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1 Édipo e a ciência da política A síndrome de Édipo: o lado obscuro do poder EIITI SATO Professor do Instituto de Relações Internacionais Universidade de Brasília [email protected] Uma das facetas mais interessantes e inspiradoras da herança cultural deixada pela Antigüidade grega são os mitos, tanto por sua variedade quanto pela profundidade com que penetram na compreensão do mundo em suas relações com as coisas humanas. Na realidade, os mitos gregos não parecem preocupados em transmitir conhecimentos e nem ditar códigos de conduta moral. Não são prescritivos. O que esses mitos gregos fazem é levantar problemas e propor dilemas presentes na existência das pessoas e das sociedades para que a razão humana os explore e faça suas escolhas.

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Édipo e a ciência da política A síndrome de Édipo: o lado obscuro do poder

EIITI SATO Professor do Instituto de Relações Internacionais

Universidade de Brasília

[email protected]

Uma das facetas mais interessantes e inspiradoras da herança

cultural deixada pela Antigüidade grega são os mitos, tanto por sua

variedade quanto pela profundidade com que penetram na compreensão

do mundo em suas relações com as coisas humanas. Na realidade, os

mitos gregos não parecem preocupados em transmitir conhecimentos e

nem ditar códigos de conduta moral. Não são prescritivos. O que esses

mitos gregos fazem é levantar problemas e propor dilemas presentes na

existência das pessoas e das sociedades para que a razão humana os

explore e faça suas escolhas.

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Pode-se argumentar que, ao propor dilemas e problemas, os mitos

não deixam de trazer, implicitamente, uma resposta a esse problemas, no

entanto, mesmo admitindo que até certo ponto esse argumento seja

válido, a grande maioria dos dilemas humanos não se define em respostas

na forma de “sim” ou “não”, “certo” ou “errado”, “bom” versus “mau”.

Nesse sentido, nos mitos já aparece com clareza o fato de que as opções

geralmente se apresentam de forma difusa e que a ambigüidade se faz

presente na maioria das ações e no comportamento humano. Por

exemplo, na mitologia grega a esperança não pode ser vista apenas como

um bem como estamos acostumados a ver. Com efeito, na mitologia, a

esperança passa a povoar a vida humana pelas mãos de Pandora, que

abre sua caixa (ou jarro) de onde saem as pragas, a discórdia, as guerras,

as doenças e todos os males que irão angustiar a existência dos homens.

Ora, se não fosse visto como um mal, o que a esperança estaria fazendo

dentro daquela caixa onde somente havia males?1 Por outro lado, por

mais que pragas, doenças e discórdias sejam sempre indesejáveis,

freqüentemente, apesar de indesejáveis, esses males não trazem consigo

algo de bom e de revelador? A gestação e o parto de uma nova vida não é

um processo difícil e doloroso? Há até mesmo teorias que argumentam

que a abundância torna o homem preguiçoso e acaba se transformando

em verdadeiro empecilho para a prosperidade.2

Além disso, os dilemas humanos não se definem em escolhas entre

“certo e errado” ou “bem versus mal” pois, nesses casos, não haveria

verdadeiramente qualquer dilema. Podemos, eventualmente, optar pelo

“errado” ou pelo “mal” por equívoco, por desconhecimento ou por

fraqueza; o dilema somente emerge diante das pessoas quando elas se

vêem obrigadas a fazer escolhas entre dois ou mais bens, entre duas ou

mais virtudes socialmente reconhecidas. Prestar socorro a um indivíduo

1 Na realidade, estudiosos do grego antigo dizem que há impropriedade em traduzir para esperança o termo originalmente escrito no relato do mito. 2 Na economia, a chamada “maldição das commodities” é uma teoria que argumenta que a abundância de recursos naturais prejudica o desenvolvimento de um país. Especialmente a produção industrial se vê prejudicada pela valorização cambial que é gerada pelas exportações em grande escala dessas commodities.

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em perigo é um gesto tão desejável e tão admirável quanto socorrer um

grupo de pessoas; o dilema surge quando a circunstância obriga a

escolher entre salvar um único indivíduo ou salvar um grupo. A

honestidade e a franqueza são consideradas virtudes desejáveis, mas será

que a prática dessas virtudes é desejável em todas as circunstâncias? Em

especial os governantes não são obrigados a, constantemente,

estabelecer prioridades entre escolhas difíceis? Se a franqueza e a

honestidade devessem ser praticadas em todas as ocasiões, por que em

todos os Estados, por mais abertos e democráticos que sejam, existem

documentos oficiais que somente podem ser tornados públicos muitos

anos após os acontecimentos que os geraram? Na administração

econômica os dilemas não aparecem na decisão de combater ou não

combater a inflação ou o desemprego; os dilemas surgem porque o

combate a esses males depende de recursos que são escassos e, assim,

geralmente medidas de combate a esses males da economia implicam

sacrifícios e medidas impopulares porque afetam negativamente boa parte

da população. Um mal governante, um tirano, não deixa o poder diante de

manifestações de insatisfação de seu povo; somente deixa o poder diante

de uma oposição que o obrigue a fazê-lo, o que pode implicar até mesmo

o emprego da força, mesmo sendo uma oposição composta de pessoas

genuinamente pacifistas em suas preferências.

I - A TRAJETÓRIA DE ÉDIPO: MALDITO, APESAR DE SUAS VIRTUDES

Na dramaturgia, a cena inicial mostra Laio, rei de Tebas,

observando o ventre crescido de Jocasta. Aflito, perturbado, Laio segue

até o templo de Apolo, em Delfos. Como era o costume, vai em busca de

previsões para aplacar suas dúvidas e angústias sobre o futuro. Através

do oráculo, quer saber qual será a sina da criatura que está por nascer.

Será um sucessor à altura? Será futuramente o rei de um povo feliz e

próspero ou, ao contrário, sob seu reinado haverá infortúnio e sofrimento?

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O oráculo não hesita e, como uma sentença de um severo tribunal,

profere o terrível vaticínio: o ser que Jocasta amorosamente carrega em

seu ventre matará seu pai, tomará por esposa a própria mãe e, ao final,

levará à ruína o palácio de Tebas.

Na consciência de Laio, a sentença cruel do oráculo torna-se um

verdadeiro tormento e, assim, ao invés de alegria, a notícia da vinda de

um herdeiro tortura-o e enche seus pensamentos de angústia. O terror,

pouco a pouco, toma conta do homem e o transforma numa pálida

sombra do orgulhoso rei que, com confiança e firmeza, governava o reino

de Tebas. Voltando ao lar, conta as palavras ouvidas do oráculo de Apolo

à esposa que, com ele, passa a dividir as angústias diante da perspectiva

do trágico destino que os espera. Desde então, desolados, ambos

aguardam impotentes, o nascimento do filho cujo destino se prenuncia

amaldiçoado.

No dia do parto, mal o frágil vagido anuncia a nova vida, Jocasta

entrega o filho a um servo, ordenando que o conduza para bem longe.

Laio perfura os pezinhos da criança e os amarra com uma correia e,

enquanto o escravo parte levando o recém-nascido, Jocasta se deixa cair

prostrada sobre o leito. A cena termina aos pés do monte Citerão onde o

servo encontra alguns pastores de Corinto e, apiedado, entrega-lhes o

príncipe cuja herança era a desgraça. Depois empreende a viagem de

volta para Tebas, onde o rei e a rainha ingenuamente acreditavam ter

enganado o destino trágico anunciado pelo oráculo. No entanto, os deuses

que tudo vêem e tudo controlam, muitas vezes de forma estranha e até

incompreensível, já haviam decidido: aquele é Édipo, o maldito, que há de

caminhar sempre para a fatalidade do sofrimento e carregar consigo toda

a infinita miséria dos homens neste mundo onde o brilho de momentos

fugazes de alegria são ofuscados por um destino de angústias e de

expectativas e desejos frustrados.

1 - A maldição cai sobre a linhagem de Édipo

A versão mais aceita para o início da maldição que recai sobre Édipo

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conta que Lábdaco, pai de Laio, havia governado por longos anos o povo

tebano com sabedoria, mas a morte não faz distinção entre os mortais. É

chegada a hora de partir e, nos últimos instantes de vida, Lábdaco olha

para o filho Laio e tenta dizer uma palavra de carinho ou de adeus, mas é

tarde demais, a morte seca-lhe a garganta e suas pálpebras se fecham.

Debruçado sobre o cadáver, Laio chora a perda do pai que lhe deixara um

reino como herança. Ainda adolescente, o que poderia Laio fazer pelos

cidadãos que já se aglomeram, angustiados, quase em pânico, à porta do

palácio?

Lico, fiel seguidor de Lábdaco, assume a regência, mas Anfião e

Zeto, cuja mãe fora maltratada pelo rei há muitos anos, aproveitam-se da

situação confusa do reino e arrebatam a coroa das mãos do indefeso

regente. Laio, temendo ser morto pelos usurpadores, foge para a Élida,

onde o rei Pélope o acolhe com generosa hospitalidade. Crisipo, filho de

Pélope, apresenta-se para saudar o ilustre fugitivo e, tão logo o vê, uma

estranha centelha inunda-lhe a alma virgem. Em resposta, Laio apaixona-

se pelo príncipe. E a maldição começa a tecer sua rede.

Às escondidas, os jovens entregam-se àquele amor irrefreável. Mas

a paixão não pode mais ser mantida em segredo e, quando são

descobertos, Laio rapta o amado. O rei Pélope não sabe como esconder a

vergonha. O povo, sempre impiedoso, escarnece, e Crisipo, temendo a ira

do pai, suicida-se. Quando a notícia da morte de Crisipo chega à corte, o

rei ordena aos servos que busquem Laio. Mas ninguém o encontra.

Num só golpe, o rei Pélope se vê privado do filho e do único

herdeiro e, para tornar tudo pior, de forma vergonhosa. O ódio constrói

uma ferida sem cura no coração do rei que, desolado, debruçado sobre as

muralhas do palácio, contempla seu reino sem herdeiro e solta um grito

tão sonoro e profundo que faz tremer até os troncos das árvores. Pélope

lança a maldição que deverá se abater impiedosamente sobre todas as

gerações dos descendentes de Lábdaco – presentes, passadas e futuras.

Laio continua fugindo, mas agora é uma fuga inútil; o destino já se

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incumbira de fazer triunfar a maldição nascida do desespero de Pélope.

2 - Laio desposa a bela rainha Jocasta

O tempo passa e Laio reúne forças e decide voltar a Tebas e tomar

o poder que, por direito, sempre lhe pertencera. Laio não é mais aquele

jovem hesitante e inexperiente. Ao final de árdua luta contra os

usurpadores, consegue para si a coroa de Tebas. Por algum tempo,

esquece de seus sofrimentos e remorsos. Apaga-se lentamente a memória

de Crisipo, seu primeiro amor, medroso e suicida.

Tudo é novo – ou parece novo. A sorte parece sorrir novamente

para o filho de Lábdaco. Aclamado pelo povo, querido pela corte,

respeitado pelos inimigos depostos, só tem de escolher, entre as mais

formosas princesas, aquela que será sua esposa. Outra vez a paixão

arrebata os pensamentos de Laio, mas agora não há empecilhos nem

perigos. Unido a Jocasta, ele reina serenamente, e nem imagina que os

deuses, há tempos, haviam ouvido os lamentos desesperados de Pélope e

que desde então estavam tecendo os fios do destino trágico da sua vida e

de seus descendentes.

Opulentos e amorosos, Laio e Jocasta pensam ser donos de seus

próprios destinos. Os cidadãos, felizes com a prosperidade e a fertilidade

das terras, semeiam e colhem, cheios de esperança. Um dia, Jocasta corre

pelo palácio com seu vestido branco esvoaçante e, iluminada pela alegria,

procura o marido para dar-lhe a notícia: terá um filho. Tebas não está

mais sujeita a regências espúrias, nem à cobiça de impostores. O herdeiro

virá logo e, como príncipe herdeiro, será educado na arte de governar

para substituir Laio no trono quando este estiver cansado, ou morto. O rei

abraça a rainha e, emocionados com a vinda do filho, deitam-se no rico

leito e dormem um sono sem pesadelos.

Mas o tempo passa e Laio começa a sentir qualquer coisa como um

aviso, um mal presságio, martirizando-lhe o cérebro com dúvidas e

apreensões. Jocasta não entende mais o marido, que permanece dias e

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noites sem lhe falar, imerso em seus pensamentos confusos e desprovido

de fé e energia. A consulta ao oráculo apenas confirma seus maus

presságios e uma tristeza lenta toma conta de todo o palácio de Tebas. A

imagem do largo ventre de Jocasta já não traz alegria ao casal real. Ao

contrário, a proximidade da vinda do filho só serve para aumentar suas

angústias.

3 - Édipo cresce feliz no reino de Corinto

Pólibo, rei de Corinto, que havia recolhido o Édipo, ainda recém-

nascido que os pastores lhe entregaram, limpa os sangue dos pequeninos

pés feridos e lava-os com água quente. Édipo cessa o choro e sorri para

aquele que, dali por diante, será seu pai. Mérope, a esposa de Pólibo, está

feliz: não podia ter filhos, e adotará Édipo com todo o amor de mãe.

Delicadamente deposita-o num berço de seda branca, depois de alimentá-

lo e de niná-lo em seus braços afetuosos. Noites sem dormir, a rainha

vela pelo menino, sem descuidar um só instante, como se ele tivesse

nascido de seu próprio ventre.

Longe dali, em Tebas, outra rainha chora a perda do filho, mas nada

pode fazer para reavê-lo: o destino o afastara de forma brutal com toda a

cumplicidade do rei e dela própria. Na realidade a pobre mãe já o imagina,

mesmo pequenino e inocente, morando para sempre entre os habitantes

do reino de Hades. Em Corinto, no entanto, envolvido em carinho, Édipo

cresce e, já adolescente, passeia pelas terras do reino que, mais tarde,

talvez venha a ser seu. Observa o trabalho dos camponeses e dos

artesãos, e ouve-lhes as queixas, ponderando com justiça e, como

príncipe, tudo faz para que em Corinto deixe de existir miséria, fome e

sofrimento.

Não há um só cidadão que não lhe renda homenagem. Apesar de

coxo, em razão das perfurações nos pés que seu pai fizera ao nascer, as

jovens saúdam-lhe a beleza. Os moços imitam-lhe o porte esguio. Na

corte, os pais adotivos agradecem aos deuses terem podido educá-lo com

lucidez e sabedoria. Mas o tempo e o destino não têm piedade e chega,

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para o futuro rei, a hora da angústia.

Numa festa popular ele ouve de um bêbado a trágica história de sua

chegada a Corinto: Pólibo e Mérope não eram realmente seus pais.

Abandonado pelos pais, estes o haviam recolhido, por piedade, das mãos

de um pastor. Édipo e o bêbado discutem asperamente. Por fim, o

príncipe entende que o outro não sabe o que diz, pois o vinho turvara sua

consciência. Segue para o palácio. Porém a dúvida já lhe apagara o antigo

sorriso. A verdade começa a surgir com sua impiedosa nudez.

Angustiado, o jovem interroga os pais sobre seu nascimento. E eles

juram por todos os deuses que o geraram. Mas Édipo não se convence e,

decidido e angustiado, resolve lançar-se na busca de sua origem. Não

pode conviver com a dúvida, há de descobrir a verdade sobre quem é, e

de onde veio. Há de desvendar seu próprio enigma. O curso do destino

por vezes se afigura estranho, mas a vontade e o entendimento humano

sempre têm parte importante no seu desenrolar.

4 - No encontro fatal marcado pelo destino, Édipo mata o pai

Era preciso anular o desígnio dos deuses. Fugir daquela maldição

que impiedosamente fora lançada sobre sua cabeça. O oráculo de Delfos,

tal qual havia feito muitos anos antes, havia proferido as palavras terríveis

que ainda ferem o coração do príncipe: “Hás de matar teu pai e desposar

tua própria mãe”. E o infeliz foge na direção oposta ao reino de Corinto –

sede de sua fatalidade – renegando tudo que lhe cabe. O oráculo, sempre

enigmático, não esclarecera o mistério de sua origem. Assim, para Édipo o

oráculo referia-se a Pólibo e Mérope e não a Laio e Jocasta. Prefere ser

órfão e errante a deixar que se cumpram as terríveis previsões do oráculo.

Nem olha para trás. A simples visão das muralhas de Corinto traz ao

príncipe a imagem da desgraça futura que quer evitar.

Sem lar, sem herança, o desgraçado príncipe foge incessantemente.

Nem de longe supõe que, ao deixar Corinto, o que faz é aproximar-se de

seu destino cruel. Na encruzilhada de Megas, onde os caminhos de Tebas

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e Dáulis se bifurcam, Édipo pára, indeciso. Está ferido do sol, que lhe

queimara o dorso esfarrapado, e a poeira secara-lhe a garganta. Precisa

repousar e lavar-se antes de continuar a fuga. Seus olhos estão prestes a

fechar-se em sono profundo, quando um desconhecido o interpela de

forma rude. Exige que ele saia da estrada para dar passagem para seu

amo, que não é outro senão o próprio Laio, rei de Tebas. Irritado pela

maneira como o homem o tratara, Édipo nem se move. Polifontes – esse

era o nome do desconhecido – enraivecido, investe contra o jovem

errante. Édipo ergue-se e, disposto a tudo, desfere violento golpe contra

Polifontes. Laio vinga o servo atingindo o agressor. Édipo volta-se e fita-o.

Os dois não se reconhecem. Estranha fúria move o braço do filho contra o

pai. O Destino fizera deles inimigos marcados para o crime e o remorso.

Lentamente, Laio cai banhado em sangue. Ainda uma vez, olha para

o jovem e sente uma pequena centelha de ternura. Édipo contempla o

morto por um instante, em seguida a fúria renasce e ele mata mais dois

arautos do rei. Apenas um consegue escapar. Findo o ato predestinado,

Édipo olha os cadáveres e mais uma vez se inquieta. Fizera o que

qualquer cidadão faria ao ser desacatado e, então, por que aquele aperto

no coração?

A cena se fecha com a imagem de Delfos, onde o oráculo de Apolo

oferece honras à verdade que já aparece manchada de sangue. Nos

infernos, a alma de Pélope rejubila-se: a vingança segue célere seu

caminho. O destino não age como um ente cuja força reside em sua

capacidade de agarrar os homens com tentáculos de ferro e forçá-los a

executar seus desígnios. Os meios pelos quais o destino age são muito

mais sutis e poderosos: incluem a vontade e a presunção dos homens em

achar que podem controlar seu futuro.

5 - Édipo decifra o enigma da Esfinge

A cena seguinte mostra Tebas em desalento. Um monstro metade

mulher, metade leão assola o reino. Cauda de dragão e asas enormes,

como as de uma ave de rapina, a Esfinge fora enviada pela deusa Hera,

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como punição aos antigos amores de Laio e Crisipo. Sentada sobre uma

rocha, na entrada da cidade, ela observa com ironia os mortais que se

aventuram a decifrar seu enigma: “qual é o animal que tem quatro pés de

manhã, dois ao meio-dia e três ao entardecer?” Ninguém sabe. E, como

ninguém responde, ela agarra com suas presas os infelizes ainda

apavorados diante da fera e atônitos diante da pergunta que não sabem

responder, a Esfinge devora os cidadãos tebanos, implacavelmente.

Quando Édipo chega à região, assusta-se com o silêncio. As ruas

estão vazias e não há lavradores no campo, nem artesãos nas praças.

Onde estaria o povo da grande cidade? Um passante apressado arranca o

véu do rosto e, quase balbuciando, conta ao forasteiro as razões daquele

luto e daquele medo. Imediatamente, Édipo resolve desafiar o monstro.

Face a face com a Esfinge, ouve a misteriosa pergunta: “qual é o animal

que tem quatro pés de manhã, dois ao meio-dia e três ao entardecer?”

Sem hesitar responde: “o homem que, na infância, engatinha sobre os

pés e as mãos; na idade adulta, mantém-se sobre os dois pés; e na

velhice precisa de um bastão para andar”.

A Esfinge, aflita com aquela inteligência clara e rápida, recobra o

fôlego e propõe novo enigma: “são duas irmãs. Uma gera a outra; e a

segunda, por seu turno, é gerada pela primeira. Quem são elas?” “A luz e

a escuridão”, responde Édipo. “A luz do dia, clareira aberta no céu, gera a

escuridão da noite, que, por sua vez, precede a luz do dia”. A Esfinge

finalmente sente-se vencida. Envergonhada, sobe ao alto do rochedo em

que antes escarnecia dos mortais e atira-se, despedaçando-se nas pedras.

O suicídio do monstro é aplaudido por toda a população tebana.

Onde havia reza e lamento, agora há festa e alegria. O povo está outra

vez nas ruas, nas praças, nos campos. É como se Tebas voltasse à vida, à

liberdade, à alegria. Mil bocas sorridentes saúdam Édipo, o benfeitor, o

herói, o homem incomum que, com sua inteligência superior decifrara os

mistérios dos deuses e levara à loucura o monstro devorador de mortais.

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6 - A união maldita entre mãe e filho

Os tebanos, agradecidos por se verem livres da Esfinge, aclamam

Édipo seu salvador e o querem como seu rei. Creonte, o sucessor de Laio,

não ousa abafar a vontade do povo. Ao contrário, partilha da alegria geral

e, serenamente, entrega o trono ao forasteiro. A viúva de Laio, ainda

prostrada em sua dor, nem quis conhecer o novo soberano. Dias e noites

seguidos permaneceu encerrada no quarto. Édipo ardia em curiosidade:

quem seria aquela mulher e que angústia a arrastava para dentro de si

mesma, impedindo-a de compartilhar com o povo libertado as alegrias de

se verem livres da fera?

Édipo não resiste mais. Abre a porta que o separa da rainha

recolhida em seu luto. Jocasta, distraída, penteava os cabelos e esquecera

de lacrar o trinco que a separava do mundo. O rei mal crê em tanta

beleza. É seu primeiro amor. Nua, a rainha apressa-se em esconder-se

sob um manto. Seus olhos alargam-se de susto, e ela expulsa o homem

que ousara violar o quarto cheio de lembranças. Mas Édipo permanece na

soleira da porta, extasiado. Jocasta quer gritar, entretanto, diante da

doçura dos olhos do jovem rei, subitamente sem uma razão aparente,

uma força estranha a torna dócil e ela se rende ao destino: deita-se no

leito e oferece-se ao estranho, numa paixão repentina como a morte. Na

manhã seguinte, mal o sol vem dourar o mundo com seus raios, Édipo e

Jocasta saem à janela do quarto real e convocam o povo para ouvir a

grande notícia: seu casamento.

Dali por diante, por alguns anos, filho e mãe governariam juntos e

em paz sobre Tebas. Durante alguns anos, entregar-se-iam um ao outro,

sem jamais desconfiarem do terrível segredo que, muito antes de suas

bodas, já os unia. O ventre de Jocasta gera amorosamente quatro filhos

de Édipo: Etéocles, Polinice, Antígona e Ismena. E, no comando da vida e

da morte, insensível, o destino assiste àquela efêmera felicidade. Passo a

passo, o destino tece suas teias e o vaticínio do oráculo vai se cumprindo

de forma inexorável.

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7 - É preciso fazer justiça: o assassino de Laio não pode

permanecer impune!

Em desalento, os tebanos se dirigem ao palácio real e levam ao rei

suas preocupações e sentimentos diante da tristeza e das dificuldades que

assolam o reino de Tebas. “Já livraste a terra do tributo que pagávamos à

esfinge ... . Agora, Édipo, rei onipotente aos olhos de todos, nós te

suplicamos … socorre-nos de qualquer modo, por inspiração divina ou por

intercessão de algum mortal! Vamos, melhor dos homens! Redime agora

nossa terra! Vamos! Confirma teu renome, pois hoje Tebas te chama de

seu salvador, lembrando teu devotamento de outros tempos! …” Assim

falou um sacerdote de Tebas, quando a peste se abateu sobre a cidade

como um dilúvio de sofrimento. As plantas secavam; o gado morria; e os

cidadãos famélicos e doentes definhavam, para morrer anônimos pelas

ruas. O cheiro da morte vinha de cada quarteirão. Lamentos ecoavam por

todo o reino tebano. Nos templos repletos amontoavam-se as criaturas.

Não havia dúvida alguma, era preciso aplacar a ira dos deuses e, para

isso, era necessário o esforço de Édipo, que já uma vez livrara a cidade de

seu infortúnio.

Assim, ao compreender que nas mãos do rei estava a salvação, o

povo aflito correu ao palácio e dos lábios de Édipo ouviu: “Asseguro-vos

que chorei muitas e muitas lágrimas e andei por muitos caminhos com

pensamentos confusos. O único remédio que pude encontrar … e a esse

recorri: mandei Creonte, irmão de minha própria esposa, ao templo de

Apolo para saber com que palavras ou atos eu poderia redimir esta cidade

…” Creonte, de fato, seguiu para Delfos, instruído pelo rei a procurar a

origem e a solução do flagelo. O oráculo, outra vez, enunciou sua profecia

sem hesitação, enquanto o príncipe orava ajoelhado e perplexo: “A peste

só terminará quando for vingado o assassínio de Laio”. Com efeito, a

injustiça, o sentimento moral não atendido, traz conseqüências que vão

muito além do vazio interior. A dúvida obscurece o entendimento e o

ânimo se abate, tanto do guerreiro quanto do trabalhador. Guerrear

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requer fé e entusiasmo; lavrar o campo torna-se penoso demais para

alguém contaminado pela dúvida.

8 - A verdade começa na profecia de Tirésias

Édipo exige do povo a verdade que libertará a todos: “Ordeno a

quem conheça o matador de Laio, filho de Lábdaco, que me revele tudo,

mesmo que tenha medo!” O oráculo, geralmente obscuro e misterioso em

suas profecias, neste caso não fora claro e afirmara que apenas a

descoberta do criminoso poderia aplacar a ira dos deuses e a cidade seria,

assim, redimida? O rei está decidido a encontrar o culpado, mesmo que

tal decisão venha a lhe custar muito caro. No entanto, ninguém se

aventura a apontar o causador da desgraça e a peste continua dizimando

a população, exterminando o gado, e a fome enfraquece aqueles que

ainda não foram atingidos pela implacável doença do desânimo e da

dúvida.

Em face do silêncio do povo tebano, Édipo manda chamar o velho

Tirésias, adivinho cego mas capaz de ver com invejável clareza o passado

e o futuro. Quando o sábio chega ao palácio e sente a presença do rei, um

tremor estranho percorre-lhe o corpo e ele se nega a responder a

qualquer pergunta. Diante da firme recusa, o soberano começa a

desconfiar: não seria o próprio Tirésias o assassino de Laio? Encolerizado

com a insinuação, o adivinho finalmente revela a triste verdade: o

criminoso é o próprio Édipo. Há em curso uma conspiração armada para

arrancá-lo do poder, pensa o monarca. Não estaria Tirésias acusando-o

para bani-lo do reino e deixar vago o trono de Tebas? Certamente age em

concordância com Creonte. Tais pensamentos fazem o rei expulsar o

adivinho e dirigir-se ao cunhado, acusando-o de traição. O inocente tenta

defender-se, mas a fúria de Édipo não lhe permite.

Nesse momento, Jocasta irrompe no salão real, disposta a apartar a

discussão. Coloca em dúvida a sabedoria dos adivinhos e dos profetas. E,

para provar sua descrença, conta ao rei que um oráculo havia predito a

morte de Laio pela mão de seu próprio filho. Mas Laio não teria anulado a

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terrível profecia ao desfazer-se do recém nascido, deixando-o morrer? E,

afinal, Laio não acabara morrendo em combate, numa encruzilhada, pela

mão de um desconhecido que nada tinha a ver com a sua descendência?

À menção da palavra “encruzilhada”, no entanto, o coração do rei

aperta-se como se um círculo de ferro o comprimisse. Abre-se em seu

cérebro uma fenda de luz, e a verdade dolorosa e implacável, lentamente,

começa a surgir. E se o velho Tirésias tiver razão?

9 - A tragédia culmina na cegueira de Édipo

Angustiado, Édipo começa a fazer incessantes perguntas a Jocasta.

Como e quando Laio morreu? O sobrevivente do massacre ainda está

vivo? E onde se encontra? A rainha responde tudo o que sabe, tentando

manter a calma. Mas o desespero do marido acaba envolvendo-a e, como

se aguardasse o desfecho trágico para aquele tropel de questões, ela se

deixa cair sobre o trono. Édipo não pára. Na busca da verdade, procura os

fatos que, um após outro, vêm ao seu encontro com fria clareza formando

um quadro funesto e destruindo a antiga felicidade.

Um mensageiro de Corinto, inesperadamente, chega a Tebas para

informar que Pólibo havia morrido e que o povo o deseja como soberano.

A notícia traz alegria e sofrimento ao mesmo tempo: se Pólibo morreu

longe de suas mãos, então o oráculo fracassara. E estava afastada a

ameaça de unir-se a Mérope. Para certificá-lo ainda mais da falibilidade do

oráculo, o mensageiro conta a Édipo que ele não é filho de Pólibo e

Mérope. Relata como, ainda recém-nascido, fora recolhido de um servo de

Laio e conduzido ao palácio de Corinto.

Por um momento, Édipo sente alívio. Mas Jocasta, ouvindo do

mensageiro a alusão ao servo de Laio e de como levara o recém-nascido,

sem matá-lo, em um átimo entende a brutal verdade trágica.

Vagarosamente, esgueira-se pelo caminho do quarto que em tão pouco

tempo deixara de ter as cores e o aroma da felicidade de outros tempos.

A verdade queima-lhe a alma, não há mais futuro. O homem que lhe dera

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quatro filhos é seu próprio filho. Ela arranha as paredes, como se pudesse

perfurá-las e fugir do passado que encerram. Depois, enforca-se sem um

gemido.

Na sala do palácio, Édipo está só com sua miséria. Aguarda o servo

de Laio, que há muitos anos se condoera de sua sorte e o entregara a um

pastor de Corinto. A porta abre-se lentamente e o pastor penetra na

agonia de Édipo. Em seu trono, olhos de louco, o rei começa a perguntar.

O homem tenta calar-se para evitar mais desgraças. O rei, porém, obriga-

o a falar toda a verdade. Então, como se mil agulhas o ferissem, Édipo

corre ao quarto para chorar junto a Jocasta, a um só tempo, sua mãe e

sua mulher. A desgraça não parece ter limites, nem a imagem da pobre

mulher suicida lhe é poupada. É a última cena que vê em toda a vida.

Porque, nessa hora de suprema angústia e desespero, arranca os broches

que enfeitam o vestido da morta e, com eles, fura os próprios olhos. Seus

olhos não mais verão tanta miséria de um mundo impiedoso e

completamente incompreensível para o que lhe resta de humanidade.

10 - Um fim inglório: Édipo reflete sobre seu trágico destino

“Ai de mim, como sou infeliz! Para onde vou? A que terra? Em que

ares minha voz ouvirá? Ah, Destino! Em que abismos negros me atiras?”

Na peça Édipo em Colono, de Sófocles, o herói – ou anti-herói – já está

velho. Vítima de sua própria decisão de levar avante, sem hesitar, a busca

da verdade sobre o assassínio de Laio, Édipo fora banido de Tebas. De

nada adianta maldizer os caminhos da verdade. Ela era necessária para

afastar os sofrimentos da cidade, não proclamara o oráculo? Mendigo,

esquálido e cego, apenas uma pequenina mão o acompanha até a morte:

é a mão de Antígona, sua filha, ao mesmo tempo amada e uma lembrança

viva do remorso que deverá acompanhá-lo até a eternidade. Ismena

permaneceu no reino, disposta a salvaguardar os interesses do pai. Os

outros filhos, Etéocles e Polinice, abandonaram-no à sua própria sina

tornando-se rivais disputando entre si o governo de Tebas. Na luta

fratricida Polinice vem pedir ajuda a Édipo. Como ele, um rei destronado e

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banido, desprovido de tudo, até da visão poderia ajudar nessa luta? De

onde teria vindo esse impulso?

Depois de muito vagar, Édipo chega a Colono, na Ática, onde

governa Teseu, que o recebe. E lá, no templo das Eumênides, pode

finalmente encontrar algum descanso. As Eumênides são as únicas que

podem ajudá-lo a expiar a imensidão de seus pecados. Apolo, o deus que

profetizara sua miséria, reconforta-o nos últimos anos de vida, atraindo a

bênção do Olimpo para onde Édipo for sepultado. Indiferente a tudo, o

pobre errante apenas espera a morte. Súbito estrondo no céu desperta-o

de suas meditações. Édipo caminha até a beira de um fundo precipício,

senta-se numa pedra e veste-se com uma mortalha. Depois chama Teseu

e pede-lhe que vele por suas filhas. A terra abre-se docemente, recebendo

em seu corpo definitivo o ser que fora a síntese de todos os sofrimentos

humanos.

O solo da Ática está abençoado para sempre. Na superfície lisa que

o tragara não fica um só vestígio do morto célebre. O segredo de sua

tumba é conhecido apenas por Teseu, que jamais o contou a ninguém.

II - ÉDIPO E SEUS SIGNIFICADOS

É desnecessário dizer que são muitos os significados que podem ser

extraídos do mito de Édipo e que qualquer tentativa de encontrar um

sentido “definitivo” não passa de presunção. As grandes obras e os

grandes personagens aos quais nos referimos como “clássicos”

apresentam essa qualidade: são inesgotáveis. E Édipo é, sem dúvida, um

“clássico” e um dos mitos mais ricos em matéria de significados. Com

efeito, entre os mitos da Antigüidade grega, o de Édipo é aquele que foi

construído de forma mais completa e que se tornou um dos mais

reveladores dessa compreensão da condição humana sempre ambígua,

difícil e, freqüentemente, contraditória. Por sua riqueza, inspirou os

grandes dramaturgos da Antigüidade e continuou a inspirar artistas na

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modernidade como Corneille, no teatro, e Mendelssohn, na música.

A versão mais conhecida desse mito é o da Trilogia Tebana de

Sófocles (Édipo Rei, Antígona e Édipo em Colono), no entanto Eurípedes

(As Fenícias) e Ésquilo (trilogia da qual sobreviveu apenas Sete contra

Tebas) e até Sêneca, já no início da era cristã, deram suas versões sobre

esse notável personagem. De outros mitos conhece-se apenas alguns

traços sobre sua origem e seus feitos fundamentais, como Tântalo, que é

castigado ao servir seu próprio filho Pelops num banquete aos deuses, ou

como Níobe, punida por seu orgulho ao alegar que muito mais do que a

deusa Hera, merecia ser reverenciada pela cidade por sua fertilidade.

Diferentemente, Édipo tem sua origem discutida e apresentada em

detalhes e, do mesmo modo, o desenrolar trágico de sua existência

também é apresentado como um verdadeiro filme policial onde a tragédia

vai se configurando, passo a passo, até seu desenlace final. Cada episódio

ou cada fato é narrado com detalhes e minúcias que, como dobras de um

tecido, escondem dúvidas, inquietações e as tramas urdidas pelo destino.

Mesmo seu final trágico não termina com o descoberta da verdade sobre

sua origem, sobre a morte de Laio e sobre seu amor incestuoso por

Jocasta, mas prossegue com as reminiscências de Édipo sobre sua

miserável existência e a trágica luta entre seus filhos pela coroa de Tebas.

Dessa forma, a nós só resta fazer o que há dois mil anos a cultura

ocidental vem fazendo: refletir sobre os muitos significados e, a partir

dessa reflexão, procurar compreender melhor nosso mundo e nosso

próprio tempo.

Na psicanálise a obra de Sigmund Freud definitivamente imortalizou o

termo “complexo de Édipo”, mas obviamente, depois de Freud muitos

outros estudiosos dessa ciência da mente e do comportamento humano se

valeram desse mito para oferecer explicações e hipóteses sobre outras

facetas e práticas da psicanálise. Na política, também é incontável o

número de pensadores que, de alguma forma, viram no mito de Édipo

figuras e situações que poderiam ajudá-los a expor e a explicar seus

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pontos de vista.

Michael Oakeshott diz que os mitos refletem o espírito e o sentido da

civilização em que foram concebidos. São sonhos ou interpretações

imaginativas da existência humana, “são percepções (não são soluções)

para os mistérios da vida humana”.3 O argumento de Oakeshott vai no

sentido de que, diferentemente do que ocorre com a ciência, os mitos não

se referem a fatos e a fenômenos determinados e específicos cujas

respostas são, tanto quanto possível, claras, inequívocas e precisas. A

existência humana é demasiadamente complexa, imprevisível e cheia de

ambigüidades para serem tratadas dessa maneira. Nesse sentido, os

mitos estão mais próximos das artes do que da ciência, argumenta

Oakeshott. Ao se ler uma obra literária notável ou, ao se observar uma

obra de arte dos grandes mestres, é inevitável que surja uma grande

variedade de visões e de interpretações. Cada observador,

inevitavelmente, confronta a obra lida ou observada com sua própria

experiência pessoal, com seus sentimentos e com suas visões do mundo.

Isto é que torna o mito, a obra de arte, um elemento verdadeiramente

realista e sempre atual.

Na opinião de Oakeshott, a força do Leviatã, escrito por Hobbes em

meados do século XVII, reside no fato de que a obra pode ser vista tanto

como ciência quanto como um verdadeiro mito que reflete as forças

civilizatórias presentes e atuantes em seu tempo. Por milênios a ordem

tinha sido ditada e mantida pela autoridade divina (não importa de que

deuses), pela força das tradições, e pelo direito advindo da herança das

famílias e dos povos. O mundo que nascia em seu tempo não eliminava

essas forças, mas agregava o uso da razão e os direitos individuais, que

implicavam a liberdade de escolha, as diferenças de opiniões e de crenças

e, conseqüentemente, a construção racional e deliberada de novas

3 Michael Oakeshott no ensaio intitulado Leviathan: a Myth levanta essa hipótese de que a obra O Leviatã, de Thomas Hobbes, embora seja visto como um tratado de filosofia política, ela vai muito além e oferece um retrato de como a própria alma ocidental definia naquele tempo sua maneira de ver a ordem política e o poder (M. Oakeshott, Hobbes on Civil Association, Liberty Fund, Indianápolis, 1975, pp.159-160).

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instituições para reorganizar as relações entre indivíduos e grupos. Nesta

breve reflexão, a partir do mito de Édipo, procura-se explorar apenas um

dos aspectos mais intrigantes da Ciência da Política: as dificuldades dos

homens em conviver com o fenômeno do poder.

Existe uma relação entre as qualidades (e defeitos) do governante e

o bem-estar da nação que governa? Em toda a trajetória da ciência da

política a existência dessa relação tem sido tomada como pressuposto,

isto é, a prosperidade e o bem-estar da nação estão inextricavelmente

ligados ao destino do governante. A conhecida máxima de Aristóteles “o

homem é um animal político” atenta para a inevitabilidade da dimensão

política na existência das sociedades humanas, suscitando perguntas que,

na essência, têm sentidos muito próximos ou, pelo menos,

complementares: por que o governo hereditário deve ser substituído pelo

governo eleito pelo povo? Como escolher um bom governante? Como

trocar de governante quando sua condição de governar torna-se

demasiadamente precária sem que essa troca afete de maneira crítica a

ordem política?

1 - O problema da legitimidade do poder

No mito, o reino de Tebas é tomado de aflição pelo misterioso

aparecimento da Esfinge. Postada às portas da cidade, a Esfinge devora

os passantes, a menos que decifrem seus enigmas. De onde e por que a

Esfinge aparece para assombrar a cidade? Olhando-se a pergunta pelo

lado da Ciência Política, uma possível interpretação pode ser o

entendimento de que governar a cidade exige inteligência e

discernimento. É preciso que o governante seja capaz de decifrar os

enigmas de cuja solução dependem a felicidade e a prosperidade do povo

que governa, e entre esses enigmas, está a compreensão do poder e do

próprio homem. As razões que levam um homem, ou um grupo, a

ambicionar o poder são muitas, mas as alegações restringem-se a apenas

duas: direitos sucessórios e o desejo de servir à cidade.

Édipo, sem o saber, havia matado o rei Laio numa briga de estrada.

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Tebas sem rei, está sujeita à luta pelo poder entre os candidatos ao trono;

uma luta fratricida que devora todo aquele que se aventura a decifrar o

enigma do poder. Na revolução francesa, um após outro, os líderes foram

tragados pelo torvelinho da luta pelo poder enquanto o povo se debatia na

miséria crescente. Abraham Lincoln ao lançar sua candidatura ao Senado

dos EUA em 1858 proferira o discurso que ficou conhecido como o

discurso da casa dividida, inspirado no Evangelho de São Mateus que diz

“... todo Reino dividido contra si mesmo será devastado, e toda casa

dividida contra si mesma não permanecerá de pé” (Mateus: 12, 25). Nos

dias de hoje, infelizmente, não são poucas as nações que, virtualmente,

se dissolvem em guerras civis, produzindo milhares de refugiados e

consumindo vidas, riqueza e o próprio futuro da nação.

Em Tebas, a quem deve ser dado o poder? Por que Édipo deve ser o

escolhido? O aparecimento da Esfinge naquele momento não teria sido

obra do cruel destino, que decidira, há muito tempo, atender os lamentos

desesperados do rei Pélope? O fato é que Édipo se revela como a solução

para o flagelo da Esfinge. Não haverá luta fratricida, por sua inteligência e

discernimento e, diante de um povo que o aclama, será o rei. No entanto,

conforme os costumes, precisa casar-se com Jocasta – é um passo

necessário para completar sua legitimidade como rei. Casando-se com a

rainha viúva, não haverá mais contestadores de sua posição no trono de

Tebas. Com efeito, havendo uma rainha viúva, uma condição para

legitimar um novo rei era casar-se com a rainha viúva. Uma das

passagens freqüentemente lembradas da Odisséia de Homero é o do

sudário que Penélope tecia durante o dia diante da vista de todos, e

desfazia à noite o trabalho feito, secretamente, alegando que somente se

casaria com um dos pretendentes quando o sudário estivesse terminado.

Fiel a Ulisses, que partira para a Guerra contra Tróia, usava esse

estratagema diante da insistência dos pretendentes à coroa de Ítaca por

meio do casamento com a rainha que se supunha viúva. Assim, na

tradição grega daqueles tempos, casar-se com a rainha viúva constituía

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parte importante do processo de legitimação do poder real e, em

conseqüência, o casamento de Édipo com Jocasta era um passo

necessário para restabelecer a ordem política em Tebas. Na lenda, o

casamento se consuma e, por anos, Tebas vive em paz e em

prosperidade. Édipo revelava-se inteligente e capaz de compreender com

propriedade os dilemas de seu povo e, além disso, tinha a rainha Jocasta

por esposa, que lhe dera quatro filhos como prova de seu amor e de seu

compromisso.

2 - O governante e a síndrome de Édipo

A nuvem negra da dúvida, no entanto, se abate sobre Tebas. A

cidade não pode viver em paz e desfrutar da prosperidade quando as

dúvidas e as suspeitas sobre a morte de Laio e sobre as origens de Édipo

voltam a assombrar o reino:

“Tu bem vês que Tebas se debate numa crise de calamidades, e que nem sequer pode erguer a cabeça do abismo de sangue em que se submergiu; ela perece nos germens fecundos da terra, nos rebanhos que definham nos pastos, nos insucessos das mulheres cujos filhos não sobrevivem ao parto. Brandindo seu archote, o deus maléfico da peste devasta a cidade e dizima a raça de Cadmo; e o sombrio Hades se enche com os nossos gemidos e gritos de dor ... Salva de novo a cidade; restitui-nos a tranqüilidade, ó Édipo! Se o concurso dos deuses te valeu, outrora, para nos redimir do perigo, mostra, pela segunda vez, que és o mesmo! Visto que desejas continuar no trono, bem melhor será que reines sobre homens, do que numa terra deserta. De que vale uma cidade, de que serve um navio, se no seu interior não existe uma só criatura humana?” (Édipo Rei, de Sófocles)

São as palavras do sacerdote dirigidas a Édipo diante dos portões do

palácio real. Agora não é mais o flagelo da Esfinge que assola Tebas, mas

o flagelo da dúvida, do crime sem punição. A dúvida e o crime sem

punição afetam a credibilidade de um governante tanto quanto a

incapacidade de desvendar os enigmas da Esfinge. Na realidade, vai além.

Afeta também a legitimidade do governante, mesmo que este tenha se

tornado governante de acordo com as leis e os costumes. Nos dias de

hoje os costumes e as leis mudaram e, na maioria das nações, o

governante passou a ser eleito pelo voto, mas isto não alterou a natureza

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do poder. A dúvida, transformada em suspeita, continua afetando

diretamente a legitimidade e, conseqüentemente, a condição de governar

com todos os efeitos negativos para as colheitas, para os negócios e para

a vida do povo em geral, como proclamava o sacerdote diante dos portões

do palácio real de Tebas. Nos dias de hoje, o reino de Tebas seria tomado

pela inflação, pelo endividamento, pelo desemprego e, por que não, por

pragas como o mosquito da dengue ou por rompimentos de barreiras,

enchentes e secas prolongadas que comprometem o fornecimento de

energia? O destino trágico de Édipo vai mostrar que, ao afinal, nem a

inocência pode salvar o governante que se vê envolto em crimes, mesmo

que esses crimes tenham sido cometidos sem intenção, de forma

inocente. Quando uma doença ou uma crise de confiança atinge o homem

comum, os efeitos somente atingem ele próprio e sua família, mas quando

um governante é acometido de uma crise de confiança – justa ou injusta,

não importa – seus efeitos se abatem sobre a nação toda.

Ao longo do tempo, a convivência com o fenômeno do poder foi

sempre cheio de percalços e as formas de governo foram evoluindo na

busca de instituições e práticas que tornassem a condição humana menos

sujeita à face mais sombria e cruel do fenômeno do poder. Maquiavel e

Hobbes foram pensadores que se tornaram verdadeiros marcos nessa

trajetória ao desnudar essa face mais sombria e menos glamourosa do

poder. As boas e até santas intenções sempre se revelaram insuficientes.

Na realidade, a história mostra que a maioria das tiranias teve por origem

governos bem intencionados e, desde tempos imemoriais, não há tirano

que não se declare legítimo defensor do povo, sobretudo dos mais

humildes.

O fato é que em meio a avanços e recuos, incompreensões e,

sobretudo, lutas sangrentas, na história do Ocidente é notável o processo

de construção de instituições políticas com o propósito de reduzir as

conseqüências danosas da inevitável convivência das sociedades com o

fenômeno do poder. No século XVII, os iluministas compreenderam essa

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relação entre bom governante e felicidade e prosperidade da nação e

estavam absolutamente corretos em propugnar a importância de se

preparar adequadamente o rei para desvendar os enigmas da Esfinge

mas, ao longo do tempo, essa prerrogativa mostrou-se difícil de ser

atingida pois o conhecimento pode ser ensinado, mas não há escola para

ministrar virtudes, caráter e apetite para governar. Luís XVI foi um

trágico exemplo desse fato. Herdou o mesmo governo fortemente

centralizado que fez da França de Luís XIV uma nação de notável brilho, a

ponto de Voltaire chamar esse tempo de “Século de Ouro”, comparando-o

em brilho ao século de Péricles da Grécia Antiga, no entanto, a

centralização do poder nas mãos de Luís XVI – mãos inábeis, titubeantes

e pouco dispostas ao exercício do governo – deixou como triste herança o

colapso da ordem e o regime de terror, além de sua própria decapitação.

Na culinária japonesa há um peixe chamado Baiacu, que é uma iguaria

considerada fina e muito apreciada, mas que apenas uns poucos

cozinheiros têm o conhecimento e a habilidade suficientes para retirar

uma glândula que armazena um veneno letal para aquele que o consome.

Com o poder ocorre algo semelhante: a iguaria do poder, para que não se

torne um veneno letal, necessita de uma “cozinha” institucional de difícil

construção. As grandes nações de nosso tempo são aquelas que, de

alguma forma, foram mais longe na construção dessa sutil e complexa

culinária institucional, que protege os cidadãos dos males que podem

afetar a sanidade e o equilíbrio de seus governantes.

Hoje há variadas formas de governo que refletem diferentes soluções

para esse problema da convivência com a face mais obscura do fenômeno

do poder. Nas grandes democracias, a limitação de tempo por meio da

substituição periódica dos governantes constitui traço comum, mas há

muitos outros elementos que definem a maneira pela qual as nações

encontraram suas formas de lidar com a face obscura do poder. A divisão

de poderes e a descentralização política e administrativa são recursos

também comuns às democracias. Limitar o poder do governante significa

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também limitar os efeitos e as conseqüências de um governante inapto ou

que esteja vivendo uma síndrome de Édipo, isto é, onde a figura do

governante está tomada pela dúvida e pela desconfiança, corroendo sua

legitimidade e sua capacidade de governar.

Nos antigos regimes monárquicos e imperiais, um rei que perdia a

condição de governar não podia ser removido do trono a não ser pelo

assassinato. Em um regime parlamentarista típico, o Chefe de Governo

(Primeiro Ministro) diante de uma crise de credibilidade, tomado pela

síndrome de Édipo, pode ser destituído de seu posto por meio de um

“voto de desconfiança” do Parlamento, antes que a nação sofra os

tormentos relatados pelo sacerdote diante dos portões de Tebas. No

Brasil, de forte tradição centralizadora e onde as posições de governo são

entendidas como propriedade, onde presidentes, governadores e ministros

“tomam posse” do cargo, o governante inapto ou objeto de desconfianças

que virtualmente o impedem de governar, só pode ser retirado do posto

por meio de um processo judicial, bastante semelhante ao que é aplicado

ao cidadão comum, isto é, caracteristicamente longo, complicado e no

qual todo o ônus da prova cabe à acusação. Mesmo diante de uma

acusação formada, o governante, tal como o cidadão comum, tem sempre

à mão uma infindável sucessão de instâncias de recurso. Aos olhos da

justiça, como não poderia deixar de ser, é muito mais importante

preservar os direitos ao cargo do qual “tomou posse” do que as desgraças

que o governante, acometido pela síndrome de Édipo, traz para a

população. A retirada de um presidente só pode ocorrer em circunstâncias

semelhantes ao do ex-presidente Collor de Melo, que trabalhou decidida e

incansavelmente para sua própria destituição.