o chefe das Águas

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FOTOS RICARDO DUARTE ZERO HORA > DOMINGO | 18 | FEVEREIRO | 2007 Campo & Lavoura > | 19 | O chefe das águas SEBASTIÃO RIBEIRO À beira do valo que distribui água para a lavoura de arroz, as gramíneas não encontram obstáculos para se desenvolver – algumas chegam a quase dois metros de altura. Na parte mais rasteira, a vegetação é abun- dante, forma uma rede trai- çoeira para o caminhante e es- conde os tantos buracos e des- níveis do solo. A lcebíades Lopes, 55 anos, anda por esse terreno como quem passeia por um calçadão praiano. Conhece cada buraco da terra e nem sente as picadas dos inúmeros inse- tos que habitam o ambiente ou as minúsculas sementes que se gru- dam nas pernas, constituindo-se em uma ameaça a qualquer alérgico que por ali se aventure. É como se, após 41 anos trabalhando na lavou- ra arrozeira, sua pele fosse curtida, tivesse uma couraça natural. A úni- ca proteção que Alcebíades precisa para andar pelas margens da lavou- ra são as surradas Havaianas. – Caminhar de pés descalços aqui é brabo. Tu vais pisando, pisando e... (Pisa mais forte... Creck!) Olha só: (pega do chão uma concha quebra- da) é cheio destes caramujos aqui. Estas conchas cortam o pé – explica. Alcebíades é aguador – é assim que se chamam os peões que têm a tarefa de manter o arroz irrigado, de forma a deixar a parte superior da planta exposta ao sol e a inferior abaixo da superfície. Nas 80 quadras de lavoura que cuida em Eldorado do Sul, faz isso como ninguém. O gerente da área o chama de chefe das águas. O empregado sabe tudo de vasos comunicantes, embora nunca tenha ouvido essa expressão (cursou somente até a 5ª série do Ensino Fundamental). Mesmo com toda a mecanização da lavoura, os aguadores e taipeiros ainda são indispensáveis à lavoura de arroz. Taipeiro vem de taipa, ele- vações em linha que dividem os di- ferentes níveis de plantação. Quando Alcebíades começou a trabalhar, aos 14 anos, em Cachoeira do Sul, esses montes eram feitos por homens. Hoje, há tratores e máquinas. Mas os peões resistem (estima-se que 43 mil trabalhem na lavoura arrozeira gaúcha). Sem eles e suas insepará- veis pás, apêndice do corpo de um aguador, não se libera as valetas en- tre as lavouras. São essas passagens que permitem que a água escoe dos pontos mais altos aos mais baixos da plantação. Para o dia-a-dia, vianda, café, palitos e remédios Alcebíades tem orgulho de de- monstrar isso. Caminhando sobre a taipa, o trabalhador nota que um curso d’água entre um nível e outro da plantação está interrompido. Cin- co golpes com a pá são suficientes para remover as plantas e a terra que tomavam conta da valeta. O som da água corrente anuncia: uma veia da lavoura foi desentupida. O arroz sobreviverá. O dia de Alcebíades começa às 6h, com um mate. Às 6h30min, toma um gole de café, acompanhado com um reviradinho do jantar, preparado pela mulher, Vera Maria Peixoto. En- quanto isso, Vera Maria arruma a mochila azul de náilon que o agua- dor leva para o trabalho. Coloca a vianda e uma garrafa térmica com apenas meio copo de café. Vida rural Os peões que trabalham na manutenção da lavoura de arroz gaúcho – É para acompanhar os outros depois do almoço – diz o aguador. Na bolsa sempre há também uma caixa de palitos, um Amargol – para quando a comida não senta bem – e comprimidos de um antiinflamatório contra dores recalcitrantes no corpo. Alcebíades mora junto à lavoura, mas se desloca até a parte mais dis- tante do campo na caçamba do ca- minhão que carrega a peonada às 7h. Apesar de supervisionar os fun- cionários safristas e outros contrata- dos, pega no batente como todos. Uma das funções na qual a turma se envolve é desobstruir o canal principal, tomado por algas tão es- pessas que chegam a impedir a pas- sagem da água. A limpeza é feita manualmente. Uma velha camiseta de propaganda, a bermuda puída, a pele cheia de vincos e de um tostado que já se incorporou ao corpo, Alce- bíades lança-se ao valo para jogar as algas do centro para as margens do conduto. Em dias quentes como os do verão gaúcho, trabalhar com água acima da cintura até que não é tão mau. O único desconforto são os chamechungas – como chamam os peões – ou sanguessuga, como manda o bom português. – É preciso ficar se mexendo den- tro d’água, fazendo bastante barro, que aí os chamechungas não vêm – conta Alcebíades. O almoço da peonada é ao meio- dia. Comem todos em uma bolanta (pequena casa móvel, com rodas na base), sem esquentar a bóia. Depois de um cafezinho e um descanso de- baixo de alguma sombra, o trabalho continua até as 17h30min. Alcebía- des chega em casa, suado e molha- do, larga a mochila azul, toma uma jarra de suco artificial e se manda para o campinho de futebol impro- visado junto à moradia. Entre uma história e outra, enrola um cigarro. O casal se conheceu em Cachoeira do Sul, onde nasceram. Aos 14 anos, estudavam juntos. Após a aula, levavam a marmita a cavalo para os respectivos pais, que eram colegas em uma lavoura de arroz. Um dia, o petiço de Vera Maria desvencilou-se da tropilha e os dois demoraram a resgatá-lo. E o menino e a menina se atrasaram. Eles eram apenas amigos, mas os pais descon- fiaram que tinham inventado de na- morar no meio do caminho. Não in- teressa se era verdade. Cada um le- vou uma surra de relho trançado. Na mesma tarde, foram levados ao car- tório para encaminhar a papelada do casamento. Hoje, têm nove filhos – todos casados – três são homens e trabalham na lavoura de arroz, co- mo o avô e o pai, que em dois anos deve se aposentar. Isso, no entanto, não deve signifi- car largar a atividade. O aguador, que ganha R$ 600 por mês, quer reduzir a carga horária para meio turno, mas não cogita abandonar o ofício. sebastiã[email protected] Mesmo com a mecanização, taipeiros precisam encarar a água acima de cintura para desobstruir o canal principal Alcebíades não dispensa o mate, todos os dias às 6h, ao lado da mulher, Vera ALCEBÍADES LOPES, AGUADOR “Eu tenho 55 anos, fumo e tenho um pique que a molecada se apavora.”

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ZERO HORA > DOMINGO | 18 | FEVEREIRO | 2007 Campo & Lavoura > | 19 |

O chefe das águasSEBASTIÃO RIBEIRO

À beira do valo que distribuiágua para a lavoura de arroz,as gramíneas não encontramobstáculos para se desenvolver– algumas chegam a quase doismetros de altura. Na parte maisrasteira, a vegetação é abun-dante, forma uma rede trai-çoeira para o caminhante e es-conde os tantos buracos e des-níveis do solo.

Alcebíades Lopes, 55 anos, andapor esse terreno como quem

passeia por um calçadão praiano.Conhece cada buraco da terra e nemsente as picadas dos inúmeros inse-tos que habitam o ambiente ou asminúsculas sementes que se gru-dam nas pernas, constituindo-se emuma ameaça a qualquer alérgicoque por ali se aventure. É como se,após 41 anos trabalhando na lavou-ra arrozeira, sua pele fosse curtida,tivesse uma couraça natural. A úni-ca proteção que Alcebíades precisapara andar pelas margens da lavou-ra são as surradas Havaianas.

– Caminhar de pés descalços aquié brabo. Tu vais pisando, pisando e...(Pisa mais forte... Creck!) Olha só:(pega do chão uma concha quebra-da) é cheio destes caramujos aqui.Estas conchas cortam o pé – explica.

Alcebíades é aguador – é assimque se chamam os peões que têm atarefa de manter o arroz irrigado, deforma a deixar a parte superior daplanta exposta ao sol e a inferiorabaixo da superfície. Nas 80 quadrasde lavoura que cuida em Eldoradodo Sul, faz isso como ninguém. Ogerente da área o chama de chefedas águas. O empregado sabe tudode vasos comunicantes, embora

nunca tenha ouvido essa expressão(cursou somente até a 5ª série doEnsino Fundamental).

Mesmo com toda a mecanizaçãoda lavoura, os aguadores e taipeirosainda são indispensáveis à lavourade arroz. Taipeiro vem de taipa, ele-vações em linha que dividem os di-ferentes níveis de plantação. QuandoAlcebíades começou a trabalhar, aos14 anos, em Cachoeira do Sul, essesmontes eram feitos por homens.

Hoje, há tratores e máquinas. Masos peões resistem (estima-se que 43mil trabalhem na lavoura arrozeiragaúcha). Sem eles e suas insepará-veis pás, apêndice do corpo de umaguador, não se libera as valetas en-tre as lavouras. São essas passagensque permitem que a água escoe dospontos mais altos aos mais baixosda plantação.

Para o dia-a-dia, vianda,café, palitos e remédios

Alcebíades tem orgulho de de-monstrar isso. Caminhando sobre ataipa, o trabalhador nota que umcurso d’água entre um nível e outroda plantação está interrompido. Cin-co golpes com a pá são suficientespara remover as plantas e a terraque tomavam conta da valeta. Osom da água corrente anuncia: umaveia da lavoura foi desentupida. Oarroz sobreviverá.

O dia de Alcebíades começa às 6h,com um mate. Às 6h30min, tomaum gole de café, acompanhado comum reviradinho do jantar, preparadopela mulher, Vera Maria Peixoto. En-quanto isso, Vera Maria arruma amochila azul de náilon que o agua-dor leva para o trabalho. Coloca avianda e uma garrafa térmica comapenas meio copo de café.

Vida rural Os peões que trabalham namanutenção da lavoura de arroz gaúcho

– É para acompanhar os outrosdepois do almoço – diz o aguador.

Na bolsa sempre há também umacaixa de palitos, um Amargol – paraquando a comida não senta bem – ecomprimidos de um antiinflamatóriocontra dores recalcitrantes no corpo.

Alcebíades mora junto à lavoura,mas se desloca até a parte mais dis-tante do campo na caçamba do ca-minhão que carrega a peonada às7h. Apesar de supervisionar os fun-cionários safristas e outros contrata-dos, pega no batente como todos.

Uma das funções na qual a turmase envolve é desobstruir o canalprincipal, tomado por algas tão es-pessas que chegam a impedir a pas-sagem da água. A limpeza é feitamanualmente. Uma velha camisetade propaganda, a bermuda puída, apele cheia de vincos e de um tostadoque já se incorporou ao corpo, Alce-bíades lança-se ao valo para jogar asalgas do centro para as margens doconduto. Em dias quentes como osdo verão gaúcho, trabalhar comágua acima da cintura até que não étão mau. O único desconforto são oschamechungas – como chamam os

peões – ou sanguessuga, comomanda o bom português.

– É preciso ficar se mexendo den-tro d’água, fazendo bastante barro,que aí os chamechungas não vêm –conta Alcebíades.

O almoço da peonada é ao meio-dia. Comem todos em uma bolanta(pequena casa móvel, com rodas nabase), sem esquentar a bóia. Depoisde um cafezinho e um descanso de-baixo de alguma sombra, o trabalhocontinua até as 17h30min. Alcebía-des chega em casa, suado e molha-do, larga a mochila azul, toma umajarra de suco artificial e se mandapara o campinho de futebol impro-visado junto à moradia.

Entre uma história e outra, enrolaum cigarro. O casal se conheceu emCachoeira do Sul, onde nasceram.Aos 14 anos, estudavam juntos. Apósa aula, levavam a marmita a cavalopara os respectivos pais, que eramcolegas em uma lavoura de arroz.

Um dia, o petiço de Vera Mariadesvencilou-se da tropilha e os doisdemoraram a resgatá-lo. E o meninoe a menina se atrasaram. Eles eramapenas amigos, mas os pais descon-fiaram que tinham inventado de na-morar no meio do caminho. Não in-teressa se era verdade. Cada um le-vou uma surra de relho trançado. Namesma tarde, foram levados ao car-tório para encaminhar a papeladado casamento. Hoje, têm nove filhos– todos casados – três são homens etrabalham na lavoura de arroz, co-mo o avô e o pai, que em dois anosdeve se aposentar.

Isso, no entanto, não deve signifi-car largar a atividade. O aguador, queganha R$ 600 por mês, quer reduzira carga horária para meio turno,mas não cogita abandonar o ofício.

➧ sebastiã[email protected]

Mesmo com a mecanização, taipeiros precisam encarar a água acima de cintura para desobstruir o canal principal

Alcebíades não dispensa o mate, todos os dias às 6h, ao lado da mulher, Vera

ALCEBÍADES LOPES,AGUADOR

“Eu tenho 55 anos,fumo e tenho um piqueque a molecada seapavora.”