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O CORPO: IDENTIDADE E REPRESENTAO

O CORPO: IDENTIDADE E REPRESENTAO 1Este ensaio fez parte do congresso de Literaturas Lusfonas apresentado na Universidade de Santa Brbara, Califrnia EUA no ano 2000.

KATJA CHRISTINA HEYER2Mestre em Literatura Brasileira e Estudos Culturais (UERJ), especialista em Teoria da Literatura, Licenciada em Portugus/ Literaturas de Lngua Portuguesa; Professora Auxiliar da UNISUAM

RESUMO: Este trabalho se prope a desenvolver reflexes sobre o papel do corpo na formao de marcas identitrias a partir das modificaes introduzidas por novas tecnologias e dispositivos sobre os papis sociais femininos, em face da forte herana portuguesa. A importncia do corpo na Literatura e na Indstria Cultural do Brasil na modernidade, representada por Clarice Lispector e na ps-modernidade, representada por Ana Miranda.

ABSTRACT: This work aims at developing insights about the role of the body in the formation of identity marks from modifications introduced by new technology and apparatuses about female social roles derived from a strong Portuguese heritage. Moreover, the importance of the body in Literature and in Brazilian Cultural industry in modern epoch, represented by Clarice Lispector and in post-modern times represented by Ana Miranda will be discussed.

PALAVRAS-CHAVES: Identidade, Corpo, Representao, Sociedade, Cultura. KEY WORDS: Identity, body, representation, society, Culture.

SOCIEDADES TECNOLGICAS

inegvel o valor que tem representado o corpo no papel de marcador de identidades e representaes identitrias na contemporaneidade, notadamente o corpo feminino que ocupa ainda hoje um lugar de destaque na indstria cultural, seja da moda, cinematogrfica, publicitria ou literria.

Embora a grande preocupao do homem de fim de sculo, tanto de cultura hegemnica de capitalismo avanado quanto de pases perifricos como o Brasil, ainda seja superar a finitude da vida fsica, est ainda encarada como uma limitao. Na mitologia ficcional da indstria cinematogrfica americana a superao da morte se d pela possibilidade da interao homem-mquina, onde rgos artificiais substituem os naturais (Haraway, 1980), j nos pases perifricos a expectativa de longevidade se concentra na possibilidade de acesso a tecnologia de produo de corpos excepcionais, atravs de tratamentos estticos, muito distante da abordagem de tecnologias futuristas usadas pela mdia cinematogrfica americana.

A indstria cultural de fim de sculo aponta para uma tendncia a recusa da incorporao de representaes identitrias tradicionais e em uma busca de multiplicaes das identificaes identitrias e identidades voltadas a novas possibilidades de gnero, etnia , sexo (Lauretis, 1987), destacando o papel do corpo como agenciador de mltiplas identidades. Nos Estados Unidos, essa indstria dedica grande foco de ateno a filmatografia de fico cientfica que explora como mitologia o corpo modificado do cyborg , como por exemplo o filme clssico do final dos anos 80 Blade Runner ( Caadores de Andrides ) de Riddley Scott, que tematiza a dominao da vida humana pela artificial, tema constante do cinema que vem acrescentando todas as novidades da biogentica como implantes de memria, inteligncia artificial, gerao de vida extra-uterina, que culminam com o filme Matrix (1999) onde o homem e as mquinas podem ser conectados por tomadas permitindo ao homem interagir em programas de software envolvendo realidade virtual.

Em pases perifricos e, particularmente para o Brasil, a indstria cultural tem enfrentado grandes dificuldades de sobrevivncia, atravessando longos perodos onde a produo cultural no consegue se atualizar e enfrentar a dominao cultural americana. Nesses pases a preocupao futurista substituda pela problemtica cotidiana, longe dos aparatos tecnolgicos, mas onde o papel do corpo feminino representa um lugar de destaque na identidade coletiva.

O LUGAR DO CORPO NA SOCIEDADE BRASILEIRA

Desde a colonizao portuguesa o corpo feminino tem estado em lugar no imaginrio da sociedade. Primeiramente por seu carter de raridade na poca colonial, em segundo lugar como valor de posse e troca de favores entre mulheres e colonos portugueses. Em As Identidades do Brasil, Jos Carlos Reis (1999) traa um percurso da herana portuguesa e seu papel como marca cultural na sociedade brasileira, basicamente patriarcalista e escravista, de um patriarcalismo religioso e polgamo, a ponto de o papel feminino restringir-se ao mbito domstico e manifestaes culturais femininas simplesmente no fazerem parte do cnon literrio brasileiro at o incio do sculo XX.

O corpo feminino era visto e narrado pela tica masculina, a mulher foi protagonista de quase todas as manifestaes literrias acontecidas desde a Independncia em 1822, e at mesmo antes, sem que livros ou textos escritos por mulheres houvessem se tornado conhecidos. Somente por volta de 1930 iniciou-se um movimento de modernizao social que efetivamente visava a afastar o Brasil da herana patriarcalista-catlica portuguesa; somente a partir da Semana de Arte de 1922 a mulher comea a ocupar um lugar cultural no mais como protagonista de histrias, mas como protagonista de sua prpria vida, como a artista plstica Anita Malfati, pois s mais tarde a mulher ocupar um lugar de destaque na Literatura Brasileira.

3.CLARICE LISPECTOR: A MULHER NO CNON LITERRIO

A escritora Clarice Lispector iniciou sua carreira literria em 1944 e esperou at 1998, quando j consagrada e incorporada ao cnon literrio para escrever por encomenda os contos que constituem a obra A Via Crucis do Corpo, sobre a qual designou as seguintes palavras: Uma pessoa leu meus contos e disse que aquilo no era literatura, era lixo. Concordo. Mas h hora para tudo. H tambm a hora do lixo.

Escrever sobre sexo e desejo ainda um tabu para a mulher contempornea, que iniciou a revoluo sexual nos anos 70 e penetrou o mercado de trabalho masculino nos anos 80. O conto Miss Algrave abre uma seqncia de 13 contos e trata de uma mulher que passa da represso sexual a conquista tardia de sua sexualidade, e que por isso passa a se ver como uma pessoa licenciosa. Ela representada em uma outra sociedade Londrina, embora o modelo patriarcalista repressor tenha sido parte constitutiva das sociedades ocidentais coloniais (colonizadoras e colonizadas) e no apenas um modelo exclusivo portugus; atravs dele o papel da mulher foi designado para a maternidade e submisso ao homem. Nas relaes de gnero o papel que cabia a mulher era o de esposa (Lauretis, 1987), que uma vez no constitudo deixava fechada porta da realizao sexual para a mulher. A represso ficava a cargo da religiosidade catlica que imputava medos e culpas, tornando at o ato de comer um pecado, como fica claro no trecho: solteira, claro, virgem, claro (...) porque comer carne ela considerava pecado. (p13) A mistura de religiosidade e patriarcalismo fazia com que at a escritora Clarice Lispector considerasse imprpria a literatura que fala sobre sexo: Todas as histrias deste livro so contundentes e quem mais sofreu fui eu mesma. Fiquei chocada com a realidade. Se h indecncias a culpa no minha. (p11). Um puritanismo que parece deslocado at mesmo para 1974, quando as mulheres brasileiras viviam a primeira onda da revoluo sexual.

Miss Algrave, a protagonista do conto, mulher vista pela tica feminina, tinha problemas em tocar seu prprio corpo: tomava banho s uma vez por semana, no sbado. Para no ver o seu corpo nu, no tirava nem as calcinhas nem o suti. (p 14). Nome de batismo bblico Ruth, que representa a mulher virtuosa, um dia recebe a visita de um ser espacial Ixtlan, inaugurador dos mistrios da sexualidade, colocando-a de posse de seu corpo, quando ento passa a ver a si mesma como uma mulher realizada. Seu nico passa tempo era escrever cartas de protesto para o Times reclamando da falta de moralidade no mundo , aps sua iniciao sexual no reclama mais, deixara de ver o mundo pela tica do pecado, sua preocupao agora saber que preo pagaria por tamanha felicidade: Ser que vou ter que pagar um preo muito caro pela minha felicidade ? No se incomodava. Pagaria tudo que tivesse que pagar. Sempre pagara e sempre fora infeliz. E agora acabara-se a infelicidade. (p 19).

O que nos revela o conto que a mulher de 1974 j estava cansada de pagar o preo cobrado por aceitar o papel sexual e social que lhe era destinado por uma sociedade machista e catlica e, j estava preparada para pagar o preo da felicidade, ou seja , romper os preconceitos impostos pela sociedade. Neste conto Clarice trabalha a imagem feminina vista pela tica feminina, o que no a torna muito diferente da viso masculina da mulher. O corpo da mulher estava no limiar de ter sua posse reclamada, ainda que diante do medo e da angstia de quem sabia ter que pagar um preo para quebrar os tabus sociais, a angstia de percorrer a via crucis do corpo.

ANA MIRANDA: A MULHER NA PS-MODERNIDADE

Ana Miranda, mulher, escritora que iniciou sua carreira literria em 1978 em plena modernidade3modernidade social diferente de Modernismo literrio, este compreendeu o perodo de 1922 1945 o outro se refere especificamente a dcada de 70.

, escreve contos sobre mulheres em um momento em que o modernismo j ficou para trs, a revoluo sexual trouxe a posse do corpo para a mulher e a projetou no mercado de trabalho, antes reduto exclusivamente masculino. Escritora ainda no consagrada com a incluso no cnon acadmico, reflete nos seus escritos vestgios da herana portuguesa ainda em vias de desaparecimento, mas no de todo apagada do imaginrio social brasileiro.

Em seu livro Noturnos (1999) escreve sobre o amor,sobre uma mulher em vias de transformao, que contudo ainda no se conhece como representao de si mesma: Nasceram esta noite unhas nos meus dedos das mos, (...) meu corpo as criou noturnamente, todas as noites passo por alguma metamorfose, me transformo em algo que no sei o que ... (unhas, p53). Nesta busca de si mesma, da auto-representao com que seja levada a identificar-se com a mulher que , que deveria ser, que gostaria de ser: As unhas so ilusrias eu sei, assim como os meus cabelos, talvez para cobrir meus pecados, nasci com eles, os pecados, repito todos os pecados de minha me e do meu pai e dos meus avs e dos avs dos outros, amo os pecados, sempre lhes fui fiel, fiel ao demnio e a tentao, sero as unhas os meus pecados que se tornaram visveis ? (Unhas, p53)

A mulher que questiona a si mesma, que projeta em si toda herana herdada de seus antepassados, que hoje no final do sculo XX se sente perdida: as unhas so para agarrar o vazio, o passado, o sexo, o corpo despido, o eu perdido...

Dos anos 70 aos anos 90 ainda no se completou a transformao da mulher, sua busca de identidade continua vacilante, uma vez que rompida a identificao com o papel feminino criado pela tica masculina, cabe a mulher descobrir o seu prprio corpo, sua sexualidade e seu papel na nova ordem social. Essa a dvida dos anos 90: nunca deixarei de ser a que fui aos dezenove anos, infelizmente nunca serei o que querem que eu seja, sinto nsia de me tornar mulher e ver um homem descobrir a mulher que sou... (Atrs do Espelho, p61).

A descoberta da mulher que diz renunciar a sua herana, mas que ama o pecado, revela o rompimento de um padro ainda muito enraizado, que se constitui pelo olhar que o outro o masculino lana sobre a mulher. A mulher que ainda a Dora, personagem do filme Central do Brasil, a professora, a mulher sria, religiosa e trambiqueira que tem que se adequar ao papel que lhe destinado pela sociedade sem se preocupar em transgredir aqui e ali a imagem feminina tradicional, que continua a ser a da mezona, que busca agora a realizao afetiva, ltimo bastio a ser conquistado pela mulher brasileira, dona de seu corpo, trabalhadora, porm que ainda acredita no casamento tradicional, romntico, mesmo sabendo que o preo a pagar a sua inadequao ao papel social de esposa.

A prpria sociedade ainda no conseguiu constituir uma representao de mulher, seja pela tica feminina ou pela masculina que superasse as limitaes dos papis sociais a ela designados e que ainda hoje persistem como representaes do corpo feminino. O corpo para o sexo, a maternidade e o trabalho domstico.

7. Bibliografia:

. Haraway, Dona. Um Manifesto para os Cyborgs. In: Tendncias e Impasses. ED. Roco. Org. por Helosa Buarque de Holanda.

.Lauretis, Teresa de. A tecnologia de Gnero. In : Tendncias e Impasses. . Lispector, Clarice. Miss Algrave. In: A Via Crucis do Corpo. RJ, Ed Arte Nova. 1974.

. Miranda, Ana. Unhas. In: Noturnos. Cia das Letras. SP. 1999.

. Reis, Jos Carlos. As Identidades do Brasil. Ed Fundao Getlio Vargas. RJ. 1999.

. Scott, Ridlley. Blade Runner. USA. 1999. Filme. (Caadores de Andrides).

. Salles, Walter Lima. Central do Brasil. 1999. Filme Brasil.

. Wachowsky Brothers. Matrix. USA. !999. Filme.