vernant - -Édipo em atenas

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I l 266 MITO ETRAGÉDIA NA GRÉCIA ANTIGA ao evocar a infância de seu itmão, o momento onde ele estava çtyóvtu pqtpóOev orótov (664), "fugindo da obscuridade do seio materno"E3. Com a maternidade, é a mácula que reaparece. Etéocles e Polinice não podem mais ser espartanos ou, se quisermos, são os últimos espartanos. Uma palavra, ainda, antes de deixar Ésquilo. No século V houve pelo menos um homem que leu Ésquilo com cuidado: foi Eurípidcs8a. Nas Fenícras, Eurípides ridiculariza a longa descrição de Ésquilo: 751 "Ovopd, ô Ërúorou ôtcrtprpilv noÀÀr'1v ëXer. ("Dar o nome de cada um ó perder tempo.") Seu Etéocles, longe de estar surpreso, deseja encontrar Polinice diante das muralhas (754-760). Depois do que, evidentemente, quan- do a primeira parte do combate termina, o mensageiro descreve os combatentes. A ordem é diferente da de Ésquilo, Polinice não é mais o sétimo. Os emblemas também são diferentes, com exceção daquele, mudo, de Anfiarau (lll0-1112)85. Partenopeu, o primeiro nomeado, não tem Esfinge, mas apenas o emblema familiar: Atalante caçando o javali de Calidón (l108-1109). Hipomedonte tem no seu escudo Argos Pânoptes (lll5). Tideu protege o seu com uma pele de leão e segura na mão direitasó "o Titã Prometeu levando uma tocha como para incen- diar a cidade" (1122), referência'evidente ao escudo de Capaneu. Polinice goza de um dispositivo cinematográfico: as éguas de Pótnias, comedoras de carne humana, que um sistema de eixos permite animar (1123-1129). Capaneu tem um gigante que desenraíza uma cidade (1129-1133), outro exemplo de referência a Ésquilo. Adrasto tem ser- pentes que levam em suas mandíbulas os filhos de Cadmo (1138), o que foi evidentemente retomado do escudo de Partenopeu. Construir esse conjunto é um exercício que não fi2. Haveria nele um outÍo,renri- do a náo ser o de uma desconstrução sistemática? De qualquer forma, tudo leva a crer que a cena dos ,Sete formava um conjunto suficiente- mente coerente para que Eurípides se obstinasse em destruí-lo. 83. N. Loraux aproxima, com razão, Ewnênides,6ó5, onde se diz de Atena; oúõ'èv orótotot w1ôúoç teôpoppóvq, "não tendo sido nutrida à sombra de uma matriz". É o que permite a Atena presidir aos nascimentos autóctones. Dizer de Polinice que ele escapou das trevas maternâs é reduzir a nada qualquer pretensão sua - e, em contrapartida, de seu irmão - à autoctonia. 84. Nada mais pÍetendo aqui senão levantar, em poucas palavras, um tema de pesquisa. Esta exigiria, para ser levada a bom termo, um estudo sisternÁticodas Fenícias e das Suplicantes de Eurípides, sem falar nos versos 1309-1330 do Édipo en Colono de Sófocles. 85. Anfiarau é, na ordem de Eurípides, o segundo. 86. O texto é muio obscuro, e não me arrisco a interpreú-lo. 7. ÉOipo em Atenas* OPOETAEACIDADE "Felizardo Sófoclesl Morreu após uma longa vida, homem de sor' te e de talento; fez inúmeras e belas tragédias, e conheceu um belo fìm' sem nunca ter sofrido mal algum." Desse modo o poeta cômico Frínico saudava, em 405 a.C., em sua comédia as Musas,a morte recente (406) de sófocles, com cerca de noventa anos. A alusão é clara no início das Traquínias (1-3): uma verdade admitida muito tempo entre os homens que não se pode saber, de nenhum mortal, antes que morra' se a vida lhe foi suave ou cruel", e, no final do Edipo Reí: "Evitemos chamar um homem de feliz antes que tenha atingido o termo de sua vida sem ter sofrido uma mágoa" (1529-1530). A vida de sófocles foi, portanto, justamente o contrário de uma tragédia' Foi também uma ìida altamente pública e política, no que Sófocles difere tant. de Ésquilo, esse cidadão simples, combatente de Maratona' mas que nun- .u à.upou cargo algum, como de Eurípides, esse homem doméstico que moÍreu, pouco antes do mais velho, Sófocles, na corte do rei clu Macedônia. A vida de sófocles acompanha a grandeza atenicnso c: extingue-se dois anos antes da derrocada de 404. Ele nasce em 496 otr 495 - uma dúzia de anos depois das reformas de Clístenes (508)' quc emolduram a futura democracia ateniense - , filho de um rico ateniensc, Sófilos, dono de escravos, ferreiros e carpinteiros' Seu demo é Colo- no, no limite da cidade e do campo, e ele o pintará em sua última obra' Autor trágico, renuncia a representar suas obras devido à fraqueza dc * Prefácio a Sófocles, Tragédies, trad. de Paul Mazon, Paris, 1973' Gallimard, col. Folio, pP. 9-37.

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  • Il

    266 MITO ETRAGDIA NA GRCIA ANTIGA

    ao evocar a infncia de seu itmo, o momento onde ele estava tyvtupqtpOev ortov (664), "fugindo da obscuridade do seio materno"E3.Com a maternidade, a mcula que reaparece. Etocles e Polinice nopodem mais ser espartanos ou, se quisermos, so os ltimos espartanos.

    Uma palavra, ainda, antes de deixar squilo. No sculo V houvepelo menos um homem que leu squilo com cuidado: foi Eurpidcs8a.Nas Fencras, Eurpides ridiculariza a longa descrio de squilo:

    751 "Ovopd, rorou tcrtprpilv nor'1v Xer.("Dar o nome de cada um perder tempo.")

    Seu Etocles, longe de estar surpreso, deseja encontrar Polinicediante das muralhas (754-760). Depois do que, evidentemente, quan-do a primeira parte do combate termina, o mensageiro descreve oscombatentes. A ordem diferente da de squilo, Polinice no mais ostimo. Os emblemas tambm so diferentes, com exceo daquele,mudo, de Anfiarau (lll0-1112)85. Partenopeu, o primeiro nomeado,no tem Esfinge, mas apenas o emblema familiar: Atalante caando ojavali de Calidn (l108-1109). Hipomedonte tem no seu escudo ArgosPnoptes (lll5). Tideu protege o seu com uma pele de leo e segurana mo direitas "o Tit Prometeu levando uma tocha como para incen-diar a cidade" (1122), referncia'evidente ao escudo de Capaneu.Polinice goza de um dispositivo cinematogrfico: as guas de Ptnias,comedoras de carne humana, que um sistema de eixos permite animar(1123-1129). Capaneu tem um gigante que desenraza uma cidade(1129-1133), outro exemplo de referncia a squilo. Adrasto tem ser-pentes que levam em suas mandbulas os filhos de Cadmo (1138), oque foi evidentemente retomado do escudo de Partenopeu. Construiresse conjunto um exerccio que no fi2. Haveria nele um outo,renri-do a no ser o de uma desconstruo sistemtica? De qualquer forma,tudo leva a crer que a cena dos ,Sete formava um conjunto suficiente-mente coerente para que Eurpides se obstinasse em destru-lo.

    83. N. Loraux aproxima, com razo, Ewnnides,65, onde se diz de Atena;o'v ortotot w1o tepoppvq, "no tendo sido nutrida sombra de umamatriz". o que permite a Atena presidir aos nascimentos autctones. Dizer de Poliniceque ele escapou das trevas materns reduzir a nada qualquer pretenso sua

    - e, em

    contrapartida, de seu irmo -

    autoctonia.84. Nada mais petendo aqui seno levantar, em poucas palavras, um tema de

    pesquisa. Esta exigiria, para ser levada a bom termo, um estudo sisternticodas Fenciase das Suplicantes de Eurpides, sem falar nos versos 1309-1330 do dipo en Colonode Sfocles.

    85. Anfiarau , na ordem de Eurpides, o segundo.86. O texto muio obscuro, e no me arrisco a interpre-lo.

    7. Oipo em Atenas*

    OPOETAEACIDADE

    "Felizardo Sfoclesl Morreu aps uma longa vida, homem de sor'te e de talento; fez inmeras e belas tragdias, e conheceu um belo fm'sem nunca ter sofrido mal algum." Desse modo o poeta cmico Frnicosaudava, em 405 a.C., em sua comdia as Musas,a morte recente (406)de sfocles, com cerca de noventa anos. A aluso clara no incio dasTraqunias (1-3): " uma verdade admitida h muito tempo entre oshomens que no se pode saber, de nenhum mortal, antes que morra' sea vida lhe foi suave ou cruel", e, no final do Edipo Re: "Evitemoschamar um homem de feliz antes que tenha atingido o termo de suavida sem ter sofrido uma mgoa" (1529-1530). A vida de sfocles foi,portanto, justamente o contrrio de uma tragdia' Foi tambm umaida altamente pblica e poltica, no que Sfocles difere tant. desquilo, esse cidado simples, combatente de Maratona' mas que nun-.u .upou cargo algum, como de Eurpides, esse homem domsticoque moreu, pouco antes do mais velho, Sfocles, na corte do rei cluMacednia. A vida de sfocles acompanha a grandeza atenicnso c:extingue-se dois anos antes da derrocada de 404. Ele nasce em 496 otr495

    - uma dzia de anos depois das reformas de Clstenes (508)' quc

    emolduram a futura democracia ateniense - , filho de um rico ateniensc,Sfilos, dono de escravos, ferreiros e carpinteiros' Seu demo Colo-no, no limite da cidade e do campo, e ele o pintar em sua ltima obra'Autor trgico, renuncia a representar suas obras devido fraqueza dc

    * Prefcio a Sfocles, Tragdies, trad. de Paul Mazon, Paris, 1973' Gallimard,

    col. Folio, pP. 9-37.

  • MITO ETRAGDIA NA GRCIA ANTIGA ulpo ev ATENAS3AT MITO ETRAGEDIA NA GRECIA ANTIGAIult voz. Marido de uma ateniense e amante de uma sicinia, conheceurulgurnas dificuldades familiares: seu filho legtimo, Iofonte, tambmnutor trgico, reprovava-o por favorecer seu neto ilegtimo, o poetaSfbcles, o Jove, mas duvidoso que tenha sido acusado por seus'ilhos de senilidade, como pretende um bigrafo annimo. Seu suces-so nos concursos trgicos no teve precedentes. Teria sido coroadovinte e quatro vezes, e nunca foi o terceiro. squilo s foi coroadotreze vezes, e Eurpides conheceu apenas cinco vitrias, das quais umapstuma. Ele helentamo em 443, isto , administrador do tesouroateniense vertido pelos "aliados" de Atenas, estrategista em 440, aolado de seu amigo Pricles, junto ao qual participa da expedio deSlrlos; alguns anos mais tarde, ocupa novamente esse cargo junto ao"moderado" Ncias. Depois do desastre da Siclia (4I3), um dos dez"c
  • 270 MITO ETRAGDIA NA ORCIA ANTIGAO MITO, O IERI, A CIDADE

    A tragdia tem nascimento, segundo a palavra surpreendente deWalter Nestle, quando se comea a ver o mito com o olhar do cidado.De fato, o poeta trgico se serve do imenso repertrio das lendas he-ricas, que Homero e os autores dos outros ciclcs picos haviam con-figurado e que os pintores imagistas de Atenas haviam representadonos vasos. Os heris trgicos so todos emprestados a esse repertrio,e podemos dizer que quando Agato, jovem contemporneo deEurpides que encarna a Tragdia no Banquete de Plato, escreveu,pela primeira vez, uma tragdia cujas personagens eram de sua lavra, atragdia clssica morreu, o que no a impede de subsistir enquantoforma literria. No h outra origem da tragdia seno a prpria trag-dia. Que o protagonista saia do coro que canta um "ditirambo" emhonra a Dioniso, que um segundo (com squilo), depois um terceiroator (com Sfocles) venham sejuntar a ele no confronto entre o herie o coro, no se pode explicar em termos de "origens". E nada mais seexplicar ao dizermos que a palavra "tragdia" significa, talvez, cantodeclamado por ocasio do sacrifcio do bode (trgos). No so bodesque moem na tragdia, mas homens; e se h sacrifcio, um sacrif-cio desviado de seu sentido.

    Uma historieta relatada por Herdoto contudo esclarecedora (V67). No sculo VI, o tirano Clstenes de Sicon, av do revolucionrioateniense, teria abolido o culto do heri argivo Adrasto e transferidoos coros trgicos, celebrados em sua honra, ao culto popular de Dioniso.Adrasto era um heri da lenda dos Sete contra Tebas, daqual squilofez uma tragdia. O heri, enquanto categoria religiosa, uma criaoda cidade que no parece remontar muito alm do sculo VIIL Quandouma tumba real se cerca de tumbas mais modestas e se torna um lugarde culto, como a arqueologia nos faz constatar no fim do sculo VIII eno incio do sculo VII, em Ertria, na Eubia, nasce o heri. Os herisso recrutados, por assim dizer, em qualquer lugar, aqui e ali, deusesdecados ou reis promovidos. O importante assinalar que seu cultoest ligado sua tumba, e que esta se inscreve no solo, em lugares quea cidade tem como simblicos: a gora, as portas da cidade, as frontei-ras, por exemplo. O heri "ctnio" (ligado terra) ope-se desse modoao deus "uraniano" (celeste), mas cria-se um segundo distanciamento,que a historieta narrada por Herdoto relata, com a cidade em vias dedemocratizao do sculo VI e a cidade democrtica do sculo V. Oheri e a lenda ligam-se a esse universo de famlias nobres que, detodos os pontos de vista, prticas sociais, fbrmas de religiosidade, com-portamentos polticos, representa o que a cidade nova rejeitou no de-correr dessa mutao histrica profunda que comea em Atenas comDrcon e Slon (fim do sculo VII e incio do sculo VI), para prosse-

    otpo eu ATENAS 211

    guir com Clstenes, Efialtes e Pricles' Entre o mito herico e a cidade'

    distancia foi escavada, mas no o bastante para que o heri deixe de

    Dermanecer presente e at ameaador' A abolio da tirania em Atenas

    u,o up"not e 5 10, e dipo no a nica personagem trgica a ser umi;;";;tt.o direito (adk)contesta a tradio nobilirquica e tirnica'u, ,ru,u-r" de um direito que no est fixado ainda' A tragdia opeconstantemen teumadkeaoutra, e vemos o direito deslocar-se e trans-

    formar-se em seu contrrio, omo nos dilogos entre Antgona e

    Creonte, entre Creonte e Hmon, e como no 1dipo Rei, onde o heri

    ao mesmo tempo o inquiridor que age por delegao da cidade e cr

    prprio objeto do inqurito'O mito herico no trgico por si s' o poeta trgico que lhc dri

    esse carter. certo que os mitos comportam' tanto quanto se quclra'essas transgresses de que se nutriratn as,tragdias: o incestct'

  • N2 MITOETRAGDIA NA GRCIA ANTIGAnagem desconhecida do prprio squilo, e pode assim se tornar a in-transigente guardi do lar de Agammnon. E, voltando uma vez mais,a aipo Rei, o que a lenda ae dipo antes dos,trgicos? a de umacriana abandonada e conquistadoa, parc quem matar o pai e dormircom a me no tem talvez outro significado seno o de um mito deadvento real de que h muitos outros exemplos.

    O heri se separa ento da cidade que ojulga, e, em ltima instancia,os j uzes sero os mesmos que atribuem o prmio ao vencedor do con_curso tgico, o povo reunido no teatro. preciso que.a separaotenha lugar ali mesmo onde, por uma reviravolta genial, Sfocles pin_lou, no a separao, mas o retorno, tanto no Filo ctetes qtJanto no dipoctrr Colono, tragdia da heroicidade, em Atenas, do velho exilado defebas. "E, portanto, quando no sou mais nada que me torno realmen-te um homem" (393).

    TRAGEDIA E HISTRIA

    Herdoto um contemporneo de Sfocles, de quem foi at ami_go. E um dos criadores do discurso histrico, do mesmo modo queliscluil. e sbles foram os criadores do discurso trgico. Na obra deLlerdoto encontramos no tragdias propriamente ditas, pois atrag.-dia no pode ser separada da representao trgica, desse duplo ds_dobramento que , por um lado, a oposio entre o heri e o coro e, poroutro, a relao que se estabelece entre o coro, os atores e a cidadepresente nas arquibancadas, mas esquemas trgicos. Desse modo, ahistria de Creso, a dos Aquemnides, Ciro, Cambises, Xerxes, se de_senrr,lam segundo uma ordem familiar aos leitores de tragdia: orcu-los ambgu.s e compreendidos de vis, uma escolha invariavermentem que gera uma srie de catstrofes pessoais e polticas. por no terinterpretado corretamente orculos que s so claros para ns, cresoperde ao mesmo tempo seu filho e seu imprio. Mas quem so esseshcris quase trgicos, atingidos pelo descomedimento (hjbris) e pelav i n gana div na (t e)? Na quase total idade dos casos, esses heris sodspotas orientais ou tiranos gregos (como polcrates de Samos e ou-tros), isto , homens que confiscaram a cidade em proveito prprio. Acidade, com seus rgos de deliberao e de execuo, funciona emHerdoto como uma mquina antitrgica, quer seja .,arcaica", comoEsparta, ou democrtica, como Atenas nos ltimos tempos. Lenidas,rei de Esparta, t'oi morto nts Termpilas em 490 com seus trezentossucrrciros, os espartanos consultaram O orculo cle Delfoss antes declrrr cn gucrra, o urilcul() n0 0l'crece cle modo algum essc carter

    8, Hcrtloro, Vll, 220,

    oPog4ATENAS 273de ambigidade que caracteriza o orculo trgico e tantos orculosesparsos na obra de Herdoto. Em termos de escolha poltica ele semostra bastante simples: ou bem Esparta subsistir, mas um de seusreis morrer, ou bem Esparta ser vencida, mas seu rei sobreviver. Aescolha de Lenidas uma escolha poltica, e sua morte no umamorte trgica.

    Milcades de Atenas aparece em Herdoto sob dois aspectos dife-rentes e, inclusive, opostos. Em Maratona (490), ele um dos dez es-trategistas eleitos de Atenas, perfeitamente integrado, por conseguin-te, cidade demortica. Mas tambm o tirano de Quersoneso, ondefoi vassalo do rei dos persas, e at em Atenas, aps Maratona, seupapel mais o de um candidato tirania que o de um cidado quearrasta os atenienses, sob pretextos ilusrios, a uma expedio contraParos. Na vspera de Maratona, a situao antes de tudo poltica, ade uma partilha de votos. Dos dez estrategistas, cinco so partidriosdo ataque e cinco, da espera. O rbitro o chefe nominal do exrcito,o "polemarca" Calmaco. Milcades vai encontr-lo e lhe diz: "Pode-mos, Je os deuses permqnecerenx imparciais, triunfar nessa contenda.Depende de voc que Tebas seja livre..." (VI, 109). Se os deuses foremimparciais... os deuses da tragdia nunca so imparciais, mesmo se soos homens que realizam todos os gestos.decisivos. A deciso tomadaem Maratona uma deciso poltica, tomada livremente por uma maio-ria. Mas o prprio Milcades, algumas semanas depois, pede aos ate-nienses que lhe forneam setenta navios, homens e dinheiro, "sem di-zer nada do pas que ele pretendia atacar". A expedio fracassa:Milcades, guiado por uma sacerdotisa de Paros, penetra no santurioreservado s mulheres de Demter Tesmoforos, o que um ato de desco-medimento. Tomado de pnico, recua e sofre um ferimento que o ma-tar. A Ptia, consultada pelos prios, fez saber que a sacerdotisa fora oinstrumento da vingana divina: "Milcades devia acabar mal, e Tim[a sacerdotisa] aparecera a ele, paraprend-lo sua infelicidade" (VI,132-136). O orculo intervm depois, e no antes da ao, mas Milca-des no deixou de ser logrado por um sinal divino enganador: ele seconduziu como tirano, e more como uma vtima trgica.

    OHEROIEOCORO

    No centro da orkhstra circular, a thyml o altar redondo def)ioniso. rumo a esse altar que se dirigem, num ritmo de marcha, oscoreutas, por ocasio da entrada do coro, o prodos, momento solenecla tragdia, em relao tlrynl queevoluem os coreutas, girandoora num sentido, ora noutro, e ora permanecndo imveis. Tangente orquestru est a.rliarr (donde vem nossa cena), tenda onde os atores se

  • 274 MITO ETRACJDIA NA ORCIA ANTIGA

    preparam. Sfocles quem primeiramente a fez pintat, o que no sig-nifica, absolutamente, a introduo de um cenrio, mas provavelmentede um simples efeito de perspectiva. No centro: uma porta que podesimbolizar, vontade, a porta de um palcio, de um templo, ou a entra-da de uma caverna, como no Filoctetes. Nas duas extremidadesl duassadas possibilitam entradas e sadas do lado da cidade e do lado docampo. Discute-se, e discutir-se- muito tempo ainda, sobre o lugarexato onde ficavam os atores. A arqueologia no permite responder aessa questo, pois os teatros do sculo V eram de madeira, e nossosteatros, remanejados nas pocas helensticas e romanas, datam, nomximo, como o de Epidauro, do sculo IV. No entanto, certo, se-gundo o testemunho dos prprios textos e dos vasos, que um estreitaplataforma separava os atores do coro, diante da rken. Alm disso,degraus permitiam o encontro e o dilogo. Desse rnodo, no incio dcldipo em Colono, o coro convida dipo se manter sobre o "degrlu"que o rochedo frrma. A palavra grega bma, que designa o degrau daescadaria, mas tambm a tribuna da qual o orador se dirige nos cida-dos reunidos. Acima dessa .r,tene-, uma rnquina simples permite asaparies divinas, como a de Hracles no tm do Frlocrete.r; atravs daporta central pode-se introduzir uma plataforma mvel, que permite,por exemplo, a exposio do corpo de Clitemnestra, no fnal da Elect ra.

    A dualidade fundamental a que ope e confronta os trs atoresque representm todos os papis hericos

    - todos so homens, e o

    mesmo ator que representa, nas Traqunias, os papis sucessivos deDejanira e de Hracles

    - e os quinze coreutas. O coro coletivo, e os

    heris, quer sejam Creonte ou Antgona, so individuais. Tanto o coroquanto os heris esto fantasiados e mascarados, mas os coreutas usam,como os hoplitas da cidade, um uniforme: o prprio chefe do coro (ocorifeu), intermedirio obrigatrio entre os heris e os coreutas, no sedistingue pelo traje. Ao contrrio, as mscaras e os trajes dos atoresso individualizados. O coro exprime ento a seu modo, diante do he-ri atingido pelo descomedimento, a verdade coletiva, a verdade m-dia, a verdade da cidade. O heri morre ou sofre, como Filoctetes ouCreonte, uma mutao decisiva, o coro subsiste. EIe no tem a primei-ra palavra, tem sempre, pela boca do corifeu, a ltima, como no Edipoem Colotto. "Aqui, a histria se fecha definitivamente".

    Mas tudo o que acaba de ser dito pode ser agora revertido, e ob-servemos primeiramente um detalhe tcnico mais significativo: naempresa pblica que o concurso trgico, do mesmo modo que a cons-truo dos navios de guerra, a cidade, que responsvel pela grandeobra das trieres, prov os atores, e, assim como o trierarca inancia,como liturgia, os aprestos do navio e o soldo da equipagem, um ricoateniense, talvez at um meteo, que, sob o contrr:le do arconte, recru-tar, dirigir ou mandar dirigir o coro; o conjunto era julgado pelos

    EDIPO EM ATENAS

    cidados. O coro a expresso da cidade, que honra com suas evrllu-es o altar de Dioniso, isto , do deus que, dentre todos os deuses doOlimpo, o mais estrangeiro cidade. Entre a Iinguagem tlavndl pe-los heris e a travda pelo coro h muitas trocas, ncl cluo scil illcllisquando um e outro dialogam, ou modulam seus cntos, mas ainda vlido dizer que, de unr modo geral, o coro, quando se exprime coleti-vamente, utiliza uma lngua e uma mtrica extraordinariamente com-plexas, enquanto os heris falam uma linguagern simples, s vezes quascprosaica (que se leia, naAntgorln, o diltlgtl entre Creonte e o gtrntclit).Melhor ainda, se o coro o rgo da expresso coletiva e cvica, inteiramente excepcional que seja composto de cidados tnditls, isto, itdultos machcls em idade de combate. Dls trinta e dttas tragcliltsque chegaram at nrSs em nome cle squilo, Sfbcles e Eurpides (urna,o Rcs

  • 276 MITO E TRAGDIA NA GRCIA ANTIGAos nega, s vezes brutalmente, como em Esparta, onde o antagonismocidade-famlia aparece no estado puro, e s vezes mais sutilmente, comoem Atenas. No sculo V, as grandes famlias, as gne, continuam evi-dentemente a desempenhar um papel essencial; no seu seio que nu-merosos dirigentes so recrutados. Pricles um "Bousyge", ligado,por sua me, ao gnos dos "Alcmenidas", que representou um papeldeterminante na eliminao dos tiranos no final do sculo VI. Mas acidade democrtica se fez tambm contra essas grandes famlias, e aarte funerria do sculo V exprime maravilhosamente a represso aque est submetida a expresso dos sentimentos familiares, nem queseja apenas no momento damorte. Apalavraokor, que s vezes tradu-zimos por "famlia", dificilmente traduzvel. Ora designa a famliano sentido estrito do termo, ora a casa e todos os que gravitam emtorno do lar: pais, filhos e escravos.

    A tragdia exprime essa tenso entre o okos e a cidade. Na ilhadeserta onde se situa o Filoctetes, a escolha que oferecida aos doisheris, escolha autenticamente trgica, deve ser feita entre o exrcitoque combate diante de Tria, isto , a cidade, e o retorno ao lar, isto ,a desero. Esse seria o ltimo partido que eles tomariam se no fos-sem impedidos por Hracles. Dejanira quer integrar a seu lar lole, acativa silenciosa, como escrava; diante do heri pan-helnico Hracles,ela no pode dividir seu okos, admitindo a presena de uma segundaesposa. Na Electra, a tragdia ope, levando ao limite do assassinato,a mulher que passou para o lado dos homens, Clitemnestra, e sua filha,que pretende perpetuar o lar paterno, mas cujo destino "normal" seriaabandon-lo. Atravs de um jogo de palavras caracterstico ambassa"lektroi", isto , fora do leito conjugal.

    A Atttgona o exemplo mais clebre dessa tenso, e tambmaquele que foi quase sempre mal compreendido, apesar de algumaslinhas luminosas que Hegel lhe consagrou na Esttica. Conflito entre a"jovem selvagem", encarnada por Antgona, e a fria razo de Estado,replesentada por Creonte? No fcli Sfocles, mas Jean Anouilh, quemrepresentou esse drama. Foi na sua Antgona que Creonte (ou PierreLaval?) reuniu o conselho dos ministros depois da morte de todos osseus. O Creonte de Sfocles partido pela catstrofe, como a prpriaAntgona; ele "um cadver ambulante". Apltila (o amor de Antgonaque se exprime desde os primeiros versos: "Tu s meu sangue, minhairm Ismene...") um sentimento que se dirige a seu okos, sua fam-lia, que ela se recusa a dividir entre o irmtl leal cidade e o quenloeu (assassinldo pelo irmiio e seu assassiro) atcand()-it, mits oo/Ll.r qu cu deenclc dsmedirlnrnente o incestuoso e monstruoso deAipo e dos Labclcidas.

    "Elos vrrr cle krngc", cantil o coro, "os males que ve.jo ubatercm-sc s(hre os vivos, riol o lct() (al/io.r) dos l,atrrlrcidri, ttcntpre nps os

    orpo Ea ete\es 2'17mortos, sem que nunca uma gerao libere a seguinte" (594-596). Ocasamento cvico situa-se entre dois extremos: o extremo prximo, que o incesto, quando "o pssaro come a carne do pssaro", para retomaruma imagem de squilo, e o extremo longnquo, que o casamnto no

    . !-.estrangeiro. Edipo cometeu o incesto e Polinice desposou uma prin-cesa argiva: "Ah! himeneu fatal de uma me! Incestuoso abrao que,aos braos de meu pai, uniu minha me desafortunada. De que culpa-dos provenho, miservel ! E so aqueles que hoje, malditos, semhimeneu, vou encontrar, por minha vez. Ah! O infeliz himeneu que tuento encontraste, irmo, j que, at morto, ainda pudeste perder airm que sobrevivera a ti" (862-871). E o coro pode replicar a Antgona:"Tua paixo s se aconselhou consigo mesma, e, desse modo, ela teps a perder" (875). Mas Creonte, por sua vez, no o magistradolegtimo de uma cidade. Provavelmente, ele definido, desde o verso8, como o "estrategista" (o "chefe", na traduo de Paul Mazon) deTebas, e Ismene pretende obedecer "aos poderes estabelecidos" (maisexatamente "aos que esto encArregados", expresso tcnica que de-signa os magistrados

    - o plural caracterstico * da cidade). O prprio

    Creonte faz tudo para afirmar sua legitimidade. Mas essa legitimidade radicalmente contestada pelos mesmos que, segundo as regras dacidade, esto em posio menos favorvel para faz-lo, a jovemAntgona (que proclama: "Os tebanos pensam como eu, mas contm alngua") e o prprio filho de Creonte, Hmon, um filho que enfrenta opai, um jovem que se ope a um adulto, mas um cidado que se opeao tirano. Creonte pode invocar "esse cidado dcil que... saber co-mandar algum dia. do mesmo modo como se deixa comandar hoje"(668-669), o que a prpria definio da democracia antiga, Ora, nogrande discurso que replica ao de Creonte, Hmon responde: "Teu sem-blante intimida o cidado simples" (690). E quando se estabelece odilogo entre pai e filho, verso a verso, o espectador ateniense ouve oseguinte: Creonte: "Tebas deveria ento ditar-me ordens?" Hmon:"Ests vendo, tu respondes como uma criana". "Seria ento para umoutro que eu deveria governar esse pas?" "No h cidade que sejabem de um s." "Uma cidade, ento, no mais de seu chefe?" "Ah, tuservirias bem para comandar sozinho uma cidade vazia!" "Parece-meque esse rapaz se faz de defensor da mulher". "Se s mulher, sim, poiss o nico a me interess,ar" (734-741).

    O chefe legtimo, o homem, o adulto, um tirano, uma mu-lher, uma criana. Acima da cidade (hypspolis), ele est fora dacidade (cipolis\. Entre aqueles que se defrontam, o coro no pde,de imediato, decidir: "Falou-se muito bem aqui nos dois sentidos"(725), u lgica trgica, essa lgica do ambguo, decide, conduzin-do ao seu termo, os dois direitos que so tambm dois desomedi-mentos.

  • 278 MITO ETRACDIA NA CRCIA ANTIGATEMPO DOS DEUSES E TEMPO DOS HOMENS

    As reflexes sobre a instabilidade dos direitos humanos so tonumerosas e to banais nos trgicos quanto em seu contemporneoHerdoto ou em seus predecessores, os lricos. Desse modo, Ulissesno Ajax: "Vejo bem que no somos, ns todos que vivemos aqui, nadamais que fantasmas ou leves sombras" (125-126), e Atena responde:"Basta um dia para aumentar ou diminuir todos os intbrtnios huma-nos" (l3l-132). Mas, quando dipo viu revelada sua infelicidade, ocoro canta: "o tempo, que tudo v, descobriu-te contra a tua vontade!"(1213). Desse modo, opem-se o tempo instvel dos gestos humanos eo tempo soberano dos deuses, aquele que coloca cada um no Iugar quedeve ocupar no plano divino. Tempo dos deuses e tempo dos hclmensse encontram quando a verdade vem tona, Aps ter_se cegado, dipopode dizer; "Apolo, meus amigos ! Sim, Apolo que me inflige, nessahora, essas atrozes, essas atrozes desgraas que so meu ardo, meufardo daqui em diante. M4s nenhumo outr mo alm da minha ngiu,infeliz" ( I 329- 1333). A oposio dessas duas categorias temporais , emsi, muito mais antiga que os trgicos, mas o palco trgico piecisamefrteo lugar onde os dois tempos, inicialmente disjuntos, se encontram.

    Um dos modos normais de comunicao entre os deuses e os ho_mens na sociedade grega o vaticnio oracular. A soberania do orcu-lo , nas tragdias, aquilo que o coro nunca contestar, Apesar disso,Jocasta prope, por ter compreendido a verdade, o nico meio possvel de contestar a verdade oracular; ,.Viver ao acaso, como se pode, de longe ainda o melhor..." (979). viver ao acaso, exatamente isso oque o heri trgico no faz. Mas entre os orculos reais, os que conhe_cemos pelas insciies de Delfos ou de Dodona, e o orculo trgico asdiferenas so surpreendentes. As questes colocadas pelos consentes,individuais ou coletivos, so ambivalentes: Vou me casar ou no? De-vemos guerrear ou no? A resposta afirmativa ou negativa. A situa-o se inverte no caso do orculo trgico. E a pergunta que simples.Ela pode se resumir na interrogao que a maioria dos eris prr:pena tragdia: Que farei? dipo foi avisado por Delfos de que ,uturiu opai e desposaria a me, mas o orculo no lhe disse que o rei e a rainhade corinto no eram seus pais. creonte retorna de Delfos tendo sidoavisado de que um homem maculava o solo de Tebas, mas o orculono disse quem encarnava essa mcula. A tcnica trgica permite to-das as solues imaginveis em torno dessa ambigidade fundamen_tal. Desse modo, no ilo ctetes, aprofecia do adivinho troiano Heenoss revelada de modo fracionado. Ser Neoptlemo que tomar Tria?Neoptlemo e o arco de Filoctetes? Ne.ptlemo, Filoctetes e seu arco,?S tomaremos conhecimento disscl progressivamente, e sen esse pro-gresso na revelao no se compleenderia o rapto clo arco clo heri

    otponttATENAS zigexilado, ordenado por Ulisses, realizado por Neoptlemo. Em suma,gestos humanos e plano divino seguem uma ordem inversa. Do mesmomodo que a Orstia de squilo, t Electra de Sfocles comea ao ama-nhecer e termina noite. O amanhecer coloca em cena Orestes e odesespero de Electra, a noite cai sobre o assassinato na escurido dopalcio de Egisto. Nesse meio tempo, uma falsa temporalidade, umafalsa tragdia foi introduzida na verdadeira pela narrativa da pretensamorte de Orestes na corrida de carros de Delfos.

    Mas evidentemente no dipo rei que se mostra com a mais ex-traordinria surpresa essa incluso do tempo humano no tempo divino.Quando a pea comea, tudo j se realizou, mas ningum sabe ainda.dipo interrogou o orculo, deixou seus "pais" de Corinto, matou umviajante que barrava seu caminho, libertou l'ebas da Esfinge. deslrosoua rainha da cidade, ocupou o troro real, sem ver nessa succsso nurlualm de uma sucesso. A pesquisajudiciria a que ele procede diantedo enigma que a peste prope, com os rneios clssicos do procedimen-to ateniense (consulta do orculo, do adivinho, das testemunhas). orevela a si prprio: "Agora, tudo se tornou claro". O enigma plopost()pela Esfinge tem uma resposta, que era "o homem". O enigma propos-to por dipo tem uma resposta, que ele prprio. Cclmo observavirAristclteles (Po,ltictr, 52 e 29 e ss.), esses dois elementos esserrc:iuisque so, na tragdia grega,aperiplcirr, isto , a inverso da situao dapersonagem, e o recottlrccinxento, isto , a descoberta da identidade,esto reunido s no lldipo. Antes da clescoberta final, uma ltima hipte-se contudo formulada. dipo nao o ilho de Plibo e Mrope deCorinto. No seria ele o filho da fortuna (tikh) e at um homern selvir-gem? "Considero-me filho da Fonuna, Fortuna, a Generosa, e ncl sin-to nenhuma vergonha disso. Fortuna foi minhn me, e os inos que acom-panharam minha vida tornaram-me, sucessivamente. ori pequeno. origrande" (1080-1083), e cabe ao coro definir o Citron, a l'onteira sel-vagem que separa Tebas de Atenas, como o "compatriota Oe Alpo".Mas, em ltima instancia, no h na tragdia gegi nem Fortuna nemhomem selvagem. ctipo, o "tirano", isto , o rei llor acuso, no irrcioda pea venerado quise como um deus pelo povcl de 'lebrs reuniclo,jovens e velhos confundidos, na presena de um altal quc p

  • ;fcF-

    280 uno e rnecuR Nn cncrA ANTTcAvamente. A lgica da contradio entrava na Grcia do sculo V comfragor. Os trgicos

    - e Sfocles em particular

    - no ignoravam nem a

    palavra, nem a coisa, mas o disss lgos no , neles, o duplo discurso,o que separa o pr e o contra, mas o discurso duplo, o discurso amb-guo. A ambigidade est presente em toda parte, no nvel do que cha-maramos jogo de palavras; desse modo, aAntgona joga com o nomede Hmon (em grego, Hamon), filho de Creonte, que o poeta aproxi-ma da palavra que significa "sangue" (hama). O clebre discurso am-bguo de Ajax (646-692) compreendido pelo coro como sinal daresignao do heri diante da ordem dos deuses e do comando dosAtridas. "Finalmente, encontrei a salvao", mas o espectador com.preende que 1ax decidiu se matar. Enfim, so as prprias estruturasdas pcas que so ambguas e enigmticas. J observamos isso a res-peito do dipo Rei au da Electra. preciso tentar compreender porque.

    A prtica poltica, social, religiosa da cidade uma prtica de se-parao que visa a instalar cada um no seu domnio, os homens emrelao aos homens, os homens em relao aos deuses. Assim, o terri-trio da cidade ope o mundo dos campos cultivados, dos quais vivemos cidados, e o mundo selvagem, da fronteira, reservado a Dioniso eaos caadores. O sacrifcio que coloca os homens e os deuses em co-municao, mas que os fixa nos seus estatutos diferenciados (para oshomens, a carne; para os deuses, a fumaa), est intimamente ligado aomundo dos campos cultivados, sobre os quais reina Demter. O animalsucrifical um animal domstico, o companheiro do homem no traba-lho. Mundo selvagem e terra arvel, caa e sacrifcio no devem inter-ligar-se.

    Nessa prtica social que a guerra aparece uma polaridade domesmo tipo. A guerra uma atividade coletiva que depende do con-junto dos hoplitas, companheiros de fileira e intercambiveis. O lugarnormal onde ela se realiza a plancie cultivada, prpria ao confrontodas I'alanges, que tambm exatamente aquilo que a cidade deve de-fender. Qualquer outra atividade guerreira, a emboscada, o combatenoturno, a escaramua nas fronteiras, depende do mundo selvagem e confiada parte selvagem da cidade, isto , juventude.

    Atravs do espetculo trgico, a prpria cidade se questiona. Oraos heris, ora o coro, encarnam sucessivamente valores cvicos e valo-res arrticvicos. A tragdia tambm faz interligar-se o que a cidade se-para, e essa interferncia uma das formas fundamentais da transgres-so trgica. O Hracles divino do Filoctetes representa as virtudeshoplticas, e ele que manda os dois heris da pea combaterem ladoa lado diante de Tria. O Hracles estritamente humano dasTraqunias bem dif'erente. Diante do rio, com "o aspecto de touro" (509), Aquelo descrito como vindo "do pas de Baco, de f'ebas. Ele brande, ao

    nIPOet\,ATENAS

    mesmo tempo, o arco que se verga na batalha [literalmente: o arco decurvatura inversa dos citas], dardos, uma clavan' (510-512), as armasda astcia, as do combate clssico, as da brutalidade. euando, naElectra, Orestes entra em cena, ele foi advertido pelo orculo de quedevia, "sozinho, sem escudo, sem armas, pela astcia, dissimulando,prover ojusto sacrifcio que est reservado a seu brao". Antes de sermorto por Orestes, Egisto pode fazer a pergunta: "Por que, se o ato belo, ele necessita da sombra?" (1493-1494), e declara ao filho deAgammnon: "Entretanto, no de teu pai que vem a arte de que tevanglorias" (1500). Por uma ambigidade suprema, o heri do dipoRei caador, mas a caa que ele persegue no outra seno ele pr-prio. Ele _lavrador, mas o solo que semeou no outro seno o campomaterno. jax acreditou caar e sacrificar homens guerreiros, mas naverdade realizou apenas uma matana de carneiros. Seu gesto final,realizado no diante do exrito, mas diante do mar, no limite do mun-do selvagem, um sacrifcio humano, o de si prprio. "A faca do sacri-fcio est ento aqui, erguida, de modo a cortar da melhor maneirapossvel..." (815-816). Seu ltimodeus dirige-se precisamente ao solode sua cidade, plancie onde o exrcito combate: "Solo sagrado deminha terra natal, Salamina, que serve de base ao lar de meus antepas-sados... E vs, fontes e rios que tenho sob os olhos, plancie de Trade,eu vos sado, todosjuntos: adeus, vs que me nutristes" (859-863).

    SABER, ARTE, PODER

    Atenas quisera afirmar sua superioridade sobre Esparta pela pos-se de uina arte, um ofcio, umatkhne estranhaao ombate tradicionaldo grego, atkhn naval. "O que tenge o mundo da esquadra questode ofcio", diz Pricles em (I, l4U. tambm uma arte, um ofcio,que os sofistas pretendiam ensinar quando se propunham como educa-dores da democracia. Um coro clebre daAntgonaexalta os aspectosprometicos do homem, e no por acaso que ele coloca o domnio domar no primeiro plano das conquistas humanas: "H muitas maravi-lhas nesse mundo, no h nenhuma maior que o homem. Ele o serque sabe atravessar o mar cinzento, na hora em que o vento do sul esuas tempestades sopram, e que segue seu caminho no meio dos abis-mos que as ondas revoltas lhe abrem" (332-337). O domnio da terra eda agricultura s vem depois. No elogio de Atenas que o coro do dipoem Colono pronuncia, a Ordem invertida: do mundo selvagem "queDioniso, o Bacante, ieqenta", o poeta passa terra e oliveira, aoscavalos de Posdon e, enfim, apenas ao mar. De fato, a ambigidadejaparecia no coro da Antgona, e a palavra que traduz "maravilhas"(de) significa em grego, ao mesmo tempo, "maravilhoso" e terr-

    281

  • 282 MITO TRACDIA NA GRCIA ANTIGAvel". A obra de Sfocles apresenta toda uma gama de personagens queencarnam o racionalismo humanista apoiado na tkhn, qu" un,, r-pecto' mas apenas um aspecto, da Grcia do sculo V. Assim, no nvelmais simples, Jocasta. .'Nunca", diz ela, ,.criatura humana possuiu aarte de predizer" (705-709, a palavra aindaHurc). o orcur. profe-rido a Apolo emanava no do deus, "mas de seus servidores". .,Notemas", diz ela ainda, "o himeneu de uma me, muitos mortais j par_tilharam em sonho o leito materno" (9g0-9g2); e, de fato, ,"guno otestemunho de Herdoto, o vaticnio podia dar uma interpretaao oti-mista da unio com a me. A Dejanira d,as Traqunia,

    "*pr"!u urnuarte diferente pra reconquistar o amor de Hr.acles; ela prepara o bl-samo mgico (na verdade, um veneno) cuja receita o centauro Nessolhe indicara.

    dipo situa-se num outro nvel. Atravs de um jogo fieqente como seu nome (Oidpous) e com o verbo que significa ,,eu sei,, (ctir),Sfbcles faz de dipo o que ele sabe. pelo ber e pela arre que eleliberta Tebas da terrver musicista, a Esfinge. u., ,a", de cripo querecore o sacerdote, porta-voz do povo no incio da pea: .,eue a vozde um deus te ensine. ou qrre um mortal te instrua sobre isso, poucoimporta" (42-43). Quando Tirsias, falando, por sua vez itrvs de umenigma, afirma que "viu nele a bra do verdadeiro", aipo, que colo_ca a arte do adivinho num plano inlrior ao seu saber, replica: :,8 qu"o,lhe teria ensinado o verdadeiro? Seguramente, no bi tua arte,, 1St;.Diante de Creonte, de volta de Delfos, dipo raciocina como tc_nico da coisa poltica. pensa descobrir entre o adivinho e seu cunhacloum compl destinado a expuls-lo do poder. pois, para Oipo, saber epoder caminham lado a lado.

    No entanto, s h um nico saber infalvel: o que o vaticnio oca_siona, e dipo estr to consciente disso que ele prprio se afirma, diantede Tirsias, como possuidor da arte do adivinho, ms os verdadeirosadivinhos so to clarividentes quanto impotentes._

    No sculo que seguir o da tragdia, plato opor frmula deProtgoras ("O homem a medida de todas as coisas',) sua prpriafrmula, que fz de Deus a medida de todas as coisas. verdade que adivindade, nos trgicos, tambm medida, mas medida no rermo datragdia. ento, e s ento, que o mundo ou o plano dos deuses tor_na'se "inteligvel". Plato na verdade no ope o mundo sensvel aomundo inteligvel; ele explica o primeiro, simples reflexo, pelo segun-do, que o filsofo tem a possibilidade de descobrir. Mas o mundritr-gico no comporta filsofos aptos a classificar os seres na sua hierar-quia verdadeira, e por isso que plato rejeita a tragdia. No Battque_te' o poeta trgico Agato deve se inclinar, assim como Aristfanes,diante de Scrates. O mundo trgico exclui a hierarquia dos saber.es ea unio entre saber e poder que o firsofb prctender rearzar.poderes

    EDTpOEMATENAS 283e conhecimentos se detontam nesse campo opaco que separa o mundodos deuses do dos homens e cujo sentido necessrio escolher a todahora. O coro daAntgo,t(I, paa a glria do homem, diz aindal "Senhtlrde um conhecimento cujas fontes engenhosas ultrlpassam toda espe-rana, em seguida pode tomar o caminho do mal assim como o dobent" (364-366). O Edipo em Colotto, que nlostra o heri telrano en-trando na eternidade a chamado dos deuses e conduzido pelo fundadormtico da democracia iteniense, Teseu, mostrit que ess ltima hiptite-se no inconcebvel.

    ODRAMAEOLEITOR

    A trilogia cla qual o Edipo Rei tttziit parte no recebeu o primeirr:prmi0 n0 concurso das Grandes Dionsias. Este foi recebido peltl so-brinho de squilo, Filocls, cu.ia obrt nito chegou at ns (mas quetalvez.tenha apresentadcl uma Crbra cle seu tio). O risccl cle perclct clitUm doS elementos do concurso trrgico. [-scritits cln 406, no nlolnl1)da morte de Sbcles, as Rs de Aristianes 1llostrarn cclrttudcl cltre des-de essa clata squilo, Sfocles e Eurpides gttzam de uma primazia cltreningum contesta, embora a or.dem ua qual corrvm classil'icii-lcls sejaainda matria para debate. No sculo IV, na Atenas de Licurgo' con-temporneo de Aristteles, as efgies dos trs grandes trgicos so va-zadas em bronze, e o povo financia as reprises de suas peas' Somos osherdeiros desse primeiro classicismo, entrementes expurgado pelosprofessores romanos.

    A histria moderna do teatro de Sbcles comea em 3 e 5 demaro de 1585, quando odtpoTirano foi representado com uma sun-tuoridud" principesca no Teatro Olmpico de Palladio, em Vicnciae'Mas, assim como uma igreja de L. B. Alberti no um templo grego' oteatro dePalladio no um teatlo antigo; at, num certo sentido, bento contrrio disso. O sol colorido que domina a cena no o ar livre dclteatro grego. A separao do palco e das arquibancadas excltti itorkhsta, que garante a mediao entre os atoles e o.pblico' Omecenato da Accademia Olimpica no o julgamento popular, e itrepresentao de uma obra'prima no um concurso trgico onde sedefrontam autores, atores e oros de trs tetralogiils.' Evirlentemente, podemos hoje representar ,dipo /iel no teatro dcEpidauro, mas uma leitura arquecll(lgicn permanece moderna, e nadase pode fazer para que no seja assim, mesmo que cada gernojulguedescobrir, por uma operao de decapagem,overdadeiro Sfocles e o

    9. Vcr LCo Schrade. kt rtprsenntion r!'Edptt-7'ranno n.u'l'cutrtt ()linrpit rt, l'it-ris, CNRS, 1960, e lia, PP.320'326.

  • 284 MITO ETRAGDIA NA GRCIA ANTIGAverdadeirodipo. A nica superioridade da qual a nossa pode se van-gloriar ,talvez, ser consciente dessas acumulaes sucessivas de lei-turas.

    Que leituras contraditrias tenham sido propostas (a antepenltima a leitura psicanaltica) no deve portanto nem nos espantar, nem nosindignar. Quando hoje tentamos compreender a tragdia grega atravsde um confronto sistemtico entre as obras e as instituies, o vocabu-lrio, as formas de deciso que caracterizavam a Atenas do sculo Vno pretendemos o saber absoluto (no h segredo no dipo Rei, enisso Freud, fascinado pelo "ilustre decifrador de enigmas", se enga-nou), e muito menos reencontrar, de uma vez por todas, o sentido quetinha, para seu autor e para seu pblico, a tragdia representada nosculo V. Dispomos apenas de obras, e no existe sentido absoluto.

    Pelo menos, essa palavra, "obra", deve nos servir de resguardo,pois a obra precisamente aquilo que no necessrio quebrar, aquilobra do qual no temos que procurar um sentido. Talvez seja verdadeque, para compreender o mito de dipo, seja necessrio, como afir-mou Claude Lvi-Strauss, no sem paradoxo, reunir todas as versesdo mito: as anteriores a Sfocles, a do poeta trgico,a de seus sucesso-res e, dentre elas, a do inventor do "complexo de dipo',; mas umaobra no um mito e no se deixa decompor em elementos primeiros.O mito s facilitar a leitura de uma obra de modo diferencial, na m-dida em que sabemos

    - o que no sempre o caso

    - o que o poeta

    acrescenta e o que suprime. Desse modo, a Esfinge do d ipo Rei no o monstro feminino, oriundo da terra que viola os jovens, como outrosdocumentos permitem reconstituir, nem a filha de Laio, como defendeuma tradio trazida por Pausnias . Ela a "horrvel cantora,' que pro-punha o enigma e nada mais.

    Isso no significa que no seja preciso esclarecer a tragdia atra-vs de outras fontes. Espetculo ao mesmo tempo poltico e religioso,pode ser til confrontar a tragdia com outros modelos polticos e reli-giosos. Desse modo, pudemos lembrarro que na poca em que surgiano teatro a figura de dipo, divino purificador e salvador de sua ci-dade, em seguida mcula abominvel que a cidade rejeita e exila, exis-tiam em Atenas e em outros lugares da Grcia duas instituies, a se-gunda uma verso politizada da primeira. O pharmaks era um ..bodeexpiatrio" (mas recrutado entre os homens) que a cidade expulsavaanualmente do local como smbolo das mculas acumuladas durante oano, em caso de necessidade, aps t-lo alimentado durante um anocon'lo um rei derrisricl, s expensas do tesour.o pblico, e ,.dipo car-

    10. Cf. J.-P Vernant, "Ambigidade c leviravolto, Sobre a Es[rutura Enigmticade lldipo Rei",.rupra, pp, 87.9u,

    ppoeMATe{lsrega realmente o peso de toda a infelicidade que oprime seusconcidados", infelicidade da qual estos, na abertura da pea, supli-cam que ele os livre, O ostracismo, procedimento que parece ter sidoinstitudo em Atenas por Clstenes e que foi utilizado entre 487 e 416,visa a obter, por meios polticos, um resultado comparvel: expulsarprovisoriamente da cidade aquele dentre os cidados cuja superiorida-de cone o risco de atrair sobre si a vingana divina sob a forma datirania. "O descomedimento", diz o coro dodipo Ret,"geraatirania"(873). Aristteles dirrr: aquele que no pode viver em comunidade"no faz parte de nada na cidade, e conseqentemente sente-se ou umbruto animal, ou um deus". Tal o destino da personagem de Sfocles.

    Do mesmo modo, quando nos lembramos que no mito, e ainda,em uma larga escala, ns instituies da poca arcaica e clssica, ojovem cidado, antes de ser integrado s fileiras dos hoplitas, era insta-lado nas fronteiras da cidade, devotado militarmente s emboscadas,at mesmo, como em Esparta, caa e explorao astuta e noturnaquefaz dele o inverso do cidado normal, difcil no relacionar essasrie de fatos com a situao de Neoptlemo no Filoctetes: filho deAquiles, futuro vencedor de Tria, mas por ora um adolescente, com aidade de um efebo ateniense, ele desembarca numa ilha deserta e presionado por seu chefe, Ulisses, a realizar o roubo do arco deFiloctetes, "explorao" contra a qual protestam tanto o passado deseu pai quanto seu prprio futuro. Na concluso da tragdia, o homemselvagem que Filoctetes se tornara e ojovem Provisoriamente destina-do traio reintegram o mundo da cidader2.

    Essas so hipteses, e poderamos propor outras, aplicveis a ou-tras peas de Sfocles. Digamos simplesmente, para concluir, que elasno visam, de modo algum, substituir a leitura que cada um faz e farem definitivo, por sua prpria conta, da obra do poeta grego.

    ll. Poltk:a, I, 1253a.12. Ver P Vidal-Naquet, "O Filoctetes de Sfocles e a Efebia", supra,pp' 132-

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