uma crise

global de carácter político, económico e social, o que representa da forma mais

evidente a nova situação internacional. O ano de 1990 é marcado pela Guerra do

Golfo, conflito que cessaria sete meses depois (Agosto 1990 – Fevereiro 1991), e as

relações internacionais são profundamente afectadas, o que marca a primeira grande e

relevante perturbação com reflexo mundial no período pós-Guerra Fria. No ano

seguinte dá-se a dissolução da URSS e o final do seu regime comunista (Dezembro

1991), situação que se avultava desde a queda do Muro de Berlim, em Novembro de

1989. Também o problema da antiga Jugoslávia (referente a uma série de conflitos e

irregularidades políticas que resultaram na desintegração da República Federal da

Jugoslávia) assim como a propagação do vírus da SIDA ou a generalização da fome e

dos conflitos no continente africano, assinalam o contexto socio-político da década.

Com efeito, é popularizada uma consciência acerca da realidade que altera,

consequentemente, as tipologias de intervenção social e que difunde, de um modo

geral, novas formas de comunicação. Acentua-se a necessidade de metamorfosear a

obra de arte em análise crítica – ou comentário objectivo do real – e o artista reforça a

sua identidade enquanto indivíduo pertencente a uma sociedade e, por isso,

directamente envolvido nos problemas da comunidade. Por um lado, é possível

distinguir uma sensibilidade ao nível da criação artística que integra este sentimento

global de consciência de crise e que não se encerra em percepções meramente sociais

ou políticas; por outro, subsiste a procura por uma individualidade introspectiva, lírica

e de reflexão pessoal. Se, no que respeita ao género pictórico, podemos verificar um

certo desfasamento de meios e efeitos, já a passagem do campo da pintura para um

medium que (aparentemente) diz respeito à escultura111, pode ser entendida – no

111 Como mencionado nas primeiras páginas da presente dissertação, o norte-americano Clement Greenberg expôs um pensamento de formulação formalista que funcionou como cartilha para os artistas norte-americanos (Avant-Garde and Kitsch, 1939). A sua teoria defendia a pureza do medium da obra de arte, isto é, a produção artística deveria desenvolver-se em função da forma e não do conteúdo, partindo da exploração do género em que opera – concentrando-se nas características definidoras do seu meio –, por uma autonomia da arte pela arte. Só assim, segundo Greenberg, seria possível atingir a criação de vanguarda (superior, com a possibilidade de assegurar a verdadeira cultura) em oposição ao que define como “kitsch” (a retaguarda declaradamente politizada, um fenómeno de massas de fácil compreensão que pretende imitar os efeitos da arte e que, por isso, apenas cria falsas sensações). Interessava-lhe apenas a abstração, longe de qualquer componente espiritual (apesar de defender as obra de Kandisnky e Mondrian), em detrimento da arte figurativa. Três anos

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contexto dos artistas dos anos oitenta, e compreendendo a alteração da conjuntura

enquanto plataforma de lançamento para transformações concretas na produção

artística que protagonizava a década – como uma ferramenta para o aprimorar da

linguagem.

Com vista à utilização de novos meios comunicacionais, a década de 1990 –

em Portugal e no panorama internacional – caracteriza-se desde logo pelo cruzamento

de diferentes técnicas artísticas, tomando partido das diversas e estimulantes (por

vezes, provocatórias) possibilidades de manipulação que das mesmas advém.

Neste contexto de experimentação por novos códigos de comunicação, a

fotografia foi, evidentemente, um dos campos de experimentação na procura por uma

produção de vanguarda para os anos noventa. Deixando de se assumir como uma

disciplina particular e exclusiva do seu medium, a fotografia entra em diálogo com as

restantes áreas do plano da arte – tal como a pintura, a escultura, a literatura (géneros

que constituem um quadro mais tradicional), as artes gráficas, o vídeo, a cenografia, a

instalação e a performance –, e converte-se no meio da experimentação artística por

excelência, em busca de novos discursos para acção. Deste modo, Helena Almeida é

uma artista de destaque obrigatório quando sublinhamos este cruzamento de técnicas;

sem esquecer, ainda, os artistas de uma geração mais recente, que se debruçam sobre

o questionamento das ligações entre o paradigma fotográfico, o design ou a escultura,

antes, Meyer Schapiro defendia uma visão social para a arte, que não se poderia dissociar do meio em que surge (The Social Bases of Art no First American Artist’s Congress, 1936, Nova Iorque). Mas é o contributo de Clement Greenberg que abre caminho para a primeira vanguarda norte-americana (que é também uma vanguarda ocidental e, mesmo, europeia): o Expressionismo Abstracto. Com pinceladas que exploravam de facto a matéria e a técnica do seu medium, podemos destacar artistas como De Kooning, Arshile Gorky, Ad Reinhardt, Barnett Newman, Mark Rothko ou Ralph Humphrey. Ainda assim, nos mesmos anos, outros artistas desconstroem aquilo que deveriam ser os padrões da pintura. As Black Paintings de Frank Stella, por exemplo, assumem-na enquanto objecto, revertendo a ideia de fundo da tela e, assim, dividindo uma série de artistas que questionariam o pensamento de Greenberg (para o qual uma pintura nunca poderia ser alvo de uma pesquisa a três dimensões). Também a produção de Robert Mangold (quase como uma shaped canvas) ou de Robert Rauschenberg (Combines) desafiam a tradicional definição de pintura. Este último, longe dos códigos de clareza e purismo de Greenberg, alcança a tridimensionalidade anexando à pintura objectos do quotidiano por si intervencionados, assumindo a apresentação (diferente de representação) num gesto de transgressão à dita autonomia da arte. No seu seguimento, a partir da segunda metade do século XX, os “objectos arbitrários” do Minimalismo rompem efectivamente com as premissas de Greenberg. Antony Caro, Donald Judd ou Robert Morris, por entre muitos outros, produzem um corpo de obra que, apesar de – aparentemente – dar a ilusão de se relaciona maioritariamente com o género escultórico, é alcançado por meio da pintura. Novos códigos são despertados e a escala humana passa a estar em causa devido à ausência de qualquer pedestal que impeça a obra de ocupar o mesmo espaço que o espetador. Desta forma, o objecto não se torna menos importante, apenas se torna menos importante em si mesmo: é exigida a relação com o corpo, entre o objecto, o espaço e o sujeito, sendo a obra de arte o resultado da sua intercepção viva.

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tal como Miguel Soares, Valente Alves (segundo dinâmicas muito ligadas ao binómio

palavra-imagem), Luís Campos, Augusto Alves da Silva, André Gomes, Luís Palma,

Daniel Blaufuks ou Jorge Molder.

Dando seguimento a uma tendência que vem já sendo anunciada ao longo do

presente texto, nos anos noventa, assiste-se à consagração dos mais destacados artistas

revelados ao longo dos anos oitenta e à consolidação das suas carreiras. São nomes

que, como fomos desde cedo mencionando, se comprovaram como produtores nos

campos da pintura, da escultura, do desenho e da instalação. Como passaremos a

explicar, o trabalho destes artistas aprofunda temáticas de raiz individualista, isto é,

que seguem uma investigação directamente ligada ao percurso pessoal de cada um,

numa pesquisa que ocupa temáticas como a identidade – a identidade do artista, do

espectador, do espaço ou da própria obra – apoderando-se do corpo e do valor da

audiência; audiência que se apresenta enquanto legitimadora da obra e participante

activo no seu desenrolar, num movimento que se assume como definidor da produção

artística do século XX. O romper da fronteira entre a arte e a vida é um acto

sustentado na experimentação preponderante do corpo enquanto matéria de trabalho e

a participação da audiência – diversa consoante o espaço e o contexto cultural que

ocupa – revela-se como uma experiência quase didática para o artista: a diversidade

de questões e respostas colocadas pelos participantes, assim como os díspares padrões

de comunicação estabelecidos entre o público e a obra, evidenciam a

imprevisibilidade do espectador e influenciam imediatamente o desenvolvimento

performativo no espaço subjectivado. A própria história da arte, desde a mais distante

à mais recente, ou a tradição cultural, da literatura ao cinema ou à propagação da dita

cultura pop, são referências basilares na multiplicidade de argumentos críticos e

culturais que integram a produção artística dos anos noventa (assumindo, muitas

vezes, um entendimento metafórico ou mesmo poético).

Mais do que assistir a uma espécie de renovação artística, a década de noventa

é marcadamente assinalada por um retornar a projectos pessoais por parte dos artistas

e, ainda, pela reaproximação ao público e ao mercado de percursos individuais que se

tinham mantido na sombra durante a primeira metade dos anos oitenta. Manuel

Baptista, Michael Biberstein ou Fernando Calhau, por exemplo, mantém uma relação

com o pós-minimalismo e as suas origens, integrando assim um pólo que reivindica a

herança da história do século XX internacional, ainda que segundo diferentes

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estratégias112 e recursos críticos diversificados. Também Burmester, ao contrário de

Julião Sarmento – que manteve a pintura e o desenho enquanto principais actividades

(com incursões pela fotografia e pela instalação) –, regressou a pontos que dominaram

o seu trabalho no passado, no campo da instalação e da escultura. Tal como Pedro

Cabrita Reis, que percorre os caminhos de metamorfose entre pintura e escultura e

converge finalmente nos domínios da instalação, exploração que sustenta até aos dias

de hoje.

Do mesmo modo, e continuando em jeito de apresentação inaugural das

figuras que cruzaram diferentes décadas e marcaram o mundo artístico dos anos

noventa, configurando a obra de arte enquanto meio comunicacional segundo códigos

de interacção com o seu espectador, é imperativo o assinalar dos jogos de linguagem

que pontuam o universo de José Pedro Croft. Croft procura a utilização de diversos

materiais e objectos do quotidiano, misturando-os entre si, colocando formas

arquetípicas em diálogo com o espaço e a comunidade que o experimenta, segundo

uma estratégia de estabilidade-instabilidade que conduz a experiência. Tomamos

como primeiro exemplo a esfera branca minimal em gesso sobre uma mesa de

madeira inclinada no S/Título de 1993, que reproduz ainda (ou já nem tanto) a lógica

de composição convencional de recurso a um pedestal que, no entanto, é subvertida

pela evocação de uma queda em iminência. É, portanto, sob uma lógica de suspensão,

que os dois corpos se encontram. Num outro plano, podemos destacar o Sem Título de

1998, uma escultura criada a partir de uma estrutura cúbica que se duplica

verticalmente, de forma irregular, realizada com ferro galvanizado e um espelho.

Espelho que amplia o espaço que envolve a obra e que, ao mesmo tempo, o resgata –

ao espaço e à própria audiência. A presença do corpo do espectador é desejada e

convocada a circular em torno da obra, de forma a observar os diversos pontos de

vista que a mesma proporciona, direccionando o observador.

112 Como teoriza Hal Foster, em resposta à Teoria da Vanguarda desenvolvida por Peter Bürger (1974), tentando compreender qual a relação que é estabelecida entre as primeiras vanguardas e as neo-vanguardas do século XX. Na crítica a Bürguer (que defende que as segundas vanguardas se constituem como meras repetições falhadas das primeiras), Foster concebe uma teoria com vista à compreensão da produção artística mais recente. Segundo uma complexa relação de antecipação e reconstrução, é possível compreender que as estratégias propostas pelas segundas vanguardas são resultado da compreensão das primeiras, concretizando o seu projecto – que nunca cessará de estar concluído. Cf. “Who’s Afraid Of The Neo-Avant-Garde?” (pp. 1-8): The Return of the Real, Cambridge: The MIT Press, 1996; e What's Neo about the Neo-Avant-Garde?, do mesmo autor.

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Ana Jotta e João Penalva, que de seguida voltaremos a abordar, situam-se no

mesmo campo, pela procura de novos códigos para a nova época. A primeira

desenvolve um corpo de obra segundo uma dinâmica mais radical, convocando os

objectos do quotidianos, de diferentes formas e materiais, os conceitos de kitsch e de

low-culture, jogando simultaneamente com a palavra e a imagem. O processo da

artista aproxima-se, deste modo, do trabalho que Penalva desenvolve na década de

noventa; não abandonando totalmente o género pictórico, o artista serve-se dele

enquanto instrumento de crítica. Também a experiência expositiva, os seus

mecanismos e os dispositivos que a sustentam, merecem particular atenção por parte

de João Penalva, que se apropria do aparato expositivo que envolve as suas obras para

estabelecer contextos onde são insinuadas narrativas cujo poder operativo depende

tanto da receptividade e da cumplicidade do espectador para com o que lhe é

apresentado, quanto da independência e da capacidade deste para assumir a

responsabilidade pela condução da sua própria experiência. Mas o mais interessante

da obra de Penalva, no que diz respeito ao contexto em que se insere a presente

dissertação, é a forma como o mesmo constrói ambientes nos quais os espectadores

se deslocam activamente. Obras como LM44/EB61, realizada em 1995 e que

actualmente integra a colecção do Museu de Arte Contemporânea da Fundação de

Serralves, que exigem ser experienciadas espacialmente e não meramente

visualizadas. LM44/EB61 é composta por uma série de elementos que vão desde

alumínio pintado, vidro acrílico, placas gravadas, fotografias, textos, objectos do

quotidiano como uma cadeira e um livro, até ao Retrato de Louis Meier, da autoria de

Kurt Schwitters, de 1944. Nesta medida, o artista convoca a ideia de instalação, ou

mesmo de construção.

Os anos noventa multiplicaram a linguagem artística, o sentido de consciência

crítica, a persistência de uma atitude provocatória, uma nova preocupação com a

reflexão e um discurso directo de contacto com a realidade e a intervenção pública,

segundo diferentes dinâmicas de comunicação que se reflectiram na relação da obra

de arte e do meio artístico per se com o espaço (público ou privado), com a sociedade

e com a comunidade de espectadores. A própria queda do mercado da arte113 veio

113 As décadas finais do século ficaram marcadas por uma certa euforia característica dos anos oitenta, com larga multiplicidade de tendências e uma situação favorável no mercado da arte, e pela contracção desse mercado, nos anos noventa, o que não impediu uma interessante diversidade de explorações por

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mesmo facilitar a consciencialização para um novo discurso reflexivo. A produção

artística assume-se, por isso, segundo uma apresentação que não diz respeito apenas à

prática pictórica, da escultura ou do desenho, rompendo com o tradicionalismo e com

os juízos estéticos convencionais, por parte de artistas que, por questões não

meramente cronológicas, se devem situar de um modo mais objectivo no campo dos

anos noventa.

A partir de uma multiplicidade de estratégias, importa destacar algumas

exposições colectivas nas quais estes artistas se agrupam, para que possamos verificar

a diversidade de dinâmicas artísticas de noventa. A Variante à Estrada Nacional N.º

1, realizada em Castelo Branco, Nisa e Vila Velha de Ródão, em 1994, contou com a

participação de artistas do campo da pintura, da escultura e da fotografia na

intervenção destes locais; entre eles José Drummond, Francisco Tropa, Jorge Queiroz,

Carlos Figueiredo e Ana Yokoshi, figuras do panorama artístico nacional que se

cruzam ainda na dinamização de associações alternativas como a Galeria Monumental

II – que integrava também nomes como Edgar Massul, Marta Soares e Pedro Morais

(este último mentor do projecto e à data director do Atelier Livre na Escola Artística

António Arroio, em Lisboa). De um modo geral, são estes alguns dos nomes que

constituem um largo conjunto de artistas cuja produção enreda intervenções site-

specific, de carácter performativo e multidisciplinar. Tal como acontece com Carlos

Nogueira, José Barrias114 ou Fernanda Fragateiro, esta última estabelecendo uma

estreita relação entre a sua produção e o ambiente que a envolve – a arquitetura, a

natureza e o público com que a obra coabita. Também Ana Leonor Madeira

Rodrigues, cuja presença sempre se revelou marginal desde o final dos anos setenta,

Miguel Ângelo Rodrigues, Maria João Salema, Ângela Ferreira ou Francisco Rocha e

Tiago Estrada (ambos no campo da instalação) dissolvem os contornos do cenário

artístico que até à data se manifestava, conferindo uma maior afirmação do exercício

reflexivo e individual, com as intenções centradas num questionamento social sob a

problematização dos limites do corpo e da sua linguagem própria, como

campos artísticos de suportes menos tradicionais. Cf. PORFÍRIO, José Luís, “O nome” in Artes & Leilões, n.º 1, Lisboa, Out./Nov. 1989, p. 9. 114 A Casa Fernando Pessoa, em Lisboa, convidando artistas plásticos para a realização de exposições no espaço – e trabalhando com base no universo do poeta português – dinamiza uma série de mostras com instalações notáveis de diversas figuras do panorama contemporâneo português. Destaque para o trabalho de José Barrias, no ano de 1994, que inunda o espaço pessoano de sal (área correspondente ao quarto de Fernando Pessoa).

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explicitaremos ao longo do seguinte capítulo. João Paulo Feliciano e Paulo Mendes

merecem ainda ser assinalados pela sua exploração do discurso artístico, sendo que o

primeiro envolve na sua obra a componente musical e performativa, enquanto que

Mendes pende para uma produção cuja temática principal é mesmo o território

artístico, segundo uma investigação de ordem sociológica.115

Importa ainda dar conta da esmagadora importância que teve o trabalho de

dinamização do meio artístico por iniciativa pública e privada no decorrer da década,

período em que Portugal cresceu significativamente no que respeita ao surgimento de

instituições exclusiva ou parcialmente destinadas à preservação e à divulgação da arte

contemporânea.

A posição dominante da Fundação Calouste Gulbenkian foi finalmente

combatida de forma positiva, por meio de alternativas igualmente credíveis,

respeitáveis e culturalmente ricas. Em parte, através da criação, no ano de 1989, da

Fundação de Serralves, instalada na cidade do Porto. Instituição que, no ano de 1993,

deu um importante impulso a paradigmas criativos distintos e que, pelas interrogações

que colocavam, mereciam ser sedimentados na consciência cultural da sociedade

portuguesa: a exposição Imagens para os Anos 90, um êxito no que respeita à

discussão crítica que a mesma promoveu.

Com o objectivo de criar um modelo que distinguisse a década de noventa das

demais, a exposição Imagens para os Anos 90, comissariada por Fernando Pernes e

Miguel von Hafe Pérez, reuniu pela primeira vez um grupo de jovens artistas

emergentes. Miguel Palma, Paulo Mendes, João Paulo Feliciano, Fernando Brito,

João Louro, António Olaio, João Tabarra, Carlos Vidal, Manuel Valente Alves,

Daniel Blaufuks, Miguel Ângelo Rocha, Joana Rosa, Rui Serra ou Sebastião Resende

são alguns dos nomes que habitaram as salas de Serralves com as suas obras. A

exposição enceta, porém, um debate que atravessa toda a década e que se prende com

duas formas de impulsionar a prática artística: por um lado, o difundir de uma posição

mais essencialista e a-histórica; por outro, uma atitude mais desperta no que diz

115 Assinalamos a instalação que apresenta, em suporte fotográfico, estantes de variados críticos de arte, patente em Serralves no ano de 1993, por ocasião da exposição Imagens para os anos 90. A Fundação de Serralves que se afirmou, desde logo, por via de uma renovada atitude no que diz respeito à sua programação, empenhada em divulgar a geração de novos artistas, desde logo com as exposições Dez Contemporâneos, em 1992, e Imagens para os Anos 90, no ano seguinte. Esta última, co-produzida com o apoio da recém fundada Culturgest, revela-se muitíssimo importante na luta por uma consciencialização da arte contemporânea no que respeita à produção artística recente.

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respeito à discussão de problemas de circunstância sócio-cultural e de defesa de uma

conduta mais interventiva e comprometida com o contexto. Imagens para os Anos 90

foi, como seria de esperar, matéria de reflexão crítica no que diz respeito à pertinência

das obras escolhidas para exposição mas, sobretudo, no que respeita ao seu carácter

prospectivo, na possibilidade de estarmos perante uma nova sensibilidade estética. A

opinião da imprensa foi divergente e as críticas negativas são evidentes em artigos

como Não há novos, Que há de novo? ou Só isto para mostrar? (cujos títulos são,

desde logo, elucidativos).116

Também o Centro Cultural de Belém (1992)117, o Museu do Chiado (1994)118

e o Centro Português de Fotografia (1997)119, entre outros, deram passos importantes

na divulgação da arte do presente em perfeita harmonia com as suas influências

históricas nacionais e internacionais.

Numa diferente escala, não podemos deixar de dar nota de outros núcleos de

referência que vieram fortalecer a cena artística nacional dos anos noventa e ajudaram

a resgatar lacunas estruturantes relativamente a nomes indispensáveis da cultura

portuguesa do século XX. É o caso da Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva 116 Cf. Alexandre Pomar, “Não há novos”, Expresso-Cartaz, 7 de Agosto de 1993; José Luís Porfírio, “Que há de novo?”, Expresso – Revista, 14 de Agosto de 1993, p. 34; Ruth Rosengarten, “Só isto para mostrar?”, Visão, nº 23 (23 de Setembro de 1995), p. 89. 117 A construção do Centro Cultural de Belém (CCB) foi decidida no início de 1988, com o objetivo de construir de raiz um equipamento que pudesse acolher, em 1992, a presidência portuguesa da União Europeia, permanecendo como um forte pólo dinamizador de atividades culturais e de lazer. 118 Situado no centro histórico de Lisboa, o Museu Nacional de Arte Contemporânea da Chiado, fundado em 1911, foi inteiramente reconstruído em 1994. Com o incêndio do Chiado, em Agosto de 1988, as obras de arte foram retiradas como medida cautelar e a foi decidido, pela Secretaria de Estado da Cultura, que o destino das instalações deveria ser repensado. O governo francês ofereceu um projeto de renovação dos espaços, da autoria do arquiteto Jean-Michel Wilmotte, que, com uma equipa dirigida pela historiadora de arte Raquel Henriques da Silva, redefiniu o museu tal como se apresenta desde a sua reinauguração, em 12 de julho de 1994. Quando o museu reabriu, um catálogo intitulado Museu do Chiado: Arte Portuguesa (1850-1950), da autoria de Pedro Lapa, Raquel Henriques da Silva e Maria de Aires Silveira, apresentava os núcleos mais consistentes e coerentes da extensa coleção (superior a duas mil espécies, com estudos individualizados de cada obra, bem como as respetivas bibliografia e historial). Dada a ineficácia do acervo em representar condignamente a segunda metade do século XX, a atenção da política de aquisições centrou-se nas obras seminais dos movimentos desse período. Um programa de exposições temporárias sistemático e organizado em torno dos artistas nacionais revelados nas décadas menos bem representadas na coleção foi posto em prática a par de uma grande ênfase nos estudos e investigações apresentados nos respetivos catálogos. Um programa de arte contemporânea dirigido aos artistas em fase de revelação, que realizaram os seus trabalhos a partir de interpretações da colecção do museu, foi activado e permitiu a aquisição de variadas obras que iniciaram a actualização da sua contemporaneidade. 119 Núcleo que existe desde 1997, enquanto serviço público criado pelo então Ministério da Cultura, para assegurar uma política nacional para a fotografia. A cultura fotográfica começava a reanimar-se, através do aparecimento de escolas de fotografia, festivais e galerias que recuperavam fotógrafos marginais ou afastados durante o regime salazarista e divulgavam a obra de importantes fotógrafos internacionais.

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(1995), o Museu de Arte Moderna de Sintra (1997; reunindo parte do acervo da

Colecção Berardo) ou a trama de novos espaços expositivos. No Porto, as galerias

Canvas & Companhia, André Viana, Presença ou Fernando Santos (com destaque

para a concentração de espaços dedicados à divulgação de arte contemporânea na Rua

Miguel Bombarda); em Lisboa, Arte Periférica, João Graça, Pedro Cera ou Zé dos

Bois (paródia ao nome de Joseph Beuys) – esta última, consonante com o espírito

interdisciplinar do seu tempo, assume-se como um “centro de pesquisa artística”120,

convocando ciclos programáticos em concordância com os meandros culturais do seu

tempo.

Restantes eventos se afirmaram com reconhecimento institucional e outros,

alternativos, que usufruíram de espaços sem aproveitamento prévio, tal como o

Museu de História Natural e o Museu da Electricidade, em Lisboa, ou o espaço da

Alfândega Nova e o Mercado Ferreira Borges, no Porto; a galeria do Círculo de Artes

Plásticas de Coimbra, o Convento de São Francisco, em Beja, entre outros.

Por via do poder político central e municipal (ou de grandes grupos

financeiros como é o caso da Caixa Geral de Depósitos, através da Culturgest),

surgem eventos de arte pública relativamente inéditos no panorama nacional.

Promovidos pelas respectivas câmaras municipais, são apresentados programas

pensados para integrar as Festas de Lisboa (1991) ou as Jornadas de Arte

Contemporânea do Porto (1993).

Para o evento na capital, Pedro Portugal121 foi um dos nomes que se destacou

e cuja obra ali patente representou um momento de viragem na sua carreira;

120 Em 1994, surgia uma geração artística decidida a encontrar um espaço físico e intelectual onde pudesse apresentar a sua obra, representada pelas mais diferentes dinâmicas culturais. Jovens recém-formados em artes, que não se reviam nas estruturas dominantes na época. Assim, fundada por 14 pessoas ligadas ao meio artístico, nascia a irreverente Galeria Zé dos Bois, que rompia com os tradicionais locais de arte e exposição. A associação começou a ganhar popularidade na cidade por organizar o Festival Atlântico, um festival dedicado à arte da performance e à tecnologia, com conferências e espectáculos de teatro e dança. Inicialmente, a ideia era ocupar temporariamente edifícios desabitados e aí apresentar uma programação de qualidade (como na Mãe de Água, no Museu de História Natural, "na primeira Ler Devagar do Bairro Alto antes de ser Ler Devagar", "na Kapital antes de ser Kapital"). "E artistas que hoje seriam muito difíceis de congregar, dada a inflacção enorme dos preços da arte reconhecida", explica Natxo Checa em entrevista ao Jornal i, por ocasião da celebração dos 20 anos da ZDB (3 de Outubro de 2014). A partir de 1997, a estrutura foi centrada num único edifício. 121 Artista que iniciou o seu percurso nos anos oitenta, por meio de uma ampla actividade individual e também colectivo. Pertenceu aos grupos Homeostética (composto inicialmente por Manuel João Vieira, Pedro Portugal, Ivo, Pedro Preoença e Xana, estreou-se a 26 de Maio de 1983 com a 1ª Exposição Homeostética: um manifesto, um hino, uma banda sonora e uma revista/fanzine) e Ases da Paleta (companheiro de Paulo Feliciano, Fernando de Brito e Manuel Vieira, num grupo que

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Eucalipto/Homenagem: um monumento ao Estado Laranja, uma homenagem àqueles

que contribuem para o embelezamento no nosso país revelou-se como um registo de

clara intervenção social. Um modelo que, à data, se encontrava dissipado e apenas se

revelava em apresentações fugazes, o que dificultava o alcance de uma maior

visibilidade pública e, por isso, o seu próprio carácter social. Eucalipto/Homenagem

(...) consistiu na instalação, no centro da Rotunda do Relógio, de um grandioso

eucalipto invertido e com a raiz pintada de cor-de-laranja, delimitado por uma fita de

sinalização de obras, lado a lado com um carro de luxo; um cáustico comentário ao

contexto político da nação, que favorecia o surgimento de uma classe de “novos

ricos” e que, em paralelo, se definia como um modelo de progresso, apesar de

alienada de valores ecológicos essenciais.

Também as jornadas no Porto – organizadas sob a coordenação de João

Fernandes –, pela opção de povoar zonas públicas ao invés de espaços museológicos

(convocando novamente este ainda, e apesar de tudo, novo conceito de arte pública),

possibilitaram a criação de obras contextuais, respeitantes ao âmbito site-specific,

largamente discutido internacionalmente. Contudo, o pólo central destas jornadas

acabou por se revelar como essencialmente estrangeiro, tendo sido a exposição de

jovens autores britânicos – comissariada por Andrew Renton e intitulada A Pasta de

Walter Benjamin – aquela que mais convenientemente apelou ao público, invocando

experiências estéticas intensas e sublinhando a necessidade de alargar e renovar as

estratégias da mais recente geração de artistas portugueses.

A Europália’91, em Bruxelas122, e a candidatura aceite de Lisboa a Capital

Europeia da Cultura, em 1994 – que contou com exposições internacionais como

Depois de Amanhã, Múltiplas Dimensões ou a histórica Anos 60: Anos de Ruptura,

são projectos que merecem destaque no panorama institucional. Neste último, as

intervenções artísticas no espaço público aparecem em primeira instância, anexadas a

um grande somatório de eventos. 123 Alguns anos depois, também o projecto

preconizavam o afastamento em relação à crítica e à teoria e uma aproximação ao grande público.) 122 Realizado na Bélgica, com Portugal como país-tema. Ao longo de mais de três meses, tiveram lugar exposições, colóquios, espetáculos de teatro, música, dança, cinema, lançamento de livros e discos, entre outras actividades. A iniciativa teve Rui Vilar como comissário geral e permitiu mostrar no estrangeiro, inseridas num programa estruturado, as manifestações mais significativas da cultura portuguesa da actualidade. 123 Entre música clássica e popular, fado, cinema, teatro, dança, exposições de arte e intervenções no espaço público, durante praticamente um ano (26 de Fevereiro - 17 de Dezembro de 1994), Lisboa cumpriu o seu estatuto de Capital Europeia da Cultura, com o tema: “Lisbon, a meeting point of

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Expo’98 124 surgiria como um momento de relevante projecção no estrangeiro,

integrando-se numa rica “tradição de exposições internacionais, cujo início é

comummente identificado com a Exposição de Londres de 1851.”125

Prolongando a iniciativa pública, o Metropolitano de Lisboa teve também

preponderante importância, ao oferecer a numerosos artistas plásticos a liberdade para

decorar as suas estações, o que resultou numa obra eclética, recorrendo a soluções

diversas e que tiveram bastante impacto junto da população. Houve ainda espaço para

algumas bienais significativas que decorreram pelo país, em zonas como as Caldas da

Rainha, em 1993 – onde Pedro Campos Rosado, seguindo pressupostos do Pós-

Minimalismo e partindo da utilização de materiais comuns ao quotidiano, conheceu

merecido destaque – ou Óbidos, no mesmo ano, do qual fizeram partes diversos

nomes internacionais, tais como Marina Abramović, Anish Kapoor ou Giovanni

Anselmo.

Acreditamos ser possível destacar historiograficamente os anos noventa

daqueles que lhe antecederam, sem com isto querermos sustentar uma rigorosa e

inflexível (mas nada fértil) divisão cronológica, por nos parecer pouco adequado e em

nada fecundo pensar as circunstâncias da produção artística como uma série de

momentos suspensos e isolados no tempo. Ainda assim, parece-nos apropriado

apontar aquilo que se evidenciam como mudanças assinaláveis num período que

seguiu as tendências do final da década anterior mas que afirmou, examinou e

consagrou diversas linguagens.

Linguagens, códigos, sistemas de comunicação foram actualizados e as

intervenções multimédia ocuparam uma posição em igualdade consciente para com as cultures”. Lisboa seguiu uma estratégia focada no desenvolvimento de estruturas para o sector cultural da cidade, de modo a multiplicar o seu conteúdo e diversidade, de forma regular e, assim, estimular os mercados culturais. Com um orçamento de 8,5 milhões de contos (cerca de 42,5 milhões de euros) – verbas da Secretaria de Estado da Cultura e da Câmara Municipal de Lisboa –, a Lisboa ‘94 Capital da Cultura apresentou números interessantes: mais de meio milhão de espetadores acorreram às 800 manifestações culturais que compuseram o programa. A cena artística foi, de facto, aquela que provocou maior adesão do público – uma das referências maiores foi a exposição “As tentações de Bosch ou o Eterno Retorno”, no Museu Nacional de Arte Antiga – e, ao nível do investimento, ganhou a recuperação patrimonial de intervenção urbana: a requalificação do Coliseu e a acção realizada na Sétima Colina, que encheu de vivas cores as fachadas de 40 prédios no eixo entre o Largo do Rato e o Cais do Sodré, as ruas do Alecrim, Misericórdia, São Pedro de Alcântara, Dom Pedro V e Escola Politécnica. Cf. LOPES, Telmo Garção, “Arte Pública em Lisboa 94: Capital Europeia da Cultura – Intenções e Oportunidades”, s/n, Maio 2007. 124 Evento enquadrado no regime jurídico das exposições internacionais, definido pelo Burreau International des Expositions (BIE). Decorreu em Lisboa, de 22 de Maio a 30 de Setembro de 1998. 125 Conforme consta no “Relatório da Exposição Mundial de Lisboa de 1998”, p. 16.

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restantes disciplinas – contrariando os limites impostos a cada um dos géneros,

teorizados por autores como Clement Greenberg ou Michael Fried –, por meio de uma

resposta artística que absorve uma livre associação de meios, técnicas e elementos

diferenciados. É reintroduzida a tradição do ready-made duchampiado, da Pop Art, do

conceptual e de noções como a desmaterialização da arte criticamente equacionadas,

segundo um diálogo crítico e reflexivo, socialmente comprometidos, pendendo

especialmente sobre os domínios da produção e da sua recepção. De facto, e como

verificaremos adiante, é assumindo um compromisso particular com o modelo da

participação no acto de criação da contemporaneidade: um apelo pela interactividade

com o espectador. Ainda, a preocupação com o seu contexto – espacial, social,

político e cultural – a problematização do estatuto de artista na sociedade em que se

inserem e o debate aceso em volta de questões seminais como as da identidade

individual e colectiva, sexual, política, geracional, entre tantas outras, distinguem a

década em questão das anteriores – sendo sempre imperativo compreender o percurso

de continuidade, aprofundamento e as forças de influência estabelecidas entre os

vários momentos da história social e artística – e aproximam os noventa da conjuntura

internacional da era contemporânea.

Convocamos a acertada explicação de Miguel von Hafe Pérez126 – por ocasião

da publicação do Panorama da Arte Portuguesa no Século XX (com a coordenação de

Fernando Peres), editado pela primeira vez no ano de 1999, e que se assume como um

balanço dos últimos 100 anos de produção artística nacional. A década final do século

XX é marcada pelo despertar de um novo sistema que domina o plano da arte em

Portugal e que constitui um inúmero conjunto de problemáticas relativamente inéditas

no que diz respeito a uma necessidade de comunhão com condições de produção

artística bastante diferenciadas consoante a sua envergadura institucional

(problemática que advém da activa, e afortunada, iniciativa pública e privada). Nesta

medida, tendo em conta que a generalidade dos projectos destes anos pressupunham

apoio financeiro – apoio que se pode traduzir, como aponta Pérez, por via de uma

encomenda ou convite para a participação do artista em determinada exposição

(muitas vezes, com a apresentação de uma peça especificamente concebida

126 PÉREZ, Miguel von Hafe, “1990-2000: Anos 90 – A década de noventa: estabilidade disruptiva”, in Panorama da Arte Portuguesa no Século XX, coord. Fernando Pernes, Porto: Campo das Letras/Fundação de Serralves, 1999, p. 321.

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considerando o espaço e a temática da mesma exibição) – é clara a possibilidade de

discrepâncias evidentes e alarmantes entre instituições.

O artista acaba por trabalhar exclusivamente no seio das mais poderosas

instituições e, aquelas que permanecem à margem, apesar da sua competência para

estabelecer programações merecedoras de igual ou superior respeito, não são capazes

de competir com o poderio financeiro das demais. Com efeito, deixam de conseguir

apostar em determinados artistas, por falta de apoio para a produção de projectos

originais de maior envergadura. Pelo mesmo motivo, também muitos artistas, pela

vontade de permanecer em parceria com projectos alternativos, ou por falta de

convites por parte de grandes núcleos expositivos, vêem-se obrigados a auto-

financiarem o seu trabalho a longo prazo, algo que se pode revelar verdadeiramente

insustentável. Mas a arte da década de noventa acentuou ainda outras discrepâncias:

“Na verdade, (...) é muito diferente, em termos de custos, trabalhar no estrito campo

da pintura ou trabalhar numa área como o vídeo, onde o simples aluguer de um

estúdio de pós-produção pode custar dezenas de contos à hora.”127 Sem tencionar

fazer qualquer tipo de juízo de valor, porque tal nunca faria sequer sentido, Miguel

von Hafe Pérez sustenta a ideia de que a própria aspiração por um envolvimento com

as novas tecnologias, natural da época, pode acarretar mais elevados custos a nível

financeiro, para além de que deve implicar ainda uma complexidade técnica

específica e a utilização de equipamentos audiovisuais de tecnologia avançada que, à

data, seriam praticamente inexistentes ou de difícil acesso em território nacional – o

que explica a fraca envolvência de determinadas instituições em projectos que

exigiam material e trabalho de produção de custo demasiado elevado e, por isso,

insuportável. Também a permeabilidade do sistema a respeito dos artistas emergentes

da década obrigou a uma organização individual de exposições e mostras de arte por

parte dos próprios artistas, cuja obra não foi assimilada pelos contextos institucionais

ou pelas galerias e, consequentemente, pelo mercado, que se mostra demasiado

conservador no que respeita à aceitação de projectos diferenciados que, na sua

maioria, não se limitam ao corresponder das expectativas estéticas – e mesmo

decorativas – dos coleccionadores nacionais e do meio que envolve o comércio de

arte.

127 Ibidem, p. 325.

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Por fim, não podemos esquecer, ou deixar de dar merecido destaque, a um

projecto que percorreu toda a década e que foi, seguramente, um dos impulsos mais

significativos na dinamização, problematização e divulgação da arte contemporânea

em Portugal: o caso do Museu de Arte Contemporânea de Serralves. Abriu portas a 6

de Junho de 1999128 com a exposição Circa 1968129, inaugurando uma reflexão sobre

o período que é iniciado – de forma simbólica – na segunda metade da década de

sessenta; momento em que se assiste ao lançamento das bases para o conceito de

desmaterialização da obra de arte, o cruzamento de géneros formais, a utilização de

novos materiais, a validação da fotografia e de outras técnicas para a produção

artística, assim como a contínua pesquisa em torno do binómio arte e vida – noções

que percorreram todo o século XX, até à actualidade. Da mesma forma, são esses os

anos que anunciam o experimentalismo dos anos setenta – percurso que temos vindo a

traçar – e cuja Alternativa Zero constitui, precisamente, o ponto de situação. Deste

modo, trabalhando para que “a memória recente da arte portuguesa não deixe de

constituir um utensílio crítico e avaliativo, nos seus aspectos positivos e negativos,

das possibilidades do presente”, o Museu de Serralves procurou aprofundar o

conhecimento acerca da arte contemporânea, partindo do contexto nacional mas

dando a oportunidade aos artistas portugueses de se incluírem num panorama sem

delimitações e “dinamizando um olhar internacional a partir de um ponto de vista

nacional, questão subjacente à realização da «Alternativa Zero» original.”130 Mas o

que se procurou aferir, na década de noventa, acerca da Alternativa Zero? É o que

veremos de seguida.

128 O espaço do museu vinha a ser planificado desde 1991, ano em que Álvaro Siza Vieira foi convidado a projectar o novo museu no espaço da Quinta de Serralves. Em 1996, tiveram início a construção do edifício e a elaboração do programa museológico e, nesse mesmo ano, Vicente Todolí foi nomeado para primeiro director artístico do museu. 129 Esta exposição, que passou em revista a criação artística da mesma década – coincidente com um período de assinalável transformação social e política em Portugal e no mundo –, constituiu-se como um verdadeiro manifesto sobre as ambições internacionais do museu e apresentou a baliza cronológica que definia o contexto da sua futura colecção e do próprio programa artístico. 130 Vicente Todolí, “Perspectiva e prospectiva de um museu”, in Perspectiva: Alternativa Zero, pp. 11-12.

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I. 4. Perspectiva: Alternativa Zero

Vinte anos depois da mostra colectiva agenciada por Ernesto de Sousa, realiza-

se um projecto expositivo que propõe a sua revisitação, comissariado por João

Fernandes e promovido pela Fundação de Serralves – com o apoio da Câmara

Municipal da Porto, da Fundação Calouste Gulbenkian e de um vasto número de

artistas, críticos e investigadores –, designado como Perspectiva: Alternativa Zero.

“Voltaremos mais tarde para dizer do que foi que ainda não era isto o que havíamos

desejado. E assim saberemos que alguma coisa de nós começa a ser neste exacto

aqui.131”

João Fernandes, no ensaio que concretiza para o catálogo da exposição de 1997

– Perspectiva: Alternativa Zero – Vinte anos depois... – começa por apontar as raras

vezes em que o contexto artístico português é resgatado do passado para, através do

estudo da sua memória, se esclarecerem premissas do presente, segundo a análise dos

desafios que o passado é capaz de colocar à contemporaneidade, os seus pontos

negativos e positivos, as suas limitações e o seu alcance em prol de uma valiosa

aprendizagem. De facto, Fernandes dá conta de que, em contexto internacional, uma

série de exposições vinham a ser realizadas de modo a sistematizar a memória e a

experimentação que se desenvolveu ao longo dos tempos, de entre as quais exposições

monográficas e retrospectivas de artistas tal como Joseph Beuys, Hans Haacke, Gordon

Matta-Clarke, Bruce Nauman, Jasper Johns, Robert Smithson ou Andy Warhol, até

exposições de reapresentação e reflexão contextual132.

“Nos dias de hoje, os caminhos da experimentação em arte são continuamente

informados da historia dos momentos e percursos de ruptura que os precederam.

Novos projectos apropriam-se de projectos anteriores, revisitando-os criticamente,

fora do contexto e da pretensão de vanguarda que os caracterizavam. O exercício da

referência ou da citação deixou de ser incompatível com a experiência do novo, o

conhecimento aprofundado de projectos artísticos das ultimas três décadas representa

131 Eduardo Prado Coelho, 1977. 132 Em 1993, em Londres, “Gravity and Grace: the changing condition of sculpture, 1964-1975”, na Hayward Gallery e “The Sixties: art scene in London”, no Barbican Center; “Reconsidering the Object of Art”, MOCA, Los Angeles, 1995; a Bienal de Veneza com o tema “Futuro, Presente, Passado: anos 60-90, entre outros.

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uma contextualização necessária para a reformulação dos caminhos possíveis do

presente.”133

Em Portugal, e segundo o mesmo autor, não apenas se verificaria um escasso

conhecimento e informação a respeito do contexto da história artística internacional,

como, pior ainda, se assistia a um quase total desconhecimento no que diz respeito à

própria história recente nacional, que não tinha ainda sido suficientemente estudada

por historiadores e investigadores académicos ou sob a prática curatorial, assim como

não ocasionava, pelo menos aparentemente, curiosidade artística e crítica (isto porque

não era suscitada a sua estimulação). Ainda assim, na década de 1990 deu-se uma

relativa melhoria no que respeita ao campo da divulgação, por via da publicação de

algumas edições e pela produção de exposições de investigação. De entre as quais,

salienta-se então a realização de uma importante exposição acerca dos anos setenta

em Portugal, intitulada Anos de Ruptura: uma perspectiva da arte portuguesa nos

anos setenta, exibida no Palácio das Galveias, em Lisboa, no ano de 1994, assim

como a publicação de duas obras de história da arte que incidiam sobre o estudo

historiográfico da arte portuguesa do século em questão, e ainda algumas exposições

monográficas a respeito de artistas portugueses como Alberto Carneiro, Ângelo de

Sousa, Álvaro Lapa, Helena Almeida e António Palolo (exposições

fundamentalmente patrocinadas pelos dois maiores polos institucionais do circuito

artístico português, a Fundação de Serralves, no Porto, e a Fundação Calouste

Gulbenkian, em Lisboa). Assim, a exposição retrospectiva da Alternativa Zero no

museu portuense teve como ímpeto decisivo a divulgação – ou antes, reapresentação –

de cariz pedagógico, consequência do contexto em que se inseria a arte em Portugal,

urgência sentida também por Ernesto de Sousa aquando da organização do evento de

1977. Importava, por isso, situar esta exposição em relação aos contextos nacional e

internacional. Nesta nova “perspectiva” estava desde logo implicada a “consideração

de um contexto fundador das raízes da contemporaneidade artística portuguesa”,

através de um exercício de reflexão em torno da natureza teórica, crítica e curatorial

que o modelo ideológico de Ernesto de Sousa expressa ao materializar esta

Alternativa Zero, reunindo uma geração de artistas de ruptura que vinham afirmando

a sua obra desde os finais da década de sessenta e “ampliando-a no contexto possível

133 FERNANDES, João, RAMOS, Maria (coord.), Perspectiva: Alternativa Zero [catálogo], Porto: Fundação de Serralves, 1997, p. 15.

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que o pós-25 de Abril poderá ter permitido. 134 Tratava-se, “simplesmente”, de

possibilitar a investigação e o acesso à mesma, por meio da análise crítica das

limitações e do alcance que a mostra de Belém combinou, das suas expectativas, das

continuidades que possibilitou e das críticas que provocou, em busca de

conhecimento.

A exposição de 1977, que decorreu entre os meses de Fevereiro e Março,

perspectivava-se como um começo, o momento zero “na senda da última mensagem

pública de Almada, o mural ‘Começar’ da Fundação Gulbenkian, ou um recomeço.”

Todavia, a questão que brevemente se colocaria, tal como nos dá conta José Luís

Porfírio, seria se a “a Alternativa Zero foi um começo ou um fim?”135 Segundo o

mesmo autor, e como desde logo referimos acerca das dinâmicas dos anos que lhe

seguiram, os últimos anos de setenta apresentaram-se – num contexto global – como a

exaustão da linguagem. Mas, se acerca da década de oitenta poderíamos reflectir

sobre uma arte “depois do fim”, os noventa poderiam ser, para José Luís Porfírio, o

“depois de tudo”. Existe, no momento da exposição retrospectiva em Serralves, o

reconhecer de problemáticas novas, de uma nova consciência social e cultural em

concordância com a realidade. Nos vinte anos que passaram entre as propostas dos

artistas de Ernesto de Sousa e a intervenção da geração de noventa, verifica-se o

ampliar de propostas de carácter quase “anti-artístico” sendo que poderíamos estar

perante novo Zero – não meramente renovado, mas sim dotado de uma originalidade

cujo alcance de influência remonta aos anos de “alternativa”. Alternativa – Zero – que

foi um marco no tempo, uma baliza, um momento de tomada de consciência que nos

obrigou a reflectir, desde os primeiros momentos; que obrigou os intervenientes da

década de noventa e, em particular, esta nova geração de artistas, a repensar o seu

tempo e a questionar o paradigma das suas propostas artísticas:

“Porém por maiores que sejam as semelhanças formais – que até podem ir ao ponto

de se tornar académicas – esta geração [de noventa] já passou para o outro lado do

tempo. (...) Depois é agora! Um tempo que não tem ainda nome certo, uma

actualidade como todas as outras, feitas de vestígios, feita da presença simultânea de

várias gerações, certamente o tempo dos ‘homens futuros’ de que falava Mondrian

134 Ibidem, p. 16. 135 Ibidem, p. 47.

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em 1920? Ou um tempo de repetições? Tempo de transformações, ou seja, como

Almada enunciou e José Ernesto, criadoramente, repetiu, tempo de... começar.”136

Passemos agora à articulação destas e de outras questões com algumas das

obras que ditaram, durante os anos noventa, um percurso de experimentação em torno

de premissas de subversão do espectador e desse corpo no espaço partilhado.

136 Ibidem, pp. 49-51.

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II. O CORPO ENQUANTO TEMA, PROCESSO E OBJECTO

“Eu não sou um intelectual, escrevo com o corpo. E o que escrevo é uma névoa

húmida. As palavras são sons transfundidos de sombras que se entrecruzam desiguais,

estalactites, renda, música transfigurada de órgão.”137

O termo “corpo” sugere-nos uma relação com uma entidade autónoma,

universal até, mas ao mesmo tempo singular, atemporal e, consequentemente, não

marcada pela história. Enquanto um dos temas centrais da nossa contemporaneidade, o

corpo é o depositário de todos os sentidos e a expressão das mais diferentes

pluralidades. Nas sociedades clássicas, num quadro em que o homem se integrava no

cosmos, as imagens do corpo alimentavam-se das matérias que compunham a própria

natureza. O corpo assumia-se como um lugar privilegiado de saber e poder, dado que

desde sempre constituiu o essencial de todas as práticas e representações do homem.

O corpo – o seu alcance e os seus limites (se tais existirem) – é, como foi desde

logo proposto no inaugurar desta reflexão, uma das principais marcas artísticas do

século XX. De forma crescente, o corpo foi ampliando – ou antes, esbatendo – as suas

fronteiras e tornou-se um dos motores centrais das propostas do artista contemporâneo,

que o adoptou enquanto temática, objecto e processo; “Bound or beaten, naked or

painted, still or spasmodic: the body is presented in all possible guises.”138

Expandindo e renovando as tradicionais convenções do retrato e do auto-retrato,

o corpo constituiu-se performativo e irrompeu pelo lugar da galeria até ao exterior, ao

encontro de um espaço inesperado e flexível e rompendo com as barreiras que podiam

ainda existir entre arte e vida, exercício visual e experiência sensorial. De facto, ao

longo de toda a história, os artistas sempre desenharam, pintaram e esculpiram as

formas do corpo humano. No entanto, a recente história da arte revela uma mudança

significativa na percepção que o artista tem acerca do corpo, que deixa de ser apenas o

motivo representado, e passa a equivaler enquanto tela, pincel, moldura e plataforma.

Ao longo do último século, os artistas questionaram as concepções do retrato e da

representação; a ideia de uma forma estável e finita para a interpretação – física e

137 LISPECTOR, Clarice, A hora da estrela, Rio de Janeiro: Ed. Francisco Alves, 1977, p. 30. 138 WARR, Tracey (ed.), The Artist's Body, London: Phaidon, 2000, p. 1.

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psicológica – de si mesmos, foi gradualmente sendo posta de parte graças ao eco dos

desenvolvimentos significativos do século XX nos domínios da psicanálise, da

filosofia, da antropologia, da medicina e da ciência. As novas propostas artísticas

procuraram explorar questões como a temporalidade, a contingência e a própria

instabilidade, segundo a noção de que o self é revelado de dentro para fora num

movimento que não distingue fronteiras culturais. Ao corpo são, por isso, destinadas

questões como o risco, o medo, a morte, o perigo ou a sexualidade – as suas mais claras

ameaças físicas –, com vista ao atingir de uma expressão individual que é invisível, sem

forma ou limites.

“The new artistic medium is a much more direct one: the human body.”139

A história dos artistas que fazem uso do corpo – o seu e o dos outros – como

matéria de trabalho, revela de imediato uma florescente intersecção de ideias e

ideologias provenientes das mais diversas culturas e disciplinas. No encetar do século

XX, as teorias de Sigmund Freud acerca do inconsciente, cedo influenciaram a forma

com a mente e o corpo eram compreendidos; e, apesar de algumas dessas teorias terem

sido posteriormente reformuladas, a ideia de que a mente inconsciente do sujeito afecta

o seu comportamento de forma silenciosa, transformou, sobretudo, a percepção que a

sociedade tinha acerca da dinâmica relacional entre a razão e o corpo físico. Desde

logo, nas primeiras décadas do século, artistas do movimento Dada como Tristian Tzara

ou Kurt Schwitters recorreram a tácticas multi-disciplinares irreverentes e de carácter

performativo, “escaping from the conventional museum with its wall-and-plinth-based-

art.”140 De facto, os dadaístas apresentaram, logo nos anos dez, o traçado daquilo que

era a concepção de uma obra de arte total de vanguarda, em contacto com uma

audiência no espaço do real.141 Tal como os Surrealistas que, partindo do Dada e

introduzindo na sua produção algumas das mais fundamentais premissas freudianas,

desenvolveram um corpo de obra provocativo e de exigência participativa, cujo

139 SCLEMMER, Tut (ed.), The letters and diaries of Oskar Schlemmer, Connecticut: Wesleyan University Press, 1992, p. 50. 140 WARR, Tracey, op. cit., p. 11. 141 Falamos de performances realizadas em cafés e na rua mas, sobretudo, pretendemos fazer menção ao Cabaret Voltaire (Fevereiro-Julho 1916). O Cabaret Voltaire situava-se numa das zonas menos nobres da cidade de Zurique e na sua programação estavam incluídas performances nocturnas, recitação simultânea de poemas em três línguas distintas, declamações, dança, teatro e concertos, seguindo a corrente de contestação que caracterizava o movimento de Hugo Ball e restantes companheiros.

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exemplo maior será a I.ª Exposição do Surrealismo, organizada em Paris em 1938.142

Colagem, fotomontagem, performance, environment e assemblage são conceitos que

surgem em simultâneo com o começo do século e que sincronizam, enfim, a arte com a

vida quotidiana.

Em 1918, o artista Oskar Schlemmer, directamente do campo de batalha, falava

sobre o impacto físico e psicológico da I.ª Guerra Mundial.143 As escalas de mortes e

destruição colocaram em perspectiva a existência humana e enfraqueceram crenças e

valores do passado, alterando o entendimento no que respeita a raças, géneros e classes.

Por altura da II.ª Grande Guerra, que irrompeu num mundo que ainda não tinha tido

tempo de sarar as feridas psicológicas e emocionais que resultaram da Primeira Guerra,

a consciência acerca do corpo era ainda mais saliente. Artistas como John Cage, Marcel

Duchamp, Allan Kaprow, Yves Klein, Kazuo Shiraga ou os Gutai, entre muitos outros,

desenvolveram dinâmicas de exposição fora do espaço da galeria e ideologias

alternativas para a criação de propostas multi-disciplinares que reconheciam a

performance e a acção como motor de expressão.

O corpo é, de facto, o tema-problema da nossa discussão em torno do século

XX, através do qual apresentamos a produção artística portuguesa mais significativa do

fim do milénio, com obras e autores pertencentes a várias fases geracionais. Isto é,

entendendo-se por década, não o lugar de uma geração, mas antes o lugar de encontro

de gerações, onde se cruzam formações e percursos variados, diversos meios de

expressão e onde coexistem, igualmente, propostas que reflectem um maior rigor

conceptual e formal, entre outras mais elípticas ou transparentes. Neste contexto, o

corpo do espectador é, da mesma forma, chamado a confrontar-se com diferentes

anatomias, revendo a sua relação com a obra de arte e o espaço que a mesma ocupa.

Happenings, performances, instalações e intervenções. Definições de pintura e

escultura viva, de arte viva através da acção corporal, de indistinta natureza e cujas

fronteiras entre género se misturam e confundem na pluralidade de propostas. Em

comum, a exploração do corpo – que se pode movimentar em qualquer lugar –, a

efemeridade, a fuga à narratividade ou a narrativa dessa fuga, o paralelismo entre corpo 142 Numa das mais requintadas e respeitáveis galerias de Paris, os surrealistas montaram uma exposição que girava em redor de noções como a sinestesia e a cinestesia. À entrada era entregue um pequeno foco de luz a cada uma das pessoas do público, visto que o espaço estava às escuras. No desconforto do desconhecido, o espectador deveria percorrer a galeria apoiando-se nos demais sentidos. Só assim a obra seria possível de concretizar; por via de uma experiência verdadeiramente física. 143 SCHLEMMER, Tut, op. cit. 1992.

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da obra e o corpo do seu autor, levando ainda mais longe o gesto “duchampiano”: a

assinatura do suporte é substituída pela integração total do corpo do autor que concebe a

obra. Deste modo, são várias as tipologias que podemos encontrar num conceito tão

universal como este de “corpo do artista”, antes de “corpo do espectador”.

“The body is perhaps the foremost of all metaphors for a society’s perception of itself.”144

O entendimento da arte enquanto forma de adquirir conhecimento parece-nos

possibilitar assim aos artistas o desenvolvimento de uma série de novas tácticas que

lhes permitam subverter o seu impacto sobre a comunidade: a desmistificação do

objecto artístico é uma delas. Na procura por uma noção de desmaterialização do

objecto artístico e em prol da relação que esse mesmo objecto deve estabelecer com a

audiência que o encara, a contemporaneidade – desde a produção artística do início do

século XX – tende a retirar o objecto do seu pedestal heroicizado e mitificado. A obra

assume-se como parte da vida e não só está ao alcance directo do espectador (ambos

pisam o espaço da galeria sem uma hierarquia nivelada) como é exigido que seja

manuseada, atravessada e habitada pelo mesmo; o que anuncia, desde logo, a noção

de imaterialidade que referimos, dado que a obra apenas se concretiza através de uma

acção vivida e não simplesmente a partir da produção material de uma ideia estética.

Na obra Six Years: the dematerialization of the art object145, publicada em 1973, Lucy

Lippard discute o interesse dos artistas por trabalhos que enfatizem o processo de

reflexão conceptual e assinala a consequente perda de interesse pelo objecto artístico

per se, defendendo que as duas fontes de manifestações artísticas associadas à

desmaterialização do objecto são a arte como ideia e a arte como acção.

Desta forma, é imperativo propor o questionamento da noção de obra de arte.

Porque, acreditamos, as obras que pertencem ao universo da participação – enquanto

exigência de um corpo físico –, quando meramente expostas num ambiente

museológico desligadas do seu contexto e do seu condutor activo (a audiência que

com as mesmas interage – domínios participativos que discutiremos mais adiante) se

tornam apenas num resíduo longínquo do trabalho que já foi feito, isto é, da obra

concretizada no passado por meio do trânsito dinamizado pelo espectador e que, neste 144 Jonathan Benthall, The Body as a Medium of Expression: A manifesto (1972). Excerto da obra em WARR, Tracey, op. cit., 2000. 145 LIPPARD, Lucy, Seis Años: la desmaterializacion del objeto artístico (de 1966 a 1972), Madrid: Akal, 2004.

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momento, não existe senão pela sua concepção e constante renovação crítica por parte

da acção de um juízo estético libertador. Juízo reclamado por uma comunidade capaz

de não apenas confrontar o objecto, mas também de incorporar o conhecimento prévio

do que foi a sua performance enquanto matéria activa e, assim, desenvolver a reflexão

e o pensamento humano – o objecto deixa de ser a única fonte necessária para a

permanência e constante renovação que constitui a universalidade da ideia estética,

isto é, da obra de arte. Tal como se manifesta na produção de Cildo Meireles, que

convocaremos para breve exemplo do contexto internacional dos mesmos anos.

A obra Nós, Formigas (1990-2013)146, materializada pela primeira vez no

Museu de Arte Contemporânea da Fundação de Serralves, em Novembro de 2013, por

ocasião de uma exposição retrospectiva da obra do artista, consiste na colocação de um

imenso bloco de granito suspenso sobre uma vala escavada no parque do museu, ambos

os elementos de tamanhos semelhantes. A audiência-participante deve descer as escadas

de acesso ao núcleo escavado. Posicionado sob o bloco de granito, o espectador pode

verificar que centenas de formigas se movimentam na parte inferior da pedra,

encurraladas por uma placa de acrílico na parte exterior. Nós, Formigas convoca a

década de 1970 na sua génese. A obra, que tem por base o impulso capitalista das

grandes potenciais mundiais, corporaliza a crítica ao investimento industrial e ao seu

crescimento incessante e imparável no confronto com a finitude da própria humanidade,

que apenas tem a chance de sobreviver se for capaz de se diminuir. Uma imensa

metáfora que nos remete para a sociedade pós-industrial e para a insatisfação humana,

num mundo caracterizado pelo progresso, pelo crescimento e por uma imenso

desenvolvimento. De facto, o entendimento da arte como forma de conhecimento

possibilitou aos artistas não apenas explorarem problemas e questões relacionadas com

condicionantes concretamente socio-políticas, mas também de desenvolverem uma

série de novas tácticas que lhes permitam subverter o seu impacto sobre a audiência.

Recuando um pouco na nossa análise, importa pensar a obra de arte como um

paradigma instável e potenciador de crise no seio de uma comunidade que se depara

com um objecto não-concluído, inconclusivo e eminentemente indecifrável que, ao

mesmo tempo, se assume como um motor de arranque do pensamento crítico, isto é, 146 A obra Nós, Formigas começa a ser idealizada por volta do ano de 1970, mas apenas duas décadas mais tarda é iniciado o seu projecto. A primeira concretização material, por fim, data de 2013.

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que convoca a capacidade humana de produzir juízos e a partir deles reflectir. Na

mesma ordem de ideias, segundo Marie-José Mondzain, o dito fracasso assim

instaurado perante a obra, na sua capacidade de produzir conceitos universais, obriga o

observador a falar, depois de ver – exigência que não permite ao espectador sentir a

total satisfação, pela sede de ver o invisível, “thirst for hearing voices that do not

demand that we be tied to the mast to protect us from a shipwreck.”147 E o ver, maior do

que o simples e rápido olhar desinteressado, pode constituir-se a partir do intervalo que

liberta entre si e a palavra. De facto, nos termos da autora, no domínio do visível não

importa contar as diferentes vozes mas sim dar-lhes espaço para serem ouvidas, isto é,

importa dar espaço ao espectador para comunicar, partilhar juízos, ouvir e ser ouvido

com vista à criação de conhecimento que não apenas o desenvolve, a si mesmo e aos

outros, enquanto ser pensante, mas que distende também a obra na sua amplitude

inalcançável e em constante expansão. Pelo mesmo motivo, o visível não é mais do que

o desaparecimento desse espaço – do ponto de partilha entre uma comunidade –, em

lugar da extinção da voz. A imagem não é um signo como qualquer outro, “it has a

specific power, to make visible, to show forms, spaces and bodies that it offers to the

gaze”148, e a imposição de lhe atribuir uma verdade inteligível ou, ainda, de privar a sua

partilha149, constitui-se como uma prisão, um acto de violência que implica a abolição

de liberdade, a abolição da palavra e, assim, a abolição da voz. “If seeing means gaining

access, through the image of the world, to the colour of life, being deprived of the

image means dying. Seeing an image means not dying.”150

“(...) Acredito que uma obra de arte não é feita só para o artista, é feita sobretudo para o

espectador. A minha escultura não é feita só por mim e pelas pessoas que trabalham para mim, é

147 MONDZAIN, Marie-José, “Can Images Kill?”, in Critical Inquiry, vol. 36, n.º 1, Outono 2009, p. 41. 148 Ibidem, p. 14. 149 Em “Can Images Kill?” (artigo publicado na revista Critical Inquiry, 2009), Marie-José Mondzain analisa o poder fatal da imagem tendo particularmente em conta dois exemplos da mitologia clássica: Medusa e Narciso. No que diz respeito à não-partilha de uma imagem, desrespeitando por isso o seu alcance comunicativo, importa-nos convocar o acontecimento que dá o folgo inicial à reflexão da autora: o ataque às torres gémeas do World Trade Center, a 11 de Setembro de 2001. O 9/11 foi um momento decisivamente marcante para os séculos XX e XXI e para a cultura visual na nossa era. A ofensiva que provocou milhares de mortes foi prontamente camuflada e os registos do massacre foram impedidos de serem expostos à comunidade, como se de uma guerra invisível se tratasse: o presidente dos Estados Unidos da América anunciou um “jejum visual” que impossibilitava os media de expor qualquer imagem elucidativa de perdas humanas. Rapidamente o evento foi tratado em termos visuais e o visível entrou em crise pela privação da imagem: “the first historical spectacle of the death of the image in the image of death” (p. 4). 150 MONDZAIN, Marie-José, Homo Spectator, Paris: Bayard, 2007, p. 314.

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completada pelo olhar do espectador. Por isso é que acredito que uma obra de arte só existe quando é

vista pelos outros. Uma obra de arte que não é vista, que está na gaveta, não existe. (...) elas falam [as

obras]. dizem segredos a algumas pessoas, não a todas. Acho que a arte não é para todos, não é para as

massas, nem é para a multidão. A arte é um segredo para algumas pessoas (...), para minorias, para

aquelas pessoas que têm ouvidos e olhos e que conseguem ouvir esse sussurro. A outras podem passar ao

lado e nem que a obra seja gigantesca a veem. Nunca a verão.”151

O apelo para que o espectador crie a obra partindo da sua presença e impressão

físicas (experiência que, consequentemente, dará lugar ao desenvolver de inúmeros

juízos estéticos por parte da comunidade) converge com o pensamento de Maurice

Merleau-Ponty, utilizado como veículo para combater uma postura demasiado

positivista no meio artístico. Na obra Phenomenologie de la Perception, que data de

1945, o filósofo francês aponta para a importância do corpo no acto da percepção,

sendo esse mesmo o organismo de mediação entre o indivíduo e o mundo social que

confronta, envolve e comunica com o sujeito como resultado da experiência perceptiva,

isto é, segundo a lógica de que o mundo surge aos nossos olhos, no espaço e no tempo,

à medida que vai sendo por nós percepcionado sem a necessidade de uma imediata

compreensão; porque ver um objecto, de forma a atingir o ponto mais próximo da sua

essência (inalcançável), é: “either to have it on the fringe of the visual field and be able

to concentrate on it, or else respond to this summons by actually concentrating upon

it.”152 Valendo-se da crítica que Merleau-Ponty teoriza e que não poderíamos deixar de

elencar com vista ao anunciar do carácter recíproco da obra de arte – o conhecimento

acerca do objecto é gerado a partir do próprio objecto –, o artista estabelece, de forma

metafórica e estratégica, o ponto orgânico essencial que deve ser valorizado para a

concretização assertiva da produção do génio: o corpo. É essa a fórmula, configurada

por meio do paradigma fenomenológico, capaz de fazer a obra de arte, resultado

material da ideia estética, um lugar oblíquo, denso, libertador e de infinita amplitude

comunicativa.

“We can smell the scent of a steaming pot of jasmine rice…sunlight pours in from an

October afternoon, and already we feel the compression of the gallery lifted from our

shoulders… As one sits down for the bowl (white enamel with blue rims) of food, one

151 Rui Chafes em entrevista ao jornal Expresso, 8 de Fevereiro de 2014. 152 MERLEAU-PONTY, Maurice, O Visível e o Invisível, São Paulo: Perspectiva, 1984, p. 78.

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begins to realize that this is a distinctively different experience from others we have

had in an art gallery or with art.”153

O desdobramento e o desejo de aglutinar certas questões cognitivas – como

por exemplo, a sinestesia como relação privilegiada para o conhecimento – ou o

elenco coeso de crenças éticas, como a valorização da acção colectiva frente à

homogeneização das esferas económica, política e cultural, são alguns dos domínios

que constituem o trabalho artístico que nos desafiamos a abordar e são talvez aqueles

que, por meio de obras que se inscrevem numa espécie de zona de transformação que

permite ao artista convocar a imaterialidade da obra de arte em contacto com público,

melhor nos permitem delimitar os contornos entre a arte e a vida. Não se trata de

eliminar, por defeito, a matéria e o corpo visível; pelo contrário, é através desse corpo

que a imaterialidade é expressa, por meio da convocação da totalidade dos sentidos

humanos, isto é, por meio de um trabalho que não é feito a partir de elementos

visuais154 – extensão que vai ao encontro da questão da arte enquanto dinâmica multi-

sensorial: pensar o objecto como totalidade, possibilitando que a obra de arte possa

adquirir uma existência olfactiva ou mesmo auditiva – apenas quando em contacto

com o espectador.

O tipo de abordagem que aqui colocamos em diálogo tinha já iniciado a sua

exploração plástica na arte brasileira das décadas de 1950 e 1960, tendo por base o

ensaio anunciador de Ferreira Gullar, Teoria do Não-Objeto 155 (mencionado na

introdução da presente dissertação). A produção artística segundo estas premissas não

pode, por conseguinte, ser alvo de juízos estéticos que inevitavelmente pressupõem a

criação de uma comunidade de espectadores reflexiva se o sujeito não estiver disposto

a experienciar a forma com todo o corpo – assumindo-se fisicamente participativo –,

pois essa mesma forma pretende convocar a totalidade da audiência e quere-a por

inteiro.

«Surrealism, though unable to accord language a supreme place, contributed to the

desacrilization of the image of the author by ceaselessly recommending the abrupt

disappointment of expectations of meaning by entrusting the hand with the task of

153 Rirkrit Tiravanija, No Ghosts in the Wall, 2004. 154 Sendo que as expressões “artes visuais” ou, numa diferente amplitude, “artes plásticas” não exprimem, por isso, o largo campo de experimentação, questionamento e discussão que a obra de arte alcança. 155 Texto publicado no Jornal do Brasil como contribuição para a IIª Exposição Neoconcreta (1960).

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writing as quickly as possible what the head itself is unaware of (…), by accepting the

principle and the experience of several people writing together. (…) the birth of the

reader must be at the cost of the death of the author.156»

Deste modo, e como examina Roland Barthes no excerto supracitado,

propomo-nos a reflectir sobre a noção de autor sugerindo a possibilidade de que o

significado de uma obra não é nunca totalmente dependente da intenção do artista mas

é, na sua soma, dependente da interpretação individual do receptor activo que com a

mesma estabelece um diálogo.

Qualquer tentativa de situar a reflexão acerca da arte contemporânea e da sua

relação com o espectador, numa das suas acepções mais actuais, terá, quase

inevitavelmente, de se reportar à obra de Marcel Duchamp, o grande articulador de

um processo de problematização e provocação crítica para com os paradigmas

estéticos de uma época em oposição a um sistema hierarquizado de valores que até

então (tal como acontece ainda nos nossos dias) se sustentava graças ao poder

mitificado do objecto artístico. De facto, o pensamento revolucionário de Duchamp,

que não se esgota na sua própria obra, é retomado pelas mais recentes gerações de

artistas do século XX, cujas obras assumem o desejo pela acção de ruptura

protagonizada pelo autor de Fountain (1917), partindo da mesma transgressão das leis

que limitam ou interditam o espaço institucionalizado da arte. O próprio artista

assume que aquilo que à primeira vista poderia ser facilmente localizado e

efetivamente combatido, tende hoje a circunscrever-se numa área de difícil acesso e

apreensão: o pensamento. Em The Creative Act 157 , Marcel Duchamp começa

justamente por situar os dois polos essenciais para a criação artística: de um lado o

artista e, por outro lado, “the spectator who later becomes the posterity.”158 Desde

logo percebemos a intenção de Duchamp, que salienta a necessidade de dois

intervenientes para a concretização do acto criativo – o artista não é suficiente, o seu

papel é afastado de um primeiro plano, passando a dividir a sua índole criadora com o

156 Roland Barthes, The Death of the Author, 1968. Disponível em BARTHES, Roland, “The Death of the Author”, Image-Music-Text, London: Hill and Wang, 1977, s/p. 157 Comunicação proferida por Marcel Duchamp num encontro promovido pela American Federation of Ar (Houston, Abril de 1957), uma das raras conferências em que o artista participa. Disponível em Marcel Duchamp, «The Creative Act», Theories and Documents of Contemporary Art — A source book of artist’s writings, editado por Kristine Stiles e Peter Selz, Los Angeles: University of California Press, 1996, pp. 818-819. 158 Idem, p. 818.

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espectador. O artista deixa de ser entendido como o autor por excelência e passa a

dividir o protagonismo com uma comunidade de espectadores que participa

activamente e que é, consequentemente, criadora, sendo por isso assumida como

interveniente essencial para o processo de decifração, interpretação, legitimação e

execução da obra de arte.

Tal como afirma Jacques Rancière, o maior poder dos espectadores é a

igualdade que estabelecem entre si na sua capacidade de compreensão159; a igualdade

intelectual na sua relação com o outro, com o artista e com a obra em si mesma.

Também Umberto Eco, na sua Obra Aberta de 1962, vai ao encontro da tese

declarada pelo “acto criativo”, defendendo que a concretização de uma obra passa

pelo seu contacto e interacção com o espectador, sendo este último, no limite, co-

autor; não apenas porque participa no processo de criação enquanto legitimador, mas

também porque a obra não compreende uma única interpretação e existe,

inevitavelmente, um desfasamento entre a intenção do artista, aquilo que realmente

concretiza e aquilo que o público compreende.

Importa por isso destacar, com o intento de aprofundar o que pensamos ser a

premissa essencial do presente ensaio – que se funda no paradigma fenomenológico da

lógica relacional entre o artista, a comunidade e o objecto artístico – a noção de autor

colectivo; pois o maior poder dos espectadores é a igualdade que estes estabelecem

entre si na sua capacidade de partilha, na sua capacidade de desenvolver juízos estéticos

e de desenvolver pensamento crítico libertador, na sua capacidade de discutir; isto é, a

igualdade intelectual na sua relação com o outro, com o artista e com a obra em si

mesma. Admitimos então a possibilidade de que a concretização de uma obra passará

assim pelo seu contacto e interacção com o espectador, sendo este último, no limite, co-

autor; não apenas porque participa no processo de criação enquanto actor e legitimador,

mas também porque o sentido da obra de arte não é universalmente inteligível, isto é,

porque a obra de arte é um exercício de reflexão nunca acabado e que nunca totalmente

se revela: não compreende uma decifração finita, um conceito universal que a ela se

adeque, uma única interpretação (pois embora a faculdade de julgar – o gosto – seja

comum a todos os seres humanos, ela nunca está estabelecida previamente: é sempre

resultado de uma experiência individual e, consecutivamente, colectiva). Da mesma

forma, salientamos a possibilidade da existência de um desfasamento entre o estágio 159 RANCIÈRE, Jacques, “The Emancipated Spectator”, in Artforum, vol. 45, n.º 7, Março 2007, p 278.

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inicial da expressão do génio e a ideia estética em constante movimento, sendo que a

comunidade de espectadores assume uma posição ampliada na sua tarefa de

concretização/validação do objecto artístico: é contempladora, é participante, é crítica, é

criadora.

Pensar os limites do corpo é pensar acerca de uma identidade. A identidade do

artista e a identidade do espectador, este último que será, para o autor da obra de arte,

um corpo sem rosto, que se move na procura pelo estabelecer de uma ligação com os

objectos nos quais participa activamente pela constituição de valor artístico. A

presença de uma matéria orgânica inconstante e volúvel que habita a obra e a

experiencia. Obra que metamorfoseia, no limite, num corpo sensível; isto é, a

expressão do génio artístico, que antes de ser partilhada permanecia no domínio do

silêncio (no mundo privado das sensações), torna-se parte integrante de um corpo

participante, um corpo colectivo que se deixa envolver física e psicologicamente, o

corpo sensível e intelectualizado da comunidade da qual depende a existência da obra

de arte. De facto, a presença espacial do nosso corpo difere em muito daquela

exercida pelos restantes elementos que pontuam o espaço habitado. O corpo adapta-se

ao espaço como uma mão se adapta a qualquer utensílio que sustente, assim como se

move como nenhum outro objecto, pois é por nós dirigido e é a partir do mesmo que

conseguimos ter pronto acesso ao ambiente que nos envolve. A carne, a pele, os

sentidos e as sensações são, para o espectador-participante, muito mais do que

simples instrumentos: são expressão, são a forma visível de uma criação que se

constitui na profunda imaterialidade universal do pensamento crítico.

O espectador é chamado a entrar verdadeiramente no dispositivo construído e, a

partir desse contacto, é capaz de concretizar a formulação artística proposta e atingir a

máxima amplitude através da sua faculdade de julgar (comum a todos os seres

humanos) e, consequentemente, elevar o objecto materializado na imaterialidade que

assim o define – uma indeterminação conceptual livre cuja ideia estética se encontra

mediada entre o olhar do génio artístico e o olhar de uma comunidade de espectadores,

potenciadora de pensamento crítico partilhado; desta forma, o modelo que potencia o

estabelecer de uma relação física directa, o convite para ocupar o espaço das obras –

que nos propõe o conceito de “obra habitada” – é um prolongamento do envolvimento

do espectador, que atinge, em instalações performativas (particularmente quando em

contacto com construções de grande escala), a sua natureza fenomenológica.

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Poderemos então dizer que o trabalho do artista não se constitui através de metáforas ou

representações, mas sim por via do corpo físico e em função daquilo que será capaz de

provocar/convocar/potenciar no corpo social, isto é, na comunidade? Ou ainda: será a

obra de arte apenas possível de existir na medida em que o espectador a experiencie? E,

segundo modelos particulares da produção artística, apenas na medida em que o

espectador a complete por via fenomenológica (adquirindo, no limite, um carácter de

performer)?

Acreditamos que existe um compromisso com uma comunidade e que esse

compromisso passa pela constante possibilidade de transgressão ao nível do real, pois

apenas o domínio do visível é capaz de “matar” a imagem – a obra de arte, cujo

conceito universal se constitui como eternamente indeterminado – e, com ela, toda a

esperança de liberdade; como já referimos, Marie-José Mondzain sugere-nos o mesmo

por meio do desvelar das dinâmicas funcionais entre o binómio olhar e palavra em

confronto com a imagem e, por conseguinte, com o objecto artístico, numa reflexão que

nos permite aprofundar a dinâmica existente entre o espectador e a própria forma. A

dinâmica existente entre diferentes corpos. Avancemos, então, na sustentação do nosso

discurso.

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II. 1. Corpo Ausente

Parece-nos legítimo iniciar esta abordagem a partir da noção de “corpo

ausente”. Do lugar que este corpo é capaz de definir a partir da sua ausência e

invisibilidade. Isto porque, como é do senso-comum, em todas as fugas existiu,

anteriormente, uma presença ou permanência da qual resultou essa transformação.

Quando o corpo do autor converge com a obra – e aqui referimo-nos, evidentemente, a

domínios físicos e materiais – o objecto é capaz de aprisionar o artista e revelar esse

contacto prévio com o mesmo na reminiscência da sua existência temporal. Deste

modo, os artistas portugueses a partir dos quais pretendemos explorar este conceito

serviram-se dos vestígios da sua presença física por meio de moldes, de impressões, de

fotografias ou de uma memória conceptual; e a ausência desses corpos evoca a

mortalidade humana, a transcendência do corpo, através da utilização das mais

permanentes formas artísticas – a manifestação física em contraste com o espiritual e o

inconsciente.

A passagem subsequente, que se deu logo em meados dos anos sessenta, das

estratégias da pintura para a escultura esteve, sobretudo, relacionada com a expansão

das possibilidades que se ofereciam ao corpo num contexto de tridimensionalidade, isto

é, ao nível do real. O percurso progressivo foi o de abandono da autoria, ou seja, o

corpo foi sendo integrado na criação até à eleição do acto em detrimento do objeto final,

assim com se vai despojando também da autoria em função do outro (dos outros), os

supostos espectadores, com o intuito de estes vivenciarem a obra e descobrirem a sua

própria criatividade, os seus limites ou mesmo as suas transgressões. Se conseguirmos

entender a sociedade, nas suas mais diversas dimensões, como um corpo em constante

transformação que faz mover o artista, facilmente compreendemos a necessidade de

desenvolver estratégias e códigos de subversão que permitam o artista reagir consoante

os condicionamentos do seu tempo e tornar o espectador – através do seu envolvimento

– mais consciente acerca do acto criativo e dos mecanismos de construção da realidade.

Desta forma, o artista procura descobrir a sua forma de se afirmar no espaço activo do

sistema comunicacional.

“I have taken prisoners. The point is to allow people to enter and to prevent them

from leaving. Here the work comes into being and these people are the actors. There

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is no possibility of escape, in fact the spectators have no choice; they are obliged,

violently, to participate. Their positive or negative reaction is always a form of

participation. The end of the work, as unpredictable for the viewer as it is for me, is

nevertheless intentioned: will the spectator tolerate the situation passively? Will an

unexpected event – help from the outside – rescue him from being locked in? Or will

he proceed violently and break the glass?”160

É a partir destas questões que podemos abordar a ideia de corpo ausente no

trabalho de alguns artistas portugueses. Com efeito, a constatação plena de que a

expressão artística pode ter uma dimensão de intervenção social passou, em grande

medida, pelo debate em torno da eficácia da arte pública e Rigo, embora residente em

São Francisco161, foi um dos intervenientes portugueses mais eficazes nesse contexto,

trabalhando sobretudo no âmbito da designada street art, com pinturas e intervenções

murais no espaço urbano. Ricardo Gouveira, ou Rigo – como é conhecido –, nasce na

Madeira mas é particularmente reconhecido no continente americano, sobretudo pelas

suas propostas de intervenção pelos direitos humanos e pelo direito à diferença no seio

de comunidades minoritárias. Utilizando uma linguagem plástica eclética, segundo o

legado da cultura pop, a obra do artista apresenta-se sobre múltiplos suportes162.

Em 1994, na Galeria Porta 33 (Funchal, Madeira), Rigo parte da

problematização do próprio espaço da exposição, com uma obra intitulada Largo do

Canto do Muro. O chão é coberto por um revestimento de calçada portuguesa, cujo

padrão é evocativo do movimento do mar e as paredes são pintadas segundo um padrão

abstracto colorido que evoca, igualmente, a superfície marítima (sendo que uma das

paredes é deslocada de forma a conferir à galeria um aspecto mais reservado). Sobre o

chão são inscritos dezenas de nomes de localidades e ruas da Ilha da Madeira, nomes

que são dispostos segundo uma ordenação prévia que sugere uma dinâmica poética e

que imprime uma espécie de padrão verbal e comunicativo. Esta obra é, neste sentido,

particularmente característica da identidade de Rigo e, tal como sugere Alexandre

Melo, pode ser entendida, neste contexto, “como um «regresso a casa» propicio a

160 BISHOP, Claire (ed.), “Graciela Carnevale: «Project for the Expermental Art Series, Rosario», 1968” in Participation, col. Whitechapel: Documents of Contemporary Art, London: Whitechapel Art Gallery/Cambridge: The MIT Press, 2006, p. 117. 161 Desde 1985, data em que deixou o Funchal. 162 Para um aprofundamento da questão, consulte-se um breve artigo referente ao trabalho desenvolvido pelo artista, no contexto da arte pública – RIBEIRO, Ana Luísa, “Rigo”, in Arte Ibérica, n.º 11, Fevereiro 1998, pp. 31-33.

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múltiplas reflexões e problematizações.”163 Novamente, compreendemos a ideia de

“presença” de um corpo ausente perante elementos simbólicos que representam o

sujeito e a perpetuação da memória identitária, sob uma espécie de auto-retrato sem

rosto. É-nos proposta, assim, uma reflexão íntima acerca do lugar de origem do artista

“como espaço poético configurado, à distância de um oceano, pela ressonância de

nomes e sítios que lhe sobrevivem na memoria da infância e da juventude embalados

sempre pelo mar omnipresente.”164

Se, com esta composição, o artista retrata o espaço poético do seu local de

origem integrando as designações que sobrevivem na sua memória – logo, retratando-se

a si mesmo –, está também a envolver e a partilhar com o público aquilo que respeita

aos espaços que, poeticamente, distribui na calçada, sobre a qual a comunidade vai

caminhar. Do mesmo modo, podemos entender ser essa a sua exacta finalidade, na

medida em que a própria obra se constitui como um objecto quotidiano e de uso

popular que, particularmente por se tratar de um pavimento, impõe a presença de um

corpo para que a sua funcionalidade seja alcançada. Ao mesmo tempo, a concretização

desse contacto físico, através da participação do espectador – como discutido no

capítulo imediatamente anterior, concede ao objecto o efectivo valor de obra de arte.

A mesma noção de auto-retrato numa identidade/intimidade partilhada com o

espectador, que caracteriza a criação de Rigo, Largo do Canto do Muro, está também

subjacente à produção de Ana Leonor Madeira Rodrigues, que determina uma

estratégia de apresentação do seu trabalho lateral à actividade expositiva da época.

Tendo como ponto de partida o seu espaço de criação artística, Ana Leonor

Rodrigues165 estabeleceu uma cartografia pessoal com base na marcação do terreno à

163 Alexandre Melo foi quem se debruçou sobre a produção do artista na Galeria Porta 33, aquando da exposição de Ricardo Gouveia ou, à data, Rigo 94 – numeração que identifica o artista consoante o ano a que reportam as respectivas obras (e que, naturalmente, é constantemente alterada). A exposição esteve patente entre 31 de Janeiro e 9 de Março do mesmo ano. A primeira e única mostra individual anteriormente realizada pelo artista em Portugal tinha tido lugar em 1986, no Espaço Poligrupo – Renascença (Lisboa), e intitulava-se Primeira Impressão. Já nesta exposição, o autor tinha submetido o complexo espaço expositivo a uma transformação quase integral, de modo a conseguir adaptar a galeria ao seu trabalho. Cf. MELO, Alexandre (ed.), Rigo 94: Largo do Canto do Muro [catálogo], Funchal: Galeria Porta 33, 1994. 164 Ibidem, p. 10. 165 Actualmente a desempenhar o cargo de professora associada com agregação da FAUL, Ana Leonor Madeira Rodrigues foi bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian para estudar na Akademie der Bildenden Kunst, em Munique. A artista publicou ainda vários livros e artigos sobre desenho, representação e pensamento visual, dos quais podemos destacar, a título de exemplo, Ensaios nas Margens do Futuro: sentidos e significações, Lisboa, Estampa, 2007; Queimado por Azul, Lisboa,

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sua volta.166 A exposição que desencadeou este mesmo processo foi O Anjo Azul, de

1994, que ocorreu num andar vazio, em Lisboa, num apartamento imediatamente acima

do seu atelier, onde eram exibidos desenhos e esculturas em cimento que compunham a

concepção de um corpo idealizado. No entanto, não foi pelas obras plásticas

apresentadas que esta exposição mereceu a nossa reflexão. Foi, antes, porque o próprio

edifício acabaria por funcionar como uma espécie de espaço dependente – como uma

espécie de continente ou de uma membrana –, parte integrante do corpo projectado pela

artista. Nesta medida, o andar vazio constituía-se como um dos elementos fundamentais

da obra e era a unidade que estabeleceria o diálogo entre os objectos e o deambular do

visitante que, por sua vez (talvez sem se aperceber), seria fluxo desse mesmo

continente. Tal como em Not To..., exposição colectiva na qual a artista participou e

que, novamente, se realizou num apartamento desocupado de Lisboa, em 1999.

Prosseguindo sob a mesma pesquisa, em curso desde os primeiros anos da década de

noventa, este novo espaço compreendia novamente a complexa dualidade de entidade e

sujeito; não se constituindo apenas enquanto o lugar da exposição mas vivendo,

sobretudo, como parte da mesma.

Uma outra artista que nos parece evidenciar premissas de ausência de um corpo

na obra de arte é Graça Pereira Coutinho, artista que na década de setenta, após

terminar a sua formação em escultura, se mudou para Londres, cidade onde reside

actualmente. É significativo o facto de Graça Coutinho concentrar o seu trabalho no

recurso a materiais em bruto e aglomerando objectos que pertenciam ao mero domínio

quotidiano. De facto, a artista faz uso de materiais que pertencem ao âmbito do real

para reflectir, exactamente, sobre a nossa permanência nessa mesma esfera167. Por essa

via, a sua instalação War Zone II, produzida em 1994 e exibida na exposição Anatomias

Contemporâneas: o corpo na arte portuguesa dos anos 90168, remete de imediato o

Assírio & Alvim, 2006; ou ”Biografia e Identidade”, in Revista Arte Teoria, Lisboa: Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, 2003, p.18-26. 166 Conforme referência incluída em PÉREZ, Miguel von Hafe (ed.), Anamnese: o livro, vol. 1, Porto: Fundação Ilídio Pinho, 2006, p. 88. 167 Neste contexto, sugerimos a consulta de CARLOS, Isabel, PIRES, Paula, Á Flor da Pele: arte portuguesa contemporânea [catálogo], Lisboa: Comissão Instaladora do Instituto de Arte Contemporânea, 1997 – obra publicada por ocasião da exposição patente no Paço dos Duques de Bragança, entre Fevereiro e Março de 1997, que contou com a participação de Graça Pereira Coutinho, a par com Gerardo Burmester, Alberto Carneiro, Pedro Casqueiro, Rui Chafes, Carlos Figueiredo, João Jacinto, Rui Sanches e Pedro Sousa Vieira; unicamente sobre a artista que enquadramos, a publicação de ROSENGARTEN, Ruth, GODFREY, Tony, Graça Pereira Coutinho, Lisboa: Estar, 2000. 168 Realizada em 1997 na abandonada fábrica da desactivada Fundição de Oeiras e comissariada por Paulo Mendes e Paulo Cunha e Silva, esta exposição tinha como objetivo proceder a uma escolha de

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espectador para o conceito de ausência, ou antes para a memória de um corpo que já

não o é. War Zone II é constituída por objectos, em tudo semelhantes a macas de

transportes de feridos, distribuídas pelo chão parecendo desenhar sepulturas abertas

num cemitério de guerra. Como se a presença contemporânea fosse, na verdade, o seu

lugar manchado de sangue pela violência da sua inexistência. A ausência da imagem

constitui, por outro lado, uma narrativa sem sujeito aparente, o que estimula o

observador à criação da sua própria percepção – distinta das demais – na procura por

uma estruturação de um código de linguagem válido. Sob estas circunstâncias, os

objectos adquirem, naturalmente, a necessária amplitude enquanto potenciadores de

pensamento crítico e o carácter de “obra aberta”, no sentido em que convocam, como

referimos, uma interpretação livre por parte do espectador que, deste modo, concretiza

o projecto artístico e assim é capaz de se constituir como co-autor.

Ainda assim, acreditamos que o grande drama de qualquer corpo é, de facto, o

regresso à terra; o medo da morte, que se prende na fusão com o elemento mais

primitivo da natureza, assume-se como a derradeira ausência169. No mesmo quadro, e

rompendo com a sequência cronológica que temos vindo a estabelecer, convocamos a

proposta de Manuel Rosa, que, em 1997, nos anuncia um discurso semelhante ao de

Graça Pereira Coutinho: a obra Sem Título que exibe na Fundição de Oeiras.

Recorrendo à utilização de areia de fundição, o artista compõe uma escultura que revela

dois corpos que penetram o solo. Desta forma, é retratada uma espécie de ausência que

se materializa na eminente extinção desses corpos que antes estariam plenamente

presentes – vivos.

A valorização da memória simbólica subjacente a estas abordagens pode ser

compreendida à luz da noção de Index, de Charles Pierce.170 No final do século XIX, o

trabalhos produzidos na década de noventa sobre a temática do corpo e, a partir destas, pensar o estado do corpo através do estado da arte, como atesta o texto introdutório do catálogo. Veja-se CUNHA E SILVA, Paulo, MENDES, Paulo, SEABRA, Paulo (coord.), Anatomias Contemporâneas: o corpo na arte portuguesa dos anos 90 [catálogo], Oeiras: Câmara Municipal, 1997. 169 Neste contexto, sugerimos a consulta do trabalho de António Fernando Monteiro Pereira da Silva, que convoca um conjunto obras capazes de ampliar a presente discussão, produzidas por artistas como João Cutileiro, João Vieira, Clara Menéres, Zulmiro de Carvalho, Rui Chafes, Pedro Tudela, Luís Palma, Graça Pereira Coutinho ou Manuel Rosa, entre outros – SILVA, António Fernando Monteiro Pereira da, A Metáfora da Morte na Escultura Contemporânea em Portugal (2.ª metade do século XX), Dissertação de Mestrado em História da Arte em Portugal, orientação de António Cardoso, Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2001 [não publicado]. 170 Cf. PIERCE, Charles, Collected Papers of Charles Sanders Pierce (8 vols), vols. 1-6, ed. Charles Hartshorne, Paul Weiss, vols. 7-8, ed. Arthur W. Burks, Cambridge: Harvard University Press, 1958-1966.

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autor desenvolve uma análise tendo por base as diferentes formas de interpretação de

um signo – sendo que a teoria de Pierce não se foca apenas em signos materiais ou

concretos. Assim, propõe que os signos possam ser classificados de acordo com as

qualidades, factos e convenções associadas aos objectos com que se relacionam,

acabando por identificar três conceitos distintos: ícone, índex e símbolo. Os signos

atribuídos por índex são os mais comummente utilizados e constituem-se como o

modelo de formulação do “corpo ausente” por nós discutido. Segundo a noção de índex,

o significante pode não se assemelhar ao seu objecto-significado; pelo contrário, está

directamente relacionado com o mesmo. No entanto, a relação entre o signo e aquilo

que este representa – o seu referente não-arbitrário – precisa de ser dominada

previamente (por exemplo, nuvens escuras são o índex de chuva iminente). É por isso

indício de um acontecimento, circunstância, reminiscência ou presença simbólica, de

algo que ainda – ou já – está ausente.

Na convocação desta ausência, importa também recordar a obra O Prazer é

Todo Meu, de Patrícia Garrido, de 1994. Este trabalho, uma série, inclui seis esculturas

em espuma coberta por fibra de vidro e poliéster. A sua forma escultórica, orgânica e

homogénea, compõe uma mais que evidente dimensão antropomórfica ao evocar

posições de um corpo em movimento, envolvendo jogos de intenção sexual. Da mesma

forma, e porque estamos perante um molde, poderíamos ainda dizer que nesta

composição escultórica são evocados os efeitos dos movimentos físicos sobre um

volume que lhe serve de suporte ou, numa outra perspectiva, sobre o próprio espaço.

Com efeito, apesar de serem notórias a suas particularidades, podemos desde logo

identificar a relação evidente que existe entre esta exposição e aquela que lhe

antecedeu, Jogos de Cama, patente no mesmo ano na Galeria Quadrum, onde foi

apresentada uma instalação realizada a partir da montagem de várias camas de rede. “Já

aí se tornava evidente uma intenção de fixação da passagem e dos movimentos do

corpo reportadas, na circunstância, a um suporte material explicitamente

identificável”, verifica Alexandre Melo.171 Deste modo, ao contrário de estarmos

perante um corpo na sua representação, estamos perante o processo de tensão e

movimentação que esse mesmo corpo experienciou antes da sua ausência, por meio da 171 Cf. MELO, Alexandre, Patrícia Garrido, 1994: O Prazer é Todo Meu, Jogos de Cama [catálogo], Funchal: Associação Quebra Costas/Galeria Porta 33, 1994, p. 9 – a respeito das duas exposições que Patrícia Garrido realizou em 1994, nas quais já era reconhecível uma problemática centrada no corpo e onde questões ligadas ao espaço visceral, bem como as pulsões ligadas à sexualidade, eram aprofundadas.

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acção: uma reflexão sobre a experiência física do próprio artista, na procura pela

aproximação às derradeiras formas da obra que apresenta. Outro apontamento decisivo

na concepção da obra de Patrícia Garrido foi a escolha das cores destas suas esculturas,

que acabaram por ser pintadas em diferentes tons, bastante femininos, entre os

vermelhos e os rosados de uma paleta de batons – dupla invocação do corpo, desta vez

pela carne, o sangue, os lábios e a pele. Deste modo, e porque no presente trabalho

discutirmos a noção de corpo sob as suas mais diversas significações, devemos

considerar os domínios do corpo da mulher como premissas relevantes no trabalho da

artista, que assume um percurso de introspecção no feminino para a configuração do

seu trabalho autoral. A noção de corpo ausente, impresso na obra, o carácter

autobiográfico e a fundação de uma identidade específica – como um statement –,

baseada na experiência feminina, afirmam-se como questões centrais do trabalho de

Patrícia Garrido172.

Devemos compreender esta “produção de ausência” à luz de questões como a

imaterialidade e o processo criativo na sua ligação com o próprio corpo do artista

(assim como as percepções culturais, ideológicas e de raiz histórico-artística dos seus

autores). Por outro lado, não podemos esquecer também a transposição de traços de

uma individualidade deliberadamente exposta de modo à estruturação de interrogações

pertinentes acerca do estatuto da mulher na sociedade, como é comprovado por artistas

como Patrícia Garrido, Júlia Ventura, Rita Castro Neves ou Acácia Maria Thiele.173

172 Aludimos para a obra de Janine Antoni que, apoiando a sua produção no legado de artistas como Mona Hatoum, Martha Rosler, Miriam Schapiro ou Barbara Kruger, assume um percurso de introspecção no feminino para a configuração da sua produção autoral, tal como Patrícia Garrido. A sua obra Wean (1989-90), a título de exemplo, consiste no recolher de moldes de gesso do seu peito, impressões que são posteriormente colocadas junto a mamilos de látex. Deste modo, procura usar como ferramenta o seu próprio corpo – focando a sua exploração artística no mesmo medium –, com vista à criação de uma obra que metamorfoseie as mais comuns actividades do dia-a-dia (como o acto de comer, tomar banho ou mesmo dormir). Para aprofundar um pouco mais as questões inerentes à produção de Janine Antoni, veja-se COTTINGHAM, Laura, “Janine Antoni – Biting sums up my relationship to art history”, in Flash Art, v. XXVI, n.º 171, Milan: Giancarlo Politi Editore, Verão 1993, pp. 104-5. 173 Ainda como referência, reforçamos a importância do movimento feminista da década de 1970, assim como as dinâmicas artísticas que impõem pensar o estatuto da mulher na sociedade, temáticas que não serão por nós profundamente abordadas. Sugerimos, por isso, a leitura de um conjunto de referências teóricas, tais como POLLOCK, Griselda, Vision and Difference: feminity, feminism and the histories of art, London/New York: Routledge, 1988; AA.VV., The Power of Feminist Art – The American Movement of the 1970’s: history and impact, New York: Marry N. abrams, Inc., 1994; ou JONES, Amelia, The Feminism and Visual Culture Reader, London/New York: Routledge: 2002, entre outros.

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Foi em Kiel, Alemanha, na Universidade de Belas-Artes local, que Inês Pais

realizou a sua primeira exposição individual. Em Oxygen, de 1997, a artista

transformou o foyer numa sala de estar na qual os visitantes podiam aceder

confortavelmente a toda a informação que Inês Pais tinha reunido durante a sua estadia

de três meses na cidade. De entre os objectos, podiam encontrar-se livros, vídeos,

cassetes, CDs, dossiês com fotocópias, entre inúmeros outros elementos – numa

produção que envolveu a Kunsthalle local, a biblioteca de Kiel e amigos da artista (a

quem esta pediu o empréstimo de sofás, de televisões e de leitores de CDs). Não tardou

a que estudantes se dirigissem a esta sala para ver os filmes que a autora havia gravado

à hora de almoço, e que a estes outro público se juntasse para, confortavelmente, se

instalar nesta espécie de arquivo-atelier de memórias da artista. Neste exemplo,

concretizado por Inês Pais, estão desde logo expressas as ideias que Rui Chafes revela

em entrevista ao Expresso, conforme já mencionado na presente dissertação. O impulso

por percepcionar a obra, mais do que por via da exigência da própria obra de arte,

apenas é consumado se ao receptor assim interessar. Isto é, do espectador tem de partir

o anseio – que pode, embora, ser despertado pela provocação – de participar

activamente pela concretização da obra. O contexto? Esse é criado pelo público, pelo

local onde a obra é exposta, sem ser possível ao artista definir, limitar ou prever como

será a sua recepção e que tipos de associações podem ser estabelecidas com o objeto.174

Na verdade, assim como, nos moldes aqui apresentados, a produção contemporânea

surge por meio de situações do quotidiano que o artista isola e recontextualiza e, apesar

deste procurar canalizar a atenção em determinado sentido, é esperado que o objecto

mantenha em si um carácter de tal modo aberto que se possa tornar num dispositivo

apropriável por cada espectador. No contexto desta apresentação – mais do que

representação ou, até, exposição – Inês Pais apresenta-se, como outros artistas,

enquanto sujeito ausente do espaço habitado. É, antes, através de vestígios simbólicos

que o espectador explora uma identidade que se revela abstracta, subjectiva e alegórica. 174 Salientamos, a este respeito, o conceito de “Horizonte de Expectativas”, que provém da fenomenologia de Husserl e da hermenêutica de Hans-Georg Gadamer. O “Horizonte de Expectativas” pressupõe uma determinada fatalidade em todas as situações interpretativas, visto que o ser humano possuí um conjunto de crenças, de princípios assimilados e ideias apreendidas que limitam desde logo a liberdade total do acto interpretativo. Por outras palavras, podemos admitir que, por exemplo, quando lemos um texto literário, a nossa memória literária – constituída por todas as leituras efectuadas até à data – é activada. Hans Robert Jauss, por seu lado, defende que o melhor indicador para se determinar o horizonte de expectativas é a recepção da obra por parte do leitor – referimo-nos à “Estética da Recepção”, que considera a obra de arte como um sistema que se define por produção, recepção e comunicação, tecendo uma relação dialética entre autor, obra e leitor. Sugere-se a consulta de JAUSS, Hans Robert, A Literatura como Provocação, Lisboa: Vega, 1993.

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Por fim, de forma a pensar este conceito de corpo ausente, parece-nos

indispensável revisitar e salientar Alberto Carneiro, na medida em que o seu trabalho é

documento do gesto íntimo do artista mas não sugere, nunca e de modo algum, uma

performance pública, mas sim uma confidência resguardada. A sua obra, como

referimos anteriormente, constitui-se como uma referência para a geração dos artistas

de noventa e estabelece-se em continuidade com a produção que encetou na década de

sessenta.

Em entrevista concedida a Guilhermina da Luz em 1997, Alberto Carneiro

refere desde logo que o corpo “é a unidade de tudo, centro do universo do seu ser.”. E

acrescenta: “O corpo é ele mesmo a mandala: estruturado como está para fazer a

síntese de cada coisa e de tudo – o ser pelo estar ausente e sempre presente,

fragmentário e uno no seu caminhar e no seu devir. A mandala é a figura dessa síntese

do corpo, lugar da realização do seu ser como cosmos.”175 O artista português sublinha

as conexões que existem entre o seu trabalho e a “mandala”, que é, no hinduísmo, um

símbolo de força além-terra, utilizado como suporte para a meditação. De facto, Corpo

Mandala, exibida em 1995 na Galeria Pedro Oliveira, no Porto, reúne, simbolicamente,

este conceito de mundo exterior e de uma consciência individual acerca do corpo. A

obra apresenta um espaço deliberadamente deixado vazio no centro da escultura,

correspondente ao próprio corpo do autor; uma subtil presenta na ausência, um dos

elementos centrais no discurso e obra de Alberto Carneiro – ausente a representação

mas presente a acção transformadora da matéria, seja ela espacial ou temporal. O seu

corpo, desmaterializado e incorporado na obra através da acção ou do vazio, é também

o receptáculo e o centro de mutações da experimentação dos elementos que, através da

intencionalidade poética, se materializam (tal como no esculpir da “floresta”176). Deste

modo, as suas obras podem mesmo ser colocadas em diálogo com outras produzidas no

âmbito, quer da land art, quer do movimento Fluxus.

175 Conforme mencionado por Óscar Faria, no texto “Autópsia” (pp. 42-47), disponível em CUNHA E SILVA, Paulo, MENDES, Paulo, SEABRA, Paulo, op. cit., pp. 45-46. 176 Referência a Uma Floresta para os Teus Sonhos que esteve, como já referido, patente em Belém aquando da exposição Alternativa Zero, em 1977.

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II. 2. Corpo Presente

No seguimento da discussão, o segundo conceito-chave que aqui discutimos

apresenta-se no espaço inverso do anterior. Se previamente refletíamos acerca de um

corpo ausente, propomos agora pensar sobre os domínios da presença efectiva. Isto é, o

corpo visível do artista, que se apresenta e se expõe ao espectador, em busca de uma

lógica relacional, tal como teorizou Nicolas Bourriaud, que situa a produção do artista

indissociável da sua relação com a audiência.

De facto, segundo a análise de Bourriaud em 1998, Relational Aesthetics, deu-se

uma significativa mudança na sociedade, particularmente a partir da segunda metade do

século XX, por via de um crescente desenvolvimento dos meios de comunicação e de

contacto social. Em grande medida, devido à expansão da Internet e da emergência das

redes colectivas de comunicação, nos anos noventa. Com efeito, deu-se um aumento do

colectivismo cultural, o que potenciou o carácter relacional das exposições e a

integração do público no processo produção. Esta alteração veio, por conseguinte,

transformar a prática artística num espaço de encontros; isto é, a arte enquanto um

espaço que privilegia um modelo comunicacional. De facto, o autor francês vai mais

longe e afirma mesmo que, depois dos planos homem-divindade e homem-objecto, a

produção artística da década de noventa concentra-se numa esfera de relações inter-

humanas.177

Desta forma, o presente módulo tornar-se-á mais consequente, na nossa opinião,

se reflectido a partir de exposições – ou antes apresentações – colectivas, por entre

outras propostas individuais. Isto porque, o modelo expositivo individual tradicional

parece-nos afigurar-se como menos eficaz para a reflexão acerca de práticas

correspondentes a uma lógica relacional. Primeiro, porque acreditamos ser de maior

relevância e interesse o não-isolamento deste modelo de criação artística, ou seja, pela

confrontação entre as várias formas de se pensar a mesma temática. Por outro lado, em

busca de uma aproximação contextual do objecto de expressão artística, porque muitas

das obras que aqui pretendemos apresentar se concretizaram por via da sua

manifestação nas ruas, e não circundadas por quatro paredes. Por fim, porque nos seus

domínios de concepção mais profundos, o corpo de obra que discute de forma mais 177 Cf. BOURRIAUD, Nicolas, Relational Aesthetics, Paris: Les Presse du Reel, 1998, p. 39-40.

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premente o anseio pelo real está inserido, sobretudo, num contexto social. Contexto que

é, antes de mais, uma construção de ordem colectiva, no confronto com o outro: o outro

autor e o outro espectador.

Tomamos como primeiro exemplo de reflexão uma colectiva de seis artistas,

comissariada e discutida a sete. Entre os autores João Louro, João Tabarra, Fernando

Brito, Paulo Mendes, Carlos Vidal e Miguel Palma, estava o produtor e organizador

da mesma, Miguel Palma. Tratou-se de uma exposição sintomática e afortunadamente

inovadora para o Portugal do seu tempo: Espectáculo, Disseminação, Deriva, Exílio:

um projecto em torno de Guy Debord. Realizada na antiga Metalúrgica Alentejana,

Beja, em 1995, as suas propostas procuraram criar um nova forma de produção,

circulação e legitimação – o artista que, através da “auto-gestão”, procuraria fugir do

espaço da instituição, dispensando (aparentemente) a crítica, o mercado e a galeria.

Efectivamente, os artistas habitaram o espaço da exposição, uma antiga unidade

metalúrgica abandonada e arruinada – um abandono que provocou a estagnação e a

inactividade da comunidade local, já previamente deprimida e empobrecida por

demais factores, como a grave crise da agricultura que se fazia sentir à época.178

A proposta expositiva deste “projecto em torno de Guy Debord” advogou,

naturalmente, um afastamento de paradigmas formalistas, no ultrapassar de uma

dimensão “meramente” estética da arte pela valorização de uma aproximação à praxis

social e aos domínios do real, por meio da intervenção do espaço público.

Debrucemo-nos agora sobre um retábulo fotográfico de grandes dimensões (5x8

m, aproximadamente), intitulado A Invenção da Cruz e apresentado pela primeira vez

em 1992, no Museu de História Natural de Lisboa e no Convento de Jesus em Setúbal.

Foi esta a obra que André Gomes escolheu para responder ao convite dos comissários

de Anatomias Contemporâneas (...), exposição realizada em 1997. Os painéis

fotográficos, instalados num dos topos do eixo central de um espaço repartido por um

estreito corredor que constituía o percurso principal para quem iniciava a visita,

irradiavam o acesso às restantes alas da exposição. À medida que se caminha, o painel

central do retábulo, composto por catorze imagens que constituíam a forma de uma 178 Crise que foi habilidosamente representada no readymade produzido por Fernando Brito, constituída por um tractor a trabalhar em seco e paralisado, apoiado sobre um bloco de madeira num dos seus extremos. Confira-se o catálogo desta intervenção na publicação homónima de BRITO, Fernando, LOURO, João, MENDES, Paulo, PALMA, Miguel, TABARRA, João, VIDAL, Carlos, Espectáculo, Disseminação, Deriva, Exílio: um projecto em torno de Guy Debord [catálogo], Beja, Galeria dos Escudeiros, 1995.

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cruz, ia-se desvendando ao espectador até que, finalmente, se revelava por inteiro. De

cada lado desta cruz, onde se reconheciam representações de submissão e agonia, dois

outros painéis, erguendo-se em duas colunas verticais, apresentavam, na sua

composição, fragmentos de corpos em agitação, completando a arquitectura do

Calvário. Convenientemente, no topo oposto do corredor estava patente a obra de Graça

Pereira Coutinho. A ausência dos corpos feridos de War Zone II, definindo

precisamente um percurso sequencial – quase estabelecendo um diálogo de causa-efeito

– com a representação fotográfica crua e objectiva dos corpos em sofrimento de André

Gomes. Num perturbante confronto, através do estreito e semi-obscuro corredor, as

duas instalações, frente a frente, impunham uma clara dinâmica de comunicação: “O

Corpo em ascese do Calvário erguia o Corpo descido à Terra.”179 Esta dinâmica não

seria apenas estabelecida por meio da relação visual que as duas obras eram capazes de

convocar mas, essencialmente, por meio da interpretação pessoal do espectador, que se

via diretamente, quase inesperadamente, confrontado com argumentos duros acerca de

circunstâncias intimamente ligadas à cultura do seu tempo e a um corpo demasiado

presente e cru, disponível à sua interpretação. Um trabalho determinado a múltiplos

níveis de realidade, dos quais fazem parte o olhar, a interpretação, a decifração (por um

individuo ou comunidade, qualquer que seja a sua cultura). Desta forma, a densidade da

própria obra passa, necessariamente, pela lógica de relação entre cada um destes

momentos.

Cruzando alguns dos vectores que assinalámos e, de certo modo, completando

a sua sustentação, salientamos, numa outra via e agora num plano de produção

individual, a exploração performativa de Rita Castro Neves naquela que é considerada

a sua primeira exposição, no sentido em que corresponde já a uma fase mais

amadurecida da sua actividade artística180. Não Ponham mais Palavras na Minha

Boca foi realizada na Escola Primária n.º 97 do Porto, exactamente no ano de 1997 e

em função do espaço que ocupava – a antiga escola primária da artista –, num

impulso site-specific traçado pela própria181. O átrio do edifício, ocupado com uma

179 Citação de André Gomes, disponível em CUNHA E SILVA, Paulo, MENDES, Paulo, SEABRA, Paulo, op. cit., p. 118. 180 Sugerimos a consulta de SANTOS, David, “Rita Castro Neves: o quotidiano tem destas coisas, repetições e surpresas, in Arq./a, n.º 98-99, Novembro-Dezembro 2011, pp. 116-119. 181 Conforme atesta a artista, as suas obras têm analisado alguns gestos do quotidiano, rotina e familiaridade numa tentativa de compreender e investigar uma visão mais interiorizada das nossas vidas. “Em cenários realistas, personagens comuns fundem-se nas suas paisagens – interiores ou exteriores – assim se apropriando e reconstruindo o seu surpreendente mundo exterior. Este realismo

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instalação sonora, contrastava com o silêncio de uma sala de aula vazia, onde todas as

peças de mobiliário, assim como as janelas, estavam envolvidas num tecido de

algodão branco, hermeticamente fechadas e cosidas no local; por cima do tradicional

quadro preto de ardósia, envolvido por um lençol, estava ainda a figura de Cristo na

cruz, também ela envolvida por um pano e ladeada por dois pequenos pregos. A

exposição podia ser vista por qualquer visitante, mas a artista fazia questão de

organizar visitas-guiadas em grupos divididos por gerações, onde constavam

professores, educadores e crianças daquela instituição e que, assim, constituíam o

organismo vivo da própria obra. Aqui, a presença da artista é literal, não apenas por

meio da convocação do seu passado naquele lugar, que encerra em si a ideia de uma

memória constituída por elementos alegóricos, com vista a um retrato simbólico da

artista; mas, sobretudo, pelo contacto directo que Rita Castro Neves mantém com o

espectador deste espaço, que vai sendo construído ao longo do percurso realizado pela

audiência e, particularmente, ao longo da comunicação inter-humana estabelecida

entre a artista e o seu público.

“I want the public to be inside a brain in action.”182

Os objectos artísticos e os momentos estéticos que determinaram, no contexto

português dos anos noventa, uma recepção de estranheza, acabam por ser, naturalmente,

aqueles que melhor respondem à reflexão que encetámos no presente capítulo (à

semelhança do que vinha sendo regra ao longo da História da Arte do Século XX). Esse

choque da audiência manifesta-se como o elemento catalizador de diferentes intenções

e possibilidades, é o momento em que a arte dilata fissuras na percepção linear do

discurso da sociedade de espectadores. Tal como se verificou no momento em que a

Society of Independent Artists recusa a Fountain de Duchamp.

Num sentido semelhante devem ser também encaradas as propostas

experimentais que apelam a um cruzamento de linguagens por via da utilização do som,

pormenorizado e minucioso – por vezes absurdo, outras político ou ainda emotivo – é também um realismo mágico. A suspensão da realidade permite construir um tempo entre o tempo, atento a um conceito de espaço mental – ponto de partida para uma nova percepção desta nossa realidade flutuante. A narratividade (as séries em fotografia, o tempo sequencial no vídeo e no som…) é muitas vezes quebrada e não-linear. O quotidiano torna-se aqui a fonte quer das emoções, quer da perspectivação – e crítica – das situações e estruturas de funcionamento da sociedade.” Disponível em ritacastroneves.com. 182 Thomas Hirschhorn por ocasião da exposição 24h Foucault, 2004.

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da música e do vídeo. Esta são, aliás, propostas que não constituem dados inaugurais na

arte do século XX. Na aproximação das artes visuais ao som e à música, por exemplo, é

possível identificar, por entre um número inesgotável de exemplos, diversos casos que

realçam este contacto. Tal como os filmes sonoros de Kurt Schwitters, as gravações em

tempo real de Pierre Schaeffer, a pintura de Oskar Fischinger, concertos dos Velvet

Underground organizados por Andy Warhol ou os happenings de Nam June Paik, entre

muitos outros exemplos. Mas é nos anos noventa que, em Portugal, se desenvolvem

algumas inovadoras propostas que procuram desafiar o espectador contemporâneo por

meio da articulação de diversos códigos de linguagem artística. Nesta medida, importa

destacar o trabalho que Carlos Roque (a par com Rui Toscano ou Rui Valério) tem

desenvolvido, desde o início da década, em torno da cultura urbana e dos seus signos

musicais. Se, por um lado, estamos perante uma produção que repõe uma articulação de

técnicas que não é nova, é também importante salientar que o artista não se limita à

repetição ou à mera representação de elementos que correspondem ao universo musical.

Instrumentos como a guitarra, o amplificador ou as colunas surgem como objectos

constituintes do processo de produção e são incorporados nas instalações sonoras, tal

como acontece com a produção de Pedro Barateiro, dez anos mais novo que Carlos

Roque.183

Tomando como exemplo um projecto que Barateiro desenvolve em 2003,

convocamos novamente a questão da identidade presente no espaço ocupado pelo

artista, patente na produção de Rigo ou de Ana Leonor Rodrigues, por exemplo, como

já referimos. Desta vez, tendo por base a acção performativa em articulação com o som,

diferente do modelo de “escultura sonora” de Roque, cujas instalações, ao incorporarem

diversos dispositivos mecânicos, funcionavam autonomamente em relação ao sujeito.184

A instalação Ensaios para uma Pintura Sonora: um projecto para a Galeria Pedro

183 A respeito da relação que estes artistas estabelecem entre o objecto artístico, o gesto criativo e performativo e a experiência sonora, lembramos uma obra recente, publicada por ocasião de um projecto de residência colectiva realizada pelo Soopa no Momento #1 – Cruzamentos e Encenações do Laboratório de curadoria, Ciclo sobre Audiências, da Programação de Arte e Arquitectura da Guimarães 2012 – Capital Europeia da Cultura, realizado entre 22 de Abril e 12 de Maio na Fábrica ASA e em outros locais da cidade: NETO, Manuel João, BREJON, Benjamin (coord.), Sonores: sounds/space/signal [catálogo], Guimarães: Fundação Cidade de Guimarães, 2012. Neste contexto, foram representados artistas como Micaela Amaral, André Coelho, Gustavo Costa, Pedro Tudela, entre outros. 184 Consulte-se a entrevista realizada a Pedro Barateiro por Sandra Vieira Jürgens, acerca dos seus modelos de instalação, em JÜRGENS, Sandra Vieira, “Pedro Barateiro: o projecto moderno, entre a ausência e a presença das imagens, in Arq./a, n.º 84-85, Setembro-Outubro 2010, pp. 122-125.

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Cera constituía-se como uma apropriação do espaço expositivo da galeria enquanto

espaço de trabalho. Com o apoio de três músicos, o artista apresentava-nos a sua

vivência quotidiana, ali confinada ao lugar expositivo (ao invés do atelier). Nessa

medida, durante os dias da exibição, o espectador era convidado a confundir a prática

artística com a envolvência dos corpos dos seus intérpretes em demonstrações de

cumplicidade e companheirismo, num contexto de trabalho e de diversão que se

metamorfoseava, através da convocação de uma audiência, em obra. Nesta exposição,

Barateiro recorreu a algumas práticas experimentais recorrentes nos anos sessenta e

setenta que, paralelamente a obras de arte plástica, como é o caso da pintura, usam a

música e a performance “para quebrar os limites de um espaço que, apesar de parecer

neutro, como qualquer outro espaço, não o é.” E continua: “Tornar um espaço

galerístico num local passível de acolher uma intervenção menos formal, onde a

produção da obra acontece in situ e onde se assiste à sua consequente transformação

em imagem” era o propósito desta sua abordagem.185 De facto, Ensaios para uma

Pintura Sonora (...) só acabava quando todo o espaço voltasse ao seu estado inicial, à

semelhança do que existia antes da sua ocupação, reforçando o papel do corpo e da sua

acção enquanto ferramentas indispensáveis para o século XX e, particularmente, para o

modelo da participação. Aquilo que permaneceu, desta e de tantas outras performances,

são documentos como a fotografia, o vídeo e, neste caso em particular, o registo sonoro,

que permitem posterior reflexão e, talvez mais importante, a construção de história e

memória dessa presença.

185 Pedro Barateiro citado em CUNHA E SILVA, Paulo, MENDES, Paulo, SEABRA, Paulo, op. cit., p. 572.

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II. 3. Corpo do Espectador

Acreditamos que o terceiro e último conceito que aqui apresentamos é aquele

que, de uma forma mais imediata, se manifesta como intrinsecamente ligado a uma

participação activa, com todo o corpo, e que é aquele capaz de, mais rapidamente,

estabelecer uma relação essencial com o espectador contemporâneo. Não segundo

uma lógica do objecto, mas antes segundo uma lógica abstracta e imaterial: o corpo

enquanto matéria para atingir o invisível. Isto é, o corpo – do artista, do objecto, do

espectador – enquanto elemento essencial à concepção, concretização e validação da

obra de arte, que atinge a criação apenas no momento desse encontro. Assim funciona

o modelo da performance.

Iniciamos a nossa abordagem com a apresentação, entre muitas outras obras

possíveis, do projecto Sem Título de José Pedro Croft, por ocasião da Expo ’98186 e

realizado no mesmo ano. Na rotunda – inteiramente relvada – do Rossio do Levante,

no Parque das Nações (Lisboa), o autor fez plantar, numa malha ortogonal, um vasto

conjunto de plátanos, dando a ilusão de que ali se formava um pequeno bosque,

atravessado por um caminho de passagem de peões. Simultaneamente, lado a lado no

mesmo espaço, instalou uma série de elementos verticais de diversos tamanhos, que

emolduram uma superfície reflectora semelhante a um espelho, mas cuja geometria

sugere o perfil de um mupi ou outdoor. No centro dos panos espelhados, e numa fonte

gráfica de reduzido tamanho, surgem ainda inscritos os mais diversos nomes. Numa

primeira impressão, e apesar da intervenção violenta no espaço verde e arborizado,

desenhar-se-iam na nossa imaginação imagens publicitárias. Porém, a única imagem

que nos é dada a ver é o nosso próprio reflexo.

186 O programa de arte urbana estabelecido por ocasião da Expo ’98 representa a soma de partes que se foram afigurando enquanto elementos indispensáveis para a construção da actual paisagem. Não como figuras decorativas, mas como propostas artísticas integrantes de uma estratégia de desconstrução e reconstrução do espaço urbana que culmina com o recinto da Exposição Internacional de Lisboa. São vinte e quatro os artistas representados no conjunto de intervenções de arte urbana, sendo que “cada uma delas [as peças] faz parte de uma respiração mais vasta, que se vive em todo o recinto, à qual são sensíveis os olhos e as mãos, o corpo e a inteligência. Da forma como vivem, dir-se-ia que sempre ali estiveram, mas isso é ilusão de quem quer acreditar à viva força que tudo o que aqui está fica tão justamente aqui, que é como se sempre cá devesse ter estado.” – António Mega Ferreira no texto inaugural do catálogo referente ao programa de arte urbana da Expo ’98. Cf. OLIVEIRA, Sónia (coord.), Arte Urbana, Lisboa: Parque Expo ’98, 1998, s/p.

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De facto, José Pedro Croft acentua, nos anos noventa, qualidades intrínsecas à

escultura nas suas instalações – o peso, a densidade –, que são imediatamente

expressas nas dualidades que a sua obra nos impõe entre estabilidade e instabilidade,

corpo e leveza. No Sem Título de 1998, tal não é excepção. A exploração de ambos os

binómios é conseguida por via da aparência robusta da estrutura dos painéis,

constituídos em ferro, em paralelo com a fragilidade do vidro reflector do seu interior

– sete, para sermos precisos. A estas características junta-se a exploração dos volumes

na sua conexão com o espaço e a luz, assim como a incorporação destas superfícies

espelhadas, detalhe que marca fortemente a sua produção subsequente e sobre a qual

pretendemos refletir, à luz da sua relação com o espectador.

Desde logo, evidencia-se a introdução de uma nova dimensão: o jogo de

duplicação ou multiplicação virtual das formas e a desconstrução – e construção – do

objecto, assim como do próprio espectador. Espelhos que não apenas reflectem o

espectador – tornando-o parte integrante da própria obra –, como também direcionam

o seu olhar para variados pontos do espaço envolvente e, ao mesmo tempo, encerram

esse mesmo espaço na própria escultura, segundo uma espécie de site-specific levado

ao limite. Da mesma forma, a superfície reflectora e a velocidade com que o

espectador se desloca em torno da obra, transforma estes sete outdoors em

verdadeiras telas de cinema onde é possível ver-se os elementos que entram, que

saem, que se movem – e movimentar-se com eles. José Pedro Croft constitui, com

efeito, um jogo escultórico entre o visível e o invisível; a ausência e a presença; a

repetição e a sobreposição, sugerindo possibilidades infindas por cada olhar e para

cada interpretação.187 O espectador é, nesta medida, o actor/performer privilegiado e a

sua envolvência participativa – verdadeiramente física, móvel – é fundamental.

Sem sair do mesmo contexto (ou zona geográfica), o Jardim das Ondas, em

Lisboa, projectado por Fernanda Fragateiro – em parceria com o arquitecto paisagista

João Gomes da Silva – no mesmo ano e por ocasião da Exposição Internacional,

segue a mesma orientação performativa que os painéis de Croft, mas constitui-se

segundo uma abordagem amplamente divergente188. Este projecto multidisciplinar,

187 Abordagem que, de resto, é desenvolvida ao longo da sua produção. Consulte-se DIAS, João Carvalho (coord.), Paisagem Interior: José Pedro Croft [catálogo], Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007; ou CUBERNATIS, Helena, José Pedro Croft (1979-2002): retrospectiva, Lisboa: Centro Cultural de Belém, 2002. 188 Consulte-se o capítulo referente à obra da artista em OLIVEIRA, Sónia, op. cit, 1998, pp. 99-106.

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concretizado na margem do Tejo, surge do diálogo entre a arquitectura e as artes

plásticas e visou à criação de um espaço de lazer para os visitantes da exposição.

Enunciando desde logo a sua sensibilidade estética, Fragateiro propôs-se a criar uma

situação de experiência do espaço diferente daquelas que já estavam criadas no

mesmo local – o actual Parque das Nações, em Lisboa. A artista optou, desde logo,

por modelar o terreno e realizar um jardim atípico, totalmente revestido a relva,

mantendo a mesma lógica de um espaço urbano e possibilitando o pisar da relva.

Porque, aliás, os jardins tradicionais se constituem, na grande maioria das vezes,

como espaços segmentados, trespassados por caminhos e zonas delimitadas,

experiência redutora que Fragateiro não queria reproduzir. Inspirando-se directamente

nas formas resultantes do movimento das águas, foi concebido o projecto para um

jardim integralmente relvado onde o terreno seria estritamente modelado através de

curvas de nível que simulassem o ritmo das ondas (na sua formação e ao rebentar). De

facto, os próprios bancos contêm citações de Virginia Woolf, retiradas do livro As

Ondas (1931). O projecto que Fernanda Fragateiro propõe parte justamente de um

entendimento acerca da experiência do corpo como uma possibilidade do

envolvimento do espectador, enquanto participante mas, particularmente, enquanto

destinatário/utilizador do dispositivo.

Com efeito, Jardim das Ondas constitui-se como um projecto para o espaço

público e não como uma proposta convencional de exposição. Do mesmo modo, é,

por via da sua interdisciplinaridade, capaz de aglutinar um conjunto de questões

essenciais à compreensão da produção artística contemporânea, como aquelas que

temos vindo a enunciar ao longo do presente trabalho. Referimo-nos às noções de

relação com o espaço; de convocação do real; de desmistificação do objecto; de

participação na exigência do corpo e dos sentidos. Examinemos agora cada um desses

domínios.

Desde logo, pelo seu carácter de intervenção urbana de acrescento ponderado

à paisagem, o jardim de Fernanda Fragateiro impõe, imediatamente, uma relação com

o espaço que o envolve. Tendo sido projectado de acordo com o contexto do lugar

que ocupa e de acordo com a temática dos oceanos, associada à Exposição de 1998189,

189 Da mesma programação fazem também parte intervenções no espaço público de artistas como Carlos Aguirre, Pedro Cabrita Reis, Pedro Calapez, Alberto Carneiro, Pedro Casqueiro, Rui Chafes, Fernando Conduto, João Cutileiro, Ilda David, Ângela Ferreira, Antony Gormley, Carsten Höller,

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constitui-se também, naturalmente, como uma obra site-specific e indissociável do

real. Contexto que implica uma lógica de desmistificação do objecto artístico, em prol

de uma relação nivelada com público, estando ao seu alcance directo como parte

integrante do quotidiano. Consequentemente, Jardim das Ondas faz parte dos

domínios da participação, não apenas sob aquilo que é a definição de espaço público,

mas, particularmente, porque o diálogo com a audiência é exigido na validação da

expressão artística. Logo, importa realçar a preocupação de Fragateiro por concretizar

um jardim integralmente relvado, convidando o visitante a habitá-lo sem limites.

Operando num campo tridimensional e desafiando os contornos que podiam

ainda existir entre escultura e arquitectura, Fragateiro potencia a relação do

espectador com o espaço; o espaço torna-se habitado e o espectador constitui-se como

o performer. Concretiza-se o encontro entre arte e vida. Tal como acontece com o

projecto de 1999 – concebido para ser colocado sob a sombra de uma árvore, no

espaço de um jardim público –, composto por duas peças e que se constitui como um

banco de jardim onde pode ler-se Eu Espero, o título da obra.

“Esta peça é um lugar. Fala simultaneamente de tempo e de esperança. Pode ser um

ponto de referencia na cidade. Um sítio onde as pessoas podem esperar por alguém,

logo abrindo possibilidade de se converter num lugar de encontro. (...) Neste lugar

nunca é a mesma pessoa que espera, ou por quem se espera, nem sempre se espera o

mesmo, nem sempre se espera o mesmo algo. Assim este lugar revela-se e passa a

existir verdadeiramente quando se cumpre o acto da espera ou o do encontro.

Sucessivamente.”190

Ponto de Encontro191 é também, oportunamente, uma instalação portuguesa da

nova geração de artistas dos anos noventa e uma das obras que mais nos parece

satisfazer este domínio da participação através da acção física do espectador, só ele

capaz de concretizar a obra por meio de uma envolvência conseguida através da

Frabrice Hybert, Pedro Proença, Rigo, Manuel Rosa, Rolando Sá Nogueira, Rui Sanches, Susumu Shingu, Jorge Vieira, Xana ou Amy Yoes. 190 Fernanda Fragateiro a 9 de Agosto de 1999, Lisboa, conforme citação no catálogo do Museu Internacional de Escultura Contemporânea de Santo Tirso. Veja-se MOREIRA, Álvaro, CARNEIRO, Alberto, Museu Internacional de Escultura Contemporânea de Santo Tirso – 1990-2015, Santo Tirso: Câmara Municipal, 2015, p. 92. 191 Sugerimos a consulta de RAMOS, Maria (coord.), Joana Vasconcelos: Ponto de Encontro [catálogo], Lisboa: Ministério da Cultura/Porto: Museu de Arte Contemporânea da Fundação de Serralves, 2000; obra publicada por ocasião da exposição organizada e patente no Museu de Arte Contemporânea de Serralves, de 7 de Abril a 28 de Maio de 2000.

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interacção da totalidade do seu corpo. Referimo-nos a um trabalho da artista Joana

Vasconcelos, realizado já em 2000. Este carrossel, propositadamente pensado para

ocupar o espaço que lhe foi destinado no Museu de Arte Contemporânea da Fundação

de Serralves, foi dimensionado para uma sala de reuniões projectada pelo arquitecto

Álvaro Siza Vieira – sala onde nunca chegaram a ter lugar quaisquer reuniões. A

obra, concebida como um possível ponto de encontro para o conselho administrativo

do museu, é composta por dez cadeiras com um design de produto direccionado para

o contexto de escritório, mas, paradoxalmente, cada elemento do conjunto apresenta-

se numa cor diferente – isto porque, na verdade, se trata de um carrossel. Um

carrossel que roda a uma velocidade variável, conforme um impulso definido pelos

movimentos dos seus próprios utilizadores e, portanto, sem qualquer mecanismo ou

motor que o active. À audiência, consequentemente e como é desde logo perceptível,

é exigido que trabalhe em equipa, sob um exercício de cumplicidade e sinergia entre

os intervenientes que interagem com a obra e que são, forçosamente, essenciais para o

seu funcionamento. Aqui se estabelece então uma relação directa de participação

segundo uma dinâmica de acção/concretização. Apontando para um diálogo reciproco

entre obra e observador, não só é imposto ao espectador-participante o desencadear da

acção determinante para o funcionamento do objecto, como é exigido que este

estabeleça uma relação com a restante audiência. Deste modo, podemos evidenciar

que o projecto que Joana Vasconcelos desenhou para Serralves não apenas convoca

individualmente cada um dos que se passeiam pelo museu, mas que, num movimento

mais alargado, convida à participação de uma comunidade de espectadores, dispostos

a concretizar a obra num impulso conjunto de performatividade.

Segundo um plano diferente, desenvolvendo um núcleo de trabalho que trata a

adequação do carácter performativo potencial de um lugar e de um contexto face ao

tipo de actividade humana circunstancial que no mesmo espaço ocorre, introduzimos

prontamente André Guedes como parte da vaga de artistas que emerge na década de

noventa. Entre inúmeras abordagens baseadas na acção performativa segundo diversos

estímulos espaciais, os projectos que o artista realiza são, sobretudo, uma forma do

mesmo se relacionar com aquilo que lhe é exterior; tal como sugerido em Just Before

(projecto Art Attack192, Museu de Cerâmica das Caldas da Rainha, 1999), The Beauty

192 Sobre este ciclo de dinamização cultural realizado nas Caldas da Rainha, veja-se CAMPINO, Catarina, “Dois Anos de Art Attack” in Arte Ibérica, n.º 30, Dezembro 1999, p. 28-30.

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Sleep Experiment - Nightroom #1 (Galeria Sala do Risco, Lisboa, 1999), Woolmark -

Nightroom #2 (Grupo Desportivo de Santos, Lisboa, 1999), Close - Nightroom #3 (Bar

Anikibóbó, Porto, 2000) ou Going - Nightroom #4 (Rua Ivens, Lisboa, 2000). Trabalho

que continua a desenvolver nos dias de hoje, em propostas como Pleasure Gardens –

realizada durante residência artística em Londres, ao abrigo de uma bolsa da Fundação

Calouste Gulbenkian – cuja acção teve lugar, em 2011, na Galeria Kunsthalle Lissabon.

Mas analisemos brevemente o ciclo Nightroom, realizado entre 1999 e 2000.

Apresentado em diversos espaços e cidades (e quase sempre “fora de horas”),

possibilitou um campo de investigação significativo, na medida em que se tratavam de

propostas cujo carácter performativo era bastante vincado e explícito. Como tal, a

relação que a acção do artista propunha ao espectador acontecia de uma forma bastante

distinta daquela que se pode verificar num espaço de exposição mais tradicional, como

uma galeria. O apelo pela participação da audiência e pela projecção do corpo do artista

em diversos corpos performativos espalhados pela cidade revela, desde logo, a

exigência de uma validação física do momento artístico, indispensável para o alcance

da condição de obra de arte ou de experiência artística válida.

Segundo uma estratégia de ocupação de espaços nocturnos, Nightroom iniciou-

se com a performance de The Beauty Sleep Experiment. Neste acto #1, levado a cabo

num edifício pombalino, o artista apresentava, entre a meia noite e as duas da manhã,

uma acção centrada num conjunto de mulheres a dormir. O mistério da cena causou

diferentes tipos de reacção no espectador, que passavam quer pelo incómodo provocado

pela invasão de uma intimidade alheia, quer pelo conforto no partilhar dessa mesma

privacidade. Woolmark – apresentado no âmbito Festival Danças da Cidade – por sua

vez, rasgando com a experiência do sono da “bela adormecida”, apresentava uma

proposta desenvolvida em dois momentos. Num primeiro momento, a audiência

observava três corpos presos numa teia de fios, numa sala escura do Grupo Desportivo

de Santos; estes invólucros de lã, que se desfiavam, eram puxados para uma outra sala,

enquanto se ouvia um ruído inclassificável, que se revelava posteriormente, quando o

espectador se deslocasse para o espaço contíguo e inesperadamente descobrisse uma

máquina que tecia uma nova camisola de lã, realizada a partir das roupas entretanto

desfeitas. Desde logo, identificamos que o desenrolar dos acontecimentos ocorre

segundo um movimento circular: a camisola que é desfeita e refeita, continuamente,

para surpresa da audiência que é encaminhada a percorrer a obra. Por último,

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apresentamos Close #3, obra que, novamente, nos remete para uma já referida revelação

da intimidade. A escala do bar Anikibóbó leva o artista a optar por uma performance

executada por 16 intérpretes, a partir dos quais se pretende confrontar os habituais

frequentadores do espaço com a presença de outros e solitários corpos que ali chegam

com a intenção de dormir – e que ali ficam à espera que a noite termine, numa espécie

de estado sonâmbulo, de uma insónia que não se esgota. A estranheza da situação é

acentuada pela crescente intromissão de um ruído que não chega a ser musical,

elaborado por Manuel Mota e a cargo do DJ Tiago Miranda. Ainda, podemos convocar

o título da performance, Close, enquanto invocação de proximidade a um corpo,

embora seja de sublinhar, paradoxalmente, a distância entre os performers e esta

audiência que não demonstra emoção, apenas estranheza (porque o que se passa no

imaginário de cada um é indubitavelmente incerto). Tal circunstância de desconforto

receptivo acaba por contribuir, decisivamente, para a eficácia estética da expressão

performativa, pelo que é imperativo insistir num trabalho que envolva o espectador,

“dando atenção ao pormenor, ao prestes a evaporar-se, não prescindindo de fazer de

cada projecto uma oportunidade para questionarmos como acontece uma obra de arte,

onde e quando começa, onde e quando acaba.”193

Num outro pólo, o projecto Microart que, apesar de não ter sido uma

exposição – na tradicional acepção da palavra –, revelou-se como uma mostra de

circulação colectiva de objectos artísticos originais da autoria de 45 artistas

portugueses. A obra decorreu em 2000, em cinco cidades – Lisboa, Coimbra, Porto,

Castelo de Vide e Hannover – e passou por diversos espaços. Subordinado ao tema

“Do livro e da leitura”, foi apresentado em quatro livrarias (Assírio Líquida, Livraria

Barata, Livraria Buchholz, Bulhosa Livreiros – Lisboa); no Pavilhão de Portugal da

Expo 2000 de Hannover, sob o mote “Portugal”; Em Coimbra, Porto e Castelo de

Vide, com o tema “Arte e Farmácia”.

Fugindo aos códigos de exibição que até então se verificavam no contexto

português, as obras foram apresentadas em máquinas de venda automática. Tratou-se

de uma nova forma de exibição e de venda de pequenas obras de arte, apresentadas

dentro de uma caixa numerada e assinadas pelos artistas. A 500 escudos cada, foram

vendidos cerca de 3000 exemplares, o que demonstra não apenas a vontade, por parte

193 Cf. NICOLAU, Ricardo, André Guedes [catálogo], Lisboa: Culturgest/Chiado 8 – Arte Contemporânea, 2007, p. 15.

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de coleccionadores e entusiastas, de adquirir obras de jovens artistas emergentes, mas

também a aceitação de um original e totalmente inovador modelo de divulgação e

exposição de arte contemporânea em Portugal. Uma arte que não apenas pretendia

integrar o quotidiano na sua composição mas que, em si mesma, fazia parte dele –

metamorfoseando-se, a própria obra de arte, num objecto de utilização comum, parte

integrante da própria vida e em contacto directo com os intervenientes do real, noção

indissociável da arte do século XX, como temos vindo a enunciar. Com base numa

mesma orientação, importa também dar nota da mostra desAUTORizado 2, que teve

lugar no espaço cultural Caldeira 213194, no Porto, em 2001 – organizada pelos

membros do espaço –, e que envolvia directamente os habitantes e comerciantes da

Rua dos Caldeireiros. Da mostra constavam objectos pessoais destas mesmas pessoas,

dispostos pelas paredes, pelo chão e pelo tecto do espaço; havia de tudo: roupas e

sapatos, instrumentos antigos, objectos de trabalho e outros mais pessoais,

brinquedos. Mais do que uma análise da população ou das actividades que ocupavam

esta rua, estava patente nesta exposição a aproximação a uma comunidade e o convite

à entrada num espaço que lhe era estranho.

Deste modo, podemos admitir que, a partir da convocação da comunidade

envolvente, a audiência não apenas participou activamente no momento da exibição,

como passou a fazer, desde logo, parte do processo criativo, na sua concretização e na

validação da obra de arte. Neste contexto, a Caldeira 213 tornou-se, também ela,

membro da zona que a envolve, num jogo de relações recíprocas e segundo certeiros

eixos de actuação, como é aquele que diz respeito à dessacralização do conceito de

autor. Porque a exposição divulgava obras produzidas por todos os artistas, sem que, no

entanto, se pudessem reconhecer as suas respectivas “autorias” – autoria que era,

também, dividida com os demais habitantes da rua. Este anonimato autoral possibilita

ainda que o espectador parta para a interpretação da obra sem conhecimento prévio e,

194 A Caldeira 213 foi uma associação de jovens que reuniram os seus esforços em torno de um espaço de produção e exibição artísticas, na Rua dos Caldeireiros, na cidade do Porto, entre 2000 e 2002. Pode ler-se no seu site, ainda em-linha: “O sonho era antigo, remontava ao tempo em que muitos de nós eram alunos da Faculdade de Belas Artes e não nos identificávamos com as linguagens artísticas praticadas nas galerias de então (anos 90 no Porto). Não existia ainda o Museu de Serralves, apenas a Casa de Serralves, que era um lugar que frequentávamos mas nos era absolutamente distante. Imaginávamos um espaço colectivo, à margem dos espaços comerciais ou institucionais, onde pudéssemos, ao mesmo tempo, criar e partilhar o nosso trabalho.” Disponível em caldeira213.net.

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deste modo, longe de conseguir atribuir a conotação do trabalho ao artista que lhe

corresponde: ao invés do todo, a colectividade195.

Embora não se tenha constituído como uma mostra artística, no seu sentido mais

tradicional, importa destacar o evento-projecto Lisboa, Capital do Nada: Marvila 2001,

que concretizou diversos formatos de criação artística e que, passando por vários

processos expositivos, abordou diferentes problemáticas a respeito da movimentação da

obra e do espectador, dos seus significados e das suas dinâmicas. Destacamos a obra

apresentada por José Maçãs de Carvalho, Porque é que Existe o Ser em vez do Nada?,

um projecto de arte pública formado por imagens de jovens de Marvila, em suportes

publicitários.

Antes de mais, importa realçar que esta proposta para Lisboa acontece na

sequência de outras intervenções realizadas pelo artista no espaço público.

Mencionamos Hotline (1997-1998) e Estava Desempregado! Agora Trabalho para um

Artista (2001). Hotline, um projecto de arte pública que englobava mupis, cartazes e

postais, testando o espaço público publicitário como um espaço de intervenção e de

construção de sentidos, usando imagens banais e slogans famosos modificados, de

forma a estimular o uso de linha telefónica, cuja voz questionava “tell me something I

don’t know.” Estava Desempregado (...), no âmbito da Bienal da Maia, por seu lado,

constituía-se na distribuição de cartazes e flyers por via de homens que suportam

painéis publicitários, colagens nas paredes e através de um website:

www.bienaldamaia.com/emprego/arte. Este último caso é particularmente interessante,

pela acção de contratar um desempregado para operar o próprio website, convocando a

ideia de que a arte pode favorecer a produtividade e, ainda, que o trabalho artístico

constitui, também ele, uma profissão. Mas regressemos a Porque é que Existe o Ser em

vez do Nada?. Para este evento, José Maçãs de Carvalho parte do pressuposto que,

numa zona social tão estigmatizada como a Zona J (Bairro de Chelas, Lisboa), seria

possível encontrar pessoas com um forte impulso comunitário. Numa primeira

instância, existiu um processo de casting, com o objectivo de realizar uma falsa 195 Servimo-nos das palavras de Giorgio Agamben, de modo a colmatar esta questão: “Decisiva é, aqui, a ideia de uma comunidade inessencial, de uma conformidade que não diz de modo nenhum respeito a uma essência. O ter-lugar, a comunicação das singularidades no atributo da extensão, não as une na essência, mas dispersa-as na existência. Não é a indiferença da natureza do comum em relação ás singularidades, mas a indiferença do comum e do próprio, do género e da espécie, da essência e do acidente que constitui o qualquer. Qualquer é a coisa com todas as suas propriedades, mas nenhuma delas constitui diferença.” Cf. AGAMBEN, Giorgio, A Comunidade que Vem, Lisboa: Editorial Presença, 1993, pp. 22-23.

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campanha publicitária; o artista encontrou duas jovens bailarinas africanas, um jovem

campeão mundial de kick-boxing, um jovem graffiter, um guarda reformado da PSP,

uma jovem catequista e estudante universitária e, por fim, um músico. Os seis

seleccionados foram fotografados no Centro Paroquial local e, a cada um deles, foi

oferecido um telemóvel. A campanha consistia em cerca de 300 cartazes colocados na

rede de mupis de Lisboa; 3000 cartazes em formato A4 distribuídos em cafés, livrarias e

lojas de todo o país; 3000 postais-teaser; e a inserção de publicidade em revistas e

jornais durante seis meses. A partir daí, as pessoas representadas receberam centenas de

telefonemas e, consequentemente, marcaram centenas de encontros para contar a sua

história e divulgar as suas actividades; tornaram-se, por um momento, heróis do seu

quotidiano a partir do real, daquilo que lhes é mais próximo – eles mesmos. O projecto

terminou, finalmente, com a colocação de uma imagem de grandes dimensões na

empena de um prédio de Marvila (a escolha recaiu sobre uma das bailarinas), na

tentativa de afirmação de uma máxima singularidade daquele corpo exposto.

Tal como este, existiu o projecto colectivo Showindows; intervenções de

artistas e comissários em montras da Baixa de Lisboa, que se realizou em vários

locais da cidade, em 2003. No seguimento deste último núcleo, parece-nos pertinente

introduzir o artista Nuno Pontes que, apesar de não desenvolver o seu trabalho em

Portugal, faz parte do grupo de artistas que emergiu na década de noventa e que

desenvolveu um corpo de obra que em muito se relaciona com os domínios da

presente discussão, pelo facto de colaborar em projectos com artistas que exploram a

temática do corpo performativo na convocação do espectador, no estrangeiro. Uma

estratégia semelhante pode ser igualmente identificada nas dinâmicas de SeOUL-

NYmAX, a Celebration of Arts without Borders. Geoffrey Hendricks: Following

toward a full moon, and his Gang of Flux (Anthology Film Archives, Nova Iorque,

1994) que, mais do que uma exposição colectiva, é uma colaboração com Geoffrey

Hendricks, do movimento Fluxus, e a inserção no seu Gang of Flux.196

Por fim, pretendemos ainda dar nota de uma obra que, tendo sido concretizada

já no século XXI, tal como outras que temos vindo a anunciar, acreditamos dialogar

com o contexto dos anos noventa em Portugal, ou mesmo a esse pertencer – em

196 “Recordo-me bem da entretida conversa e dos comentários positivos de Allan Kaprow e Nam June Paik, naquelas noites depois de termos apresentado as nossas performances”, relembra o artista segundo citação em CUNHA E SILVA, Paulo, MENDES, Paulo, SEABRA, Paulo, op. cit., p. 105.

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grande parte, porque as premissas de uma década não se esgotam, nem se delimitam,

com base no rigor exacto de uma cronologia. Realizado na Galeria Arte Periférica

(Belém, Lisboa) em 2003, o projecto Casa-Árvore-Casa, de Vanda Vilela, sugeria a

articulação entre um momento de lazer e um acto comunicacional, por via da

unificação de ambos os mundos, tal como se verifica no jardim criado por Fernanda

Fragateiro. A exposição de Vilela consistia num conjunto de pinturas sobre tela e

algumas sobre madeira, que funcionavam como verdadeiros jogos de peças e que

faziam um convite a uma fruição demorada e interactiva entre o espectador e a obra

de arte ao seu dispor. Para tal, contribuía a construção intrínseca das obras, de forte

impacto visual, algumas com inscrições de acções e regras referentes ao contexto dos

jogos. Três das pinturas, aliás, continham mesmo encaixes sujeitos à manipulação: um

puzzle, um jogo da memória e um jogo do galo. No exterior da galeria, a exposição

prolongava-se através da instalação de uma peça tridimensional de grandes

dimensões, semelhante a uma pérgola de jardim, que compreendia não apenas um

espaço de lazer, como também convocava, mais uma vez, a exploração lúdica e

recreativa por parte do espectador: na possibilidade de combinação dos seus vários

painéis decorativos, na decifração de regras escritas em placas de madeira dispostas

como revestimento do chão, no convite à deslocação física do visitante – ou, mesmo,

na exigência de uma participação com todo o corpo.

O espectador está, deste modo, no cento activo de um processo que está longe

de se estabelecer enquanto meramente contemplativo e que obriga a uma participação

física para atingir, não apenas a sua validação, mas essencialmente a sua concretização

enquanto obra de arte. A audiência é exigida e estritamente necessária para completar o

evento, que se edifica através de uma partilha colectiva que não obedece a qualquer

regra e que convida ao diálogo com o artista e com todo o conjunto de espectadores

segundo uma relação de igualdade, para que o gesto antecipador no momento da

produção adquira o seu máximo alcance. Nestas circunstâncias, acreditamos poder

sugerir a hipótese de que a obra de arte se concretiza exclusivamente por via do seu

contacto com o público – sem que, ainda assim, possa alguma vez ser dada por

concluída –, cessa de ser “apenas” forma material e torna-se algo como uma

experiência-limite, ampliando constantemente o seu campo de discussão a par com

premissas antropológicas e vivências culturais.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

«Human beings are not passive components in adaptive systems. Their responses

commonly manifest themselves as acts of personal creation.197»

Os anos noventa parecem ter despertado, no nosso país, um renovado interesse pela

figura do corpo. Nas últimas décadas, os artistas têm progressivamente ampliado os

limites da arte, tentando envolver-se num ambiente cada vez mais plural, de partilha,

colaboração e experimentação. Ensino, curadoria, a compreensão da arte e da cultura

visual; as propostas artísticas tendem a não mais se centrar na estética tradicional, mas

sim em noções do quotidiano, nas relações entre arte e sociedade, na comunidade e

numa acção colectiva – sobretudo desde a década de 1960 até aos dias de hoje. Mas

qual é o valor social da participação, e quais são os limites estéticos desta

transformação na arte, que nos surge agora concentrada nas dinâmicas sociais? São

essas, parece-nos, as questões cruciais da actualidade.

No que respeita ao contexto expositivo e galerístico em Portugal assistimos,

nos anos noventa, à proliferação de diversos espaços alternativos de divulgação,

promoção e exibição de propostas artísticas variadas. Espaços como Artemosferas,

WC Container, Caldeira 213, Salão Olímpico, Pêssegos Prá Semana, Atelier Mentol,

In.Transit, a contínua afirmação da Galeria Zé dos Bois, o projecto To Drunk to Fuck

e, ainda, exposições comissariadas por Pedro Cabral Santo, Carlos Roque, Paulo

Mendes, João Sousa Cardoso, citando apenas alguns dos inúmeros nomes que

pontuam a década. Em comum, todas estas propostas têm um elemento: o artista

como sujeito organizador, produtor e criador.

Embora com características e objectivos diversos, estes e outros projectos

assumiram um papel de relevo no panorama artístico nacional. Funcionavam – e ainda

funcionam –, na maior parte das vezes, graças à energia e ao entusiasmo dos artistas

neles envolvidos, artistas que assumiam também a respectiva produção, que

constituíam momentos e espaços de exposição, experimentação e reflexão do seu

corpo de trabalho e que revelariam uma forte resistência face ao contexto artístico

institucional e de mercado. Trabalhavam, por isso, sob teias de relações e 197 René Dubos, Man Adapting, New Haven: Yale University Press, 1980.

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cumplicidades artísticas, ideológicas e conceptuais entre artistas e amigos

constituindo, sobretudo, espaços onde a sua identidade encontrava o poder de controlo

sobre a obra, a criação e o tempo – sem mediadores, linhas orientadoras ou estratégias

exteriores e díspares das suas dinâmicas pessoais, o que possibilitava uma maior

liberdade criadora.

Outros acontecimentos convergiram no mesmo sentido, desde a constituição

da Colecção Berardo, a inauguração do Centro de Arte Moderna da Fundação

Calouste Gulbenkian ou a inauguração do Museu de Arte Contemporânea da

Fundação de Serralves, no Porto. Não será, portanto, exagero declarar que esta

segunda metade da década de noventa reproduz um imenso progresso em termos

institucionais.

Ao longo de presente trabalho tentámos alcançar uma compreensão alargada

acerca das décadas de sessenta, setenta e oitenta, com vista a estabelecer uma

perspectiva mais complexa e informada sobre a última década do século XX em

Portugal, reconhecendo que entre estas quatro décadas são identificáveis algumas

continuidades. De facto, seria impossível compreender o momento contemporâneo

sem revisitar as décadas que o antecederam, pelo que é possível reconhecer, desde

logo, uma transversalidade nas dinâmicas de experimentação assentes na

incorporação da audiência no processo criativo.

Os anos sessenta, período que se apresenta como impulsionador da inovação

que fruirá nas décadas que lhe seguiam, apresenta desde logo autores muito variados e

que, a partir das artes plásticas – nomeadamente, a pintura e a escultura, se constituem

como figuras-chave de um experimentalismo de ruptura. Experimentalismo que

prossegue nos anos setenta e que vai culminar na apresentação da exposição

Alternativa Zero — Tendências Polémicas na Arte Portuguesa Contemporânea,

comissariada por Ernesto de Sousa, a mente impulsionadora desta mostra de artistas

portugueses de vanguarda. A mesma exposição, constitui-se como um marco histórico

– mesmo revolucionário – para a cultura artística portuguesa de todos os tempos,

apresentando propostas dos artistas emergentes da sua época, alguns dos quais

cruzaram um percurso florescente nos anos seguintes. Um conjunto de

particularidades intelectuais fez de Ernesto de Sousa uma individualidade atenta ao

que de novo – no sentido de inovador – ia surgindo nas mais recentes propostas

artísticas da realidade portuguesa das épocas que atravessou. No caso concreto do

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evento de 1977, o organizador tratou, desde logo, de incorporar uma série de

propostas que diziam respeito à expressão do corpo, às liberdades do artista e ao

contacto que a obra deveria estabelecer com o visitante da mostra.

Por seu lado, a exposição Perspectiva: Alternativa Zero, reconstituída na Casa

da Fundação de Serralves em 1997, exactamente vinte anos depois, inscreve na escala

da arte portuguesa o acontecimento que foi esta mostra, à data original patente na

Galeria Nacional de Arte Moderna de Belém, segundo uma lógica de retrospectivas e

monografias destinadas a re-avaliações de um passado recente mas decisivo.

Passando por uns anos oitenta ecléticos – cujo impulso de regresso à pintura e

à escultura foi reflexo do panorama internacional –, os artistas de setenta atravessam

as décadas até aos últimos anos do século XX para responderem às mais emergentes

questões da época, desta vez segundo novos códigos de subversão, mas ainda tendo

como referência a Alternativa Zero e as suas premissas anunciadoras. Mas a História

do corpo na arte portuguesa está longe da sua conclusão, tal como o está a

investigação em torno deste espectador-participante, que com ela comunica.

“A história da cultura portuguesa moderna é (continua a ser) uma história-sem

história, sem verdadeira evolução interna, sem continuidade. (....). A história da

vanguarda em Portugal é a história de uma ausência, onde o ascetismo e a

heroicidade-sem-sentido se misturam a um epigonismo inevitável, e de resto – nos

melhores casos – de nenhuma importância. Seguir-lhe os meandros lógicos é

coleccionar peças (as únicas possíveis) de uma imensa paciência futura.”198

Para além de alguns contributos teóricos fragmentados e focados, sobretudo,

em artistas singulares que, ainda assim, acabam por ser reconhecidos essencialmente

pelas suas práticas artísticas menos corporativas – como é o caso das artes plásticas (a

pintura e a escultura) ou mesmo da poesia –, o estudo em torno desta discussão

revela-se ainda bastante incompleto. Esta História será um processo em contínuo

alargamento, e que tem sido, na sua grande maioria, convocada por via de catálogos

de exposições que incluem artistas cuja obra explora a natureza do corpo. Não

pretendemos com isto dizer, naturalmente, que no presente estudo fomos capazes de

elevar largamente o contributo teórico em torno da questão, já que procurámos

sobretudo mapear e compreender um conjunto de questões e de abordagens artísticas

198 Sousa, 1998, pp. 134-135

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que se relacionam com o corpo, nas suas diferentes declinações. Ainda assim,

acreditamos ter convocado um leque de questões objectivas e que, de certa forma,

podem acrescentar algo ao debate em torno da “acção” contemporânea. Isto porque se

afigurou, de facto – durante o desenvolver da investigação e, posteriormente, aquando

da sua disputa – que o contexto português vive um enorme impulso no que diz

respeito aos domínio da participação. Pelo mesmo motivo, escolhemos também

reflectir acerca de alguns artistas que, pelos circuitos mais alternativos em que

participam, pela sua tenra idade ou, simplesmente, por uma lacuna no que respeita à

divulgação do seu trabalho, acabam por ser pouco difundidos. As suas obras, tal como

acontece no contexto internacional, exploram as questões em torno da experiência

física, da permanência, da evocação de um corpo que é necessário à concretização da

obra. Problematização que centrámos nos anos noventa mas que, nos dias de hoje, se

mantém actualizada.

De facto, se reflectirmos acerca do surgimento da estética, é possível

identificarmos de imediato a criação de um espaço para a audiência, sobretudo se

discutido o sistema filosófico kantiano e o seu juízo estético. Ou, no início do século

XX, desde logo como identificou Duchamp ao assegurar que a iniciativa participativa

do espectador era indispensável para a constituição da própria obra de arte. Mais tarde

a mesma tese é enfatizada por Hans Robert Jauss a partir de uma “Estética da

Recepção”, na década de setenta e, recentemente, à luz da sua contemporaneidade,

Bourriaud actualiza o conceito de interacção numa formulação conhecida como

“Estética Relacional”; entre tantos outros autores que pensaram a questão que aqui

colocamos. Com efeito, podemos afirmar que a obra de arte resulta, evidentemente,

da acção de um sujeito espectador que se dispõe a relacionar-se com a mesma.

A ideia de presença, de matéria palpável, é tradicionalmente convencionada de

forma distinta deste carácter de fragmentação e deslocação, mas, no entanto, a

intersecção entre performance e instalação, e a oscilação complexa entre presença e

ausência na produção que abordamos, enceta um vasto campo de possibilidades para a

sua compreensão por parte do espectador – que observa grande parte do processo e se

questiona conforme o contexto em que se insere – e ainda por parte da artista, que se

dilui na obra e que, ao experienciar fenomenologicamente o seu próprio processo e a

sua concretização, dissolve o contorno que poderia ainda existir entre a arte (enquanto

objecto exterior ao mundo e à experiência do quotidiano) e a própria vida. O privado

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que se torna público, a obra que se manifesta e, no limite, se metamorfoseia num

corpo sensível: por via da participação.

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1999, p. 28-30.

CARITA, Alexandra, “A Religião do Ferro” – Entrevista a Rui Chafes, in Atual,

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pp. 181-189.

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122

ÍNDICE DE FIGURAS

Fig. 1 / Fig. 2 – Ana Leonor Madeira Rodrigues, O Anjo Azul, 1994 ............................. ii

Fig. 3 – Ana Leonor Madeira Rodrigues, Not To..., 1999 ............................................... ii

Fig. 4 – Graça Pereira Coutinho, War Zone II, 1994 ....................................................... ii

Fig. 5 – Manuel Rosa, Sem Título, 1997 ......................................................................... iii

Fig. 6 / Fig. 7 – Patrícia Garrido, O Prazer é Todo Meu, 1994 ...................................... iii

Fig. 8 – Inês Pais, Oxygen, 1997 ..................................................................................... iii

Fig. 9 – Alberto Carneiro, Corpo Mandala, 1995 .......................................................... iv

Fig. 10 / Fig. 11 – AA.VV. Espectáculo, Disseminação, Deriva, Exílio: um projecto em

torno de Guy Debord, 1995 ............................................................................................. iv

Fig. 12 – André Gomes, A Invenção da Cruz, 1992 ....................................................... iv

Fig. 13 – Rita Castro Neves, Não Ponham mais Palavras na Minha Boca, 1997 .......... v

Fig. 14 – Pedro Barateiro, Ensaios para uma Pintura Sonora: um projecto para a

Galeria Pedro Cera, 2003 ................................................................................................ v

Fig. 15 / Fig 16 – José Pedro Croft, Sem Título, 1998 ..................................................... v

Fig. 17 / Fig 18 – Fernanda Fragateiro, Jardim das Ondas, 1998 .................................. vi

Fig. 19 / Fig 20 – Fernanda Fragateiro, Eu Espero, 1999 ............................................... vi

Fig. 21 / Fig 22 – Joana Vasconcelos, Ponto de Encontro, 2000 ................................... vi

Fig. 23 – André Guedes, Just Before, 1999 ................................................................... vii

Fig. 24 / Fig 25 – AA.VV., Microart, 2000 ................................................................... vii

Fig. 26 / Fig 27 – AA.VV., desAUTORizado 2, 2001 ................................................... vii

Fig. 28 / Fig 29 – José Maçãs de Carvalho, Porque é que Existe o Ser em vez do Nada?,

2001 ............................................................................................................................... viii

Fig. 30 / Fig. 31 – AA.VV., Showindows; intervenções de artistas e comissários em

montras da Baixa de Lisboa, 2003 ................................................................................ viii

Fig. 32 / Fig. 33 – Vanda Vilela, Casa-Árvore-Casa, 2003 ......................................... viii

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i

APÊNDICE A

FIGURAS

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ii

Fig. 1 / Fig. 2 – Ana Leonor Madeira Rodrigues, O Anjo Azul, 1994. Fonte:

Anamnese, 2006

Fig. 3 – Ana Leonor Madeira Rodrigues, Not To..., 1999. Fonte: Anamnese, 2006

Fig. 4 – Graça Pereira Coutinho, War Zone II, 1994. Fonte:

gracapereiracoutinho.com

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iii

Fig. 5 – Manuel Rosa, Sem Título, 1997. Fonte: Anatomias Contemporâneas, 1997

Fig. 6 / Fig. 7 – Patrícia Garrido, O Prazer é Todo Meu, 1994. Fonte: patricia-

garrido.com

Fig. 8 – Inês Pais, Oxygen, 1997. Fonte: Anamnese, 2006

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iv

Fig. 9 – Alberto Carneiro, Corpo Mandala, 1995. Fonte: Colecção Privada, Cascais

Fig. 10 / Fig. 11 – Espectáculo, Disseminação, Deriva, Exílio: um projecto em torno

de Guy Debord, vista da intervenção de Paulo Mendes, “Operários da Metalúrgica

Alentejana”, 1995. Fonte: paulomendes.org

Fig. 12 – André Gomes, A Invenção da Cruz, 1992. Fonte: Anamnese, 2006

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v

Fig. 13 – Rita Castro Neves, Não Ponham mais Palavras na Minha Boca, 1997.

Fonte: Anamnese, 2006

Fig. 14 – Pedro Barateiro, Ensaios para uma Pintura Sonora: um projecto para a

Galeria Pedro Cera, 2003. Fonte: Anamnese, 2006

Fig. 15 / Fig 16 – José Pedro Croft, Sem Título, 1998. Fonte: jf-parquedasnacoes.pt

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vi

Fig. 17 / Fig 18 – Fernanda Fragateiro, Jardim das Ondas, 1998. Fonte: Global

Arquitectura Paisagista: fotografias de Bruno Portela

Fig. 19 / Fig 20 – Fernanda Fragateiro, Eu Espero, 1999. Fonte: Museu Internacional

de Escultura Contemporânea de Santo Tirso – 1990-2015, 2015

Fig. 21 / Fig 22 – Joana Vasconcelos, Ponto de Encontro, 2000. Fonte:

joanavasconcelos.com

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vii

Fig. 23 – André Guedes, Just Before, 1999. Fonte: Anamnese, 2006

Fig. 24 / Fig 25 – Máquina de venda automática do projecto Microart; detalhe da obra

de Vanda Vilela, 2000. Fonte: Anamnese, 2006

Fig. 26 / Fig 27 – desAUTORizado 2, Caldeira 213, 2001. Fonte: caldeira213.net

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viii

Fig. 28 / Fig 29 – José Maçãs de Carvalho, Porque é que Existe o Ser em vez do

Nada?, 2001. Fonte: homelessmonalisa.com / Anamnese, 2006

Fig. 30 / Fig. 31 – Projecto colectivo Showindows; intervenções de artistas e

comissários em montras da Baixa de Lisboa, 2003. Fonte: experimentadesign.pt

Fig. 32 / Fig. 33 – Vanda Vilela, Casa-Árvore-Casa, 2003. Fonte: servir.uevora.pt

/Anamnese, 2006