o balao amarelo

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    O BALO AMARELO

    LUCLIA JUNQUEIRA DE ALMEIDA PRADO

    sugerido a partir da 5aSrie

    O livro de aventuras, embora sejados mais procurados, , sem dvida, omais difcil de ser escrito, pois o autor,quando "no viveu a estria", precisa bo-lar algo prodigioso, alm de saber criarsuspense e doslo de mistrios.

    Depois do sucesso de seus primeiroslivros para jovens (haja visto a 1? ediode "A Terra Azul", esgotada em 5 me-

    ses), Luclia Junqueira de Almeida Pradotem sido constantemente chamada aosColgios para batepapos informais comos adolescentes, onde sempre pergunta:

    Que tipo de livro gostariam queeu escrevesse?

    Em geral as meninas pedem roman-ces de amor, mas os meninos querem umaestria policial ou de aventura.

    Com base nesses pedidos, a Autoraresolveu escrever um livro onde houvesseamor e aventura, contentando assim a to-dos.

    Eduardo e Marcos queriam uma via-gem ilha do Bananal, passeio gorado,pois os pais, na ltima hora, tinham man-cado. Assim, a cidade onde moram Be-lo Horizonte agora que so obrigados a

    passar as frias dentro dela, parecelhesuma selva de pedra. AfortunadamenteEduardo l no jornal um artigo sobre San-tos Dumont e o balo de seda amarelaque um dia mandou fazer e no qual foi

    para os ares. V! V! Eu tenho uma idia, v!

    Vamos fazer um balo? Ao menos assim

    as frias no se passariam nesta pasmacei-ra. Aliviava a cuca, v!E a av topou...

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    OBRAS DA AUTORA PUBLICADAS PELA BRASILIENSE(Total das tiragens: 55.000 exemplares)

    A TERRA AZUL 4aedio

    O BALO AMARELO 3aedio

    Por outras editoras:REI DO MUNDO (romance juvenil) RecordUMA RUA COMO AQUELA (romance juvenil) RecordDEPOIS DO AGUACEIRO (Contos) RecordNO VERO, A PRIMAVERA (romance) MelhoramentosRIO DE CONTAS (romance) Melhoramentos

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    J O V E N S D O M U N D O T O D O Colo para a juventude, organizada pela Prof.aYolanda Cerquinho Prado

    LUCLIA JUNQUEIRA DE ALMEIDA PRADO

    O BALO AMARELO1aedio: 1976

    3aEDIO

    )editora brasiliense1977

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    Reviso ortogrfica

    LIDE C. ESCOBAR

    Capa

    VIVI THOMPSON DE ALMEIDA PRADO

    L>editora brasiliense soc. an.01042 rua baro de itapetininga, 93

    so paulo brasil

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    Vivi Thompson de Almeida Prado que,

    serenamente, conquistou toda a famlia.

    Para minha nora

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    E saibam, quantos escutamdestas penas o relato,

    que nunca brigo nem mato,

    seno por necessidade:

    a to grande adversidade

    s me arrastou o mau trato.

    (do poema El gaucho Martin Fierro

    de Jos Hemndez verso 18)

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    I PARTE

    I

    Que bacana! exclamou Eduardo dobrando o jornal para lermelhor vocs viram? Os americanos vo dar o nome de Santos

    Dumont a uma das crateras da Lua!Ajoelhada no cho, vov Chiquita cuidava de seus trinta e trspassarinhos; erguendo os olhos, disse:

    Nada mais justo, afinal, ele chamado o Pai da Aviao e voltandose para o canarinho de que tratava, provocouo:triiiiiiiii..e o passarinho, esticando o pescoo, psse a cantar.

    Legal! berrou Marcos que colocava uma folha de alfaceem cada gaiola. Vov, quer dizer que Santos Dumont, sendo o pri-meiro a voar oficialmente, abriu caminho para outros aperfeioaremos foguetes e as aeronaves que hoje vo Lua, no ?

    Pois foi respondeu a av agora descascando uma bananapara o sabi ento vocs sabem que Santos Dumont foi o primeiroque voou em pblico no mais pesado que o ar.

    Vov, como que voc sabe todas essas coisas? pergun-tou Marcos.

    Mas, menino! exclamou a av andando nos joelhos at aprxima gaiola eu sempre fui vidrada em Santos Dumont!

    Estavam os trs no terrao da frente, aproveitando o sol, pois erajulho, fazia muito frio em Belo Horizonte.

    Eduardo quis saber: V, voc lembra o dia em que este avio voou pela primeiravez? Ele do seu tempo?

    Seu quadrado! disse Marcos l da ponta do terrao se avov nem era nascida, como poderia lembrarse do 14Bis?

    Olha aqui, Marcos! berrou Eduardo jogando longe o jor-nal, enquanto avanava para o irmo mais moo. Voc no venha

    bancar o gostoso por cima de mim que eu parto sua cara! Que isso, meus filhos? disse vov Chiquita colocandose

    entre os dois. Vocs brigam a troco de nada, o que isso, meus

    filhos? Sejam como seu falecido av que era bom feito um po esempre dizia: Nada neste mundo vale uma briga.

    A memria do av, de quem guardavam as melhores lembran-as, fez com que se acalmassem. Eduardo jogouse na cadeira de ba-lano e, roendo as unhas, reclamou:

    Frias mais fajutas!A av aproximouse. Era baixinha e magra, o corpo de uma me-

    nina; o rosto tambm, tinha qualquer coisa de muito moo, talvez osolhos claros, talvez um eterno sorriso exibindo os dentes certinhos.Levou a mo aos cabelos do neto.

    Que culpa tenho, Eduardo, se seus pais precisaram ficar estesdias a mais na Europa? falava de um jeito muito doce, como se

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    pedisse desculpas e no puderam vir em tempo para o passeioprometido?

    Que mancada, hem, v? Eu queria tanto conhecer a Ilha doBananal, o Rio Araguaia, ver os ndios...

    Enfiando a camisa dentro das calas, Marcos aproximouse. O Eduardo precisa compreender, no , vov? que o papai

    um cientista e est num Simpsio em Londres chefiando a delegaode mdicos brasileiros. Se este Simpsio foi espichado, nosso pai nopode largar o dever e vir correndo s porque entramos em frias enos prometeu levar...

    Cala essa boca, seu bolha! SIMPSIO! Por que no dizreunio de mdicos para discutir sobre certo assunto? O biduzo!Sempre querendo dar as suas de sabido...

    Ai, meu Deus! interveio a av erguendo as mos para ocu. Vocs hoje esto impossveis!

    E Marcos respondia:

    Falei Simpsio, porque papai assim falou e porque comesta nica palavra expliquei toda a sua frase: reunio de mdicos...etcetera... etcetera....

    Olha aqui... seu... seu... recomeou Eduardo outra vezavanando para o irmo, desta vez mostrandolhe o muque.

    Que isso? perguntou a av, os braos abertos, as mosem cada um dos peitos estufados vamos' procurar na Enciclopdiaalguma coisa mais sobre Santos Dumont?

    Marcos exclamou:

    Boa pedida! e saiu correndo a buscar o volume solicitado. Por mim... falou Eduardo estou mesmo numa fossa,sem ter o que fazer nesta desgraa de frias... e recomeou aroer as unhas.

    Eduardo disse a av com carinho no fale assim! Vocsabe ao p da letra o que quer dizer fossa? horrvel! Afinal, souns meninos bem criados, tm pais maravilhosos que fazem todas assuas vontades...

    Menos me levar Ilha do Bananal. Ah, v! Como eu queriaver os ndios!

    Tambm, que mania de ndio, Eduardo! Nas prximas friasvocs vo, pronto!

    Quando eu crescer, quero ser indianista, v! Viver no meiodos ndios, proteglos, como os irmos Villasboas.

    Muito bem, Eduardo. Ento, para lidar com o indgena, aprimeira virtude cultivar a pacincia, meu filho. E voc no, temnenhuma! Veja como trata seu irmo mais moo...

    Corta essa, v! Ele s dois anos menor e eu at que doumuita colher de ch pra ele... No v? O Marcos um masca-

    rado. Como mascarado?

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    Ah, por exemplo: aquela mania de viver o dia inteiro olhandoo mapa do mundo, medindo distncias, decorando nomes de rios emontanhas, j est me deixando nervoso!

    Essa boa! Voc pode falar o dia inteiro sobre ndios e essatal de Ilha do Bananal e ele, que adora Histria e Geografia, no

    pode...

    No , v! que ele me pe baratinado, sabe? Ontem, quan-do foi se deitar por exemplo, me acordou com o barulho. V se pode?Bssola na mo, virava a cama dele: Dizem que, para a sade, de-vemos dormir com a cabea para o Sul, as pernas para o Norte meexplicou. Resultado: eu ia dormir com o chul dele bem na minhacara. T bom, v?

    Por isso aprontaram aquela gritaria? Mudasse voc tambma posio da cama, Eduardo. To simples! Afinal, a estava uma boaoportunidade para voc treinar a pacincia da qual, no futuro, vai pre-cisar com os ndios.

    Enquanto conversava com o neto mais velho, dona Chiquita, naponta dos ps, ia dependurando as gaiolas nos pilares do terrao,nos pregos entre vasos de avenas e samambaias. Com o rabo dosolhos examinava Eduardo, outra vez pensativo na cadeira de balano.

    Viu, viu, viu, viuuuuuuuuuu? meu lindo bicudo fez imitan-do um cor de carvo: voc no vai cantar hoje?

    Ah, essa no, v! Bicudo, bonito? perguntou Eduardonuma gozao.

    Eu acho. Todo passarinho bonito.

    E logo, das trinta e trs gaiolas penduradas, comeou uma sin-fonia que era a coisa mais linda do mundo; at parecia que o sol deinverno se transformava em sol de primavera.

    Foi a que um cachorro perdigueiro rompeu pela porta, orelhasem p, olho sagaz, viase, de brilhante inteligncia.

    Morango! chamou a av estendendo a mo para fazerlheum agrado onde voc andou, Morango?

    Dona Chiquita era doida por morangos; costumava at brincar:Quando eu morrer, se me deixarem levar uma comida para o cu,levo morangos!

    I I

    Ento, quem veio foi a preta Dad que D. Chiquita trouxera dafazenda de seus pais quando se casou. Chegou com a bandeja dochocolate, os mistos quentes.

    Que delcia, Dad! Com este frio... disse dona Chiquitaesfregando as mos, depois, ao ver a preta colocar a bandeja sobre amesinha, alegre como os passarinhos, voltouse para a ltima gaiolaque pendurara tui... tui... tui... tru... tru... truuuuuu...querida patativa! Voc parece que emagreceu?

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    O passarinho examinou dona Chiquita com seu jeito muito ativo,esticou o pescoo e respondeu:

    Tui... tui... tui... tru... tru... truuuuuuu...Dad olhou para a patroa, balanou a cabea, resmungou:

    Eh! Eh! Eh! donde j se viu? Desde menina ela conversaassim com os anim... e no andar inseguro, desceu a escada doterrao para o jardim, foi regar as flores, para Dad, a hora maisfeliz do dia.

    V? perguntou Eduardo j entrando num misto quente verdade, v, que voc sempre teve mania de passarinho?

    Dona Chiquita voltouse para o neto, sorriu. Quando eu era menina e morava na fazenda de meus pais,

    precisava ver as transas que fazia para conseguir novos passarinhos...Como andava a p pelos campos e morros! Por isso, tenho essa re-sistncia!

    E, v! Voc que era feliz, hem? Morar numa fazen-

    da... Dureza a gente estudar quatro meses a fio, e quando acabamas aulas, no poder ir cheirar um pouco de mato, ter de passar as f-rias nesta selva de pedra!

    Porque adorava aquela cidade, a av revoltouse: Belo Horizonte agora virou isto, Eduardo? Selva de pedra!

    Ora, ora, onde j se viu? Voc precisa saber que a nossa cidade temum dos melhores climas do pas, quase como se morssemos numafazenda...

    Quase n, v! Gosto de estudar aqui, mas passar as frias no mato, v! No sei porque tio Jernimo foi inventar de ir dar avolta ao mundo justo nas frias.

    Tio Jernimo era o filho mais velho de dona Chiquita, um sol-teiro que vivia na fazenda onde os meninos costumavam passar asfrias.

    Marcos voltava ao assunto: Olhe vov disse estendendo o volume aberto estive len-

    do; antes do 14Bis, Santos Dumont voou em diversos bales. O primeiro desses bales livres, isto , sem motor, elevado

    simplesmente a gs, Santos Dumont batizou com o nome de Brasil

    disse a av depois de servir o chocolate e sentouse, a olhar com or-gulho os trinta e trs passarinhos que cantavam. Isto eu sabia! gritou Eduardo vindo para o lado da av.

    Era de seda japonesa por ser este tecido leve e resistente. No banquinho deste balo, Santos Dumont voou sozinho so-

    bre Paris, de uma ponta a outra da cidade. Que garra! Cara legal... Destemiiiiido... disse a av dando nfase palavra.Morango, que viera deitarse aos ps de dona Chiquita, aprovou:

    Auuuuuuuuun! e colocando a cabea entre as pernas,dormiu.

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    Vejam recomeou Marcos e pegou o livro logo depoismandou fazer outro balo muito maior, convidou quatro amigos paraa viagem. Desta vez chegou a subir a 2.000 metros de altura!

    Foi quando o vento empurrouo para o centro de Paris co-mentou Eduardo.

    De repente, toda virao acabou e eles ficaram ali parados,

    sem poder descer, porque no viam um campo de pouso, s prdiose mais prdios disse Marcos dando uma dentada no misto quentee bebendo um gole de chocolate.

    Dona Chiquita lia! Ficaram ali parados horas e horas, chegaram a jogar fora to-

    dos os sacos de areia que serviam de lastro, os cestos de comida, doisbanquinhos e at as mquinas fotogrficas!

    E nada do balo subir! exclamou Eduardo para acharuma corrente de ar que os tirasse do centro da cidade.

    Correndo o risco de bater contra os prdios, as rvores. O

    povo nas ruas olhando para cima, boquiabertos, sem poder ajudar emnada.

    Marcos recomeou a ler: No conseguindo subir, Santos Dumont tentava pelo menos

    conservar a altitude. Foi a que um vento muito brando veio salvlos empurrando o aerstato em direo ao Hipdromo de Vincennesonde Santos Dumont viu um lugar seguro para a aterrissagem: abriua vlvula e a descida processouse rapidamente.

    V! V! berrou Eduardo pulando do sof eu tenho

    uma idia, v! Vamos fazer um balo? Ao menos assim as friasno passariam nesta pasmaceira! Aliviava a cuca da gente, v! Que idia genial! exclamou Marcos.Em frente av, os meninos batiam palmas, o que fez Morango

    acordar, latir furiosamente e os passarinhos, assustados, de repente para-ram de cantar.

    A av olhou para um, depois para o outro: At que enfim osnetos estavam de acordo em alguma coisa! pensou.

    Mas, e depois? O que a gente faria com o balo? pergun-tou cruzando os braos.

    Mandaria para os ares, v! Balo cheio de gs que no mortfero no tem problema, v! No pode esses de tocha de fogo.

    No v aqueles de anncio nos supermercados? So a gs, v. Quem sabe, vov, a gente podia caar aqueles gatos vadios

    que de noite acordam todo mundo na rua quando derrubam as latasde lixo, plos na cesta do balo com um bilhete: Onde cair esteaerstato carregado de gatos favor avisar pelo telefone tal... etcete-ra... etcetera.

    Mas seda japonesa custa to caro argumentou a av, e be-

    beu o restinho do chocolate. Pelo amor de Deus, v! Compra na conta!

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    Na conta no paga, n? caoou Marcos. No torra!A av levantouse, ps a xcara sobre a mesa, pensativa. De re-

    pente deu um rodopio, pegou nas mos dos netos, disse: Venham! Vamos ver como andam as minhas economias.Entraram e depressa subiram a escada, seguidos pelo Morango,

    as pernas se desconjuntando pelo encerado do cho. Dona Chiquitapuxava os meninos. Chegaram ao quarto. Ento, do toucador, pegouuma tesoura, foi at os ps da cama, tirou as cobertas, descosturou ocanto do colcho.

    Iiiiiiii! exclamou dona Chiquita ao ver o esconderijo vazio o dinheiro que estava aqui, agora me lembro, dei para a Zu ir vi-sitar os parentes dela em Lisboa.

    A Zu era uma empregada portuguesa que, como a Dad, estavacom dona Chiquita desde que a patroa se casara.

    Eduardo correu para o outro canto do colcho, tirou as cobertas.

    Quem sabe aqui?A av veio com a tesoura: Iiiiiiii! exclamou vendo s palha o dinheiro que estava

    aqui... ah! agora me lembro, dei para a Dad pr dentadura. Vov! Como voc desligada... No se lembra de nada na hora certa... D o dinheiro como

    se fosse capim!Marcos j arrancara a coberta dos cantos embaixo dos travessei-

    ros. Depois de aberto o primeiro, vov exclamou: Iiiiiiii! o dinheiro que estava aqui, agora me lembro, empres-

    tei para o jardineiro dar de entrada numa casinha. Coitado! Tem oitofilhos e ia ser despejado...

    o fim da picada! Nossa ltima esperana! exclamou Eduardo roendo as

    unhas de nervoso e apontava o quarto canto do colcho.Dona Chiquita veio abrir:

    Iiiiiiii! exclamou coando a cabea tudo que estava aqui,dei para seus pais trazerem roupas e coisas para vocs, da Europa...

    Vov!!! Voc parece que anda de cuca fundida!

    Pois ... desculpouse a av torcendo as mos. No tem outro esconderijo, vov? Pensa bem pediu Mar-

    cos sondando o rosto da av.Ento os olhos de dona Chiquita se iluminaram.

    Nossa ltima esperana a cortina! gritou correndo para ajanela.

    Ajoelhouse no cho e, desmanchandolhe o barrado, dali viramcair um tesouro em notas de 10,00, 50,00 e 100,00 cruzeiros. Aqui o meu banco mais forte! berrava radiante, enquanto os meninos

    juntavam o dinheiro e Morango latia como um doido, dona Chiquitaainda gritava: quase me esquecia do meu banco mais garantido!

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    Assim, a seda japonesa foi comprada, amarela, porque dona Chi-quita adorava essa cor, um dinheiro que deu por bem empregadopois, da hora em que comearam a cortar o imenso balo, a paz vol-tou a reinar entre os irmos.

    Dona Chiquita, coitada! trabalhou trs dias na mquina de cos-tura, a emendar os gomos; o mais: complicado foi dar a forma deuma esfera quela quantidade de pano e ela, to pequenina, a costu-rar, quase afogada em meio a tanta seda amarela.

    Enquanto isso, Eduardo e Marcos passavam as horas ajeitandoas coisas: as cordas que deveriam prender o balo cesta, as cordasque deveriam prender o balo terra antes de subir, a tela que envol-veria o balo, os sacos de areia para servirem de lastro.

    Todos os meninos da rua interessavamse. Mas, se vocs vo pr gatos dentro, pra que tudo isto? Eles,

    como animais irracionais, no sabero jogar esses sacos de areiafora. . . deduziu Paulinho, um sardento que morava na esquina.

    Ora bolas! exclamou Eduardo assim ser melhor, pois,com o balo mais pesado, descer na certa.

    O mais difcil foi arrumarem a cesta onde deveriam ir os gatos;precisava ser bem forte para agentar o peso e bem funda para osmalandros no poderem saltar fora no momento da subida. Por fim,remexendo no poro, acharam um antigo ba de vime que, amarradaa tampa e destrudo em um dos lados para servir de boca, ficou

    timo. Que barato! exclamou Eduardo a examinar a fundura dacesta, em p daqui, gato nenhum escapa!

    Marcos olhou dentro. Haja gatos para encher isso a!Quando trouxeram o ba para a av ver...

    Misericrdia! que estrago f izeram. . . reclamou juntando asmozinhas: este ba me traz tantas recordaes! Primeiro guardoumeu enxoval, depois, quando j casada, brigava com seu av, meescondia dentro dele... O meu Persano quase enlouquecia de tanto

    me procurar e nunca me encontrou! Voc um sarro, v!Costurando em meio a uma nuvem de seda amarela, Morango a

    seus ps, a av reclamou: Que isso, Eduardo? Eu admito a gria; acho at bonitinho

    falar legal e bacana mas, dizer que eu sou um sarro ou que vocest na fossa, isto acho horrvel! J procurou no dicionrio para vero sentido exato dessas palavras?

    Ah, v! No esquenta a moringa. Moringa cabea , Eduardo?Mas, o mais difcil mesmo foi caarem os gatos; no podiam dar

    tiros de chumbinho nem pauladas porque, alm de ser judiao, os

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    III

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    gatos precisavam sair para a viagem em perfeita sade. Armadilhasde nada valeram, pois os animais da era atmica no se deixam en-gabelar assim fcil.

    A rua inteira se movimentou para ajudar na caada; ao fim detrs dias tinham trs gatos presos no poro e um deles, o mais novi-nho, caado pelo Morango. Mas, este precisaram soltar, pois Hele-

    ninha, a menina dos longos cabelos pretos, pediu: Este gato o Barrabs, acostumado l em casa desde quenasceu.

    Ora bolas, meninas! exclamou o mais velho dos irmosque nunca pensara em ter uma namorada.

    Mas, o irmo mais moo estava meio a fim da menina. Vamos devolver para Heleninha, Eduardo, ela estima o animal.Quando comeavam a desanimar, a vov disse:

    Em criana, na fazenda, via meu pai pegar gambs com pinga. Como, vov?

    isto mesmo: vocs arranjem umas latinhas, encham de pin-ga e ponham perto das latas de lixo. Os gatos vm beber. Aconteceque no gua e eles ficam ali no pileque. De manh, vocs os voencontrar dormindo a sono solto.

    Voc o mximo, vov! Ser o mximo acho genial, mas ser um sarro Deus me livre!Assim foi feito e, no dia seguinte em que o balo ficou pronto,

    tinham uma dzia de gatos no poro, presos em flagrante, por pi-leque!

    Coisa complicada foi engomar o balo. Eduardo contava paraPaulinho, o sardento:

    A Dad ficou uma vara quando pedimos para ela fazer aqui-lo: Ocs pensa que eu tenho tempo pra essas bobage? Dona Chi-quita pode encher ocs de vontade, mas eu no!

    Da? Da ns trabalhamos de bandido contra ela. Explicou Mar-

    cos. Eu disse: Est bem, se voc no engomar nosso balo, quan-do o velhinho da tinturaria vier, contamos que voc usa dentadura!Sabe? O velhinho gosta dela.

    O balo foi engomado, depois envolto por uma tela que pareciauma rede de pescar; serviria de proteo para a seda. Ento, donaChiquita saiu com os netos para arranjar o homem que, com sua m-quina extraordinria, viria enchlo de gs. Estavam no fusca da av,o Tosto. Eduardo ia na frente, Marcos e Morango atrs.

    Olha, v! Vai direto no supermercado e pergunta quem que enche aqueles balezes de anncio, aqueles que ficam amarra-dos ao cho com umas cordas compriiiiidas.

    mesmo, vov falou Marcos l de trs at que agorao Eduardo deu uma dentro.

    Voc fogo, hem? Olha, v. Estou bem sossegado aqui nafrente. Depois vai dizer que sou eu quem provoca.

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    Quietos! Quietos! disse a av passando da segunda para aterceira num bruto raspo de cmbio.

    , v! c navalha, hem? Eu? Voc quer dizer que eu no guio bem? T na cara, vov falou Marcos olhando dona Chiquita

    com carinho olha s! esqueceu outra vez de desbrecar.

    mesmo... disse a av, destravando o carro se algumInventasse uma campainha para tocar cada vez que uma mulher sas-se com o carro brecado, ficaria rico!

    No supermercado arrumaram fcil o endereo. Jesus! O homem dos bales mora quase em Ouro Preto! Mas tem telefone, vov. A senhora, com todo seu charme,

    pode bater um fio para ele, chamlo em casa. Vai ver! no tem problema, v!

    IV

    Assim, quando no dia seguinte o homem do gs chegou numacamioneta cheia de bujes, Eduardo e Marcos, muito bem agasalhadosnas suas japonas, j estavam no jardim. O sol acabara de nascer e odia prometia ser lindo.

    Com a ajuda de todos os meninos da vizinhana, todos querendodar palpites, dezenas de mos a segurar os gomos do balo enorme

    a tela e a seda juntas muitos meninos montados na grade deferro para alcanar mais em cima. Meninas exclamavam:

    Legal! Bacana! Genial! Um barato!O balo amarelo todo aberto, mas ainda murcho porque estava

    vazio, mantinhase de p por causa do engomado e das mos que osustentavam; por baixo, o ba de vime colocado no jeito, isto , otampo servindo de porta; a meninada em volta naquela alegria, segu-rando as quatro cordas que logo estariam esticadas pela fora do gs.Dona Chiquita sentada no terrao, to pequenina na cadeira de balan-

    o, tinha um livro de poesias no colo e sorria, cheia de orgulho,porque seu balo fazia aquele sucesso!Dad, que no gostava destas folias, ainda mais nos canteiros de

    seu jardim, apareceu porta. Mas, dona Chiquita! Este povo endoidou? Que nada, Dad! So meninos e meninas em frias, curtindo

    uma manh feliz em nosso jardim. Cruz Credo, dona Chiquita! Pisando todo o canteiro dos cra-

    vos e das rosas? Isto o cmulus dos cmulus!Dona Chiquita, na voz doce de soprano, comeou a cantar:

    O cravo brigou com a rosaDebaixo de uma sacada...

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    L do jardim, o homem do gs olhou para ela, admirado. De-pois, falou:

    A senhora podia tentar no programa dos calouros.Dona Chiquita riu.

    Quando eu era moa lembrou, os olhos sonhadores can-tava no coro das missas, dos casamentos...

    Puxa, v! Voc era uma jovem completa! Alm de formadaem enfermagem, vocs sabem que a vov d at injeo na veia?agora vem contar que cantava no coro da igreja!

    Quando quebrei o brao na fazenda contou Marcos papai no estava em casa; foi vov quem o ps no lugar e enfaixou.

    Ficou to bom que, quando Artur chegou e levou voc para ti-rar a radiografia, recebeu os parabns do ortopedista...

    Legal, dona Chiquita!O homem do gs' entrara com a camioneta no jardim. Agora pe-

    gava uma borracha comprida que ligou no primeiro bujo e a outra

    ponta na boca do balo; quando viu tudo pronto, foi soltar o gs.Que beleza! O bal amarelo foi inchando, at encher a tela,

    esticar as quatro cordas seguras pelos meninos, as muitas cordas pre-sas cesta, tomou conta do jardim. Enorme! Enorme!

    Lindo de morrer! exclamou Heleninha, a namorada doMarcos, aquela que dois dias antes viera reclamar o gato Barrabs.

    Nem est no Gibi de to legal! exclamou Ceclia sua maioramiga, os olhos presos em Eduardo.

    Meninas! Ora bolas... ele falou.

    O balo estufado, todo amarelo, parecia um sol que desceu Terra. Vov, voc j mandou preparar a comida dos gatos? per-

    guntou o neto mais moo. J. Vou buscar disse a av. E pondo o livro de poesias

    sobre a mesa, ajeitou o xale azul no peito, sumiu l dentro.Eduardo abriu a porta da cesta, entrou.

    Antes de deixar o balo ir embora, quero ver como os gatosvo sentirse aqui dentro.

    Eu tambm quero disse Marcos e seguiuo. Voltandose

    para os outros. sabem? Como ainda no pusemos sacos de areiaque vo servir de lastro, j se percebe o ba ser puxado para cima.

    Todas as meninas e meninos gritaram: Eu estou nessa? Puxa! deve ser legal falou Heleninha.Marcos chamou a namorada para dentro do ba. Heleninha en-

    trou, o gato Barrabs nos braos. Ceclia olhou para Eduardo, sus-pirou:

    Bem que eu gostaria de ser convidada tambm.

    Mas Eduardo fingiu no ver e apontou para a av que chegavaao terrao carregando um caixotinho.

    16 LUCLIA JUNQUEIRA DE ALMEIDA PRADO

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    Quem tem de experimentar a vov Chiquita. Afinal foi elaquem camelou na mquina costurando todos estes gomos.

    Isso mesmo! aprovou Marcos.Todos bateram palmas.Ento, Eduardo e Marcos saram da cesta, aproximaramse do

    terrao, pegaram o caixotinho de comida das mos da av que, muito

    brejeira, tomou os braos dos netos, desceu os degraus para o jardim,como uma artista que acabasse de ter um grande sucesso no palco, ca-minhou em meio s palmas, aos assobios, s aclamaes. Quandochegou junto ao ba transformado em cesta de aerstato, voltouse,segurou o xale azul e fez uma reverncia para o pblico, sorriu eatirou beijos, enquanto a turma, entusiasmada, batia palmas, gritava:

    Ela merece! Ela merece!Dona Chiquita entrou na cesta, ficou perto de Heleninha. Meu

    velho ba pensou quem haveria de dizer, hem? Voc queguardou meus linhos e bordados, meu enxoval, agora destinado a

    transportar gatos viralatasdelixo!E, logo depois dela, antes mesmo dos meninos, Morango es-

    gueirouse, passou pela porta, veio deitarse aos ps de dona Chiquitae de Heleninha.

    Ento, Eduardo e Marcos colocaram o caixote de comida a umcanto, tombado para facilitar aos gatos. Dentro viram uma quantida-de de arroz e as sobras do jantar do dia anterior. Tambm um pratoe uma colher. Marcos pensou: Os gatos no vo passar fome, dejeito nenhum enquanto dona Chiquita agachavase, com a colher pu-

    nha um pouco da comida no prato ajeitava melhor para os gatos co-merem. Eduardo olhava a turma de meninos a segurar as cordas dbalo que, quase cheio, puxava forte para cima.

    Pena que no seja de verdade... O qu? perguntou a av espantada. Esse balo amarelo no carregar a gente! Que idia mais descabida, Eduardo! Eu nunca entrei num

    avio. Morro de medo! Ah, vov! Bem que seria legal interveio Marcos j

    imaginou? Poderamos ver tanta geografia l do alto! Rios, montes,

    planaltos e plancies, tudo a nossos ps como num mapa! E amanh?Estaramos em todos os jornais: Sexagenria, dois netos, uma meni-na e um cachorro num balo amarelo.

    No se esquea do Barrabs pediu Heleninha, apertando ogato de encontro ao peito.

    Sexagenria! gemeu a av e levou a mo cabea. Faao favor, Marcos! Ainda no tenho tudo isso... Diga simplesmente:Av pra frente sobe em um balo com dois netos, a vizinha, o ca-chorro da casa e um gato. Afinal, a gente tem a idade que sentee eu sintome com dezoito anos...

    Quem sabe nos levaria at a Ilha do Bananal? Ver os n-dios... suspirou Eduardo.

    O BALO AMARELO 17

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    O homem do gs avisou: Est pronto, minha senhora. O balo est pronto para subir.Dona Chiquita estendeu a mo para abrir a porta, mas, neste

    justo instante algum perguntou, bem alto: E os gatos?Outro ordenou:

    Cada um deve ir buscar o gato que caou.Como cada menino tinha cooperado com pelo menos um gato, a

    turma que segurava as cordas debandou rumo ao poro.E o balo, livre de amarras, subiu para o cu, to rpido que

    ningum disse um a! Embaixo, todos boquiabertos, os rostos volta-dos para cima, sem nada poder fazer.

    V

    Morango foi o primeiro a se dar conta do perigo; ps as patasha beira da cesta, olhou sua casa l embaixo e comeou a latir. Au! Au! Auuuuuuuuuuuuuuun!Dona Chiquita debruada, pondo o corao pela boca, ainda teve

    presena para gritar: Dad! Dad! No se esquea de cuidar dos meus passarinhos!Heleninha pediu para a Ceclia:

    Avisa a mame. Diz para o papai que, de onde cair o balo,mando um telegrama.

    Enquanto Eduardo, roendo as unhas, perguntava para o irmo:

    Marcos, voc est com aquele mapa do Brasil no bolso, noest? A bssola?

    Estou respondeu o irmo a apalpar os bolsos enquantoolhava para baixo, sentiu um frio na barriga: olha, Eduardo! Jestamos a uns 500 metros do cho!

    Eduardo olhou. Viu homens e mulheres nas ruas, nos quintais,nas janelas, pequenos como gatos, todos num pasmo, apontavam paracima, gesticulavam. Depois, lembrouse da av. Ento, voltouse paraela, com muita pena.

    Vov! Juro que falei aquilo de querer subir no balo s daboca pra fora, ouviu, v? Foi sim, vov. Nunca pensamos...Mas, dona Chiquita nem reparava nos netos. Debruada para

    o panorama, um brilho estranho no olhar a tudo admirava. Que brbara esta cidade! exclamou, juntando as mozi-

    nhas no peito como se rezasse, agradecesse aquela maravilhosa subidaaos azuis do cu.

    Heleninha olhou; os prdios do centro de Belo Horizonte apare-ciam iluminados pelo sol da manh, as ruas como um tabuleiro de

    xadrez, tudo j to distante que as pessoas nas caladas, imveis esurpresas, pareciam formigas que esqueceram de trabalhar.

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    Olhem l! A avenida Afonso Pena e a avenida Amazonas cor-tandose no centro da cidade!

    E a Praa Sete de Setembro no cruzamento das duas. Vocs esto vendo o Parque Municipal? No ser um bom

    lugar para descermos? Como, vov? Estamos sem lastro... Lembra? Ainda no t-

    nhamos posto os sacos de areia dentro do ba. Assim, o balo estlivre para subir. E da? Da que s podemos descer em campo aberto, abrindo a vl-

    vula do balo. Deixando o gs escapar, v. E aqui no possvel pois bateramos nos prdios.O vento estava favorvel. Assim, o balo amarelo subiu e ven-

    ceu distncias. Logo os ps fora da cidade. Voavam agora sobre azona fabril.

    Espia a na bssola, Marcos. Veja que direo estamos to-mando.

    A direo norte, ligeiramente para o oeste.O gato Barrabs, no colo de Heleninha, miava como um louco

    porque detestava aventuras. Barrabs est se matando de medo disse a menina.O encantamento de dona Chiquita sumiu de repente.

    Heleninha! O que estaro seus pais pensando de mim? Le-vla assim, nesta viagem inesperada, sem avislos...

    E, v! Na rua, voc j tinha fama de ser meio lel. Ago-ra vai ficar inteira... No se impressione disse Heleninha segurando na borda

    da cesta mandei Ceclia avisar l em casa; telegrafo quando des-cermos.

    Marcos riu. Como se isso, da Ceclia avisar, vai sossegar sua famlia!Dona Chiquita quis aproximarse da menina e o ba sacudiuse

    todo. Fica quieta a, vov! No v que como estamos, voc, Eduar-

    do e Morango de um lado, Heleninha, eu Barrabs e a comida do ou-tro, ficamos perfeitamente equilibrados?

    Sorte sua disse a av com um arzinho de riso. Sorte suaque Heleninha seja seu pesometade...

    Eduardo olhou para cima; o balo amarelo, suspenso pelas cor-das, muito estufado e ligeiramente inclinado pelo vento, seguia sem-

    pre no mesmo rumo. Embaixo, agora se viam algumas plantaes. Vejam que lugar plano. Aqui, voc pode abrir a vlvula do balo e descemos sem pro-

    blemas. Que isso, v? Depois do susto que levamos, pensa que

    fomos ao ar para esta voltinha de uma hora?

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    mesmo, vov. Vamos voar at a tarde pediu Marcos se descermos agora no primeiro campo que avistarmos, os jornais deBelo Horizonte vo nos chamar de covardes.

    Isso . . . Mas, e dinheiro para a volta? Sim, porque precisa-remos tomar o nibus ou o trem. Onde descermos no h de havero homem do gs para reencher o balo!

    Vov! Ento acha que quando descermos, vamos precisar denos preocupar com essas ninharias? Quando pisarmos terra, estare-mos famosos!

    Teremos todo o povo das cidades e muitos carros nossa dis-posio.

    Quem sabe, at banda de msica e discursos? Vocs acham, ? perguntou a av numa alegria sempre

    moda hospitaleira de Minas Gerais! T na cara, v! Como se fssemos o prprio governador a vi-

    sitar o mais distante dos lugares.

    O vento estava to forte que os cabelos dos quatro voavam comogalhos de rvores na tempestade. Tambm os plos de Morango eBarrabs. Heleninha sentiu o gato a tremer nos braos; colocouodentro de seu palet.

    Pronto! Assim fica quentinho.O balo amarelo seguia viagem sem se impressionar com os pro-

    blemas dos tripulantes. Durante algumas horas levouos pelo cuazul, at que, diminuda pela altura, surgiu tuna cidade.

    Qual ser? Vejam! L em cima daquele telhado grande est escrito:

    Trs La... Trs Lagoas disse a av. Calcula a no seu mapa, Marcos, se tirar uma reta de Belo

    Horizonte a Trs Lagoas, saber exatamente que direo seguimos.Marcos abriu o mapa, dobrouo de jeito que Minas Gerais fi-

    casse inteira por cima. aquilo mesmo: direo norteoeste.Eduardo espichou o pescoo, viu:

    isso a! Estamos a caminho da Ilha do Bananal...

    Voc ficou biruta, menino? Pensa que sua av vai agentarvoar dias e dias nesta geringona?Agora eram os pastos e os bois o que se via l embaixo. Dentro

    da cesta, a fome comeou a marcar presena. Bem que eu j comia...A av abaixouse, espiou dentro do caixote.

    Quem haveria de dizer que amos comer esta comida reserva-da para os gatos!

    Depois do almoo, voltaram a admirar a paisagem. O sol estavaa pino e outra cidade apareceulhes do lado direito.

    Codisburgo! exclamou a av. Como que tem certeza?

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    Pois ento eu no haveria de reconhecer a minha cidade?Nasci ali, bem como o nosso romancista Guimares Rosa.

    Verdade, vov? Sim, ele meu conterrneo disse a av e, instintivamente,

    levou a mo ao bolso para ver se viera o livro de poesias que estavalendo; no! fora deixado no terrao. Vejam! Por todos os lados se

    vem pastos, bois e rios como nos panoramas de seus romances. Faltam os vaqueiros, vov. Mas, estes vocs podem imaginlos, por a, fazendo a sesta

    embaixo de uma rvore, nos currais, ou nas casinhas esparramadaspelo descampado.

    Os vaqueiros e seus cavalos, v.As horas passavam. As pernas de dona Chiquita comeavam a

    reclamar, mas, ela ficou bem quieta. No podiam calcular a que al-tura estavam, mas era bem prximo dos' urubus que voluteavam con-tra o azul do cu, numa paz invejvel.

    As horas passavam. E, quando o sol comeou a descambar, a es-conderse atrs do horizonte, dona Chiquita perguntou:

    No est na hora de aterrissarmos? Estou com sede queixouse Heleninha. Vejam! Aquela grande represa, pelo meu mapa Trs Ma

    rias. Ento! exclamou a av com alvio que timo lugar para

    descermos. Represa lugar cheio de engenheiros, gente que tem car-ro e pode nos levar para trs.

    O.K.. . disse Eduardo ento vou abrir a vlvula. En-quanto subo no caixote, vocs me segurem pelas pernas, t? Cuidado, menino! Se acontecer alguma coisa com um de vo-

    cs, meu genro Artur me far ouvir at o juzo final! Ah! isso, v, depois desta viagem de balo, todos ns vamos

    ouvir descomposturas at dizer chega! Do jeito que o papai siste-mtico. ..

    VI

    H quinze minutos Eduardo estava sobre o caixote, os braosestendidos para o alto, fazia fora para abrir a vlvula.

    Puxa! Aquele homem do gs apertou isto aqui de um tantoque nem o superman abre.

    Deixa eu experimentar pediu Marcos.Eduardo desceu e o irmo subiu no caixote; dona Chiquita segu-

    ravalhe uma perna, Heleninha a outra. O ba oscilava. Marcos er-gueu a mo, pegou a vlvula, fez fora para abrir.

    Se ao menos a gente soubesse para que lado deve torcer. As garrafas abremse sempre da direita para a esquerda

    esclareceu a av.

    O BALO AMARELO 21

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    que j experimentei muito assim disse Eduardo agachadodentro do ba agora experimente ao contrrio, da esquerda pra di-reita.

    O sol j estava com meia cara atrs do horizonte, o vento dimi-nura de intensidade e a Represa de Trs Marias com sua barragemda altura de um edifcio de 25 andares, era um ponto brilhante na

    distncia. O pior que est ficando escuro reclamou Marcos malenxergo a vlvula.

    A ltima coisa que viram antes de escurecer foi o Rio So Fran-cisco, atravessado por eles, a correr para o norte, brilhando nuns res-tos de sol, como uma cobra gigantesca.

    melhor voc descer disse dona Chiquita para o neto, as-sim que viu a noite fechada.

    Marcos obedeceu.

    E agora? Agora tratar de nos ajeitarmos o melhor possvel, cada umno seu canto, deixar a noite passar.

    Enquanto isso respondeu a av sentando perto de Eduardo vamos ficar cada vez mais longe da civilizao.

    Que remdio, vov? e Marcos sentouse bem junto de He-leninha o jeito agora esperar amanhecer.

    E quando amanhecer? Se no conseguirmos abrir a vlvula, ento penso que o me-

    lhor ser, quando estivermos sobre um lugar bem plano, fazer uns

    furos na seda japonesa, deixar escapar o gs aos poucos, assim o ba-lo perder altura.

    Ficaram ali conversando a confortarse de um certo malestarque, com o escuro e a solido sempre domina o homem. Ainda maisquando pendurados daquele jeito, levados na cesta de um balo peloscus, noite, por um vento que no parava de soprar.

    Que sede! suspirou Heleninha. Chega! berrou Eduardo ns todos estamos mortos de

    sede e quanto mais se falar nisso mais a vontade de beber gua au-

    menta.De repente, uma lua grandiosa surgiu no mais baixo do cu eveio subindo, at que os iluminou dentro do ba.

    Querem jantar? perguntou a av com a voz sumida. Ainda h comida que d para uma refeio.

    Um de cada vez, pegou o prato com arroz amanhecido, picadi-nho de carne e um tanto de batata.

    Que esquisito comer com colher disse Heleninha. Que sorte foi trazer este prato e esta colher! exclamou

    dona Chiquita. Parece que uma coisa estava me avisando...Comeram os quatro. Depois, puseram Morango e Barrabs dentro

    do caixote para aproveitarem o que sobrara.

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    No fundo do ba, ajeitaramse uns contra os outros, procurandoagasalharse. Como estivessem todos sentados com as pernas para omeio, dona Chiquita ficou s de casaco, abriu o xale sobre os joelhosde todos eles.

    Coisa boa velha usar xale diss Eduardo antes de dormir. Velha uma ova! reclamou a av Hoje eu me senti o

    dia inteiro como se tivesse dezoito anos... Dezesseis! disse Marcos, e dormiu.Heleninha espiou dentro do caixote: o gato Barrabs junto de

    Morango, dormia, a pana cheia. Depois, olhou a lua, to branca edistante. Ajeitou a cabea de encontro ao ba, pensou: Como esta-ro mame e papai, eles que nunca tiveram uma preocupao comigo,me chamam de morenamodelo... Procurava no se lembrar dasede. Ento adormeceu.

    Dona Chiquita ficou s com seus pensamentos.

    Quem diria? disse de si para si. Uma respeitvel senhora le-vada por um balo amarelo. E, embalada pelo sacudir do ba, tam-bm adormeceu.

    Foram despertados pelo dia que clareava. Dona Chiquita pssede p, as canelas doendo. Espiou para baixo; no luscofusco, come-avam a aparecer os campos desertos, sem bois e sem casas.

    Que lugar!Os outros puseramse de p.

    Se cairmos aqui disse Eduardo morreremos de fome. O

    melhor deixar o balo seguir para a Ilha do Bananal.Comeou a ventar, um vento frio de madrugada que empurravao balo como se fosse um trator, o pobre balo indefeso.

    Estamos parecendo uma casquinha de noz em mar revolto poetizou dona Chiquita.

    Estamos parecendo umas bananas' dentro de um liquidifica-dor corrigiu Eduardo j, j, podemos ser precipitados no espao;dai no sobrar ningum pra contar a histria!

    Heleninha comeou a chorar.

    Eu... eu . . . no quero morrer... na flor da idade... noquero! Que falta de tato, Eduardo! berrou Marcos pegando a mo

    da namorada Voc devia dizer palavras mais encorajadoras. Ora bolas, meninas! Sempre medrosas. E, no mesmo para ter medo? perguntou dona Chiquita

    segurando com fora na beirada do ba, a protegerse do vento, oolhar receoso naqueles descampados.

    De fato, a ventania era cada vez mais forte e o balo viase tosacudido que j no podiam parar quietos, eram jogados, um de en-contro ao outro. No fundo do caixote, Barrabs tinha o plo arrepia-do e Morango gemia tristemente.

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    De repente sentiram um baque e olharam para cima: um urubuperdido na ventania batera no balo, estava com as patas presas entrea seda e a tela que o envolvia; debatiase desesperadamente, tentavalibertarse. Ento, mais sentiram do que escutaram que, para verse li-vre, o urubu rasgara a seda.

    Estamos perdendo altura! exclamou Eduardo sentindo um

    frio na barriga estamos caindo! Ser? perguntou a av juntando as mozinhas no peito. Se for para cairmos, ento que seja num campo verdejante.

    O sol estava prestes a nascer. Estou vendo um rio disse Heleninha. Ah, no! Tudo, menos cair na gua. At que a queda seria mais suave, vov! que no sei nadar, t bom? Vejam! exclamou Marcos, apontando ali, debaixo da-

    quelas rvores, se prestarem ateno, podem ver umas casinhas. Casas? perguntou Heleninha amiudando os olhos s sefor de ndio.

    De fato: os barracos que comeavam a enxergar, semiescondi-dos pelas rvores, eram muito pobres, de barro, telhados de folhas de

    buriti. Mas, entre eles, havia um grande barraco coberto de telhas. No se v um automvel reclamou a av.O ba, sacudido como se estivesse sobre um cavalo troto, vinha

    descendo Tapidamente.

    Acho que no vai haver ningum pra receber a gente dis-se Heleninha passando a mo pelo rosto, segurando os cabelos pretos,revoltos.

    Dona Chiquita firmou a vista. Isto aqui o serto bruto, um fim de mundo; acho que nem

    consta no mapa.E a terra cada vez mais perto. E os tripulantes do balo gelados,

    por dentro e por fora, gelados pelo vento, pelo medo. E o baloquase vazio, danava no ar, o ba pesado como chumbo.

    Foi a que, com tanta planura em volta, o aerstato resolveu en-calhar sua cesta na copa de uma rvore junto aos casebres! O balo,livre do gs, acomodouse sobre os tripulantes, como uma galinha nochoco.

    E eles, atordoados pelo choque, por um minuto ficaram quietosdebaixo daquela cobertura, como se tomassem flego.

    Ento desembaraaramse da tela e dos gomos amarelos. Dentrodo ba e no alto da rvore, berraram:

    de casa! Quem gosta de visita que aparea.

    Meu compadre... Minha comadre... 6 de casa!

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    II PARTE

    VII

    Imediatamente surgiram das casas uns quarenta cachorros maisuns quarenta homens vestidos moda do cangao: chapus de couro,desses de bico para os lados, roupa de brim e lenos no pescoo, unscintures cheios de balas, carabinas nas mos. Saram como doidos, aatropelaremse, uns ainda acabando de vestirse, pelo beiracasa, pro-curaram que procuraram, at atrs do forno de assar po, a cachorra-da a fuar como se procurasse caa.

    No alto da rvore, Morango ameaou responder, mas recebeu um"quieto!, encolheuse no fundo do ba, enquanto os tripulantes olha-

    vam assombrados aquela jagunada a correr de c para l. DonaChiquita foi a primeira que falou: Parece que esto pensando que somos onas e a voz saiu

    lhe baixa e rouca como se viesse de dentro de um tambor. V! V! falou Eduardo bem baixinho e examinava entre

    na galhos da rvore aqueles homenzarres a procurarem detrs de cadamoita, as carabinas embaladas acho que camos no meio de ban-didos, v!

    Marcos examinava seu mapa, a bssola. Pela direo que vnhamos ontem e naquela velocidade, esta-

    mos perto da Serra das Almas. Meu Santo Cristo! reclamou a av falar em almas

    numa hora destas.De repente, viram que, l embaixo os bandidos colocavamse lado

    a lado, fazendo uma muralha como jogadores de futebol quando vodefender um pnalti. Da, um mais avantajado deu trs passos fren-te, o olhar soltando chispas, berrou, meio sem rumo:

    xente! Se vierem por bem oceis trata de aparecer, seno otiroteio vai comear.

    No alto da rvore, dona Chiquita olhou para os netos. Melhor a gente se dar por achado. Tambm acho disse Heleninha a tremer no... no

    quero morrer... na flor da idade!Marcos pegou na mo da namorada.

    No chore, Leninha. Tudo vai acabar bem. Ora bolas, meninas! exclamou Eduardo. Ui! Ui! Ui! gritou dona Chiquita na sua vozinha fina

    estamos aqui, entre os lindos galhos desta rvore...Ento, os cachorros rodearam, comearam a latir, e os homens

    apontaram as carabinas para cima. Viram ento o ba, toda aquela

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    seda amarela esparramada volta. O chefe passou a mo no cabelo,invocou:

    xente! Que maneira mais faustosa de chegar. Puracasooceis so deputados e esse a o tal do helicptero?

    Quem sou eu, primo? perguntou dona Chiquita com quantasforas teve isto aqui um pobre balo feito em casa.

    Parece que o chefe gostou de ser tratado com aquelas intimida-des, pois baixou a carabina, sorriu. Senhora dona Maria, precisa descer da com toda essa sua ca-

    trevage. Vir contar pra gente todo o assucedido, como chegou a estasalturas.

    Que catrevage? perguntou a av para Marcos que cos-tumava saber tudo.

    Deve ser o balo, deve ser a gente. Descer como? Apois disse o homem escada no temos; s se for por

    umas cordas de embira. O qu? Sou quase uma sexagenria. Como vou descer porcordas?

    Nesta hora ela quer ser sexagenria! comentou Eduardo. Heureca! Heureca! berrou Marcos vamos desembaraar

    nosso balo, esticlo at a terra e, por ele, descemos. O ba estmais do que firme nesta forquilha, agentar o nosso peso.

    Quem Heureca? quis saber o cangaceiromor. Que ignorncia... suspirou Eduardo. Heureca! Heureca! quer dizer: Descobri! Isto em grego

    esclareceu Marcos no alto da galharia. Hum... resmungou o homem acho melhor falar mais

    lealdoso. Gosto das coisas no claro.Marcos e Eduardo j desembaraavam a tela do balo. Tinham

    sado da cesta e pulavam pelos galhos mais altos, livrando um dosgomos, tirandolhe a ponta de uma forquilha. De repente, o baloamarelo viuse livre e, ligado somente pelas cordas ao ba, caiu de

    bico at o cho, entre a galharia. A cesta sacudiuse toda, parecendoque ia ser arrancada da forquilha e dona Chiquita gemeu;

    Jesus, se cairmos daqui! Uma fratura na minha idade no bolinho...Mas, o ba logo se estabilizou.

    Quem vem mais primeiro? quis saber o chefe que mal osdistinguia entre os ramos, nem sabia que eram meninos e uma se-nhora.

    Eduardo falou: Eu vou! Mas prende a esses cachorros! Eles conhecem quem vem por bem disse o cangaceiromor.Como se tivessem recebido uma ordem, os homens embalaram

    as carabinas, apontaram todas para aquele pano dependurado na r-vore. Dona Chiquita fez o sinal da cruz.

    26 LUCLIA JUNQUEIRA DE ALMEIDA PRADO

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    Meu filho, tome cuidado!Eduardo veio agarrandose tela; a cala Lee e a japona azul

    marcavam forte seu corpo contra o amarelo da seda. xente! um menino... disse o cangaceiro chefe quan-

    do teve Eduardo junto dele. Sou menino, mas muito homem! respondeu pondo as mos

    nos quadris, como um cowboy quando vai puxar seus colts.Em volta, a homaiada comeou a rir, mas o chefe cortou a onda. xente! gosto da papagaiagem dele! A valentia de um ho-

    mem se v na criana e este mocinho aqui dos nossos.Eduardo no esperou mais tempo.

    Por aqui tem ndio? ndio? No... nunca vi. Mas, tem cangaceiro a dar com pau. Aaaaaah! reclamou o menino numa tristeza queria ver

    era ndio, de arco e flecha. Pra qu? Pra ser retalhado feito um peixe?

    Marcos veio logo atrs. Quando seus sapatos tocaram o cho,ouviuse o chefe:

    xente! S d menino?Enquanto caminhava, vexado em meio a tanto cachorro e carabi-

    na, sentiuse pequeno em confronto com aqueles fortes. Parou emfrente ao cangaceiromor, estendeulhe a mo:

    Sou Marcos disse, como se fosse um embaixador apresen-tandose ao presidente da Repblica estudante de ginsio em BeloHorizonte.

    xente! exclamou o chefe este aqui de muito siso.Homem letrado!Os outros olhavam como se nunca tivessem visto um ginasiano:

    muitos deles nunca tinham ido escola.Nisto, do alto da rvore, Heleninha berrou: L vou eu!Todos voltaramse para cima, como se esperassem uma princesa

    encantada. E a menina desceu, agarrada tela, os longos cabelos des-fraldados ao vento, os olhos de rolinha assustada fixos nos homens

    que, embaixo, a esperavam. xente! Desta vez uma menina disse o chefe dos ban-didos. Como a sua graa?

    Muito obrigada disse Heleninha que s ouvira a palavragraa tanto tremia de medo.

    Ele quer saber o seu nome! explicou dona Chiquita l doalto.

    Ah! Helena... balbuciou a menina Heleninha, ou mes-mo Leninha para os ntimos.

    No carece ter receio da gente disse o homem procurandofalar com menos rompncia; temos aqui outra menina, a minha filhaAna Lcia, da sua idade, no jeito para se criarem afeio.

    O BALO AMARELO 27

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    Agora era hora da vov descer, mas, antes dela, saltou l de cimao acrobata Barrabs, miando como um desesperado, veio enrolarsenas pernas da menina.

    Este o Barrabs falou Heleninha o meu gato de esti-mao.

    Ah! Temos! um gato!

    E um cachorro tambm disse Marcos colocandose ao ladoda namorada o Morango.

    Distrados, ningum atinou como Morango descera, mas, a verda-de que estava ali no cho.

    Morango... ? repetiu o chefe a coar a barba que querdizer isto?

    o nome de uma frutinha vermelha que a vov adora. E! berrou dona Chiquita l do alto vocs me

    esqueceram?

    Chiiiii! Agora que vai ser o X do problema; como vamostrazer vov pra baixo? A dona Maria que est l em cima av doceis? espan-

    touse o chefe. . S que no se chama Maria, mas sim Francisca. Chiquita seu apelido. Apois, dona Chiquita, vamos dar um jeito de baldear vosmec

    c pra baixo disse o homem num tom respeitoso e, voltandosepara os quarenta capangas seus sequazes, falou dominante: aqueles

    que no dormem em rede, tragam seus colches.Num zstrs os cangaceiros foram a casa, trouxeram os grandessacos fofos de palha onde dormiam. Agora, enquanto colocavam oscolches debaixo do ingazeiro onde cara o balo amarelo, em cada

    porta de casa surgiu uma mulher, os filhos grudados ao colo e saia.A pilha dos colches cresceu e ficou to alta, foi preciso buscar

    duas mesas, colocar uma de cada lado, sobre estas ajeitar cadeiras.Ento, dois homens subiram e de cima recebiam mais colches queforam empilhando at os impossveis. Viase que trabalhavam todosem cordial unidade, o chefe era muito prezado.

    Apois disse a olhar o servio com certo orgulho j deveestar com quase quatro metros. A senhora dona Chiquita no vai pre-cisar dar um salto muito grande.

    Dona Chiquita abriu a porta do ba, mirou bem firme o topodaquela pilha de colches que no estava a mais de dois metros deseus ps.

    Pular daqui ali, vai ser moleza! O que eu quero ver comovou descer da pilha de colches terra firme.

    Apois, isto a senhora deixa pra gente arresolver disse ochefe que o homem do serto cresce sozinho, aprende as mandin-gas no roxo da vida.

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    Ento, dona Chiquita segurou a saia de encontro ao corpo, saltou,e veio cair no meio daquele fofo de palha.

    Pronto! suspirou l do alto.O cangaceiro riu.

    Agora disse para os homens oceis vo erguendo manei-rinho sempre o segundo colcho, enquanto outros vo puxando aquele

    que fica rente terra. Legal! interrompeu Eduardo assim, a pilha vai abaixan-do e logo...

    Vov estar aqui embaixo.. Apois, no o certo? perguntou o cangaceiro como se eles

    tivessem descoberto a plvora.L de cima, dona Chiquita, gritou para ele:

    O senhor um homem de muito tirocnio. Que sou bom no tiro, sou mesmo respondeu mas a

    senhora no precisa de ter medo que, quem vem por bem, recebe tra-

    tamento de cortesia. Paz e amor! exclamou dona Chiquita das alturas.

    VIII

    Todos no cho, o cangaceiromor circulou o olhar pelos viajantes,parou demorado em dona Chiquita.

    Salve! Vosmec me lembra a figura de minha me disse

    tirando o chapu, srio, num ar que enterneceu os presentes.Para dar seguimento prosa, ela perguntou: Ela assim mida como eu? Era. Morreu num janeiro. Que Deus a tenha em paz!Para dona Chiquita, a palavra Deus na boca daquele homem

    de carabina na mo, soou muito louca. Se mal pergunto, como se chama o senhor?O cangaceiro olhou dona Chiquita, os olhos ativos.

    Z Cem Mortes falou com certo orgulho, e inclinando ligei-ramente o corpo como num cumprimento para outros Z do Cari-

    nhanha, chefe de todos estes fundos de serto. E aqui so os meusbrabos apontou os companheiros, todos ali, sorrises.Dona Chiquita estremeceu. Z Cem Mortes, aquele era nome

    para um filho de Deus? pensou, mas, sabia que, diante daqueles ho-mens no deveria mostrar medo.

    Para mim voc vai ser Seo Z. Simplesmente Seo Z arre-matou com voz forte, e sentiu que crescia diante deles.

    Apois disse o homem com um ligeiro tremor no olho es-querdo ento, pra mim vosmec vai ser dona Silvana, que era onome da minha me.

    Dona Chiquita olhou para o bandido, para todos aqueles homens volta dela, dos netos, de Heleninha. Sorriu desenxabida:

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    Neste caso, ningum como eu para conhecer remdios caseirose de farmcia falou dona Chiquita com orgulho sou enfermeiraformada.

    O homem olhoua com admirao. Neste caso, pode dar consultas para uns daqui que andam

    com umas zangas de corpo.Dorina era a mulher dele e estava esperando na porta da casa.

    Tinha a mesma cor de cuia de todos; o cabelo preto cheio de ondas,

    comprido e sem brilho, caalhe pelas costas, maltratado como a crinade uma gua bagual.

    Esta Dorina, minha companheira disse Z do Carinhanhapondo a mo nos cabelos da moa, os olhos mansos.

    Como vo vosmecs? perguntou Dorina baixando os olhos,e puxou o marido para o lado, para que eles pudessem entrar nacasa; casa muito pobre, as paredes escuras, cho de terra batida. Demveis, s uma mesa e seis cadeiras dessas comuns, alm de umguardacomida sem uma das portas.

    Quanto aos quarenta bandoleiros, assim que eles entraram, sumi-ram com seus cachorros. S ficou Morango que logo foi deitarse numcanto, o focinho entre as pernas, num zstrs dormiu.

    Onde est sua filha? quis saber Heleninha logo que se viuna sala, o gato Barrabs ao colo. E, dirigiuse para o filtro, serviusede gua, bebeu para valer.

    A mulher ergueu a cabea, os olhos se iluminaram. Ana Lcia ainda no se levantou. verdade falou o pai pondo a carabina sobre o guarda-

    comida fomos dormir muito madrugada, pois ela foi com a gentecaar jacar na . . .

    Jacar? assustouse Eduardo junto ao filtro, e virou seuterceiro copo de gua. Uma menina que caa jacars, o senhordisse?

    A minha Ana Lcia caa at ona se for preciso disse ZCem Mortes avantajando o peito. Ela, numa carabina, num revl-ver, ou na automtica, d lio pra muito homem. Tambm sabeusar punhal e faco.

    Meu Santo Cristo! exclamou dona Chiquita e sentouse

    numa cadeira volta da mesa, as pernas agradecendo a regalia criar a filha assim, moda bandoleira!

    Dorina fora para a cozinha, pr a gua do caf a ferver.Eduardo no cabia em si de admirado.

    O senhor quer dizer que sua filha pega esses animais a unha? Apois, menino... Ainda no foi preciso, mas, se um dia

    acontecer, est preparada pra isso. E quem ensinou? perguntou Marcos sentando numa outra

    cadeira, o copo de gua nas mos.

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    Eu! respondeu Z do Carinhanha botando muita fora noque dizia neste planalto sertanejo dos Campos Gerais toda mulherprecisa saber se defender com bala e faca.

    Santo Cristo! exclamou dona Chiquita derreando o corposobre a mesa viemos parar num lugar sem lei?

    Vov s est dando foras... pensou Marcos e, querendo des-

    viar o assunto: Parece que no me enganei e estamos bem no noroeste de Mi-nas Gerais, no?

    Que pena! interrompeu Eduardo camos to longe dailha do Bananal!

    Como oceis chama isto aqui, no sei! falou Z Cem Mor-tes com rompncia e voltandose para dona Chiquita s sei senho-ra dona Silvana que lei aqui tem e sou eu! Mando em terras e jagun-os como se fosse o Deus deles.

    No diga isso! exclamou dona Chiquita erguendose Deus um s e est no cu. Isto que o senhor disse perjrio.

    Eu no disse que sou o Deus deles, disse que comando elese eles me obedecem como a um deus. Apois, at nas idias a senhorase parece com a dona Silvana, minha me. Sempre com esses medosde ofender a Deus, que um Pai, no liga para trocadinhos.

    Dona Chiquita deu de ombros: Cada um desce do bonde con-forme lhe apetece... pensou: por mim, no entendo essas intimi-dades com o Senhor, tratar Deus como se fosse um compadre!"

    Eduardo no queria perder o fio da conversa.

    Ento, Seo Z? o nico mandachuva dessas paragens o se-nhor? No tem nenhum outro de bando armado, nenhum inimigo?

    O olhar de Z do Carinhanha escureceu e at a cor de cuia deseu rosto parece que ficou mais carregada. Levou a mo peixeiraque tinha presa na guaiaca.

    Ter, tenho, e um inimigo de valentia que s fica a dever aeste aqui e bateu a mozorra no peito. Bento Suuarana o nomedele e vive pra l da Serra, cangaceiro de tantas mortes quantos co-cos cabem dentro de um saco.

    Santo Cristo! disse Dona Chiquita quase sem cor Seo Zfala de mortes como se falasse de flores!

    Matar s vezes uma obrigao, dona Silvana. Que idade tem sua filha? perguntou Heleninha afagando

    Barrabs e todos viram que fizera a pergunta para mudarem de as-sunto.

    O olhar do bandoleiro suavizouse: Ana Lcia? ia! Oceis deve ser at do mesmo ms. Em que ms ela nasceu?

    O homem pareceu confuso. Dorina! De que ms e ano a nos:sa Ana Lcia?

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    No sei... disse a mulher baixando a cabea, torcendo asmos e retirandose apressada a gua j deve ter fervido, vou coaro caf.

    Que coisa estranha, pensou dona Chiquita: no lembraremnem o dia em que a filha nasceu...

    Eduardo queria saber a situao entre os dois bandidos. Quer dizer que j tem havido lutas entre o senhor e esse tal de

    Bento Suuarana?O homem nem pensou para responder:

    Dezenas, pra dizer verdade; estamos em via de um ajuste decontas. Qualquer hora destas vamos nos encontrar pra luta final e en-to os planaltos deste serto se tingiro de sangue. Todos ns, inclusiveoceis, vo ter de pegar em armas.

    Heleninha arregalou os olhos, logo cheios de lgrimas: Eu. . . eu no quero morrer... na flor da idade! Ora bolas, meninas! exclamou Eduardo. No chore, Leninha... pediu Marcos.

    Dona Chiquita aprumou o busto. Pelo que me consta comeou dando nfase voz nemque seja em carro de boi, Seo Z vai nos levar hoje mesmo at a ci-dade mais prxima, de onde poderemos tomar o trem ou o nibus

    para Belo Horizonte.Ento, o cangaceiro Z do Carinhanha explodiu muna pomposa

    gargalhada, dessas de alargar as ventas, estremecer as paredes da casa.Quando se acalmou, as mos sobre a guaiaca:

    Agora que oceis descobriram o nosso esconderijo, o nmerode brabos que tenho, acham que posso deixar irem embora assim,

    sem mais nem menos, pra contarem no primeiro destacamento queencontrarem onde se amoita o famoso Z Cem Mortes? No! Agoraoceis precisa se conformar com a sina, saber que so meus prisionei-ros; tm seus destinos ligados aos do bando, pro que der e vier.

    I X

    A gargalhada do homem foi to grande que acordou a menina.

    Num camisolo branco, ps descalos, Ana Lcia apareceu portado quarto. Que foi, padrim?Todos se voltaram para l e viram algum que parecia um anjo

    de olhos claros, cabelos loiros, encaracolados. A pele do rosto eraqueimada de sol, mas de um dourado claro que realava os olhos,azulinhos como duas bolas de gude.

    Z do Carinhanha abriu os braos. Apois, com o meu riso a acordei? Que desastrado sou! e

    passou o brao pelos ombros da menina, voltouse para os visitantes

    com as vossas licenas, esta minha filha Ana Lcia.

    O BALO AMARELO 33

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    Incrvel! exclamou de si para si dona Chiquita. Pai e me corde cuia, no podem dar essa filha loira, de feies to delicadas.

    Como vai, Ana Lcia? perguntou ainda admirada diantede tanta formosura.

    Bem. E vosmec? A menina parecia surpresa por vlosali. Como chegaram?

    Num balo amarelo, voando pelos cus respondeu Heleni-nha e caminhou para o lado dela, Barrabs a dormir em seus braos. Ah! Num desses cavalos prateados que voam to alto como

    as nuvens?Cavalos prateados devem ser os avies, sorriu dona Chiquita.

    No! viemos na cesta de um balo mesmo. De Belo Horizon-te at aqui.

    Belo Horizonte? Onde fica isso? Atrs do horizonte? Londe o sol se esconde?

    Quer me enganar que nunca ouviu falar de Belo Horizonte?! uma cidade toda planejada, a capital de Minas Gerais; suas ruastm 20 metros de largura e as avenidas 35!

    Agora lembro; pegamos a rdio de l, no padrim?Meu primeiro servio pensou Marcos ser dar umas aulas

    de Histria e Geografia para essa menina. At parece que nasceu on-tem! Onde j se viu conhecer to pouco de Belo Horizonte?

    Levamos um dia e uma noite viajando de l at aqui... Pelos ares? perguntou a menina, enquanto sentava com

    eles ao redor da mesa voando como os pssaros?

    Como os pssaros propriamente, no, disse Marcos mastocados a gs. Um balo cheio de gs capaz de levar pelos aresuma av, trs brotos, um cachorro e. . .

    Brotos? Brotos de planta...Ela no conhece gria... riu Heleninha.

    Brotos, no resto do Brasil, tambm gente nova. Que bobia! E. . . vieram pendurados? No! Dentro de um ba de vime, suspenso por cordas e estas

    presas ao balo.

    No entendo... Tambm eu no! falou claro o pai fazendo um cigarro de

    palha depois do caf vo explicar toda aquela geringona e suasmiudezas.

    Dorina entrava com uma bandeja de lata; sobre ela algumas x-caras desbeiadas ou sem asas, no bule o caf fumegante.

    Oceis j conheceram a minha Ana Lcia? perguntou, oolhar amoroso na menina. Ela tambm sabe cozinhar costurarcomo mulher feita.

    Verdade, Ana Lcia? Ah! Queimo um arroz, assassino uns panos...

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    Que palavreado mais grosseiro para uma menina dessa singele-za! pensou dona Chiquita. Meu primeiro servio ser dar umasaulas de boas maneiras para ela.

    A senhora me desses meninos? perguntou Dorina en-quanto lhes servia o caf.

    No. Sou a av e dona Chiquita sorriu, felicssima.

    E, vov! Voc hoje est realizada, hem? Que bobagem, Marcos! A gente tem a idade que Sente e hoje,j disse: sintome com dezoito anos! voltouse para Dorina, per-guntou vocs tm rdio?

    Temos um de pilha disse Z Cem Mortes e foi para oquarto, de onde trouxe o transistor j ligado, ps sobre a mesa.

    A msica caipira encheu a sala: Eu tenho um cavalo zaino, quena raia corredor...

    E, mundo velho sem porteira! berrou Z do Carinha-

    nha, enquanto Dorina voltava cozinha, buscar a mandioca. Aqui est o aipim disse pondo a gamela no meio da mesa deve estar macio, porque s cozinhei do escolhido.

    Estavam todos mortos de fome e ento foi aquele avano: come-ram com apetite de leo. Dona Chiquita cara com uma xcara semasa e o caf estando quentssimo, era obrigada a ficar passando deuma para a outra mo.

    Como reconforta um bom caf quando se est com o corpogelado pela noite e pelo vento disse voltandose para Dorina ocalor, a nos esquentar por dentro, d a impresso que nos agasalhoutambm por fora. Uma delcia o seu caf, sua mandioca, Dorina!

    A moa olhou para o marido, sorriu. Este povo da cidade louco por aipim!O homem acabara de fazer o cigarro, veio para perto dela, pas-

    soulhe a mo pelos ombros. Pois, Dorina, de hoje em diante, pode caprichar na bia, trei-

    nar nas suas especialidades, porque vamos ter hspedes por muitotempo.

    Que bom! Adoro a casa cheia de gente, nunca a gente temvisitas!Jesus! Este bandoleiro est mesmo com o propsito de nos se-

    gurar aqui, pensou dona Chiquita juntando as mozinhas de en-contro ao corao. O que ser de ns? E o pessoal de Belo Hori-zonte, no mandar avies em nossa busca? Precisamos tirar aquele

    balo amarelo da rvore, espichlo bem no cho, para ser visto doalto.

    Pro almoo pode fazer aquele jacar que pegamos ontem continuou Z do Carinhanha e acendeu o cigarro.

    Jacar? gritou Heleninha horrorizada. O gato Barrabsat acordou, pulou no cho, foi dormir junto de Morango.

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    Que palavreado mais grosseiro para uma menina dessa singele-za! pensou dona Chiquita. Meu primeiro servio ser dar umasaulas de boas maneiras para ela.

    A senhora me desses meninos? perguntou Dorina en-quanto lhes servia o caf.

    No. Sou a av e dona Chiquita sorriu, felicssima.

    E, vov! Voc hoje est realizada, hem? Que bobagem, Marcos! A gente tem a idade que sente e hoje,j disse: sintome com dezoito anos! voltouse para Dorina, per-guntou vocs tm rdio?

    Temos um de pilha disse Z Cem Mortes e foi para oquarto, de onde trouxe o transistor j ligado, ps sobre a mesa.

    A msica caipira encheu a sala: Eu tenho um cavalo zaino, quena raia corredor...

    E, mundo velho sem porteira! berrou Z do Carinha-

    nha, enquanto Dorina voltava cozinha, buscar a mandioca. Aqui est o aipim disse pondo a gamela no meio da mesa deve estar macio, porque s cozinhei do escolhido.

    Estavam todos mortos de fome e ento foi aquele avano: come-ram com apetite de leo. Dona Chiquita cara com uma xcara semasa e o caf estando quentssimo, era obrigada a ficar passando deuma para a outra mo.

    Como reconforta um bom caf quando se est com o corpogelado pela noite e pelo vento disse voltandose para Dorina ocalor, a nos esquentar por dentro, d a impresso que nos agasalhoutambm por fora. Uma delcia o seu caf, sua mandioca, Dorina!

    A moa olhou para o marido, sorriu. Este povo da cidade louco por aipim!O homem acabara de fazer o cigarro, veio para perto dela, pas-

    soulhe a mo pelos ombros. Pois, Dorina, de hoje em diante, pode caprichar na bia, trei-

    nar nas suas especialidades, porque vamos ter hspedes por muitotempo.

    Que bom! Adoro a casa cheia de gente, nunca a gente temvisitas!Jesus! Este bandoleiro est mesmo com o propsito de nos se-

    gurar aqui, pensou dona Chiquita juntando as mozinhas de en-contro ao corao. O que ser de ns? E o pessoal de Belo Hori-zonte, no mandar avies em nossa busca? Precisamos tirar aquelebalo amarelo da rvore, espichlo bem no cho, para ser visto doalto.

    Pro almoo pode fazer aquele jacar que pegamos ontem continuou Z do Carinhanha e acendeu o cigarro.

    Jacar? gritou Heleninha horrorizada. O gato Barrabsat acordou, pulou no cho, foi dormir junto de Morango.

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    Jacar. E vo achar muito bom disse o bandoleiro bafo-rando para o alto a minha Dorina cozinheira de mo cheia!

    Uma vez, comi anta e gostei disse dona Chiquita; masagora no tinha muita certeza de conseguir engolir bocados de jacar.

    Quando acabaram de comer a mandioca, de beber o caf, Z doCarinhanha ordenou:

    Agora quero que me expliquem como funciona aquela gerin-gona. No compreendo como um embornalzo cheio desse tal de gspde carregar tanta gente?

    Padrim... interrompeu Ana Lcia se eles passaramcom esse balo por cima das cabeas de Bento Suuarana e seu ban-do, logo mais aqueles renegados vo estar aqui, na provocao.

    No, filha... Eles chegaram da banda de baixo e Z CemMortes apontou o sul Bento Suuarana mora da banda de cima.

    Mas, na hora que ficarem sabendo, eles vm disse a meni-na e os olhos azuis ficaram mais azuis vai haver luta, padrim! Ti-

    roteio. Eles no podem ver voc ter nada que eles no tm.Dona Chiquita assustouse.

    Santo Cristo! Eles que levem o balo e tudo mais, o que nodeve haver tiros por nossa causa! Ao mesmo tempo, tristemente,

    pensava: Se levarem o balo amarelo, que sinal teremos para dar aosavies?

    Vamos ver falou Z do Carinhanha: no adianta ficar pen-sando, querer amarrar o carro na frente dos bois. Nunca provocamos,mas, se atacarem a gente manda chumbo!

    Marcos, agora explique como funciona o nosso balo pediua av num estremeo. simples, vov costurou o balo em casa, cortando em gomos

    e, onde esses gomos se uniam, na parte baixa, colocamos uma vlvulaque. . .

    Que vlvula? perguntou Ana Lcia. Bem, um dispositivo destinado a. . . E, o que um dispositivo? Bem, basta voc saber que a vlvula o buraquinho que se

    abre para pr o gs dentro do balo, isto na hora dele ir para os

    ares. Depois, fechase automaticamente. Na hora de descer s abri-la, deixar o gs escapar.

    Ah! ento vlvula como uma rolha de garrafa. Mais ou menos. E para que puseram esse tal de gs dentro do balo? Dentro do balo vai sempre um gs mais leve do que o ar e

    ento, ele consegue subir, manterse na atmosfera. Entendeu? No muito. Mas, no fica agoniado por isso, continua.Ento Marcos repetiu toda a histria do balo amarelo, desde o

    dia em que tinham lido sobre Santos Dumont e seus dirigveis at ahora em que a vlvula enguiara, tendo sido, logo aps salvos pelourubu.

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    Ana Lcia ouviu atentamente. Ao fim, explodiu: Aventura maior s se for verdade que os homens foram Lua!Ser que ela ainda tem dvida a respeito disso? perguntou-

    se Marcos. Enfim, para quem s ouvira falar de Belo Horizonteatravs do rdio, tudo era possvel...

    Foi mesmo uma aventura e uma hora dessas, metade dos

    avies de Minas Gerais devem estar nos procurando disse Hele-ninha.E foi nesse instante que o rdio voltou a dar a notcia: Avies

    da F.A.B., nossa Fora Area, avies de companhias, de empresas emesmo avies particulares iniciaram esta manh a busca da SenhoraChiquita e seus netos, desaparecidos desde ontem num balo ama-relo..."

    Esqueceram de mim queixouse Heleninha. Chit! fez dona Chiquita os olhos pregados no rdio.Hoje, pretendem vasculhar toda a rea da Represa de Trs Ma

    rias, pois foi esta a regio em que o dirigvel foi avistado pela ltimavez..."

    Mais para cima! Mais para cima! berrou a av esmurran-do a mesa como se o locutor pudesse ouvila.

    Os pais da menina Heleninha, que tambm faz parte da tripula-o do aerstato, esto desesperados e, em entrevista concedida aos

    jornais, disseram que nunca desconfiaram da inteno da filha em se-guir nessa viagem maluca; falam at em processar a Senhora Chiquita

    pela ousadia..

    Esta a maior... falou Heleninha. Jesus me livre e guarde! levantouse dona Chiquita muitoplida esse povo de Belo Horizonte est pensando que tramamosesta viagem, Eduardo!

    S ento reparou que o neto mais velho no dissera uma palavraaquele tempo todo.

    Que foi, Eduardo? Por que est to calado?Notoulhe o ar de alheamento. Com os cotovelos apoiados sobre

    a mesa, o queixo nas mos, Eduardo olhava para Ana Lcia como senunca tivesse visto uma garota, completamente envolvido pela graa

    da mocinha: Isto que eu chamo amor primeira vista pensoudona Chiquita. Eduardo nunca suportou menina, mas hoje, ao co-nhecer esta to diferente, caiu como um peixe no anzol... e sorriu

    j esquecida da ameaa do rdio, pois, acima de tudo, dona Chiquitaera romntica.

    X

    Daquela hora em diante, no se largaram mais; a menina comose fosse a sombra de Eduardo e ele como se a vida toda tivesse estado espera daquela companheira.

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    Depois do almoo foram ver os arredores da fazenda, posse deZ Cem Mortes que a encontrara abandonada, inveja maior para Ben-to Suuarana que a queria tomar a todo custo. Viram os velhos cur-rais onde os homens marcavam uma garrotada, visitaram a cocheirade tbuas, onde uma gua dera cria naquela noite.

    Que graa que o beb do cavalo! O beb do cavalo, Heleninha, chamase potrinho esclare-

    ceu Marcos.Quando o sol comeou a tombar para o lado do poente foram

    pescar num rio que no dizer de Z do Carinhanha, se fossem a ca-valo no dava nem pra esquentar os arreios. Assim, saram os qua-tro a p. Morango era da raa perdigueira, portanto, caador; foracom os homens e cachorros desentocar tatus e Barrabs ainda dormiaos cansaos da viagem.

    Antes de sarem, Z do Carinhanha os fizera engolir umas plulastiradas de um vidro enorme:

    para se protegerem da ter. Que ter perguntou Heleninha. a doena que tambm chamamos de maleita.Dona Chiquita ficara na velha mquina de costura de Dorina, o

    rdio ligado, diminuindo umas camisas e calas de Seo Z, pois agoracom mais dois homens em casa, precisavam de muitas trocas.

    Tomem cuidado! dissera para os meninos no vo mui-to longe.

    No carece ter medo falara ento o bandoleiro vendo os

    quatro afastaremse, as varas de pescar aos ombros. O lado do rioonde tem a ceva pro sul, lugar donde nunca vem o perigo. BentoSuuarana vive atrs da Serra.

    Lugar donde nunca vem o perigo repetira dona Chiquita men-talmente e olhava pela janela, para aquele lado, completando o pensa-mento: Lugar por onde, se no nos acharem, precisamos fugir.

    E num soluo, pois o jacar do almoo no lhe cara nada bem,dona Chiquita voltou costura.

    Neste lugar, vocs vivem como se no houvesse futuro. O futuro a Deus pertence respondera no estalo Z Cem

    Mortes e, pegando a carabina, saiu.Desde aquela manh, dona Chiquita ouvira vrios noticirios de

    rdio: todos falavam do incansvel trabalho dos avies a procurar obalo amarelo e seus tripulantes. Cada vez que a msica parava, dei-xava de costurar na esperana de alguma notcia, como se no fosseela um dos desaparecidos. Ah! para que me preocupar? pensou

    afinal, eu sei onde nsestamos..."Na vervade, o que ela queria eraescutar se o genro e a filha Marta j estavam a par da aventura.Meu Deus! o que vou ouvir de Artur quando voltar para casa!

    Enquanto isso, pelos campos ressecados de estiagem, seguiam osquatro Ana Lcia e Eduardo, Heleninha e Marcos dois a dois,

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    ouvindo o mugir de algum boi perdido, o canto dos pssarospretosque voltavam para o buritizal perto das casas.

    L eles tm seus ninhos, dormem disse Ana Lcia pre-cisava ver o rebulio que fazem na hora que sobrevem a noite e demanh, quando partem.

    Onde ficam o dia inteiro? perguntou Eduardo, os olhos

    presos no azul dos olhos da menina. Sabe que nunca pensei nisso? Acho que vo procurar o de-

    comer em matas onde passam as horas de quentura, quem sabe a exi-bir seu canto pros outros pssaros?

    De repente, de uma moita de capim barbadebode saiu correndoum bicho que arrastava o focinho pelo cho e o rabo ia para cima.Eduardo levou grande susto, chegou a empurrar Ana Lcia para olado. A menina riu, riu tanto que ele viu at o ltimo de seus dentes,encarrilhados e brancos.

    No carece ter desses medos! Aqui nestes campos beiracasaos bichos so sempre de pequeno porte. Medo se deve ter s degente viva, dos inimigos de meu padrim.

    Esse que saiu correndo, o que era? Um quati. Mas, no poderia ter sido uma cobra? Cobra traioeira, no faz barulho. Arma o bote no maior

    silncio e s quando a gente quase pisa em cima que ela salta emorde.

    Qual lugar do serto que no tem?

    O rio era de barranco, as guas turvas. Desceram a pirambeira.L embaixo, duas rvores enraizadas em um palmo de terra entre o

    barranco e o rio, debruavam os galhos sobre as guas.Como iscas tinham trazido minhocas e aleluias, tambm pedaci-

    nhos de carne de jacar, sobra do almoo. Desenrolaram as linhas,armaram os anzis. Ana Lcia, num volteio de corpo, foi a primeiraa jogar a linha, no meio das guas. E, antes que os outros fizessem omesmo, j tirava um bagre.

    Puxa! exclamou Marcos este rio piscoso mesmo...

    e atirou sua linha.Ao lado de Ana Lcia, Eduardo tentava a sorte. Mas, havia tan-to borrachudo que ningum conseguia parar quieto a no ser Ana L-cia, j acostumada. Assim, foi ainda a menina quem puxou um se-gundo peixe.

    Nosso tio Jernimo tem uma fazenda nas margens do RioDoce; l a gente pesca lambaris de encher fieira contou Eduardoquerendo demonstrar capacidade.

    S que l a gente entra no barco, vai para o meio do rio continuou Marcos.

    No temos canoa. Por qu?

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    que, de raro em raro contou a menina tirando um ter-ceiro peixe da gua alguns do destacamento sobem o rio a vigiaras margens. E os soldados sabem: onde tem canoa, tem gente.

    Pescou outro? perguntou Heleninha voc cobra, hem? Cobra, na gria, quem faz as coisas com perfeio. Ento sou cobra pra pescar, voc quer dizer e j atirava

    outra vez a linha com certeza porque cobra, quando d o bote certeiro. Deve ser.Marcos, impaciente, resolveu examinar seu anzol.

    ! Comeram minha isca e nem senti. A minha tambm! Pelo que estou vendo, por enquanto ns trs s estamos dan-

    do banho em minhoca queixouse Eduardo.Foi a que sentiu fisgarem seu anzol. Deu uma rabanada com a

    vara, tirou um lindo peixe de palmo.

    O maior de todos! exclamou Ana Lcia e parecia to con-tente como se o menino tivesse pescado um dourado de metro e meio.

    Eduardo sentiuse crescer; seu peixe era uma piracanjuba das maisespinhudas, mas era maior que os trs de Ana Lcia.

    Ficaram ali a pescar at que a tarde desmaiou. Ana Lcia expli-cava que para se pescar bem, o silncio importante. Ento, caladosno luscofusco, todos conseguiram pescar, encher as fieiras de bambu.A quietude s era interrompida por algum tapa de matar borrachudo que voavam aos bandos ali na beira do rio.

    Eles no picam voc? perguntou Heleninha num cochicho. Padrim disse que j se acostumaram comigo.Heleninha olhou, curiosa.

    Por que voc s chama seu pai de padrim?Ana Lcia retribuiu com um olhar estranho.

    Isso um caso muito comprido... comeou e, de repen-te, seus olhos se espantaram como se estivesse vendo uma assombra-o escutem! Vem descendo um barco. Venham depressa amoitar-se detrs das rvores.

    Derrubaram as varas e deitaramse atrs das folhagens. Ento pu-

    deram ver uma canoa a motor que descia pela correnteza, muito pertoda margem. Dentro, quatro homens fardados, conversavam e riam.

    Esses bandoleiros no vo ser bestas de andar na beira dorio dizia um deles.

    Outro respondeu: Por que no? Tem gente que gosta de pescar, de vir tomar

    banho... que nestes rios de barranco, se descessem, ficariam, muito

    expostos. Por mim, essas sondagens um perder tempo. Tenente Val-

    mir devia era entrar com o destacamento pelo serto, acabar comesses cangaceiros nos seus esconderijos.

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    Pra qu? Se temos notcia que a guerra entre os dois bandosest para explodir? Ouvi o tenente dizer: Deixa se comerem; de-pois a gente vai prender a meia dzia que sobrou. Para que fazer atropa passar esse perigo?

    Tenente Valmir falou pra gente reparar se tinha cho pisado. Ali! Ali, no est um lugar que parece nos casos? e um

    dos soldados apontava o lugar onde eles tinham estado pescando. C t enxergando demais! Aquilo ali, quando muito lugarde anta beber gua.

    E o barco afastouse mansamente, como um jacar a fugir doscivilizados. Ento Marcos, como se tivesse acordado, correu para a

    beira do rio: Mas, so soldados do governo! Se gritarmos nos descobrem,

    vem nos...Nem acabou a frase e sentiu que lhe davam uma rasteira; cara

    bem na margem do rio, a cara fuando no barro. Sentiu o peso de

    algum sobre ele, por trs, segurandolhe as mos. C t de juizo mole? perguntava Ana Lcia forando o

    corpo do menino para baixo. No v que se descobrem vocs prasalvao, pegam meu padrim pras grades do crcere?

    XI

    Chegaram a casa j noite fechada.Marcos tinha tirado a camisa, porque se sujara todo no barro

    da beira do rio. Pelo caminho vinha a reclamar, no pelo estado emque ficara sua roupa, mas pela vergonha de ter sido dominado poruma mulher.

    Voc me pegou de traio! Se me tivesse dado tempo, mos-traria como sei me defender de uma rasteira! Afinal, em Belo Ho-rizonte, aprendo jud.

    Ana Lcia, que nunca ouvira falar em jud, respondeu de modoa desculparse:

    Se tivesse dado tempo, voc teria gritado, os praas teriam

    vindo, e isto aqui viraria uma babilnia, porque meu pai ia armardefesa e o tiroteio seria pra valer. isto mesmo, Marcos. Ela fez o que a conscincia indicou

    falou Eduardo.Heleninha pediu:

    Vamos esquecer tudo isto? Afinal, a pescaria estava to le-gal! Olha. a quantidade de peixinhos que trouxemos...

    De fato, nas quatro fieiras de bambu que carregavam, viamsepeixes desde trs centmetros at aquele de um palmo, pescado porEduardo.

    Morango veio esperlos fora do amontoado de casas; abanavao rabo, felicssimo. Eduardo atiroulhe um peixe.

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    E, Morango! Voc est levando a vida que pediu a Deus,hem?

    No acampamento todos reunidos para comer, os homens, as mu-lheres e as crianas. No regular, isto , em tempos de paz, cadacasa fazia o seu almoo e comia cada famlia no aconchego do lar, em

    mesa posta. Mas noite, o jantar era feito num s caldeiro, comodizia o Z do Carinhanha: A mor de reunir as famlias em volta dofogo, encompridar a noite, fazer com que o dia, passado no temorde um ataque, terminasse como se fosse festa.

    Quando os viu chegar: Oi, ai! pelo visto, a pescaria foi boa. Nem foi! exclamou Heleninha de peixe trouxemos uma

    quantidade mas, vim to mordida de borrachudo que meus braos estoinchados.

    Isto o que se diz ter o sangue doce! Agora voc precisa

    passar a uma mistura de fumo e urina de vaca que. . . Deus me livre, Seo Z! Ah, ento vai inchar mais. Pra alguns d at febre.Ana Lcia entregou os peixinhos para Dorina, pediu:

    Faz uma fritada?A me puxoulhe a cabea, beijoulhe a testa.

    Que baciada de peixe vamos ter!Enquanto eles tomavam banho nas grandes bacias de folha, Do-

    rina limpou e fritou: lambaris, bagres, traras, piabas...

    O jantar era no barraco, em meio s casas, um barraco quetinha os esteios de peroba, o teto de telhas antigas. Um grande fogo,era o nico em tijolos que se via, e a parte traseira do coberto erafechada por um cmodo de tbuas, porta com cadeado. Ao sentar-se no banco ao lado de Eduardo, os pratos de comida j servidos,Ana Lcia explicou:

    Ali, padrim guarda as armas desobra. E so muitas? Tantas quantas uma para cada pessoa que vive aqui, homens

    e mulheres, todos so do exrcito de meu padrim, no tiroteio se igua-lam. Sabe,Ana Lcia, tiroteio at hoje, s vi no cinema. E no cinema que eu nuncavi, Eduardo. S de ouvir con-

    tar. Est vendo aquela moa de cabelo preso, aquela mais bonitaque, na beira do fogo, serve os pratos? Pois a Marcina. Ela jmorou em Januria; foi empregada em casa de gente rica, sabe ler eescrever. L, ia muito ao cinema, sempre me conta das fitas que viu.

    E. . . como veio parar aqui? O pai dela matou um. Dizem que em legtima defesa, mas a

    famlia do morto era rica, justou advogado de falar ilustre. EntoSeo UmS, como o pai da Marcina chamado, fugiu para estes ser-tes; os filhos vieram com ele.

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    Seo UmS, que nome engraado! apelido, porque ele vive dizendo: Matei um s. . .Eduardo riu; olhou os homens e as mulheres sentados nos ban-

    cos ou volta do fogo, vestidos com pobreza, alparcatas nos ps,os pratos de comida nas mos, as carabinas do lado. Crianas, emroda, comiam e conversavam; algumas mes davam jantar para os

    filhos. Me diga, todos aqui so homens que mataram?Ana Lcia olhou em roda, de um em um, os companheiros do

    pai. Quando no o homem, a mulher. Mas, voc pode estar

    certo de que meu padrim s aceita no seu bando aqueles que paracontinuarem homens, tinham que matar, no como Bento Suua-rana que vai pegando qualquer renegado.

    Eduardo olhou o prato; tinha arroz, tutu de feijo, os peixes fri-tos que Dorina havia trazido de casa e outra carne; tambm umamistura que lhe disseram ser refogado de brotos de bambu. Estavatudo gostoso e ele comeu com apetite.

    Que carne essa? perguntou Heleninha vindo com Marcossentarse ao lado deles, Barrabs amoitado debaixo do banco.

    tatu respondeu Ana Lcia e ps uma garfada na boca.Marcos riu.

    No contem pra vov porque ela est certa que peixe...Dona Chiquita, depois da noite passada no balo amarelo, a emo-

    o da descida, da chegada, a descoberta de estar entre bandidos, uma

    tarde inteira remendando roupa e ouvindo noticirios de rdio, sentia-se exausta. Pegara o prato servido, sentarase perto de Z CemMortes.

    Apois, dona Silvana! ele exclamou, recuando um tanto nobanco para que ela tivesse mais cmodo est com um ar meio ato-leimado de canseira braba! Precisa comer a do meu tatu que alimento de sustncia, depois dormir uma larga noite.

    Dona Chiquita, de to cansada, nem reparou que ele dissera tatuentendeu tutu. Apesar da fadiga, comeu com apetite.

    E onde que vamos dormir? As mulheres j l esto ajeitando na minha casa. No se pre-parou antes porque foi preciso juntar daqui e dali uns lenis melhorzinhos, lavar e secar, consertar duas camas. Dona Silvana e a meninadormem