o caso tuskegee

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O Caso Tuskegee: quando a cincia se torna eticamente inadequada

O caso Tuskegee tem sido objeto de divulgao e reflexo nestes ltimos anos. Analisar um projeto de pesquisa feito no passado (1932) merece alguns cuidados. O primeiro e mais o importante deles o de manter a adequao dentro dos parmetros ento utilizados e no cair na tentao de utilizar reflexes posteriores como base para o julgamento. fundamental utilizar os critrios contemporneos para criticar e prevenir outras situaes semelhantes. Desde o final do sculo XIX inmeras tentativas de regulamentao das atividades cientficas vem sendo feitas. Em 02 de maro de 1900, o Senador norte-americano Jacob H. Gallinger, do partido Republicano, props ao Senado dos Estados Unidos uma lei regulamentando os experimentos cientficos em seres humanos. Esta proposta no foi aceita. Mas o primeiro documento que estabelece regras claras para a realizao de pesquisas em seres humanos. A pesquisa, segundo esta proposta, somente poderia ser realizada por profissionais habilitados, os bebes, crianas, adolescentes, gestantes, nutrizes, velhos e doentes mentais no seriam elegveis para pesquisas, os sujeitos de pesquisa deveriam ter mais de vinte anos de idade e estarem em plena capacidade para tomarem decises. Um semana antes da execuo do experimento, o pesquisador deveria encaminhar a uma comisso do Distrito de Columbia, para licenciamento, os objetivos e os mtodos do projeto, acompanhados de uma permisso, por escrito, dos participantes, assinadas na presena de duas testemunhas e autenticada em um notariado. A comisso avaliaria os riscos envolvidos, a idade, a capacidade e o conhecimento que as pessoas envolvidas tinham dos procedimentos e o seu desejo em participar, para ento licenciarem o experimento. Nenhum experimento teria continuidade contra a vontade de seus participantes. A comisso exigiria a entrega de relatrios sobre os mtodos empregados e os resultados obtidos nos experimentos efetivamente realizados. Vale salientar que todas as intercorrncias imprevistas deveriam ser relatadas de forma imediata e detalhada. De 1932 a 1972 o Servio de Sade Pblica dos Estados Unidos da Amrica realizou uma pesquisa, cujo projeto escrito nunca foi localizado, que envolveu 600 homens negros, sendo 399 com sfilis e 201 sem a doena, da cidade de Macon, no estado do Alabama. O objetivo do Estudo Tuskegee, nome do centro de sade onde foi realizado, era observar a evoluo da doena, livre de tratamento. Vale relembrar que em 1929, j havia sido publicado um estudo,

realizado na Noruega, a partir de dados histricos, relatando mais de 2000 casos de sfilis no tratado. No foi dito aos participantes do estudo de Tuskegee que eles tinham sfilis, nem dos efeitos desta patologia. O diagnstico dado era de sangue ruim. Esta denominao era a mesma utilizada pelos Eugenistas norte-americanos, no final da dcada de 1920, para justificar a esterilizao de pessoas portadoras de deficincias. A contrapartida pela participao no projeto era o acompanhamento mdico, uma refeio quente no dia dos exames e o pagamento das despesas com o funeral. Durante o projeto foram dados, tambm, alguns prmios em dinheiro pela participao. A inadequao inicial do estudo no foi a de no tratar, pois no havia uma teraputica comprovada para sfilis naquela poca. A inadequao foi omitir o diagnstico conhecido e o prognstico esperado. A partir da dcada de 50 j havia teraputica estabelecida para o tratamento de sfilis, mesmo assim, todos os indivduos includos no estudo foram mantidos sem tratamento. Todas as instituies de sade dos EEUU receberam uma lista com o nome dos participantes com o objetivo de evitar que qualquer um deles, mesmo em outra localidade recebesse tratamento. A inadequao do estudo foi seguindo o padro conhecido como "slippery slope", isto , uma inadequao leva a outra e o problema vai se agravando de forma crescente. Da omisso do diagnstico se evoluiu para o no tratamento, e deste para o impedimento de qualquer possibilidade de ajuda aos participantes. Nesta poca, incio da dcada de 1950, j havia sido proclamado o Cdigo de Nuremberg que estabelecia as primeiras diretrizes ticas internacionais para a pesquisa em seres humanos. Vale lembrar que o Cdigo de Nuremberg foi escrito por norte-americanos e parte da sentena do Tribunal de Nuremberg II, que na realidade era uma corte militar composta apenas por juzes norteamericanos. A Associao Mdica Americana (AMA) tambm j tinha publicado algumas normas no sentido de proteger as pessoas envolvidas em pesquisas. Os resultados parciais do estudo foram aceitos para apresentao em congressos cientficos e no mereceram qualquer restrio por parte da comunidade cientfica. Em 1969, a imprensa noticiou a confirmao de que j tinham ocorrido 28 mortes no estudo. O hsitoriador James H. Jones, tomou contato, por acaso, com documentos relativos ao experimento tambm em 1969, mas pensou que o mesmo j havia sido descontinuado. Somente quando a reporter Jean Heller, da Associated Press, publicou no New York Times, em 26/7/72, uma matria denunciando este projeto, que houve uma forte repercusso social e poltica

sobre o mesmo. Aps 40 anos de acompanhamento dos participante, ao trmino do projeto, somente 74 sobreviveram. Mais de 100 participantes morreram de sfilis ou de complicaes da doena. A instituio responsvel pela conduo do projeto, na suas ltimas etapas, foi o Centro de Controle de Doenas (CDC) de Atlanta. Em 1997 existiam apenas 8 pessoas ainda vivas. O governo norteamericano decidiu fazer um pedido de desculpas formais a todos os que foram enganados duranto o experimento de Tuskegee. Muitas vezes para exemplificar a inadequao de projetos de pesquisa so utilizados os experimentos realizados em campos de concentrao durante a Segunda Guerra Mundial. Estes exemplos no so bons, pois na maioria das vezes no pesquisas propriamente ditas, so aberraes pseudamente cientficas. O caso Tuskegee paradigmtico pois foi elaborado por pesquisadores supostamente preparados e com superviso e respaldo de organismos governamentais. Mesmo que tendo alguma relevncia inicial, este estudo teve sua maior inadequao ao no se confrontar frente aos novos conhecimentos que foram sendo gerados ao longo do tempo. A no reao de editores, comisses cientficas de seleo de trabalhos em congressos, e comunidade cientfica em geral tambm pode ser responsabilizada e questionada. Somente com a indignao social que o rumo da adequao tica e metodolgica foi novamente encontrado. Esta talvez a sua maior lio, da importncia do acompanhamento sistemtico pela comunidade dos projetos de pesquisa que esto sendo realizados.

Em 1895 Booker T. Washington era o diretor da Escola Normal de Tuskegee para Professores Negros, situada no condado de Macon/Alabama, nos Estados Unidos. Era uma escola modelo que havia sido criada por um exescravo que tinha tido sucesso como negociante. Durante a Atlanta Cotton Exposition, Booker T. Washington fez uma proposta para que houvesse um maior desenvolvimento na regio predominantemente negra do estado do Alabama/EUA. A sua proposta foi aceita pelo filantropo Julius Rosenwald, que foi o fundador das lojas Sears. Em 1900 o experimento de desenvolvimento da regio de Tuskegee, no condado de Macon, Alabama tem incio. O Fundo Rosenwald permitiu a criao de escolas, fbricas, negcios e agricultura. O projeto assumido

por Robert Motin, em 1915, quando Booker T. Washigton morreu. Durante os exames mdicos realizados nas pessoas que estavam sendo recrutadas para lutar na I Guerra Mundial foi constatado que as doenas venreas eram um importante problema de sade pblica. Com o fim da guerra, em 1918, foi criado um conselho interdepartamental, constitudo pelas Secretarias, que nos Estados Unidos equivalem a ministrios, da Marinha, da Guerra e do Tesouro, especificamente para tratar de higiene social. Neste mesmo ano foi criada a Diviso de Doenas Venreas no Servio de Sade Pblica NorteAmericano. Em 1919 j funcionavam mais de 202 clnicas em 30 diferentes estados, com mais de 64.000 pacientes atendidos. Com a perda do mpeto causado pelo esforo de guerra, os recursos foram sendo gradativamente reduzidos e o programa de doenas venreas, que tratava predominantemente sfilis, foi sendo desmontado. Em 1926 foram retirados todos os fundos federais para o tratamento de doenas venreas. O tratamento disponvel para a sfilis em 1929 utilizava basicamente mercrio e bismuto. Este tratamento podia durar meses, necessitando de no menos de 20 consultas mdicas em um ano. As substncias utilizadas no tratamento geravam muitos efeitos txicos, em muitos casos acarretando a morte do paciente. O ndice de cura no atingia a 30%. Em 1929, foi publicado um estudo, realizado na Noruega, a partir de dados histricos, de mais de 2000 casos de sfilis no tratado. Neste mesmo ano o Fundo Rosenwald foi procurado pelo Servio de Sade Pblica do Governo Norte-Americano buscando recursos para sanar as dificuldades econmicas no tratamento dos pacientes com sfilis. A coordenao da diviso mdica do projeto era chefiada pelo mdico Michael M. Davis, um dos precursores da medicina comunitria e da economia mdica, que tinha implantado um sistema de clnicas para tratamento de sfilis em Boston. Um de seus objetivos era o de integrar profissionais de sade negros no atendimento das doenas venreas. Vale lembrar que naquela poca existiam faculdades de medicina para formar mdicos brancos e outras para mdicos negros. O representante do Servio de Sade

Pblica no projeto era o Dr. Taliaferro Clark. O custo estimado para tratar uma comunidade era de US10.000,00 por ano. O Fundo Rosenwald alocou US$50.000,00 para este programa. Foram escolhidas cinco comunidades, sendo que uma delas era o condado de Macon, no Alabama, onde j ocorria o projeto Tuskegee. Um dos limitantes para o desenvolvimento da regio de Tuskegge eram justamente os aspectos de sade, sendo a sfilis o maior problema da comunidade, que ocorria em 35% da populao em idade frtil. Esta comunidade era predominantemente pobre, negra e rural. Estas pessoas no dispunham de US$5,00 para pagar o preo de uma consulta mdica na poca. Em 1931 o Fundo Rosenwald retirou o seu suporte para o projeto de desenvolvimento, em consequncia da crise econmica iniciada em 1929. Os Drs. Taliaferro Clark eRaymond A. Vondelehr decidiram acompanhar a evoluo dos homens que no haviam sido tratados de sfilis, com o objetivo de levantar novos fundos para trat-los. Em 1932 j haviam organizado um acompanhamento de 399 homens com sfilis e 201 sem doena. Todos estes homens eram avaliados periodicamente em suas condies fsicas e era dito a eles que estavam sendo tratados. A contrapartida pela participao no projeto era o acompanhamento mdico, uma refeio quente no dia dos exames e o pagamento das despesas com o funeral. Para todos os participantes era dito que tinham "sangue ruim", que j era uma denominao corriqueira na comunidade negra. O administrador do Projeto Tuskegee, Robert Motin, concordou com a realizao do projeto, desde que profissionais negros fossem diretamente envolvidos e que o projeto recebesse os devidos crditos pela participao. A enfermeira Eunice Rivers, contratada como assistente de pesquisa, e o Dr. Eugene H Dibble, ambos negros, foram incorporados ao grupo para serem facilitadores na integrao com a comunidade. Como os fundos para o tratamento no foram obtidos o acompanhamento deste grupo de 600 homens continuou como uma pesquisa. Este talvez tenha sido um dos

motivos pelos quais nunca foi encontrado um projeto de pesquisa referente ao estudo de sfilis no tratado em Tuskegee, pois teve incio com uma finalidade e continuou com outra. At 1952 foram feitos quatro grandes levantamentos com estes participantes, em 1932, 1938, 1948 e 1952, de acordo com um artigo publicado sobre questes metodolgicas - Twenty Years of Followup Experience in a Long-Range Medical Study. Alguns dados deste artigo so extremamente elucidativos. Os participantes se negaram a fazer nova puno lombar, fizeram apenas no primeiro levantamente, em 1932. As condies econmicas dos participantes eram extremamente precrias, a ponto de ser extremamente atraente a oferta de um prato de comida quente a cada consulta. Os participantes tiveram boa adeso ao projeto, muito em funo do contato sistemtico e continuado da enfermeira Rivers. Ela buscava os participantes em casa em um automvel especialmente alocado para a pesquisa. Uma evidncia desta boa relao foi a de que em 146 bitos, at 1952, foi obtida autorizao para realizao de 145 necrpsias. Em 1936 foi publicado um artigo - Untreated syphilis in the male Negro. A comparative study of treated and untreated cases - com os dados sobre o andamento do estudo. Esta publicao gerou alguma polmica, porm logo superada. A partir de 1945 j havia teraputica estabelecida para o tratamento de sfilis utilizando penicilina. Em 1947 o servio de sade pblica norte-americana criou "Centros de Tratamento Rpido" para pacientes com sfilis. Mesmo assim, todos os indivduos includos no estudo continuavam sem receber tratamento por deciso formal dogrupo de pesquisadores.. De 1947 a 1962, 127 alunos negros de medicina tiveram participao no estudo. Em 1957 foi dado a cada um dos participantes do projeto um diploma do Servio de Sade Pblica NorteAmericano agradecendo a participao de 25 anos no estudo.

Em 1961 foi publicado outro levantamento geral do estudo, esta vez com os dados de 30 anos de acompanhamento - The Tuskegee study of untreated syphilis: the 30th year of observation. Em 1968 algumas pessoas que tinham conhecimento do estudo, como o Prof. Peter Bauxum, comearam a demonstrar contrariedade com a continuao do mesmo. Em 1969, a imprensa noticiou a confirmao de que j tinham ocorrido 28 mortes por sfilis no estudo. James Jones, que posteriormente escreveria uma livro - Bad Blood: the Tuskegee syphilis experiment - relatando os detalhes do projeto como um todo, acreditou que o mesmo j havia sido cancelado quando foi feita esta divulgao do nmero de mortes. O Centro de Controle de Doenas de Atlanta reiterou, em 1969 a necessidade de continuar o estudo pela sua importncia. Em 1970 o captulo local da Associao Mdica Norte-Americana se manifestou favorvel continuidade da pesquisa.

A reporter Jean Heller, da Associated Press, publicou no New York Times, em 26/7/72, uma matria denunciando este projeto. O impacto desta denncia foi muito grande junto a sociedade, porm o estudo somente foi encerrado meses aps. Durante a realizao do projeto foram publicados 13 artigos que no prprio ttulo expressavam que o no tratamento era o objetivo do mesmo. Salvo na publicao de 1936, a comunidade cientfica nunca mais se manifestou contrariamente a este respeito, mesmo quando temas livres eram apresentados em congressos, em especial na rea de Epidemiologia. Aps 40 anos de acompanhamento, ao trmino do projeto, haviam apenas 74 sobreviventes, sendo que 28 morreram diretamente de sfilis e 100 pessoas de complicaes decorrentes da doena. Ao longo do estudo

40 esposas e 19 recm-nascidos se contaminaram. A instituio responsvel pela conduo do projeto, na suas ltimas etapas, foi o Centro de Controle de Doenas (CDC) de Atlanta. O governo norte-americano pagou mais de dez milhes de dlares em indenizaes para mais de 6.000 pessoas, mas no se desculpou pelo abuso. Uma comisso de pessoas vinculadas a histria da medicina e a biotica, liderada pelo Dr. James Jones, exigiu que o governo norte americano pedisse desculpas pblicas e formais aos 8 sobreviventes e as famlias dos demais participantes. Em 16 de maio de 1997 o Presidente Bill Clinton pediu desculpas formais para os cinco sobreviventes que compareceram solenidade na Casa Branca.