o corpo e o Édipo linguageiro

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_______________________________________________________________________________________ REDISCO Vitória da Conquista, v. 2, n. 1, p. 52-76, 2013 DO CORPO VERBAL AO CORPO AUDIOVISUAL: OS PERCURSOS DO CORPO SIGNIFICANTE NA OBRA DE MICHEL PÊCHEUX E O ÉDIPO LINGUAGEIRO Luiz Carlos Martins de Souza Universidade Federal do Amazonas Resumo: Procurando entender o que Michel Pêcheux chama de mistério da sexualidade em meio às problemáticas da ciência linguística, proponho ampliar sua noção de Édipo linguístico para Édipo linguageiro, em suas implicações na abordagem do que é constitutivo nas posições de sujeito num texto verbal em relação às posições de sujeito num texto audiovisual. Partindo dos fundamentos estabelecidos por Freud, Lacan e Althusser, esse artigo procura esboçar o percurso sobre o corpo em trabalhos de Pêcheux. Para isso, trato da castração simbólica, do complexo de Édipo, do imaginário linguístico e do corpo verbal. Palavras-Chave: Corpo; Michel Pêcheux textualização audiovisual; análise de discurso; complexo de Édipo. Abstract: Trying to understand what Michel Pêcheux calls the mystery of sexuality among the problems of linguistic science, I propose to expand his notion of linguistic Oedipus in its implications in the approach that which is constitutive of the subject position in an verbal text in relation to the subject position in an audiovisual text. From the foundations established by Freud, Lacan and Althusser, this paper seeks to outline the pathways of the body in the work of Pêcheux. To do that, I look at symbolic castration, Oedipus complex, linguistic imagery and verbal body. Keywords: Body; Michel Pêcheux; audiovisual textualization; discourse analysis; Oedipus complex. A compreensão do corpo na Análise de Discurso Materialista (AD) evita o biologismo, fazendo aparecer sua des- organização simbólica contraditória. Esse biologismo, presente em Chomsky, absorve o Real histórico na “biologia fantástica”, foracluindo o Real histórico da esfera da razão, fazendo-o desconhecimento eterno, ao acreditar num Real da gramática universal, como se fosse perceptível na própria existência da linguagem, imediatamente presente na razão (Gadet & Pêcheux, 2004, p.199). Na AD, essa compreensão do corpo é tributária a Lacan, que se opôs o tempo todo a pensar o animal humano como uma totalidade homogênea de causa e efeito entre o biológico e o simbólico. Assim, de nosso ponto de vista, o indivíduo é divíduo, o sentido não é um só, o texto é composto de fragmentos. O Um está dividido, e sua aparente unidade é imaginária. A partir da retomada desse percurso sobre o corpo na AD, esse texto procura entender as produções dos sujeitos e esmiuçar a questão sobre se as posições de sujeito num texto

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o que é constitutivo na posição de sujeito do texto audiovisual em relação ao texto verbal

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  • _______________________________________________________________________________________ REDISCO Vitria da Conquista, v. 2, n. 1, p. 52-76, 2013

    DO CORPO VERBAL AO CORPO AUDIOVISUAL: OS PERCURSOS DO CORPO SIGNIFICANTE NA OBRA DE MICHEL PCHEUX E O DIPO LINGUAGEIRO Luiz Carlos Martins de Souza Universidade Federal do Amazonas

    Resumo: Procurando entender o que Michel Pcheux chama de mistrio da sexualidade em meio s problemticas da cincia lingustica, proponho ampliar sua noo de dipo lingustico para dipo linguageiro, em suas implicaes na abordagem do que constitutivo nas posies de sujeito num texto verbal em relao s posies de sujeito num texto audiovisual. Partindo dos fundamentos estabelecidos por Freud, Lacan e Althusser, esse artigo procura esboar o percurso sobre o corpo em trabalhos de Pcheux. Para isso, trato da castrao simblica, do complexo de dipo, do imaginrio lingustico e do corpo verbal. Palavras-Chave: Corpo; Michel Pcheux textualizao audiovisual; anlise de discurso; complexo de dipo.

    Abstract: Trying to understand what Michel Pcheux calls the mystery of sexuality among the problems of linguistic science, I propose to expand his notion of linguistic Oedipus in its implications in the approach that which is constitutive of the subject position in an verbal text in relation to the subject position in an audiovisual text. From the foundations established by Freud, Lacan and Althusser, this paper seeks to outline the pathways of the body in the work of Pcheux. To do that, I look at symbolic castration, Oedipus complex, linguistic imagery and verbal body. Keywords: Body; Michel Pcheux; audiovisual textualization; discourse analysis; Oedipus complex.

    A compreenso do corpo na Anlise de Discurso Materialista (AD) evita o biologismo, fazendo aparecer sua des-organizao simblica contraditria. Esse biologismo, presente em Chomsky, absorve o Real histrico na biologia fantstica, foracluindo o Real histrico da esfera da razo, fazendo-o desconhecimento eterno, ao acreditar num Real da gramtica universal, como se fosse perceptvel na prpria existncia da linguagem, imediatamente presente na razo (Gadet & Pcheux, 2004,

    p.199). Na AD, essa compreenso do corpo tributria a Lacan, que se ops o tempo todo a pensar o animal humano como uma totalidade homognea de causa e efeito entre o biolgico e o simblico. Assim, de nosso ponto de vista, o indivduo divduo, o sentido no um s, o texto composto de fragmentos. O Um est dividido, e sua aparente unidade imaginria. A partir da retomada desse percurso sobre o corpo na AD, esse texto procura entender as produes dos sujeitos e esmiuar a questo sobre se as posies de sujeito num texto

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    verbal correlacionam-se diretamente com as posies de sujeito num texto audiovisual, traduzindo-se equivalentemente de um para o outro. Comeamos o percurso a partir de fundamentos estabelecidos por Freud, Lacan, Althusser, para esboarmos a leitura de Pcheux.

    A AD pressupe a Lingustica, a Psicanlise e o Materialismo Histrico para produzir um objeto especfico: o discurso. Levando isso em conta, a AD articula Imaginrio, Simblico e Real para compreender esse objeto especfico num campo especfico: as condies histrico-ideolgicas da (re-)produo dos sujeitos e dos sentidos. Como afirma Orlandi (1995, p.16) a especificidade da AD que ela articula essas trs noes em relao ideologia e determinao histrica e no ao inconsciente, caso da Psicanlise, e vai tratar do Real da lngua, do Real do inconsciente e do Real da histria. A Anlise de Discurso, portanto, trata dos efeitos da evidncia, produzidos pelos mecanismos ideolgicos no domnio do Imaginrio. Nele est a condio do significar do sujeito e do sentido. Apesar da linguagem, como condio do inconsciente, introduzir para todo ser falante uma discordncia com sua realidade, a unidade imaginria necessria. Essa uma das grandes contribuies da AD, segundo Orlandi:

    observar os modos de construo do imaginrio necessrio na produo dos sentidos. Por no negar a eficcia material do imaginrio, ela torna visveis os processos de construo desse "um" que, ainda que imaginria, necessria e nos indica os modos de existncia e de relao com o mltiplo (op. cit, p.18)

    Estudar o funcionamento do audiovisual

    fazer aparecer outros aspectos do funcionamento do imaginrio. Penso esse Um como o funcionamento do dipo, o lugar da filiao, na linguagem, esboo sugerido nos ltimos trabalhos de Pcheux. Esse funcionamento edipiano na linguagem o que me faz retomar o trabalho de Pcheux, Fuchs e Gadet para abordar o corpo significante, o dipo linguageiro. O um

    temporrio e imaginrio. Para isso, relembremos que na Psicanlise, as mltiplas situaes que forjam a singularidade de cada sujeito, so organizadas pela "funo simblica", como princpio inconsciente. A materialidade da funo simblica, sua letra, o significante. ele o elemento significativo do discurso, que determina o sujeito, sua revelia, em seus atos, palavras e escolhas. Nessa ordem, o significante precede e determina o significado: se o homem fala porque o smbolo o fez homem, dir Lacan, afetado por Freud e Levi-Strauss.

    Mas Lacan tambm reelabora a idia de que o pertencimento de um sujeito a seu ambiente se d como uma relao de dependncia entre essa unidade imaginria, que tomamos como indivduo, e seu meio, em vez de ser um contrato entre o tal indivduo livre e a sociedade. da que ele elaborar sua compreenso sobre o Imaginrio.

    O funcionamento do Imaginrio, do Simblico, e do Real: a castrao simblica, a funo paterna e a funo materna. Freud descobriu uma primeira forma inesperada de conflituosidade nos indivduos. No suportamos a idia de que temos um inconsciente: todos desenvolvemos um reflexo de "defesa" ante a idia de inconsciente, espontaneamente. Nosso inconsciente recalca automaticamente sua existncia por meio de uma compulso de repetio(Wiederholungszwang) (Althusser, 2000, p.88-9). Esse recalcamento a natureza do inconsciente, sua caracterstica. E tal princpio tem sua parte de responsabilidade na submisso dos sujeitos ideologia, uma das determinaes especficas do antagonismo ideolgico de massa. Em Freud, o psiquismo se permite perceber como

    estruturado sobre o modelo da unidade centrada numa conscincia: mas estruturado como um aparelho que comporta sistemas diferentes, irredutveis a um princpio nico. (...)Esse aparelho no uma unidade centrada, mas um conjunto de instncias constitudas pelo jogo do recalque inconsciente. (...) o ego, que antes era unicamente o reino da conscincia, converte-se, ele mesmo, em parte, em inconsciente, parte interessada no conflito

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    do recalque inconsciente pelo qual se constituem as instncias. (...) a conscincia incapaz de ver a "diferena dos sistemas", em cujo interior nada mais seno um sistema entre outros, cujo conjunto est submetido dinmica conflituosa do recalcamento. (...)as diversas instncias no possuem outra unidade seno a unidade de seu funcionamento conflituoso (id., p.89-90).

    Althusser contrasta Freud e Marx. Este,

    ao querer compreender o que uma formao social, lida com uma causalidade pelas relaes e no pelos elementos. As relaes (de produo, de classe, etc.) so determinantes de todo processo econmico ou histrico. No so os indivduos, mas a luta de classes o que determina as relaes de produo e as foras produtivas. Esse o Real da histria. Os indivduos so suportes (Trger) de funes determinadas e fixadas pelas relaes de luta de classes (econmicas, polticas e ideolgicas) que movem toda a estrutura social (id., p.87). Marx se ocupou de descobrir as leis da sociedade capitalista em que os indivduos concretos existem, vivem e lutam. Assim, vai consider-los apenas provisoriamente, como suportes: teoria da individualidade social ou das formas histricas da individualidade. Com Marx, o sujeito humano, o ego econmico, poltico ou filosfico, no o "centro" da Histria. Seu centro" uma estrutura necessria apenas para consolidar o desconhecimento ideolgico. Com Freud, o sujeito real, o indivduo em sua essncia singular, perde o seu centro: o ego, o "eu" ("moi"), a "conscincia" ou na "existncia" - quer esta seja a existncia do para-si, do corpo-prprio, ou do 'comportamento'. Aqui a estrutura serve ao desconhecimento imaginrio do eu"(id., p.71). Althusser mostra como o simblico e o poltico se relacionam em uma injuno ao Um. A ideologia burguesa significa essa injuno em seu funcionamento pelo totalitarismo da conscincia:

    Que a conscincia seja sntese significa que realiza, no sujeito, a unidade da diversidade de suas impresses sensveis (da percepo ao conhecimento), a unidade de seus atos morais, a unidade de suas aspiraes

    religiosas e tambm a unidade de suas prticas polticas. A conscincia aparece, assim, como a funo, delegada ao indivduo pela natureza humana, de unificao da diversidade de suas prticas, sejam estas de conhecimento, morais ou polticas. Traduzindo essa linguagem abstrata: a conscincia obrigatria, para que o indivduo dela dotado realize, em si, a unidade exigida pela ideologia burguesa, a fim de que os sujeitos se adequem sua prpria exigncia ideolgica e poltica de unidade, ou seja, para que a conflitiva ciso da luta de classes seja vivida por seus agentes como uma forma superior e espiritual de unidade(ALTHUSSER, 2000, p.85).

    Marx se dirigiu contra essa unidade, contra

    a identidade da conscincia. Atravs da anlise da funo de unidade, ele desmantelou a ideologia burguesa, em sua unidade ilusria. Esse fantasma de unidade que a ideologia burguesa provoca na conscincia, um efeito que lhe indispensvel para funcionar. Capta-se a unidade profunda da ideologia burguesa e de suas formaes tericas e prticas, ao se compreender que os diferentes sujeitos-conscientes-de so unificadores da identidade social do invidvuo, enquanto eles mesmos esto unificados como outros tantos exemplares de uma ideologia do homem, ser naturalmente dotado de conscincia (id., p.86). Althusser fala que a ideologia da unidade do sujeito, considerado como sujeito de suas condutas e de seus atos, o ncleo da ideologia psicolgica. essa unidade que se espera que o corpo congregue. essa a demanda para o corpo. No meio do caminho havia o real. O Real em Lacan pensado como um resto impossvel de simbolizar, e o Simblico o lugar do significante e da funo paterna. O Imaginrio o lugar do primado do eu, da fuso com o corpo da me, por isso Lacan, que no incio do seu percurso propusera-o no estgio do espelho, vai defend-lo como lugar da relao dual com a imagem do semelhante. Apreende, assim, um espao para localizar os fenmenos das iluses do eu, da alienao, da captao e do engodo. Tudo o que se relaciona com a imaginao, com a faculdade humana de representar coisas em pensamento,

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    independentemente da realidade, da instncia das imagens: diz respeito ao imaginrio, logo funo materna.

    Assim, com suas formulaes em O Estgio do Espelho, Lacan indica que o papel identificatrio se desenrola na esfera visual, tctil, gustativa, auditiva e olfativa em relao ao corpo da me, do qual a criana depende para sobreviver. Nessa fase, a falta de coordenao motora e sua dependncia para se alimentar indica a incompletude da criana, fazendo com que, apesar disso, ela se reconhea como una. O psquico prevalece sobre o biolgico. A figura do outro, da me, ou de quem exerce essa funo, provoca a gestalt completando esse ser incompleto, constituindo sua subjetividade. Assim, a funo materna, o desejo da me o desejo da me pela criana e desejo da criana pela me. A situao narcsica de completude, decorrente do desamparo do beb humano e de sua dependncia do outro para sobreviver, assume essa forma condensada, uma clula narcsica. Aqui se d um movimento primordial que se repetir, se multiplicar e que nos far seres de fico e de linguagem: o estgio do espelho um drama cujo impulso interno se precipita da insuficincia para a antecipao (apud Porge, 2006, p.70). De qualquer maneira, a primeira contradio com a qual lidamos a prematurao:

    A prematurao no nascimento introduz o simblico no imaginrio, na medida em que constitui o animal humano como sujeito para a morte, capaz de imaginar-se mortal (...) o primeiro tempo em que o sujeito no se distingue da imagem que o aliena deve ser completado com um tempo de identificao ao outro que vem no lugar da imagem; o eu - com o "eu" ["je"] - termina de constituir-se, no mesmo tempo que o prximo, no drama do cime do objeto do desejo do outro. (...), o sujeito est engajado em uma concorrncia agressiva pelo objeto do desejo do outro, por identificao ao outro, e " dela que nasce a trade do outro, do eu e do objeto". (...) Ele encerra o estdio do espelho e representa a viragem do "eu" ["je"] unicamente especular, imaginrio, ao "eu" ["je"] social, simblico. Falar do "eu" [''je''] e no do "eu" ["moi"] j um modo de

    significar a intruso do simblico no imaginrio (id.ib.).

    Uma ordem recobre a outra? Seria possvel

    separar e definir a atuao de uma e outra ordem? Eis na Psicanlise a constituio do discurso-outro que Pcheux busca modos de analisar. O Estgio do Espelho se processa como um mito da origem da completude. Por esse prisma, a situao humana decorre de uma desnaturalizao. Seguindo Lacan, h um inconsciente unicamente especular, que faz da criana um ser com a me. A diviso ainda no ficou estabelecida para esse eu(je) inconsciente-imaginrio. Com a intruso do simblico, o inconsciente-imaginrio vira inconsciente-simblico. O Real da lngua e o Real do Inconsciente se imbricam. O Simblico que anterior ser/far sentido como posterior ao Imaginrio. O desejo que nos move essa injuno para a busca da completude perdida, que instaura a falta: A fantasia sempre de completude, passamos a vida buscando uma completude que no existe, para obter o amor da me da funo materna (LEITE, 1997, p.1).

    A castrao instaura a falta. A criana no sabe nada sobre a diferena sexual anatmica nos primeiros anos, e vai ser nela introduzida a posteriori. Dentre as perdas, na fase oral, a criana perde o seio da me; na fase anal, perde o cbalo; na fase flica, perde o falo. A falta aponta para o narcisismo, que a prpria completude. Ameaa de castrao tudo o que ameaa o narcisismo, o corpo prprio. A falta sempre narcsica (id. ib.). A castrao, dessa forma, a perda da completude pensada como organizao das pulses parciais em torno de um nico objeto. O Eu que puro prazer, o eu ideal o Imaginrio. Eu tomo algo do A, que me torna completo. Completude, figura mtica, momento mtico, que pode ser colocado no futuro (id. ib.). Essa falta-a-ser lidar com a completude perdida: falta-a-ser UM. A a castrao da me como funo que no produz completude. O pai que instaura a falta. O UM sempre ser a busca e o engodo que se engendra no corpo.

    Pcheux (2002, p.46) tambm chama ateno para a castrao simblica como um fato estrutural, prprio ordem humana, e

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    este fato precisa ser levado em conta se quisermos evitar uma cincia rgia, de natureza sistmica, presa a descries que esbarram num logicismo de ordem psico-biolgica, que no reconhece que a interpretao constitui todo fato e que, portanto, a ordem humana no se restringe ao bio-social.

    Isso me faz pensar que o Real da lngua reorganiza pelo simblico o lugar da funo materna e da funo paterna. Uma dominncia epistemolgica parece se forjar na histria pela injuno dominadora de uma ou outra funo, impedindo o dipo de se realizar. Trago em mim a minha morte. Entre ser e no ser, eis-nos a questo: como a funo materna e a funo paterna se confundem para nos dar a sintaxe, a enunciao e o sujeito enunciador? Como o imaginrio, funcionando como a funo materna, se coloca como prvio ao simblico sendo posterior a ele, como vemos na nfase ao conteudismo e no idealismo? A entrada do sujeito na linguagem seria anterior ou concomitante sua entrada na sociedade?

    O complexo de castrao, segundo a Psicanlise substitui o complexo de dipo. O mito grego teria, segundo Freud, apoderado-se de uma compulso que todos reconhecemos, porque todos a sentimos. Na tragdia escrita por Sfocles, dipo filho de Laio e Jocasta em Tebas. separado dos pais aps o vaticnio de que ele mataria o pai. Deveria ser abandonado num monte, mas o criado responsvel pela tarefa, entrega-o a um pastor de ovelhas. dipo acaba sendo criado em Corinto. Tentando descobrir sua paternidade, dipo vai para Delfos consultar o orculo. Fica sabendo que seu destino matar seu pai e desposar sua me. Tentando fugir desse vaticnio, viaja. Em suas andanas vai para Tebas e no caminho se desentende com um velho desconhecido e o mata: Laio, seu pai. Aps derrotar a Esfinge, vira heri em Tebas. Seu prmio casar com uma viva, irm do regente de Tebas, Jocasta, sua me. Ele se torna pai de quatro crianas. Vem uma praga sobre Tebas e ela s se afastar, segundo o orculo, quando o assassino de Laio for expulso da cidade. O pai adotivo de dipo morre e ele fica sabendo de toda a

    histria. Sua me e esposa se mata. Ele vaza os prprios olhos e se exila com sua filha Antgona.

    Dessa forma dipo se torna smbolo universal do inconsciente, que se disfara de destino. O desejo parricida de carter universal, uma fatalidade inexorvel, nossa pulso assassina. Na interpretao psicanaltica, a figura paterna se coloca como obstculo realizao dos desejos inconscientes da criana em se fundir com a me. Confuso. A funo simblica do pai intervir, sob a forma da lei, para privar a criana dessa fuso. Do pai exigido que ele promova a castrao do filho: a lei primordial, ", pois, aquela que, regulando a aliana, superpe o reino da cultura ao reino da natureza, entregue lei do acasalamento. isso que possibilita contraditoriamente a assuno do corpo como unidade imaginria e como incompletude que se pretende completar com um outro corpo. O corte no cordo umbilical, o desejo pelo tero materno e pela conexo que se v a si num todo e ao outro como extenso de si. Essa lei, portanto, faz-se conhecer suficientemente como idntica a uma ordem de linguagem" (LACAN apud PLON & ROUDINESCO, op. cit., p.168). Esses autores tambm citam Vernant, para quem o destino excepcional de dipo a vitria sobre a Esfinge:

    colocaram-no acima dos outros cidados, alm da condio humana - semelhante ou igual a um deus - e, atravs do parricdio e do incesto, que consagraram seu acesso ao poder, tambm o rejeitaram para aqum da vida civilizada, excluram-no da comunidade dos homens, reduzido a nada, igual ao nada (id., p.169).

    Seus dois crimes, sem ele o saber nem o querer, seu erro inexpivel teria sido misturar em si trs geraes etrias, que deviam seguir-se sem jamais se confundir nem se superpor no seio de uma linhagem familiar" (id. ib.). De um adulto firme sobre seus dois ps, torna-se semelhante a seu pai, um velho que, com a ajuda da bengala, tem trs ps; como tambm semelhante aos seus filhos-irmos, engatinhando de quatro.

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    No Complexo de Castrao, a criana inconscientemente se sente ameaada ao constatar a diferena anatmica entre os sexos. Antes disso, a hiptese dos meninos de que todos os seres humanos possuam pnis. Pelo Complexo de Castrao, na angstia que ele gera, o menino se desliga do investimento feito na me e passa a se identificar com o pai. Essa mesma angstia de castrao faz a menina ingressar no complexo de dipo, invejando o pnis e sentindo-se castrada, deseja ter um filho do pai.

    A ltima etapa do dipo, a "castrao"(...) Quando o menino vive e resolve a situao trgica e benfica da castrao, ele aceita no ter o mesmo Direito (falo) que seu pai, e, particularmente, no ter o Direito do pai sobre sua me, que se revela ento dotada do estatuto intolervel do duplo papel, me para o menino, mulher para o pai; mas, assumindo o fato de no ter o mesmo direito que seu pai, ele ganha, com isso, a seguraina de vir a ter um dia, mais tarde, quando se tiver tornado adulto, o direito que lhe agora recusado, por falta de "meios".

    Assim a Psicanlise explica, em parte, a heterossexualidade: pelo desaparecimento bem-sucedido do complexo de dipo. A me ser substituda por outras mulheres, o menino passa a escolher um objeto do mesmo sexo da me; ou a menina se desliga de um objeto do mesmo sexo por outro de sexo diferente.

    Que no dipo a criana sexuada se torne criana humana sexual (homem, mulher), submetendo prova do Simblico seus fantasmas imaginrios, e acabe, se tudo "caminha" bem, por se tornar o que e se aceitar como : rapazinho ou mocinha entre adultos, tendo seus direitos de criana nesse mundo de adultos, e possuindo, como qualquer criana, o pleno direito de vir a ser um dia "como papai", ou seja, um ser humano masculino, tendo uma mulher (e no mais apenas uma me), ou "como mame", ou seja, um ser humano feminino, tendo um esposo (e no somente um pai) - isto apenas o termo da longa marcha forada em direo infncia humana (ALTHUSSER, 2000, p.67).

    A funo paterna a funo que o pai

    ocupa na subjetividade, o que significa que o pai biolgico pode ou no preencher essa funo. O pai biolgico no se superpe ao pai simblico. E o que vai determinar isso o desejo da me: o pai ser aquele que o desejo da me afirma, independente do que afirmam os genes ou a realidade. Nesse sentido, o pai assumir na subjetividade do filho o que o desejo da me constri: pode ser um pai castrado, impotente; pode ser um pai que no admite uma lei fora dele; ou pode assumir a funo materna, suprindo as necessidades da criana, assumindo o lugar da me flica; ou pode ainda ser um pai desconsiderado, um pai morto. Os casos clssicos de pai que Freud e Lacan analisaram materializam essas ordens, de modo que a funo paterna seja tudo o que pode barrar o Desejo da Me.

    mesmo sem nenhum pai vivo, isso que a presena em ato ao Pai (que Lei), logo, da Ordem do significante humano, quer dizer, da Lei de Cultura: este discurso, condio absoluta de qualquer discurso, este discurso presente de cima, ou seja, ausente em seu abismo, em qualquer discurso verbal, o discurso dessa Ordem, esse discurso do Outro, do grande Terceiro, que essa Ordem mesma: o discurso do inconsciente (id., ib.).

    Em Totem e Tabu, Freud aponta que o

    pai ocupa o lugar da Lei. A Lei, que na Psicanlise de Freud a proibio do incesto, uma forma de leitura do Simblico. Pela insero do simblico se faz proibido o desejo como descarga de estmulos; preciso postergar e controlar essa descarga, fazer a interdio, fazer do animal humano, um homem que pode postergar seus instintos. Esse o papel da educao. Segundo Lvi-Strauss, as relaes de parentesco so a base de qualquer cultura, isso o que introduz o simblico, uma relao de A, com A, uma relao de proibio de AxA, isso d o acesso linguagem. O sistema binrio a caracterstica do simblico (id., p.2).

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    Entre o corpo biolgico e o corpo significante

    Althusser tambm corrobora com a

    compreenso dessa estrutura sinttica primordial que constitui a passagem do animal para o humano, o primado da estrutura formal da linguagem, e de seus mecanismos. A essncia formal da ordem da linguagem se confunde com a lei da Ordem, com a Lei de Cultura. Essa estrutura sinttica coordena a passagem da existncia biolgica existncia humana (filho de homem). Do indivduo ao sujeito.

    Lacan mostra a eficcia da Ordem, da Lei, que espreita, desde antes de seu nascimento, qualquer homenzinho que vai nascer, e se assenhora dele desde seu primeiro vagido, para lhe designar seu lugar e seu papel, logo, sua destinao forada. Todas as etapas vencidas pelo filho de homem o so sob o reino da Lei, do cdigo de assinao, de comunicao e de no-comunicao humanas; suas satisfaes trazem em si a marca indelvel e constituinte da Lei, da pretenso da Lei humana, que, como toda lei, no ignorada por ningum, sobretudo por quem a ignora, mas pode ser desvirtuada ou violada por qualquer um, sobretudo por seus mais puros fiis (id., p.66).

    Mais adiante Althusser fala do ltimo

    drama que torna as larvas mamferas em crianas humanas:

    que tudo se desenrole na matria de uma linguagem previamente formada, que, no complexo de dipo, centra-se inteiramente e se ordena em torno do significante falo: insgnia do Pai, insgnia do direito, insgnia da Lei, imagem fantasmtica de todo Direito - eis o que pode parecer espantoso ou arbitrrio (id., p.67).

    Essa Lei diz respeito aos traumatismos

    infantis, e, funcionando como Lei, faz abstrao de todos os contedos, como afirma Althusser. Essa abstrao garante sua existncia e seu funcionamento: s o filho de homem sofre e recebe essa regra com seu primeiro alento (id., p.66). Ele chama

    ateno para os "efeitos" prolongados nos adultos que sobrevivem extraordinria aventura que, desde o nascimento at a liqidao do dipo, transforma um animalzinho engendrado por um homem e uma mulher numa criancinha humana (id., p.61). Todos os adultos superaram uma prova. Somos testemunhas, para sempre amnsicas, e as vtimas de uma vitria, de um combate pela vida ou morte humanas, trazendo no mais surdo, ou seja, no mais gritante de si mesmas, as feridas, enfermidades e o cansao, marcas indelveis, para o resto da vida, resultantes dessa batalha. Althusser enfatiza que

    esta histria no biolgica, j que toda ela est dominada, desde o ponto de partida, pelo constrangimento forado da ordem humana, que cada me grava, sob a forma de "amor" ou dio materno, desde seu ritmo alimentar e adestramento, no animalzinho humano sexuado (id., p.62).

    Assim se d uma separao e se faz um

    hiato infinito entre o biolgico e o histrico, a natureza e a cultura, um abismo aleatrio, cuja matria e mecanismos so distintos e especficos. Para Althusser, o desejo e a existncia histrica no so consequncias naturais da necessidade e da existncia biolgica:

    o desejo, categoria fundamental do inconsciente, s inteligvel em sua especificidade como o sentido singular do discurso do inconsciente do sujeito humano: o sentido que surge no "jogo" e pelo "jogo" da cadeia significante de que se compe o discurso do inconsciente. Como tal, o "desejo" est marcado pela estrutura que comanda o tornar-se humano. Como tal, o desejo se distingue radicalmente da "necessidade" orgnica, de essncia biolgica. Entre a necessidade orgnica e o desejo inconsciente no existe continuidade de essncia, bem como no existe continuidade de essncia entre a existncia biolgica do homem e sua existncia histrica. O desejo determinado no seu ser equvoco (seu "manque--tre", diz Lacan) pela estrutura da Ordem que lhe impe sua marca, e o destina a uma existncia sem lugar, a existncia do recalcamento tanto de seus recursos quanto de suas decepes.

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    No se tem acesso realidade especfica do desejo partindo da necessidade orgnica, assim como no acedemos realidade especfica da existncia histrica partindo da existncia biolgica do homem' (...) so as categorias essenciais do inconsciente que permitem apreender e definir o prprio sentido do desejo, distinguindo-o das realidades biolgicas que o suportam (exatamente como a existncia biolgica suporta a existncia histrica), mas sem o constituir, nem o determinar (id, p.66-7).

    Em Freud o sonho o pleno-do-desejo.

    Lacan quer conduzir o homem linguagem do seu desejo inconsciente. O contedo do inconsciente pensado por Freud nos conceitos de libido, afetos, pulses, desejo. Esses conceitos aparentemente biolgicos adquirem o seu sentido autntico em uma condio formal de linguagem. A pulso que no psquica, tatua-se no psiquismo e produz uma trilha, o significante. Entretanto, tais conceitos, como realidades, esto em relao. Uma realidade afeta a outra em sua injuno a dominar, a antagonizar, a recobrir, a se alianar, a contradizer e a recalcar uma outra, fazendo-nos seres destinados alucinao, distoro, interpretao.

    Lacan conectou o complexo imago, para tentar explicar o funcionamento da instituio familiar, presa entre a dimenso cultural que a determina e os laos imaginrios que a organizam. Esse termo teria sido usado por Jung, 26 anos antes, para designar, a partir da leitura de um romance que alimentava a percepo da mulher como inspiradora e destrutiva, a representao inconsciente que temos de nossos pais. J em Lacan, o imaginrio caminha da internalizao do meio em cada espcie, fazendo do indivduo dependente do seu meio atravs da passagem do especular, para pens-lo como o engodo que mascara a clivagem entre o eu (moi), o sujeito enunciador; e o eu (Je), o sujeito do inconsciente. Da fuso com o corpo da me para a identificao com o pai, no caso dos meninos, ou para desejar o pai, ao constatar sua castrao e ter inveja do pnis, no caso das meninas. Em ambos os casos, o apego ao corpo da me passa a ser apego ao corpo da lngua. O sujeito se

    desprega de um corpo orgnico, com o qual se comunica por choros, risos, grunhidos, por sons e viso, atravs do qual consegue seu alimento; e abraa um outro, um corpo verbal, graas interveno da castrao simblica, pelo qual comea a se responsabilizar, a assumir sua autonomia ilusria. Assim o Complexo de dipo e o Complexo de Castrao so conjuntos de representaes inconscientes, universais, que possibilitam a linguagem, a enunciao e a sintaxe.

    Essa imago, em Lacan, o lugar imaginrio de referncia das sensaes proprioceptivas: a se vincula o biolgico estruturante, como a prematurao do nascimento, s estruturas simblicas. No engodo do imaginrio, na iluso do eu, na alienao se passa a clivagem. Essa clivagem entre o eu (moi) e o eu (Je) diz respeito dupla diviso do sujeito humano: numa primeira instncia, o eu imaginrio separado do sujeito do inconsciente, e numa segunda instncia se daria a diviso original, inscrita no interior desse sujeito do inconsciente, entre o Real inacessvel e o simblico, com a cadeia significante que determina o sujeito constituindo-o como ego. O dipo e a Castrao articularo o simblico e o imaginrio, a Lei e o Desejo, o Nome-do-Pai e o Desejo Materno:

    o smbolo no uma elaborao da sensao, nem da realidade. O que propriamente simblico - e os smbolos mais primitivos - introduz na realidade humana uma outra coisa, que constitui todos os objetos primitivos de verdade. (...) A criao dos smbolos realiza a introduo de uma realidade nova na realidade animal (LACAN, 2005, p.47).

    O elo entre o simblico e a percepo se

    perde na constituio subjetiva. O imaginrio seria assim uma elaborao das sensaes, isso que intermediaria a realidade animal e a realidade simblica, espelhando-as, invertendo-as e as polarizando. Althusser, a respeito da interpelao ideolgica, afirma que h uma deformao imaginria da representao ideolgica do mundo real, na

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    relao dos homens com suas condies reais de existncia:

    (...) a natureza imaginria desta relao que sustenta toda a deformao imaginria observvel em toda ideologia se no a vivemos em sua verdade. (...)toda ideologia representa, em sua deformao necessariamente imaginria, no as relaes de produo existentes (e as outras relaes delas derivadas), mas sobretudo a relao (imaginria) dos indivduos com as relaes de produo e demais relaes da derivadas. Ento, representado na ideologia no o sistema das relaes reais que governam a existncia dos homens, mas a relao imaginria desses indivduos com as relaes reais sob as quais eles vivem (ALTHUSSER, 1985, p.87-88).

    A eficcia material das representaes,

    portanto, das identificaes, da mesma ordem que a eficcia material do pensamento. Imagem e lngua se tocam, casam-se, imbricam-se, encobrem-se, divergem-se. Por isso defendo que a identificao perceptiva e a identificao inteligvel se dariam sobretudo no imaginrio, afetadas pelo simblico com dominncia de uma funo sobre a outra em diferentes materialidades significantes ou em diferentes formulaes de uma mesma materialidade. O que d a singularidade do sujeito exatamente essa relao entre sua percepo que o faz um animal humano, e o funcionamento da lngua que significa para o sujeito essa percepo antes que ele saiba nome-la, fazendo do indivduo sempre-j sujeito.

    A criana antes de saber falar, percebe. Mas antes de dominar o que percebe, de poder nome-lo, ela falada. Como nos demonstra Althusser(1985, p.98) e Freud, so conferidas ao sujeito antes de nascer uma srie de caractersticas, como seu nome, sua identidade, sua insubstituibilidade numa configurao ideolgica familiar, fortemente estruturada e implacvel, segundo o autor. Essa identidade se desenvolve com o sujeito, tornando-o responsvel diante desta e de outras instituies. possvel fazer suporte ao pensamento de que, como essa percepo falha e limitada, tal limitao e seus equvocos se inscrevem simbolicamente,

    apagando-se como impossibilidade pelo imaginrio, e ao mesmo tempo, retornando inconscientemente, desfazendo a iluso de que tudo possvel. Os portadores de deficincias auditivas, visuais e mentais muito nos tm a ensinar a esse respeito ainda.

    Em virtude disso, o imaginrio o que se d de mais imediato para o animal humano, parecendo assim preceder ao simblico. Neste animal, a viso e a audio precedem verbalizao, que afetar o sujeito e sua continuidade com o objeto, o mundo, e os seres. Nos primeiros meses de vida, o exterior se d como continuao do sujeito, ento a diferena se faz possvel pela lei, pela fronteira que o simblico estabelece ao intervir no imaginrio, pela castrao simblica e pela forma-sujeito qual este indivduo ter que relativamente se adequar.

    E pelo resto da vida, a contradio se faz entre a indistino com outro diferenciao e singularizao que substitui a imagem. Por essa indistino se manifesta tambm no Real da lngua. Mas isso me leva a pensar se o silncio, como continuum significante em relao contradio do sujeito, se situa nesse imbrglio e estabelece seu poder no audiovisual. Orlandi nos aponta:

    [O silncio] , sim, a possibilidade para o sujeito de trabalhar sua contradio constitutiva, a que o situa na relao do "um" com o mltiplo", a que aceita a reduplicao e o deslocamento que nos deixam ver que todo discurso sempre se remete a outro discurso que lhe d realidade significativa (Op. cit., p.23).

    Assim, a relao com o materno e o

    paterno sedimentam posies subjetivas e materialidades significantes: pelo imaginrio, mas identificado, diferenciado, contrastado no simblico em uma formao discursiva dominante, o sujeito produz substituies, parfrases, sinonmias. O sujeito se coloca naquilo que faz, que compreende, que v, que ouve, enfim, que significa. igual a todos, v o que todos vem, ouve o que todos ouvem, fala o que todos falam, o imaginrio permite essa fuso com o corpo outro, mas pelo simblico lhe dado ver, ouvir, falar de um determinado jeito e no de outro, a

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    identificao, a diferenciao e a singularizao. Talvez esteja aqui a relao entre a universalidade da imagem e sua particularidade, a diferena e a relao do verbal e do no-verbal na constituio dos sujeitos e dos sentidos. Dos sujeitos em sua iluso de autonomia, e sua determinao. A singularidade do indivduo exatamente o modo como nele se organizam esses dois plos, como ele acontece, sendo sempre-j sujeito. Ele identificado com o Sujeito Universal, a-histrico, eterno, sempre presente e se faz um com esse Sujeito, mas historicizado, determinado, constrangido, limitado, particularizado pelo aqui-agora. Imaginrio e Simblico imbricam-se, superpem-se para produzir o sujeito. O audiovisual rompe barreiras outras em que o texto verbal esbarra.

    Se no imaginrio o ego se estrutura e organiza a razo, a conscincia, se desdobrando no outro e nos objetos, e referenciado o exterior em tempo, espao e diticos lingusticos, podemos supor que por conta do imaginrio, afetado pela estrutura simblica, que se constri a sintaxe e a enunciao, assim nele tambm est a base material para os processos discursivos. No imaginrio se processa a fico do eu e da se desdobram todas as outras fices (Pcheux, 2009, p.155-168). Nele se mascararia a materialidade da produo esttica. Por ele que se processa a identificao perceptiva, a projeo, a identificao com os personagens e o enredo, a imaginao, a iluso do contedo. O processo metafrico e o processo metonmico so aqui implicados pela contiguidade e substituio, pela continuidade e diferenciao, pela repetio, pela reproduo e pela transformao.

    Pelo imaginrio, representamos, organizamos e manipulamos coisas em pensamento, como se fssemos independentes da realidade. Se na ordem da lngua, o simblico e o poltico esto imbricados, na ordem do audiovisual, o imaginrio, sobretudo, e o poltico se imbricam. A realidade aparece nessa dominncia no como independente e exterior ao sujeito, como v o Materialismo, mas como um ponto de vista que cria o objeto, portanto idealisticamente a

    realidade se mostraria como dependente do pensamento. Um modo de enunciar, de narrar, de construir enredos e personagens. A iluso se constitui assim como desconhecimento do Real. O imaginrio se coloca como vu em que se prega nossa percepo sensorial. Mas no estamos sozinhos diante daquilo que vemos e ouvimos. A percepo tambm tem sua materialidade histrica. A contradio que ela rene em si o que do emprico, do biolgico com o que histrico. O que se ouve e o que se v tambm tm sua espessura material, como a histria da arte e a lingustica nos comprovam. O corpo verbal: o imaginrio lingustico

    Fuchs & Pcheux(1997, p.234) comearam a nomear em 1975, no que chamaram de famosa problemtica da enunciao, uma teoria do corpo verbal, evitando repetir a iluso subjetiva nos procedimentos analticos. Antes disso, em 1969, Pcheux defendeu a compreenso das condies de formao do enunciado e da articulao entre enunciados: a passagem discursividade, ao engendramento do texto (1997, p.113), para buscar produzir uma deslinearizao morfossinttica na estrutura lgica da superfcie lingustica de partida, com o fim exclusivo de produzir o objeto discursivo, excluindo qualquer representao profunda (1997, p.190). Restituindo-se a no-linearidade sinttica, atravessar-se-ia o objeto do esquecimento no. 2: o tempo, o espao e o vnculo estabelecido na relao associativa entre o corpo significante e seu significado aparente para se efetuar a comparao de um discurso com outro, produzindo no corpus um auto-dicionrio. Dessa forma se produziria a dessubjetivizao da discursividade. Pela passagem de uma intra-repetitividade para uma inter-repetitividade, atingir-se-ia a autonomia de um processo discursivo. Os domnios semnticos, elementos de base cujas regras de formao representam o processo discursivo, estabelecem relaes paradigmticas, entrecruzando-se, e sintagmticas, marcando o movimento de um processo discursivo.

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    J em seu Semntica e Discurso, tambm de 1975, articulando a Psicanlise nesta disciplina, Pcheux afirma uma ausncia terica de um correspondente lingstico do imaginrio e do ego freudianos (2009, p.164, grifo meu). Sublinha esta ausncia terica: fica por fazer a teoria do corpo verbal que toma posio em um termo [sic! Parece-me que a traduo correta seria tempo] (modalidades, aspectos etc.) e em um espao (localizao, determinantes etc.) que sejam o tempo e o espao imaginrios do sujeito-falante (id., p.164). Atravessa-se o seu corpo emprico, para atingir a simbolizao deste corpo e de suas referncias, afetados pelo imaginrio. Como afirma Mariani (2003, p.57), esse imaginrio lingustico o refgio do sujeito, iluso necessria de sua unidade. A a teoria da iluso subjetiva da fala define a enunciao como atos do sujeito falante numa situao especfica, na presena de interlocutores. O corpo verbal seria o funcionamento imaginrio ao qual deveriam ser relacionadas as evidncias lexicais inscritas na estrutura da lngua (...), marcando a ascendncia dos processos ideolgicos-discursivos sobre o sistema da lngua e o limite de autonomia, historicamente varivel, desse sistema (PCHEUX, op. cit., p.165).

    O indivduo sempre-j sujeito, ao ser falado, fala e se constri imaginariamente pela lngua, um corpo, costurando sua fisicalidade como indivduo sua subjetividade volante, contraditria, deslizante, equivocvel. Ao encontro entre significante e sentido, corresponde o encontro entre sujeito e a unidade imaginria que produz o efeito de individualidade. Ambos encontros construdos e constitutivos tanto do sentido quanto do sujeito, atravessados pelo Real. Como diz Mariani, ao se afirmar como eu, esse sujeito concomitantemente ostenta a linguagem e perde-se nela. Ela refora esse argumento citando Lacan: eu me identifico na linguagem, mas somente ao me perder nela como objeto (op. cit., p.59).

    Esse ego-sujeito-pleno atravessado pelo inconsciente e pela ideologia. O inconsciente a causa que determina o sujeito exatamente onde o efeito de interpelao o captura,

    reconhece e reformula Pcheux em 1978 (2009, p.277). O sujeito-ego se identifica com a evidncia de um sentido, a forma-sujeito ideolgica. Mas nessa identificao h enfraquecimentos, falhas, rachaduras, espaos. H pontos de resistncia e h revoltas (id., p.279). Como h uma contradio histrica motriz (um se divide em dois)(id.ib.), tambm h uma diviso do sujeito inscrita no simblico que o imaginrio tenta conter, apagar, contornar, domesticar.

    Freud, na Interpretao dos Sonhos(2010), coloca, no trabalho do sonho, a condensao, o deslocamento e a figurao, como o processo primrio cujo primado nos faz entender o pensamento como inconsciente. O processo secundrio seria formado pelo sistema pr-consciente, mais estvel e mais organizado. A comicidade ou o riso, provocados por alguns lapsos ou chistes, dentre outras formas, so ndices da irrupo de elementos do processo primrio no processo secundrio, revelando a diferena de funcionamento e a incompatibilidade entre os dois sistemas, como destacam Plon & Roudinesco (1998, p.374).

    Para Lacan (1979, p.70), a sintaxe, exatamente, pr-consciente. Mas o que escapa ao sujeito, que sua sintaxe est em relao com a reserva inconsciente. Quando o sujeito conta sua histria, age, latente, o que comanda essa sintaxe, e a faz cada vez mais cerrada. Dessa forma, Pcheux (Op. cit., p.164), aliando-se a Lacan, considera a sintaxe como um sistema pr-consciente, corrigeindo sua concepo anterior de que o pensamento seria de origem consciente, como se fosse uma zona autnoma em relao ao inconsciente. Assim ele reformula o esquecimento n2, enunciativo, no mais como consciente:

    o pr-consciente caracteriza a retomada de uma representao verbal (consciente) pelo processo primrio (inconsciente), chegando formao de uma nova representao, que aparece conscientemente ligada primeira, embora sua articulao real com ela seja inconsciente. esse vnculo entre as duas representaes verbais em causa que restabelecido na discursividade, na

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    medida em que ambas podem ser unidas mesma formao discursiva (podendo, ento, uma remeter outra por reformulao parafrstica ou por metonmia). Esse vnculo entre as duas representaes procede da identificao simblica e, como tal, representado atravs das "leis da lngua" (lgica e gramtica), de modo que, tambm a, fica claro que todo discurso ocultao do inconsciente (PCHEUX, 2009, p.163).

    A identificao simblica vincula, assim,

    o sujeito formao discursiva que o domina. Essa identificao a determinados significantes na lngua produzem o sujeito como efeito. Se ao reestabelecermos os processos de identificaes entre representaes verbais, se evidencia o assujeitamento a uma dada formao discursiva, possvel pensar que outras formas de representao, como as no-verbais tambm assim o fazem, constituindo enunciados e vnculos sua maneira, com suas leis, em funcionamentos parfrasticos, metafricos e metonmicos.

    Como efeito de haver sentido, essas representaes verbais produzem uma consistncia imaginria para o sujeito, ou seja, ficam impregnadas de evidncias. Observe-se que essa consistncia imaginria s pode ser concebida porque j h um remetimento ao simblico, ao campo do Outro. S possvel falar em imaginrio, na perspectiva discursiva, com recurso ao simblico, ao inconsciente e ideologia (MARIANI, 2003, p. 68).

    Se o discurso ocultao do inconsciente,

    podemos supor que esse comando da sintaxe diz respeito ao sujeito do discurso, refervel ao sujeito inconsciente e ao sujeito ideolgico. De novo, o que verdadeiramente fala no sujeito, em vez de aparecer, no fala, mas comanda a atuao deste sujeito.

    Lacan (op. cit.), comentando o sentido de uma sintaxe cerrada, fala de uma resistncia psquica elaborada por Freud. Lacan a interpreta como uma muralha que se constri em torno de um ncleo da ordem do Real, cuja regra de funcionamento a repetio da identidade da percepo, autenticada pelo

    sentimento de realidade, o que nos faz entender a relao entre o corpo biolgico e o corpo significante. Lacan chama isso de resistncia do discurso que se difere da resistncia do sujeito. A resistncia do sujeito implicaria um eu suposto que, ao aproximar-se desse ncleo, perde a certeza que fundamenta esse eu. Por isso o sujeito desperta dos sonhos, j que neles haveria o destino mortal do sujeito, a angstia que se exprime e se repete no sonho, o mais ntimo da relao do pai ao filho (id. ib.). Por isso tambm o Real, o maior cmplice da pulso, apreendido como originalmente mal-vindo. A esquize do sujeito estaria, portanto, persistindo depois do despertar, a conscincia que se retrama, que sabe que vive tudo aquilo como um pesadelo, mas que, assim mesmo, se agarra a si mesma, sou eu que vivo tudo aquilo, no preciso me beliscar para saber que no estou sonhando (id., p.72). Esta esquize representaria uma esquize mais profunda, a ser situada entre o que refere o sujeito na maquinaria do sonho, a imagem da criana que se aproxima com o olhar cheio de reproches e, por outro lado, o que o causa e no que ele fracassa, invocao, voz da criana, solicitao do olhar - Pai, no vs...(id. ib.). Entre os possveis desdobramentos discursivos para o que Lacan coloca como a esquize do olho e do olhar, est a possibilidade de pensarmos essa relao entre viso, percepo e funcionamento sinttico.

    Ora, Pcheux defende que na sintaxe estariam escritas, como um trao universal, as condies de uma separao entre uma representao verbal, uma materialidade significante, como nos faz compreender Lagazzi em seus trabalhos (2009, 2010, 2011), e sua formao discursiva. O que material se transforma em abstrato:

    Os significantes aparecem dessa maneira no como as peas de um jogo simblico eterno que os determinaria, mas como aquilo que foi sempre-j desprendido de um sentido: no h naturalidade do significante; o que cai, enquanto significante verbal, no domnio do inconsciente est "sempre-j" desligado de uma formao discursiva que lhe fornece seu

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    sentido, a ser perdido no non-sens do significante (PCHEUX, 2009, p.164-5).

    O nonsense, segundo Lecercle (apud

    GADET & PCHEUX, id, p.197), seria o lugar de uma contradio entre produtividade textual e texto como produto; ou entre sentido como processo (jurdico ou de encadeamento) e sentido como efeito, cujas caractersticas absurdas, entre outras, estariam as palavras insensatas com frases bem formadas. No centro do texto nonsnsico, haveria uma falta que faz com que tal texto se desenvolva em torno dessa falta a fim de conjur-la, atravs de estruturas de acrscimo. Por isso o nonsense um gnero sinttico: a sintaxe sempre rigorosamente observada e serve de barreira. A hipercorreo sinttica o excesso que conjura a falta semntica (id. ib.). Fazendo isso, ao pr em ao todas as possibilidades de fracassos da linguagem, o nonsense, em sua estratgia corretiva contraditria, denuncia esse fracasso e assim pode-se contorn-lo, corrigi-lo, consciente do papel e do funcionamento lingsticos. Mas o risco nesse jogo ver a lngua escapar ao sujeito que a fala, v-la falar o sujeito (id. ib.). A identificao-interpelao fica recalcada.

    No domnio discursivo, interessam tanto as falhas na ordem da lngua quanto o modo especfico de construo de uma linearidade narrativa. Ou melhor, a anlise da(s) posio(es) discursiva(s) inscrita(s) em uma produo textual qualquer, com sua ordem, organizao e falhas peculiares que interessa(m) ao analista do discurso. O que o sujeito diz, seja l como for, diz dentro da histria. O que falha na prtica discursiva do sujeito, o que derrapa nessa prtica, tambm algo que se d dentro da histria. E por isso que produz sentido. As falhas na ordem significante se realizam em condies de produo determinadas, so o resultado do funcionamento da lngua em relao ao inconsciente e ideologia (MARIANI, 2003, p. 65).

    Pcheux corrobora, citando Canguilhem,

    que o sentido no se deixa aprisionar por camisas de fora da lgica ou da fisiologia humana: pensar um sentido em relao a cadeias de significantes v-lo como em

    relao a alguma coisa. Os computadores e softwares no conseguem fazer o que o seres humanos fazemos: brincamos com o sentido, jogamos com ele, desviamo-lo, simulamo-lo, mentimos, fazemos armadilhas.

    Se o homem assim capaz de jogar sobre o sentido, porque, por essncia, a prpria lngua encobre esse "jogo", quer dizer, o impulso metafrico interno da discursividade, pelo qual a lngua se inscreve na histria. (...) esta relao entre lngua como sistema sinttico intrinsecamente passvel de jogo, e a discursividade como inscrio de efeitos que constitui o n central de um trabalho de leitura de arquivo (PCHEUX, 2010, p.58).

    A leitura de arquivo lida com o jogo de

    regras que determinam a apario e o desaparecimento de enunciados, a persistncia deles, o apagamento deles, a existncia paradoxal deles como acontecimentos e como coisas1(FOUCAULT apud GUILHAUMOU, 2004, p.15).

    As representaes imaginrias vo se tornando naturais, cristalizadas e parecem solidificar a conexo entre significante e significado, entre os enunciados e os sentidos, entre o que se pensa, o que se quer dizer, e o que se diz, mas os dizeres so historicamente circunscritos s redes de parfrases, substituies metafricas e encadeamentos constitutivos dos processos de produo dos sentidos inerentes s formaes discursivas e que garantem um efeito de literalidade para as representaes imaginrias (MARIANI, 2003, p.61).

    Dessa forma, para atingir esse objeto discursivo, o analista de discurso procura desmontar o modo como as evidncias se do para o sujeito, pelo mecanismo da identificao do objeto que , simultaneamente, uma identificao perceptiva e uma identificao inteligvel: eu vejo o que vejo, que resulta em "sabe-se o que se sabe". Ao se identificar a "coisa", tambm se identifica o sujeito que a v, que fala dela ou que pensa nela (PCHEUX, 2009, p.92, grifo meu). O Real construdo 1 no original: leur rmanence et leur effacement, leur existence paradoxale dvnements et de choses.

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    como conjunto das coisas discernveis e o sujeito, como singular, nico no seu nome prprio. Pcheux relaciona aqui o ato de perceber, com o ato de ver e de pensar. Estou tentando conduzir meu gesto de interpretao da teoria para o desdobramento dessa relao entre processo referencial, relacionado viso e interpretao e o funcionamento do imaginrio imbricado no funcionamento do simblico, na materialidade significante audiovisual. Pcheux nomeia como cena essa organizao da vida, isso que representa o sujeito e os objetos de conhecimento: o sujeito "v o que v a partir de seus olhos e sabe o que tem que pensar disso (id., ib.). Essa identificao, e seus consequentes modos de interpretao, faz nos reconhecermos como humanos. percepo, que o corpo produz ao reagir vida, est imbricada a interpretao como efeito do funcionamento ideolgico e inconsciente.

    Ao fazer o exame da relao do sujeito com o que o representa, ele chama isso de abordagem terica materialista do funcionamento das representaes e do pensamento nos processos discursivos, uma teoria da identificao e da eficcia material do imaginrio. Resta-nos pensar o audiovisual desse ponto de vista.

    A partir de sua concretude individual e do seu contexto imediato, o sujeito conduzido a se identificar com o Sujeito Universal em relaes pensadas e esvaziadas de todo ser. Pcheux fala de ver e perceber para se chegar a esse Sujeito Universal, situado em toda parte e em lugar nenhum, e que pensa por meio de conceitos(id., p.117). Assim descreve o processo da identificao: se eu estivesse onde tu(voc)/ele/x se encontra, eu veria e pensaria o que tu(voc)/ele/x, v e pensa (id., p.118). por esse processo imaginrio pelo qual se d a identificao, que a ideologia, com suas evidncias, ao situar o sujeito, significa para ele o que ele . um processo que, ao se impor para o sujeito, dissimula sua imposico: assujeitamento como iluso de autonomia constitutiva do sujeito. Pensar e ver implicam em pensar por meio de imagens: o no-verbal em relao com o verbal. No audiovisual, isso implica a posio da cmera, o modo de compor os

    planos, e o lugar da congregao dos planos na montagem e em seus processos: decupar, enquadrar, montar.

    Em Pcheux o "domnio de pensamento" no um ncleo rgido e lgico que fundamenta o ser, independente de suas emoes e percepes, e de suas relaes materiais, como se a conscincia tivesse o primado sobre a vida. A propriedade de autonomia referencial apenas uma conseqncia de uma propriedade parafrstica de substituio, determinada discursivamente (GADET & PCHEUX, 2004, p.159). Os processos discursivos atuam na base lingustica, fazendo com que os sentidos paream evidentes e com que nos coloquemos cogitantes, locutores e enunciadores de pensamentos, tomando posies responsvel e livremente. Mas o domnio de pensamento, nos diz Pcheux,

    se constitui scio-historicamente sob a forma de pontos de estabilizao que produzem o sujeito, com, simultaneamente, aquilo que lhe dado ver, compreender, fazer, temer, esperar etc. por essa via, como veremos, que todo sujeito se "reconhece" a si mesmo (em si mesmo e em outros sujeitos) e a se acha a condio (e no o efeito) do famoso "consenso" intersubjetivo por meio do qual o idealismo pretende compreender o ser a partir do pensamento (2009, p.148).

    Assim Pcheux corrobora com Marx e

    Engels (2009, p.31) de que a produo da conscincia, com suas idias e representaes, est entrelaada com a atividade material e o intercmbio material dos homens, linguagem da vida real. As relaes de sentido, a interpretao do que se v tem assim uma espessura scio-histrica que se impe sobre as possibilidades e capacidades orgnicas. No se pode negar que qualquer espcie animal reconhece os de sua espcie e, na maioria da vezes, os seus predadores. Mas o que queremos entender como a ideologia funciona nesse reconhecimento, produzindo e naturalizando os lderes e os liderados, os exploradores e os explorados. Diferente do biologismo, no contornamos o fato de que

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    vemos e ouvimos sob determinaes simblicas e histricas.

    Foi na primeira fase da AD que surgiu um procedimento para se lidar com as formaes imaginrias: o jogo de imagens como constitutivo das condies de produo do discurso. Ao enunciar, o sujeito enunciador, pre-conscientemente se pe questes como "de que lhe falo assim?" de que ele me fala assim?. Pcheux aponta que os sujeitos sustentam seus discursos sobre discursos prvios e sucumbem s representaes imaginrias, posies discursivas que ocupam em determinadas condies histrico-ideolgicas: (...) supomos que a percepo sempre atravessada pelo j-ouvido e o j-dito, atravs dos quais se constitui a substncia das formaes imaginrias enunciadas (id., p.86).

    Ora, se a percepo, a tomada de posio, o ponto de vista que assumimos na lngua para enunciarmos, so constitudos pelo j-ouvido e o j-dito, logo nossa percepo sonora e visual tambm acabam sendo adestradas para ouvir e ver de um jeito e no de outro. Assim, no audiovisual a cmera consolida esse lugar de ningum e pelo qual todos vem, com o qual todos so chamados a se identificar. Personagens e enredos so lugares significantes que constrem para ns tambm esse lugar de identificao de quase todos, j que assumimos uns lugares e rejeitamos outros. Como sujeitos vivemos a injuno por conflitos, reviravoltas e antagonismos dramatrgicos.

    Ora, partindo dessa leitura da diferena entre imaginrio e simblico, podemos dizer que o consenso intersubjetivo e a capacidade de se colocar no lugar do outro, que Pcheux elaborou como as formaes imaginrias dentro do conceito de condies de produo do discurso, esto relacionadas tanto ao funcionamento do imaginrio, da deformao imaginria da representao ideolgica do mundo real, segundo Althusser (1985, p.87); quanto s evidncias empricas, sensoriais, das possibilidades fisiolgicas perceptivas que nos fazem nos reconhecermos como seres da mesma espcie, diferentes de outros animais.

    Logo, h assim um sujeito que se manifesta pelo imaginrio (ver Pcheux, 2009, p.199) e, quando atravessada essa iluso, h o Outro que se traveste desse sujeito, propriamente ao sujeito do discurso. Uma instncia imaginria, presa ao funcionamento ideolgico, a outra dessubjetivada, em que se manifesta a espessura inconsciente e ideolgica. Por isso defendo que as formulaes audiovisuais so funo predominante do imaginrio em relao ao simblico. Deslocando a classificao peirceana dos signos, o funcionamento significante do audiovisual se d predominantemente tambm na contradio: nele a imitao preponderante. Diferente do funcionamento do significante verbal, predominantemente simblico, dominado sobretudo pela conveno. Se existe aliana, recobrimento, contradio, desigualdade, subordinao entre os elementos dos aparelhos ideolgicos de estado, entre as formaes discursivas, logo posso pensar que essas relaes tambm se do no funcionamento dessas duas ordens, que constituem o sujeito, produzindo diferentes materialidades significantes, diferentes relaes com o sentido e diferentes efeitos do verbal sobre o no-verbal e vice-versa. O Imaginrio, o Simblico e o Real se relacionam desigualmente: ora domina o Imaginrio, ora o simblico, ambos afetados pelo Real. Num produto audiovisual essas ordens e dominncias se alteram e se sobrepem.

    Nesse domnio imaginrio coexistem contraditoriamente o sujeito enunciador e o sujeito do discurso. Enquanto o sujeito do discurso deveria ser remetido dominncia do simblico e do histrico, o sujeito enunciador deveria ser remetido ao funcionamento do imaginrio em sua relao com o simblico e o histrico, em sua sujeio s evidncias, no funcionamento ideolgico. Nessa relao se daria, portanto, a passagem do eu-aqui-agora ao Sujeito Universal e seu necessrio e contraditrio retorno atravs das materialidades e prticas significantes na histria. Do corpo como sistema de referncias e dixis abstrao que promove a captura de muitos corpos,

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    produzindo um maior nmero de identificaes, de posies de sujeito possveisn e de gestos de interpretao. Se o texto verbal apreende um certo nmero de sujeitos falantes. O texto audiovisual apreende um nmero maior de sujeitos ouvintes-enxergantes, o que d a abrangncia internacional a seus produtos.

    Para Pcheux, em suas formulaes em Semntica e Discurso (2009), a identificao simblica dominaria as identificaes imaginrias atravs das quais toda representao verbal, portanto toda palavra, expresso ou enunciado, se reveste de um sentido prprio, absolutamente evidente, que lhe pertence (id., p.163, nota de rodap 30).

    preciso destacar, como se retifica Pcheux em 1978 (id, p.269-281), que as iluses, os apagamentos, os esquecimentos, os deslizamentos e as evidncias so todos sempre afetados pelo equvoco, por falhas que no cessam de retornar sobre o consciente e deixar nele seus traos. O Real da lngua irrompe nessa identificao simblica, nas leis da lngua o tempo todo. Os procedimentos de formulao e reformulao, sobretudo no complexo processo de produo audiovisual, so sempre tentativas de conter esses equvocos. Gadet & Pcheux, aplicando a compreenso de Milner sobre o sujeito enunciador e do Real da lngua como cortado por falhas, reforam que

    as fendas na lngua so de natureza dupla, marcadas de maneira diferente na sintaxe: uma, caracterizada por dificuldades de escritura, relaciona-se diretamente com a presena do sujeito da enunciao; a outra, que supe inicialmente um ponto de vista de fora da sintaxe, remete definitivamente a uma reflexo sobre o processo da metfora como constitutiva do Real e da lngua enquanto processo sem sujeito (op. cit., p.60-1).

    necessrio se por nesse lugar de

    estranhamento das naturalizaes perceptivas, para lidar com o processo metafrico constitutivo do Real, do que o inenuncivel de uma ideologia, o que foracludo. Isso

    implica estudar a ordem imaginria tambm a implicada.

    Num fato histrico, quando um acontecimento discursivo se processa, h marcas e objetos simblicos que se associam ao fato, e Pcheux (2002, p.23) se demanda qual a materialidade lxico-sinttica que constri os acontecimentos histricos. O processo metafrico o transporte entre dois significantes, constitutivo de seu sentido, e a orientao des-equalizante desta relao como a condio de aparecimento do que, em cada caso, poderia funcionar como sentido prprio ou como sentido figurado (FUCHS & PCHEUX, 1997, p.244).

    Assim, se havia uma separao entre o procedimento de de-superficializao lingustica e a construo do objeto discursivo para se atingir o processo discursivo, feito no primeiro e no segundo momento da AD; Pcheux (1997, p.314-18) orienta, como vimos acima, no 3o. momento do desenvolvimento da teoria, uma interao cumulativa que conjugue a alternncia de momentos de anlise lingstica - essa anlise dos mecanismos formais que compem uma gramtica de superfcie de todo texto -, com momentos de anlise discursiva, para promover uma incessante desestabilizao discursiva do corpo das regras sintticas e das formas evidentes de sequencialidade. O corpo homogneo e unitrio atravessado, trazendo lume sua organizao e composio contraditria.

    Para isso, preciso reinscrever os traos de anlises parciais no prprio interior do corpus do campo discursivo analisado. O campo discursivo passa por outras fases de anlise lingustico-discursiva, de tal forma que nesse chamado batimento espiralado entre descrio e interpretao, se reconfigure o corpus e se alargue, assim, o processo, produzindo uma sucesso de interpretaes do material analisado. Este o procedimento para compreender-se o lugar do mesmo, no processo de anlise, como Pcheux faz em Discurso: Estrutura ou Acontecimento. Ao assumir essa forma de analisar discursivamente um objeto simblico, atravessa-se a opacidade do registro de

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    enunciao e das restries a que a sequencialidade lingustica submetida.

    Estudando o encadeamento intradiscursivo, a AD-3 pode abordar o estudo da construo dos objetos discursivos e dos acontecimentos, e tambm dos pontos de vista e lugares enunciativos no fio intradiscursivo (id. p.316). Pela heterogeneidade enunciativa, chega-se s formas lingustico-discursivas do discurso-outro: no s do outro que o sujeito traz baila, como sujeito enunciador. H tambm tanto o outro em que o sujeito se traveste, como tambm o Outro do pr-construdo, esse Outro interdiscursivo, que comparece revelia das intenes e autocontrole de um enunciador estratgico. Esse Outro interdiscursivo, como vimos acima, tanto estrutura a encenao do sujeito como ego, pela filiao e pela identificao, pelos pontos de identidade nos quais o ego-eu se instala, quanto os desestabiliza, ao fazer escapar desse ego-eu, o controle estratgico do seu discurso, pelos pontos de deriva em que o sujeito passa no outro(id., p.317). nesse sujeito ativo, ego-eu estrategista assujeitado, do sujeito enunciador que emergem as posies de sujeito. Cabe, portanto, anlise referir essa emerso de uma posio de sujeito falha no controle do ego-eu, irrupo imprevista de um discurso-outro, e quilo que a obstaculiza, procurando construir uma nova leitura de materialidades em relao interlocuo, memria e ao pensamento, interpretando que foras atuam para que tais materialidades se manifestem como entrecruzamento, reunio ou dissociao de outras materialidades. Da a anlise se mostraria como reconstruo de um espao de memria de um corpo socio-histrico de traos discursivos, inscritos por e em uma lngua. Esse espao de memria tambm atravessado por divises heterogneas, por rupturas e por contradies(id. ib.).

    Em suas estratgias e intenes atravs de sua conscincia, o sujeito enunciador se confronta com determinados temas enfocados sob certos pontos de vista. Esses temas e pontos de vistas prvios, pr-construdos, seriam uma posio no interior de uma rede de questes. Tal posio j-dada se

    inscreveria, de uma s vez, nas figuras da troca conversacional (do dilogo ruptura, passando por todas as formas de conflito) e nas figuras que pem em perspectiva (id. ib.). Essa posio j-dada, assim, um gesto que estrutura um campo de leituras. Pcheux prossegue colocando questes, e ao coloc-las, ele direciona tanto o seu desejo, o seu ideal, quanto os lugares de resposta que vislumbra para uma atitude analtica e para os procedimentos de anlise

    como conceber o processo de uma AD de tal maneira que esse processo seja uma interao em espiral combinando entrecruzamentos, reunies e dissociaes de sries textuais (orais/escritas), de construes de questes, de estruturaes de redes de memrias e de produes da escrita? Como a escrita vem escandir tal processo, a produzindo efeito de interpretao? Como o sujeito-leitor emerge nessa escanso? O que interrupo nesse processo? Em que condies uma interpretao pode (ou no) fazer interveno? Pode-se (re)definir uma "poltica" da anlise de discurso? (id., p.318).

    Se a prpria anlise no pode ser objetiva,

    a poltica de seu procedimento se fazer no entremeio entre a iluso subjetiva e a conscincia de que estamos deriva dos sentidos, na disperso do texto e do sujeito. Nos colocando na lngua num embate com ela mesma. Fazendo-nos vencedores vencidos em suas determinaes. O equvoco: a falha da lngua na histria e o dipo linguageiro.

    Conforme tratei acima, em seu processo de formulao e reformulao do papel da anlise lingustica na AD, Pcheux, em seus ltimos trabalhos, vai caracterizar a abordagem das regularidades lingusticas pensando as desestabilizaes e os deslocamentos de construes, e vai se referir ao Real da lngua, ao impossvel que produz a falha e o equvoco. Pcheux orienta sobre a descrio das materialidades discursivas se instalar sob o real da lngua em seu jogo de

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    diferenas, alteraes, contradies, nos equvocos, elipses e faltas, sem neg-las, contorn-las ou impor-lhes uma estabilidade lgica:

    A Lingustica - e antes de tudo a teoria sinttica - em oposio Semntica, concebida como disciplina independente, tem efetivamente a ver com uma materialidade especfica de natureza formal (e nisso, ela "ambiciona' o ideal das cincias), mas simultaneamente, esta materialidade resiste do interior s evidncias da lgica, seja ela dita natural ou matemtica'. A materialidade da sintaxe realmente o objeto possvel de um clculo - e nesta medida os objetos lingusticos e discursivos se submetem a algoritmos eventualmente informatizveis - mas simultaneamente ela escapa da, na medida em que, o deslize, a falha e a ambiguidade so constitutivos da lngua, e a que a questo do sentido surge do interior da sintaxe (Pcheux, 2010, p.57).

    Nessa obra, La Langue Introuvable, de

    1981, Gadet & Pcheux tratam sobre o Real em Lacan e o Real da lngua. Eles se preocupam como as teorias lingusticas reproduzem a filosofia burguesa ao eliminar toda contradio e em disfarar a existncia das relaes entre as classes, como o biologismo e certas teorias lingusticas mascaram, camuflam e contornam as contradies. Lidar com esse Real da lngua assumir o primado das contradies do dispositivo terico no dispositivo analtico. Qualquer materialismo que contorna suas contradies deixa de ser materialismo, afirmam os autores (id., p.163).

    Como se contorna a contradio? Construindo um Real como um todo consistente, representvel por uma rede de regras, a Lingstica s pode ignorar o equvoco, insuportvel ao materialismo da escrita, pelo qual essas regras so escritas, ao mesmo tempo a representao da lngua como um todo jamais fica em paz, porque em cada lngua, o equvoco se manifesta inexoravelmente atravs dos fenmenos lingsticos localizveis, obrigando a Lingstica a inclu-los, debatendo-se e

    escandindo-se em seu ideal de completude (id., p.163).

    Esse ideal de completude e de unidade se estrutura, como vimos, na relao edipiana, no narcisismo. O prazer de ver tudo como continuidade de si e de imperialisticamente se impor como o Um. Injuno do imaginrio e do pensamento que afetam-nos como seres e nossos fazeres, nossas prticas tericas (id., p.203).

    Assim, ao assumir o Real da lngua, a AD lida com o Real da histria: a contradio existe e preciso enfrent-la. A contradio existe no sujeito em relao a si mesmo e em relao aos outros. A contradio constitui sujeito e sentidos. Como afirma Orlandi (1995, p.15-16), para a anlise de discurso h Real (mesmo que para isso seja preciso distinguir diferentes tipos de "Real"). Segundo Lacan o Real o impossvel em que h ausncia de lei e de ordem, mas seria possvel articular um pedao desse Real:

    Yo hablo de lo Real como imposible en la medida en que creo que lo Real - en fin, creo: si es mi sntoma, dganmelo - en que creo que lo Real es, hay que decirlo, sin ley. El verdadero Real implica la ausencia de ley. Lo Real no tiene orden. Y esto es lo que yo a quiero decir al decir que lo nico que quiz llegar a articular ante ustedes, es algo que concierne a lo que he llamado un "pedazo de Real", (LACAN, 1976).

    Para articular um pedao do Real preciso

    usar o imaginrio, saber que ele existe e que inacessvel, mas deixa suas marcas, faz vislumbrar a sua existncia. O impossvel no foracludo, a contradio assumida.

    Gadet & Pcheux (2004, p.48), falam de uma esquizofrenia e de uma parania em torno de uma logofilia que resulta na relao dos sujeitos com a lngua, entre a lgica, o empirismo na Lingstica, a psicose e a poesia: entre o amor pela lngua materna e o desejo da lngua ideal. Esse amor pela lngua o lugar de uma encruzilhada imaginria que nos d o desejo de estudar Lingustica, de nos voltarmos para um embate com a lngua. A posio estruturalista, advinda da Psicanlise lacaniana, teria indicado, pelas relaes entre imaginrio,

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    simblico e Real no inconsciente, que a deriva dessa logofilia, que caracteriza as cincias da linguagem, os poetas, e os psicticos, tm dois plos em que se estaciona. Trata-se exatamente de dois gneros de loucura, no sentido ao mesmo tempo gramatical e sexual: o "feminino" da lngua materna, lngua me do fluxo oral das palavras, o "masculino" da lngua ideal, escritura em que o significante ausente domina a construo sinttica (id. p.51). No ideal da lngua se inscreve a figura do pai (o Falo, a Ordem, o Direito e a Razo), em conjuno e em desconjuno com a da me (a matriz, o fluxo, a Vida) (id., p.51).

    Assim, essa logofilia, sintomatizaria o ponto dificilmente confessvel, em que o mistrio da sexualidade surge em meio s problemticas da cincia lingstica (id., ib.). Os autores remetem, por esse vis, essa logofilia a uma cena primitiva que amarra o lao inconsciente singular ao que vem da histria sob as figuras ideolgicas do Direito e da Vida (id., ib.): o dipo lingustico corresponde ao fato de que toda a alngua no pode ser dita, em qualquer lngua que seja(id., p.52, grifos meus). Ideologia e Inconsciente se imbricam. A funo paterna e a funo materna, figuras ideolgicas advindas da histria, produzem posio-sujeito e sua relao com certo modo de fazer sentido, constituindo materialidades significantes. Estrutura e acontecimento. O contraditrio materialmente imbricado.

    A existncia da lngua atinge o inconsciente e a histria. A h um ponto de impossvel, o Real da lngua: se no h relao sexual, como diz Lacan, impossvel que dois sujeitos se unam. Em seu artigo tambm de 1981, Lnonc: enchssement, articulation et d-liaison, no Colquio Matrialits Discoursives, Pcheux avana nesse caminho ao escrever sobre o enunciado, sua discursividade no intra-discurso, como ele pode conter um outro, como pode se articular com outro para formar uma sequncia enunciativa. Pela metfora do coito, o autor identifica uma sorte de analogia lingustico-discursiva da sexualidade genital accomplie, bem-sucedida e frutuosa: se a frase gramatical clssica metaforiza a relao sexual bem-

    sucedida e frutuosa da sexualidade genital normal, e se, como se sabe, no existe relao sexual (Lacan), que consequncias resultam disso para a gramtica?2 (?, p.148)1. Althusser tambm havia vislumbrado isso ao se questionar sobre a relao entre a estrutura formal da linguagem, como condio de possibilidade absoluta da existncia e da compreenso do inconsciente, as estruturas concretas do parentesco, e as formaes concretas ideolgicas em que so vividas as funes especficas (paternidade, maternidade, infncia) implicadas nas estruturas do parentesco (ALTHUSSER, 2000, p.69-70).

    A Lingustica possvel, mas um impossvel constitui a lngua. Milner sentencia: impossvel de dizer, impossvel de no dizer de uma determinada maneira(op. Cit., p. 52). Neste caso, em que consiste a funo do imaginrio e do inconsciente pr-edipiano, que localizamos como predomnio da funo materna, a lalangue, o Real da lngua, imbricada, casada com as regras, com o simblico, como predomnio da funo paterna, ambos afetados pelo Real? A unidade costurada nesse encontro entre ideologia e inconsciente. O corpo significante interpretado com as grades do corpo biolgico:

    o trabalho do gramtico e do lingista consiste em construir a rede desse real, de maneira que essa rede faa Um, no como efeito de decises que viriam arbitrariamente rasgar essa unidade em um fluxo, mas por um reconhecimento desse Um enquanto real, ou seja, como causa de si e da sua prpria ordem. Fazer Lingstica supor que o real da lngua representvel, que ele guarda em si o repetvel, e que esse repetvel forma uma rede que autoriza a construo de regras. (id., p.53, nota 5)

    2 No original: Si la phrase grammaticale classique mtaphorise le rapport sexuel accompli et fructueux de la sexualit gnitale normale, et si, comme on le sait, il ny a pas de rapport sexuel (Lacan), quelles consquences en rsulte-t-il pour la grammaire?

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    Mas, os textos tm que ser interrogados em relao sua posio em um campo histrico. O sentido no preexiste sua constituio nos processos discursivos ( id., p.158). Entretanto, sempre vo aparecer como se preexistissem, por isso preciso desvelar a existncia histrica das materialidades discursivas, superar a dicotomia entre estrutura e acontecimento, e pensar esse dipo linguageiro como imbricao de estabilidades lgicas e derivas de sentido, cristalizaes fluidas do que vem da histria.

    Assim a apreenso imaginria do Real estabelece as regras que discernem o que impossvel de simbolizar com o que simbolizvel. "No h linguagem potica"(id., p.58), decretam Gadet & Pcheux: privilegiando o Saussure dos Anagrammes que, ao fazer do potico uma propriedade da lngua, um deslizamento inerente a toda linguagem, se conseguir estabelecer uma teoria da lngua nas suas relaes com o inconsciente, dominando o pensamento e impondo-lhe a ordem do negativo, do absurdo e da metfora. O poeta seria apenas aquele que consegue levar essa propriedade da linguagem a seus ltimos limites (id., p.58).

    A lalangue da ordem da satisfao da relao da me com seu filho, no jogo com os sons, na transmisso da lngua materna, na lngua dos amantes, da magia, na glossolalia, no delrio, na musicalidade, deixando a palavra fora de qualquer significao, apenas um fluxo polifnico, um rio onomatopaico, que tece um esboo de lao social no sujeito para sempre:

    O no-idntico que a se manifesta pressupe a alngua, enquanto lugar em que se realiza o retorno do idntico sob outras formas; a repetio do significante na alngua no coincide com o espao do repetvel e que prprio lngua, mas ela o fundamenta e, com ele, o equvoco que afeta esse espao: o que faz com que, em toda lngua, um segmento possa ser ao mesmo tempo ele mesmo e um outro, atravs da homofonia, da homossemia, da metfora, dos deslizamentos do lapso e do jogo de palavras, e do bom relacionamento entre os efeitos discursivos (id. p.55).

    A pulso e o descontrole da vida se enlaam com o regramento e o controle da histria para fazer o um aparente, o dipo, o singular, que se representar como causa de si, apagando-se seu passado para si, seu DNA: o lao do poltico, do ideolgico, em relao ao Imaginrio, ao Simblico e ao Real. Vimos que, na Psicanlise, nessa imbricao que o que da natureza se inscreve como cultura, outrora o lugar de passagem do dipo freudiano: pela funo paterna que o exerccio da nomeao permite criana adquirir sua identidade (PLON & ROUDINESCO, 1998, p.542). Ao nomear, ao dar seu nome, o pai encarna a lei, exercendo uma funo essencialmente simblica.

    Se impossvel de no dizer de determinada maneira, isso faz da enunciao aquilo que possvel. A maneira pela qual se tem que dizer. A sintaxe com suas regras, a lngua com sua relativa lgica, esto em relao com um ponto de vista, um modo, um espao e um tempo, uma enunciao. Logo, o ego, o sujeito consciente enunciador construdo pelo Real da lngua, pelo Real da histria, e pelo Real do Inconsciente como esse dipo lingustico que se ilude de que contorna a contradio e se faz um um. Ora, vimos que o Real da lngua tem a ver com lalangue, logo com a identificao imaginria, a funo materna, um Real sem o controle do simblico, e as leis da lngua tm a ver com o pai simblico, com a castrao simblica e o primado do significante. De 1975, quando Fuchs & Pcheux afirmaram faltava radicalmente a teoria da situao concreta dando conta do vivido constitudo pela estrutura da Ideologia, chegamos essa iluso do dipo linguageiro.

    Debatemo-nos com as implicaes: os enunciados, com suas aparentes completudes, unidades e acasalamentos seriam ento o correspondente lingustico de um eterno desencontro entre a funo materna e a funo paterna em sua produo do um edipiano? E, conforme uma ou outra dominncia, possvel relacionar a tipos especficos de materialidades significantes? Existem diferenas na produo de sentido e na constituio dos sujeitos em sociedades cujo domnio matriarcal maior? Que diferenas

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    de relaes de classes existem entre sociedades patriarcais e matriarcais? E sendo mais consequente, seria o audiovisual uma materialidade significante cuja dominncia da identificao imaginria e o verbal, da identificao simblica? O sujeito enunciador seria assim esse lugar de um dipo bem-sucedido em sua cegueira, que viveria, segundo Freud, sua trgica revelao, o um que se divide em trs: o sujeito que enuncia, sujeito ao imaginrio, na ideologia, e sujeito ao outro, ao simblico, no inconsciente e sujeito ao Real no impossvel, no caos e na disperso de si? Sujeito e sentido se equivalem assim?

    O dipo resultado de uma unio impossvel, recebe uma organizao para sua contradio insolvel, entre ser deus e resolver seus enigmas e ser reduzido a nada em sua disperso e morte. Eis a, penso, o lugar para pensarmos o audiovisual, o lugar da sintaxe, da enunciao, o tempo-espao imaginrio simbolizado (e vice-versa). A estrutura e o acontecimento. Essa tese me leva em direo compreenso do funcionamento do verbal e do no-verbal, ambos necessrios para a constituio dos sujeitos e dos sentidos, afetados assim pelo imaginrio e pelo simblico em suas relaes, disjunes e conexes, em conjuno e em desconjuno, como nos dizem os autores.

    No meu entender, ao se pensar os diticos e toda essa transfigurao do emprico para o lingustico, lidamos com o discursivo da materialidade significante afetada pela dominncia do imaginrio materialidade significante afetada pela dominncia do simblico. Freud (2010a, p.31) mostra que, no contedo de alguns sonhos, h associao entre sensaes fsicas que se passam durante o sono e imagens adequadas s emoes que se expressam por essas sensaes quando se est acordado. A conexo entre uma sensao e uma emoo se transforma em contedo inconsciente, em imagens, durante o sono, quando a mesma sensao fsica se reproduz: os sonhos interpretam os estmulos sensorais objetivos tal como o fazem as iluses (...) de maneira que o objeto percebido no interrompa o sono e seja utilizvel para fins de realizao de desejo (id., p.334). Ver,

    ouvir, entender, falar: da percepo fsica falha e equivocvel, materialidade discursiva, tambm falha e equivocvel, ambas afetadas por processos metafricos e metonmicos. Os processos empricos se transfiguram em processos enunciativos, na ordem simblica da lngua, e retornam, reflexivamente, sobre eles. Os funcionamentos do verbal e do no-verbal em materialidades audiovisuais, dentre outras, encontram, dessa forma, seu fundamento. Tendo em vista estas conjunes, essa unidade imaginria do sujeito tambm tem seu fundamento no corpo do indivduo, em suas sensaes, percepes sensoriais e afetivas; e no imaginrio controle do corpo como unidade autnoma e independente do meio, de relaes e de sistemas.

    Ora, a necessidade e a eficcia material do imaginrio fazer com que a diferena, a diviso, a contradio se manifeste imaginariamente como "unidade". A interpelao se agarra no indivduo tanto pelo inconsciente quanto por suas sensaes e percepes, que do a ele sua realidade: sendo clivado, f-lo nico. A forma unitria o meio essencial da diviso e da contradio" (Pcheux, apud ORLANDI, 1995, p.18). A condio de existncia do discurso a disperso dos sentidos e do sujeito, mas, em seu funcionamento, ele se materializa com aparncia de unidade. Essa iluso de unidade efeito ideolgico, construo necessria do imaginrio discursivo (id., p.18-19). Sensaes e percepes individuais tambm tm sua espessura, sua materialidade histrica. Ela no a mesma em todas as pocas e em todos os povos: universal que o humano veja, oua, sinta, mas ver, ouvir, sentir tambm tm suas condies de produo e circulao. Quem tenta aprender uma lngua estrangeira, quem conhece outras culturas, ou quem fica diante de imagens artsticas produzidas desde a antiguidade sabe que a percepo do corpo humano no a mesma em todas as sociedades e todas as histrias.

    O corpo assim uma fronteira imaginria e material do sujeito que ele transpe, ou tenta transpor, ao se relacionar e ao produzir sentido. Assim tambm so os significantes

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    em relao aos sentidos. Isso faz com que o sujeito possa tanto se identificar com, quanto resistir a outras materialidades significantes. Identificao imaginria e simblica. Objetivaes e objetificaes significantes dos sujeitos e dos sentidos. Essas identificaes acabam por receber regras, controles, tempos, espaos, dominncias nas relaes sociais.

    Na relao entre a funo materna e o universo pr-edipiano, no castrado, est uma continuidade sempre atuante, um mundo arcaico e sem limites, no qual a lei (paterna) no intervm. O que h a simbiose, das imagens introjetadas, dos deslizes incessantes, das substituies interminveis, das trocas e intercmbios e das relaes de objeto. Metfora e metonmia incessantes. O movimento do Real, o nonsense. Se pelo imaginrio no h fronteiras intersubjetivas, no h diferenas discursivas, parece que essa regresso que imaginaria e compulsivamente repetimos e buscamos diante das materialidades audiovisuais. O que tambm me parece indicar que da teria vindo a fora ideolgica do funcionamento do audiovisual na nossa subjetividade e o efeito do ritual do cinema, com a sala escura, a injuno ao predomnio perceptivo da viso e da audio.

    Os psicanalistas falam da experincia de concretizao do dipo e da Castrao como "drama", teatro, cena, encenao, maquinaria, encenador, etc., h toda a distncia do espectador, que se toma pelo teatro, ao prprio teatro (ALTHUSSER, 2000, p.69). A fantasia primordial constitui todas as outras fantasias literrias, musicais, teatrais, cinematogrficas, audiovisuais, imaginativas. Seriam derivaes e deslizes metafricos:

    o dipo no , pois, um "sentido" oculto, a que faltaria apenas a conscincia ou a palavra - o dipo no uma estrutura enterrada no passado, que sempre possvel reestruturar ou superar, "reativando-lhe o sentido"; o dipo a estrutura dramtica, a "mquina teatral" imposta pela Lei da Cultura a qualquer candidato, involuntrio e forado, Humanidade, uma estrutura que contm em si prpria no apenas a

    possibilidade, mas a necessidade das variaes concretas em que ela existe, para todo indivduo que pode chegar ao seu limiar, viv-lo e sobreviver a ele (id., ib.).

    Faz sentido que essa estrutura edipiana

    invariante possa ser considerada a base material sobre a qual se constitui o sujeito e suas produes significantes. A estrutura dramtica constitutiva da elaborao de roteiros, posta pelo algortimo algum quer alguma coisa desesperadamente e est tendo dificuldade em obt-la(HOWARD & MABLEY, 1996, p.58) ou a lei newtoniana de que para cada ao h uma reao igual em sentido contrrio, tambm so metaforizaes e metonimizaes dessa base material invariante.

    Pcheux (2009, p.154-5) afirma que a unidade imaginria do sujeito, sua identidade encontra um de seus fundamentos na incorporao-dissimulao dos elementos do interdiscurso no intradiscurso. O interdiscurso, como pr-construdo, fornece a matria-prima, diz ele, na qual o sujeito se constitui como sujeito falante, com a