cinco semanas em um balao

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1ª Edição 2001

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EXPEDIENTE

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Verne, Jules, 1828-1905.

Cinco semanas em um balão: texto condensado/ Júlio Verne; adaptação

de Lílian Cristina Víveros; ilustração Suzy Braz Reijado. — São Paulo: Rideel,

2001. — (Coleção Júlio Verne)

Inclui roteiro de leitura.

1. Literatura infanto-juvenil I. Víveros, Lílian Cristina. II. Reijado, Suzy

Braz. III. Título. IV. Série.

01-0799 CDD-028.5

Índice para catálogo sistemático:

1. Literatura infanto-juvenil 028.5

2. Literatura juvenil 028.5

ISBN: 85-339-0056-2

EDITORA AFILIADA

© Copyright - Todos os direitos reservados à

Al. Afonso Schmidt, 879Santa Terezinha - São Paulo - SP

CEP 02450-001www.rideel.com.br

e-mail: [email protected]

Proibida qualquer reprodução, seja mecânicaou eletrônica, total ou parcial, sem prévia

permissão por escrito do editor.

EDITOR

EDITORA ASSISTENTE

ASSISTENTE EDITORIAL

ADAPTAÇÃO

ILUSTRAÇÕES DE CAPA

REVISÃO

NOTAS DE RODAPÉ

ROTEIRO DE LEITURA

EDIÇÃO DE ARTE

DIAGRAMAÇÃO

CAPA

Italo AmadioKatia F. AmadioEdna Emiko NomuraLílian Cristina VíverosSusy Braz ReijadoCélia Regina / Lisabeth Bansi / Rita de Cássia MachadoMônica HamadaAna Tereza Pinto de OliveiraHulda MeloCristina Ibra / Wagner G. da SilvaJairo Souza

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Prefácio

Precursor da ficção-científica, Júlio Verne revela suaimportância pela maneira como compreendeu o mundoem que vivia, a ponto de antever várias das descober-tas científicas que se concretizariam somente no séculoXX, como o submarino ou a viagem à lua.

Suas aventuras entretêm adolescentes de todo omundo há gerações, levando seus leitores à viagensespetaculares.

Seu realismo advém de sua estrutura baseada sobreseu conhecimento científico e sobre sua habilidade emconstruir personagens singulares.

Ler Júlio Verne é vislumbrar a perplexidade dohomem do século XIX diante do mundo que se descor-tinava à sua frente, é viver a emoção das novas desco-bertas na companhia de homens intrépidos numa novaexpedição rumo ao desconhecido, é, finalmente, conhe-cer todos os recônditos da Terra.

Esta coleção traz as obras deste notável autor comtexto adaptado de forma a agilizar a leitura sem prejudi-car o desenvolvimento de suas narrativas.

Ao rodapé das páginas foi incluído um glossário emque também constam fatos históricos e coordenadasgeográficas para facilitar a compreensão dos textos e sualocalização espaço-temporal.

Além disso, um Roteiro de Leitura que, preenchido,resultará num pequeno resumo da obra.

Esperamos, desta forma, resgatar a obra deste autor,difundindo-o entre todos os brasileiros.

O EDITOR

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Era 14 de janeiro de 1862 e a sessão da RealSociedade Geográfica de Londres teve umagrande concorrência. O presidente sir Fran-

cis M... fez um importante discurso, no qual ressalta-va o destemor1 de viajantes ingleses em descobertasgeográficas. Aproveitou, também, para revelar a pro-posta de uma expedição a ser realizada pelo doutorSamuel Fergusson.

As pessoas ali presentes faziam questão da pre-sença do senhor Fergusson, que, desprovido de vai-dade e de orgulho, entrava na sala de sessões indife-rente aos aplausos que havia provocado. Aparentan-do bem uns 40 anos, ele nada tinha de extraordinário:um nariz proeminente e o olhar extremamente suave,indicando uma notável inteligência. Seu pai havia sidocapitão da marinha inglesa e sempre ensinara ao filhoos segredos e perigos da profissão. O menino mostra-va-se interessado pelos trabalhos científicos e seu pai,percebendo suas inclinações, tratou de encaminhá-lopara estudos de hidrografia2, física3 e mecânica4.

Após a morte do pai, Samuel Fergusson, que naocasião estava com 22 anos, ingressou no corpo deengenheiros bengaleses5. Mas a vida de soldado não

1 Destemor: falta detemor; intrepidez;coragem.

2 Hidrografia:topografia marítimaque tem por objetolevantar a planta das costas, ilhas etc.

3 Física: ciência que estuda as propriedades dos corpos e as leis que tendem a modificar o estado e o movimento desses corpos, sem lhes modificar a natureza.

4 Mecânica: ciência dasleis do movimento edo equilíbrio, e da aplicação destas àconstrução e empregodas máquinas.

5 Bengaleses:de Bengala, região da Índia.

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o atraía. Partiu, então, para diversas expedições etrouxe delas importantes observações etnográficas6.Durante as viagens que realizou, foi correspondentedo jornal diário Daily Telegraph, cuja tiragem é supe-rior a cento e dez mil exemplares, o que lhe propor-ciona assim grande popularidade.

Com um gesto delicado pediu a todos que fizes-sem silêncio e apenas com duas palavras superoutodos os discursos feitos até aquele momento. Ergueuo dedo indicador da mão direita e exclamou:

— Mais alto!

No dia seguinte, o Daily Telegraph publicava aseguinte notícia:

“No passado, tentar descobrir as nascentes no Niloera considerado uma insensatez. O doutor Barth, odoutor Livingstone e os tenentes Burton7 e Speke8

abriram três importantes caminhos à civilização. Noponto de inserção dessas três vias — local jamaisalcançado por viajante algum — fica o coração daÁfrica. O trabalho desses audaciosos pioneiros serácompletado pela ousada tentativa do doutor SamuelFergusson, que se dispõe a atravessar a África numbalão, de leste a oeste. Seu ponto de partida será ailha de Zanzibar, mas o ponto de chegada só apenasa Providência o sabe.”

Os jornais do mundo inteiro comentaram a notí-cia, que provocou também ondas de incredulidade.

O doutor Fergusson tinha um grande amigo: Ricar-do Kennedy. Era escocês e morava em Leith, perto deEdimburgo. Uma pessoa franca e decidida que tinha

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6 Etnográfica: relativo à descrição dos povosno que se refere àsmanifestações materiais de sua atividade, tais como a língua, religião, costumes etc.

7 Burton: (1821-90) Sir Richard FrancisBurton, explorador, lingüista e escritoringlês. Em 1858, junto a J. H. Speke,tentou, sem sucesso,encontrar a nascentedo rio Nilo. Em 1865,explorou Santos, noBrasil.

8 Speke: (1827-64)John Hanning Speke,explorador inglês daÁfrica. Em 1858, comSir Richard Burton,descobriu o LagoTanganica. Speke também descobriu o Lago Vitória e, em1862, provou que oVitória era a nascentedo Nilo.

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como paixão a caça. A amizade nascera na Índia, quan-do ambos pertenciam ao mesmo regimento. Devido àsexpedições do doutor, longas separações sofreram,mas, após ler a notícia publicada no jornal, Kennedynão pôde deixar de ir ao encontro do companheiro.Queria, de qualquer jeito, impedir essa loucura.

Mais irritado ficou quando, ao se encontrar comFergusson, este o convidou para a expedição.

— Meu caro Samuel, sua idéia é absurda e impra-ticável.

— Os obstáculos foram inventados para seremvencidos.

Kennedy não sabia o que responder e percebeuque seus argumentos jamais convenceriam o amigo.Samuel pôs-se, então, a falar de seus planos.

— Pensei no balão por motivos muito óbvios.Todas as tentativas até agora fracassaram, vítimas dafome, sede ou de tribos selvagens. Com o balão nãoterei medo disso. Se sentir calor, subo; se fizer frio,desço.

Aos poucos Kennedy foi se entusiasmando comas palavras do amigo.

— Então você inventou uma maneira de dirigir obalão?

— Que ilusão! Isso é impossível; apenas partireicom o vento favorável, que sopra regularmente numasó direção.

Dick, como era chamado por Samuel, ainda tinhaalgumas objeções, e uma delas era quanto ao gás.

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Como arranjaria mais se perdesse o gás? No entantoeste era um segredo que Samuel preferia guardar...

O doutor Fergusson não escolhera sua rota aoacaso. De Zanzibar, seu ponto de partida, saíra a últi-ma expedição com a finalidade de descobrir as nas-centes do Nilo. Fergusson pretendia estabelecer aligação entre as expedições do doutor Barth e a dostenentes Burton e Speke.

O doutor Barth era natural de Hamburgo. Obteveautorização para integrar a expedição chefiada peloinglês Richardson, com destino ao Sudão. Quandochegaram ao vasto oásis de Asben, o doutor Barthseparou-se dos amigos, foi até a cidade de Agadés ereuniu-se depois à expedição, que retomou sua mar-cha, atingindo a província de Damerghu, onde sesepararam novamente. Nessa ocasião, Barth dirigiu-sea Kano. O principal objetivo de sua viagem era reco-nhecer o lago Tchad. Percorreu algumas cidades enumas delas ficou sabendo da morte de seus compa-nheiros. Sozinho, continuou a expedição e duranteoito meses sofreu nas mãos de um chefe árabe. Nosúltimos dias de agosto de 1854 reviu Trípoli e, em 6de setembro, regressou a Londres, interrompendo suacaminhada a 4 graus de latitude norte e a 17 de lon-gitude oeste.

Os tenentes Burton e Speke fizeram uma expedi-ção à África oriental, em 1857. Incumbidos pelaSociedade de Geografia de Londres, os tenentes par-tiram de Zanzibar a 17 de junho com a missão deexplorar os Grandes Lagos Africanos. Após 4 mesesde terríveis padecimentos, chegaram a Kazeh e sem

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demora dirigiram-se ao primeiro dos Grandes Lagos,o Tanganica, situado entre os graus 3 e 8 de latitudeaustral9. Ficaram nesse lago aproximadamente trêsmeses e depois retornaram a Kazeh. Burton estavaextremamente adoecido e ficou retido vários meses.Speke, por sua vez, empreendeu uma excursão demais de 500 quilômetros até o lago Ukereué, cujaabertura só conseguiu divisar a 3 de agosto.

Cuidadosamente o doutor Fergusson observou queos dois valentes exploradores não haviam ultrapassadoo grau 2 de latitude austral, nem o 29 de longitudeleste. Portanto, se reunisse ambas as expedições, teriaque vencer uma extensão de mais de 12 graus.

Em todas as viagens que Samuel Fergusson fizes-se, sempre tinha um acompanhante. Era seu criado,Joe, que possuía modestos conhecimentos científicosà sua moda. Um bom rapaz que confiava cegamenteno patrão. Assim, quando o doutor concebeu o planode atravessar a África pelos ares, Joe aceitou a idéiacomo fato consumado, sabendo que tomaria parte naexpedição. Além de ser muito ágil, Joe tinha váriasqualidades, e uma delas era seu otimismo encantador,pois jamais se lamentava de alguma coisa.

Incansavelmente Samuel trabalhava nos preparati-vos da viagem. Com muito custo convenceu Dick a sepesar, pois somando o peso dele mais o de Joe e oseu faria os cálculos de equilíbrio do balão. E regis-trou um peso inferior a 190 quilos.

Feitos todos os cálculos, o doutor concluiu queteria de carregar 1.814 quilos. Após diversos estudos,resolveu encher o balão apenas até a metade, propor-

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9 Austral: que fica ao lado do sul; meridional.

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cionando-lhe quase o dobro da capacidade. Depoisde muito refletir, achou conveniente construir doisbalões de tamanhos diferentes e colocou um dentrodo outro. O maior, de forma alongada e com 16,5metros de diâmetro horizontal e 24,75 de vertical,continha outro, com 15 metros de diâmetro horizon-tal e 22 de vertical e uma válvula que permitia acomunicação entre os balões. Assim, o doutor conta-va com mais êxito em sua viagem, pois, se ocorresseum acidente, como um rombo no balão externo, ooutro estaria em condições de substituí-lo.

Os aeróstatos10 foram confeccionados com umtafetá11 especial e pesavam os dois 526 quilos. Deforma circular, a barquinha de vime pesava 127 qui-los e media 5 metros de diâmetro. Havia 4 caixas dechapa de ferro, uma serpentina, assim como umapossante pilha elétrica de Bunsen provida de 25galões de água contidos numa caixa especial. Esseimportante aparelho não pesava mais de 317 quilos.Os instrumentos destinados à viagem eram dois barô-metros12, dois termômetros, duas bússolas13, um sex-tante14 e dois cronômetros15. Quanto às provisões,eram constituídas de café, chá, biscoitos, carne emconserva, aguardente e duas caixas contendo cadauma cem litros de água. O doutor não se esquecerado toldo para cobrir a barquinha, nem da roupa decama, nem das espingardas de caçador, tampouco dosortimento de pólvora e de balas.

Por volta de 10 de fevereiro, tudo estava pratica-mente pronto. No dia 19, o navio “Resoluto” dava iní-cio à viagem que levaria os três viajantes até Zanzi-

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10 Aeróstato: balãocheio de ar quente ou de gás mais leveque o ar, o qual seeleva na atmosfera.

11 Tafetá: tecido lustroso, de seda.

12 Barômetro:instrumento com o qual se mede a pressão atmosférica.

13 Bússola: caixa do feitio de um relógio,em cujo mostrador,com uma rosa-dos-ventos, se move uma agulhamagnética para indicar o rumo e a orientação.

14 Sextante: instrumentoótico constituído dedois espelhos e umaluneta astronômicapresos a um setor circular de 60°(1/6 do círculo), destinado a medir aaltura de um astroacima do horizonte.

15 Cronômetro:instrumento mecânicode precisão, paramedir intervalos detempo com aproximação de décimos de segundoou menos.

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bar. Apesar de jurar que não partiria, Dick apresen-tou-se a bordo.

No dia anterior, a Real Sociedade Geográfica ofe-receu ao doutor Fergusson e a Kennedy um banque-te de despedida. Durante as longas e ociosas16 horasde viagem, o doutor dava verdadeiras aulas de geo-grafia na sala de oficiais, empolgando jovens rapazescom as descobertas realizadas na África nos últimosanos. O interesse do auditório de Fergusson aumen-tou quando ele relatou os pormenores dos preparati-vos da viagem.

Certo dia, quando conversavam, Fergusson foisolicitado a emitir sua opinião sobre a direção dosbalões. Para ele, jamais se conseguiria dirigir umbalão, pois para isso seria necessário construir ummotor de grande potência, mas de peso ínfimo17.Então, era preciso descobrir um meio de conseguirpelo menos mantê-lo nas correntes atmosféricas18

favoráveis.

— À medida que o balão ganha altura — comen-tou o doutor, relatando sua opinião —, as correntesse tornam mais regulares, já que não são afetadas porvales e montanhas, que constituem a principal causadas mudanças dos ventos e da variação do seu rumo.Uma vez determinadas tais zonas, o balão só terá dese meter nas correntes que lhe convierem.

— Sem dúvida — disse o comandante —, mas paraatingir essas correntes, o balão teria de subir e descerconstantemente, e aí é que está a grande dificuldade.

— Por quê? — perguntou Fergusson.

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16 Ociosa: inútil; quenão faz nada.

17 Ínfimo: o mais baixo;inferior

18 Correntes atmosféricas: ventos

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— Não falo de simples passeios aéreos, mas simde viagens de longo percurso. Caro doutor Fergus-son, é certo que para um balão subir torna-senecessário perder lastro e para descer, por sua vez,é necessário soltar gás. Ora, lastro19 e gás se esgota-riam rapidamente. E numa viagem como a sua nãovejo como resolver esse problema de reabastecer ouconsumir pouco gás.

— Muito simples, comandante. O meu processoconsiste em dilatar ou comprimir, regulando a tempera-tura, o gás contido no interior do aeróstato. Só usareilastro em caso de acidente. Estou levando cinco caixasna barquinha. A primeira contém 112 litros de água,onde adiciono umas gotas de ácido sulfúrico paraaumentar sua condutibilidade e a decomponho pormeio de uma pilha de Bunsen. O oxigênio contido naágua, sob a ação da pilha, é conduzido pelo seu pólopositivo a uma segunda caixa, enquanto o hidrogênioda água chega a uma terceira caixa pelo pólo negativo.Duas torneiras fazem essas duas caixas se comunicaremcom uma quarta caixa, que é a de mistura, onde os doisgases resultantes da decomposição da água se encon-tram. Esse aparelho que acabo de descrever é de maça-rico de oxi-hidrogênio, que produz um calor maisintenso do que o fogo das forjas20. Quanto à segundaparte do aparelho, vejamos: do balão saem dois tubos— um das camadas superiores e outro das inferiores —que vão até a barquinha e somem numa caixa de ferrocilíndrica, tornando sua ação semelhante à de um aque-cedor. Aquecido o gás, ele dilata seu volume, aumen-tando sua força para o movimento ascensional21. Comovêem, posso descer e subir à vontade, sem necessida-

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19 Lastro: areia que vaina barquinha doaeróstato.

20 Forjas: fornalhas.21 Ascensional:

progressivo; referente ao movimento de subida.

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de de consumir o gás, bastando aquecê-lo ou esfriá-loconforme a circunstância.

O doutor Fergusson foi aplaudidíssimo após suaexplicação.

No dia 15 de abril, o “Resoluto” ancorou na ilhade Zanzibar. Pouco depois, subiu a bordo o cônsul22

inglês para apresentar boas-vindas ao doutor, Ken-nedy e Joe e oferecer sua casa para hospedagem.

Em meio aos preparativos de desembarque, o côn-sul foi avisado de que a população da ilha se organiza-va para impedir a operação, visto que, como fanáticos,acreditavam ser o destino dos viajantes o Sol ou a Lua,objetos de veneração23 das tribos africanas.

O cônsul transmitiu os acontecimentos ao doutorFergusson e o problema foi resolvido da seguintemaneira: o “Resoluto” desembarcaria na ilha Cumbe-ni e o balão seria transportado para uma clareira entregrandes árvores.

Muitas horas foram ocupadas até o balão ficarpronto. Após se despedirem dos oficiais, os três subi-ram para a barquinha. Lentamente o balão começoua se elevar do solo e nesse momento o doutor SamuelFergusson batizou-o de Vitória.

A uma altura de 500 metros, os viajantes avistaramtoda a ilha de Zanzibar. Passaram por uma aldeia queo doutor, ao consultar o mapa, constatou ser Caole,cuja população tentou atingir o balão com flechas.

O vento impelia a embarcação aérea para o sul,direção seguida pelos tenentes Burton e Speke. Em

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22 Cônsul: agente oficialde uma nação, emterritório estrangeiro,encarregado de proteger os súditosdessa nação e defomentar seu comércio.

23 Veneração:reverência; culto.

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numerosas aldeias repetiram-se a gritaria e as cenasde ameaça à passagem do Vitória, mas habilmenteFergusson mantinha-se fora do alcance das flechas.

Por precaução, eles não voavam à noite e faziamuma vigília24. Também dividiam bem o tempo para asrefeições.

Era um sábado quando o tempo amanheceuenfarruscado25, como se um dilúvio estivesse prestesa cair. Estavam num lugar de aspecto estranho, comum forte cheiro de hidrogênio sulfuroso. Dick estavacom febre, porém, quando Samuel subiu o Vitória,que atingiu uns 1.300 metros de altura, ele sentiu umasensível melhora e poucas horas depois não tinhamais nada. Após passarem por algumas regiões, Fer-gusson permitiu que Kennedy saísse para caçar.

— Você e Joe podem ir. Vou aproveitar para pôrminhas notas em ordem. Se notar qualquer coisaestranha, darei um tiro de carabina26 para avisá-los.

— Combinado — falou o caçador.

Os dois entraram numa região que parecia desa-bitada, mas depois viram um soberbo animal de pêloazul. Tratava-se de uma espécie raríssima de antílope.Momentos após, num fogão feito de três pedras, Joetransformava o animal em apetitosas costelas grelha-das. De repente, ouviu-se um tiro.

— É o som da minha carabina! — gritou o caçador.

— O sinal do doutor!

Apressadamente, pegaram o produto da caçadae voltaram em direção ao Vitória. Outro tiro soou, e

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24 Vigília: estado dequem, durante anoite, vigia, permane-cendo acordado.

25 Enfarruscado: ene-voado.

26 Carabina: espingardaestriada; fuzil.

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começaram a correr a toda velocidade. Quando seaproximaram, a uns três quilômetros de distância,puderam ver trinta indivíduos acotovelando-se,pulando em volta do balão. Mais um tiro soou, atin-gindo um brutamontes27 que, já sem vida, ficou pen-durado num galho, com os braços e as pernasbalançando no ar. Foi aí que Kennedy e Joe viramque era um macaco, pois ele estava preso pelorabo. O bando que estava ao redor do Vitória era demacacos, que felizmente com alguns tiros correramassustados.

Momentos depois, o Vitória elevava-se para oleste com um vento moderado. Ao reassumir seuposto pela manhã, Fergusson constatou pela bússolaque o vento mudara durante a noite, desviando obalão 40 quilômetros para o noroeste. Estavam nocaminho certo e em dois dias apenas haviam percor-rido quase 800 quilômetros, enquanto o tempo leva-do pelos tenentes Burton e Speke para fazer o mesmopercurso fora de quatro meses e meio.

Chegaram a Kazeh, localidade importante da ÁfricaCentral, que no entanto não passava de um conjunto derústicas28 habitações e de cabanas de escravos. Comosempre, o Vitória causou curiosidade e pouco a poucoa multidão foi se aproximando do balão.

O doutor Fergusson pronunciou algumas palavrasem árabe e recebeu resposta na mesma língua. Umfeiticeiro se aproximou e, através de uma lengalen-ga29, o doutor ficou sabendo que o Vitória estavasendo considerado como a própria Lua que se digna-ra de visitar aquela cidade. Fergusson respondeu:

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27 Brutamontes:indivíduo abrutalhado;grosseiro; rude.

28 Rústicas: rudes;grosseiras.

29 Lengalenga:exposição oral, narração monótona e fastidiosa; discursoprolongado, enfadonho.

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— De fato a Lua faz seu giro de mil em mil anos,a fim de que seus adoradores possam apreciá-la maisde perto.

O feiticeiro, por sua vez, aproveitou a ocasião edisse que o sultão estava enfermo e suplicava os favo-res do céu. Fergusson, seguro de seus conhecimentosmédicos, propôs-se a curar o soberano do povo. Foisozinho, enquanto seus companheiros ficaram a pos-tos para qualquer precaução.

Conduzido aos aposentos reais, encontrou o talenfermo, um homem de uns 40 anos, em estado deabsoluto delírio, e logo constatou que sua doençanão passava de uma vastíssima bebedeira. Não tendomuitas soluções para salvar aquele bêbado, o doutorapenas deu algumas gotas de um tônico cardíaco queo fez reanimar por uns momentos. O sintoma foi aco-lhido com enorme alegria. Já eram seis horas quandoSamuel voltou apressadamente para o Vitória. Joepercebeu uma agitação em volta do seu patrão e este,ao se aproximar, disse:

— Não temos tempo a perder. Corte a corda evamos embora!

— Mas o que aconteceu? — perguntou Kennedy,assustado.

— A Lua! — exclamou o doutor.

De fato ela surgiu. Ou existiam duas luas ouaqueles estrangeiros não passavam de falsos deu-ses. A população se apressou para atirar flechas nobalão, mas um dos feiticeiros fez sinal para cessa-rem enquanto subia numa árvore e tentava segurar

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a corda da âncora. A âncora, por sua vez, apanhouo feiticeiro pelas pernas, levando-o para as regiõesaéreas. O Vitória subiu uns 300 metros com o negrose agarrando à corda com todas as suas forças. Meiahora depois o doutor resolveu despachar o viajante.Baixou a 7 metros do solo e o negro criou coragempara saltar, caindo em pé e logo correndo paraKazeh.

Agora o Vitória se dirigia para o nordeste numamarcha moderada. Achavam-se sobre a aldeia deUiofu, perto do lago de Ukereué. Procuravam umlocal propício para descerem. De repente o balãoestacou, decerto a âncora estava fincada em algumafenda de rocha oculta sob o mato. Mas um gritoassustou os três viajantes, ao mesmo tempo quefaziam o Vitória continuar a andar.

O que seria aquilo? Como a rocha estava se movi-mentando? Um imenso redemoinho produziu-se elogo apareceu a tromba de um elefante. Ele rebocavao Vitória, e para um lado bom! A corrida do animaldurou quase uma hora. Uma súbita mudança do ter-reno obrigou Fergusson a desfazer-se do bicho. Dickpegou sua carabina e após alguns tiros o elefante caiumorto ao chão. Eles puderam aterrissar e Joe e Ken-nedy saíram para caçar.

Cinco dias haviam transcorrido desde que deixa-ram Zanzibar e seus víveres eram suficientes paramuito tempo. Somente necessitavam de mais água.Os tubos e a serpentina pareciam estar em perfeitoestado. Terminado o exame do doutor, eles jantarame aproveitaram para passar a noite no local.

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Na quarta-feira, 23 de abril, eles estavam próxi-mos de descobrir as nascentes do Nilo. Passaram pelalinha do Equador e por volta das nove horas pude-ram entrever a margem oposta do lago Ukereué, queterminava num ângulo bastante aberto.

— Reparem! — exclamou Fergusson. — Falava-sede um rio pelo qual o lago Ukereué se abria para onorte e ali está o tal rio. Vejam com que velocidadeele corre! Com certeza vai desaguar no Mediterrâneo.Só pode ser o rio Nilo.

E, após observar o rio, ele disse:

— Enfim, desvendamos o segredo das nascentesdo Nilo!

Alguns minutos depois o Vitória planava a 800metros de altura. Era preciso descer para o doutorconfirmar os resultados da expedição. A parada foi nailha de Bengala. Samuel e Dick saíram para vasculharo terreno, quando, de repente, Fergusson aponta:

— Olhe isto.

— Letras! — exclamou Kennedy.

Numa rocha estavam gravadas as iniciais A.D.

— Andrea Debono! — falou exultante30 o doutor. —O explorador que mais longe alcançou o curso do Nilo.

— É o Nilo, caro Samuel. Não podemos maisduvidar.

Poucos minutos depois o Vitória subia e o doutorFergusson orgulhosamente desfraldava a bandeira daInglaterra.

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30 Exultante: que temgrande alegria.

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Pela bússola puderam constatar que estavam nadireção noroeste e não norte. Lançando uns últimosolhares para o Nilo, o doutor comentou sobre a des-coberta:

— As nascentes do Rio Branco, no Bahr-el-Abiad,mergulham num lago tão imenso que pode ser consi-derado mar. É lá que ele nasce. É uma pena nãoacompanharmos mais tempo o curso do Nilo. Daquiem diante enfrentaremos o desconhecido...

O Vitória, devido ao vento forte e irregular, nãoconseguia caminhar numa direção constante. Já erabem noite quando pousaram e o doutor não pôdereconhecer a região onde estavam. Quando Kennedytomou o posto de vigia, ouviu um rugido. Julgou veralgo se movimentando em direção à árvore e, lem-brando-se do episódio31 dos macacos, achou conve-niente acordar o doutor. Joe também foi acordado e,juntamente com Kennedy, desceu pelo galho da árvo-re e viu inúmeros selvagens se aproximarem do galhoem que se encontravam os viajantes.

— Fogo! — ordenou Kennedy.

Em um segundo o bando de negros sumiu, masinesperadamente ouviu-se um grito de socorro pro-nunciado em francês.

Não foi preciso mais nada para Fergusson con-cluir que um francês estava em poder de selvagens. Eos três resolveram salvá-lo. Elaboraram um plano quefoi executado na mesma noite. Soltaram a âncora e oVitória, quase imóvel, flutuou no ar. Com dois fioscondutores de uma pilha, Fergusson fixou na ponta

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31 Episódio: fato notávelrelacionado comoutros.

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de cada um pedaços de carvão talhados32 em ponta eaproximou um do outro. Um jato de luz elétrica ilu-minou a escuridão e eles puderam avistar um homemde uns 30 anos, preso num poste, quase nu, macérri-mo33 e cheio de ferimentos. No alto do crânio, umpequeno círculo de cabelos curtos mostrava vestígiosde uma tonsura34.

Era um missionário que ao ver o balão estendeuas mãos na esperança de ser salvo. O facho de luzafugentou os selvagens e não demorou para o prisio-neiro ficar só. A barca tocou no solo e o caçador trou-xe o sacerdote para dentro. Joe rapidamente atirou os100 quilos de lastro, mas o balão não subiu muito.Um dos negros, percebendo o rapto do prisioneiro,resolveu se agarrar ao fundo da barquinha. Os selva-gens corriam numa gritaria infernal. Kennedy teve dejogar uma das caixas de água e aí o Vitória conseguiuuma boa altura.

Durante um dia o sacerdote ficou sob os cuidadosdo doutor Fergusson. No dia seguinte, sentindo-seum pouco melhor, o francês falou quem era.

— Sou padre da missão dos lazaristas e meudever é instruir e civilizar nossos irmãos ignorantes ebárbaros.

Contou ao doutor toda a história da sua vida,como se fizera sacerdote e como chegara à África.Relatou seus trabalhos de catequese naquelas regiõese também de quais tribos havia sido prisioneiro.Havia um ano estava residindo com a tribo dos Niam-Niam, uma das mais selvagens. A súbita morte dochefe, ocorrida dias antes, fora atribuída a ele e por

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32 Talhados: cortados.33 Macérrimo: muito

magro.34 Tonsura: coroa de

clérigo; corte circular,rente, do cabelo, queusavam os clérigos.

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isso ele iria morrer ao sol do meio-dia. Ao ouvir ostiros, o francês não se conteve e pediu por socorro.

Fergusson mal podia conter a emoção vendo fugira vida daquele grande homem. O padre quis saberum pouco sobre a Europa, bem como algo sobre seussalvadores. Por fim, disse:

— Tenho certeza de que vencerão esta arrojada35

aventura.

À noite, o estado do missionário piorou muito. Elepressentia sua morte.

— A morte está aqui, é o começo da vida eterna— disse.

Com a ajuda de Kennedy, o sacerdote ajoelhou-se. Abençoou seus amigos e caiu falecido nos bra-ços de Kennedy, por cuja face escorriam grossaslágrimas. Os três ajoelharam-se e rezaram em silên-cio. Na manhã seguinte escolheram um local parasepultá-lo.

O sacerdote, que fizera seu voto de pobreza,repousava agora numa mina de ouro. Os blocos queali se encontravam eram minerais de alto valor. Joeficou alucinado36 com as pedras. A todo o custo quislevá-las, só que para o doutor elas pesavam muito,ocasionando um desequilíbrio no balão.

— Mas, patrão, não podemos abandonar essestesouros!

Fez-se um acordo de que os blocos de quartzoserviriam como lastro, mas Joe não hesitaria se fosseobrigado a jogar um pouco pelo caminho.

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35 Arrojada: intrépida;ousada; destemida.

36 Alucinado: privadoda razão.

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No entanto, Samuel Fergusson dava tudo paraencontrar água em vez daquele ouro. Restavam ape-nas 15 litros, 5 para eles matarem a sede de um calorde 50 graus e 10 para alimentar o maçarico, durante54 horas. A situação era grave e todos se sujeitaram aum rigoroso racionamento.

Estavam a 1º de maio e o tempo era o mesmo dealguns dias atrás: monótono e com bastante sol.Encontravam-se em pleno deserto e, como não haviavento, o balão permanecia parado.

De repente, Joe gritou assustado:

— Não somos os únicos aqui! Alguém teve amesma idéia.

Kennedy não se conformava com o que via. Auns 70 metros, outro aeróstato flutuava no ar, combarquinha e tripulantes. O doutor Fergusson disse:

— Dick, tome a bandeira e faça-lhes sinais.

O caçador obedeceu. Os viajantes, ao mesmotempo, fizeram os mesmos sinais.

— Que significa isso? — perguntou Kennedy.

— Devem ser macacos nos imitando — acrescen-tou Joe.

— Isso quer dizer — explicou o doutor, rindo —que aquele balão é o próprio Vitória.

Joe e Kennedy ainda não haviam compreendidoo suficiente e o doutor continuou sua explicação.

— É uma miragem! Um fenômeno de ótica provo-cado pela rarefação desigual das camadas de ar.

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Aos poucos a imagem foi se apagando.

Por volta das 4 horas, Joe avistou palmeiras.Decerto, alguma nascente deveria existir por perto.Nesse caso, beberam o pouco que restava de água.Às 6 horas o Vitória pairava37 sobre as palmeiras, querdizer, duas raquíticas38 e estorricadas palmeiras. Nãohavia uma gota de água sequer.

Sem a mais remota esperança de vento, as tortu-ras da sede começaram a se manifestar. A água domaçarico também terminara e o Vitória desceu lenta-mente sobre a areia. Estavam a 900 quilômetros dolago Tchad.

Ao anoitecer, o doutor resolveu caminhar umpouco. Nenhum dos companheiros conseguiu acom-panhá-lo. Caminhou alguns quilômetros para oeste,até que sentiu uma vertigem. Pensou em voltar, cha-mou os colegas, mas a voz não saía. Por fim, caiudesfalecido em meio ao grande silêncio do deserto.

À meia-noite recobrou os sentidos nos braços dofiel Joe, que, inquieto com a sua prolongada ausência,seguiu suas pegadas nitidamente marcadas na areia.

Na terça-feira, sob os jatos de fogo do sol, os des-venturados sentiram os membros paralisar-se pouco apouco. Na barca, o doutor, com os braços cruzadossobre o peito, contemplava com ar idiota um pontoimaginário no espaço, enquanto Kennedy sacudia acabeça para a direita e para a esquerda, como umafera enjaulada. De repente, o caçador deu com osolhos na carabina. Num esforço supremo, correu paraa arma e, agarrando-a, levou o cano à boca.

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37 Pairar: voar lentamente.

38 Raquíticas: poucodesenvolvidas; franzinas.

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Joe, desesperado, grudou-se nele e os dois seatracaram39 furiosamente. Lutaram sem que o doutorparecesse ver. Quando, entre um golpe e outro, acarabina disparou, Fergusson despertou e um brilhosurgiu nos seus olhos.

— Ali! — apontava ele com uma voz que nadatinha de humana. — Vejam.

Joe e Kennedy se separaram e olharam. Talcomo um oceano em fúria, o areal agitava-se, levan-tando ondas de poeira que rebentavam umas sobreas outras. Enorme nuvem cobriu o sol, produzindouma sombra que se alastrou até o Vitória. Era osimum, um vento abrasador que sopra do centro daÁfrica para o Norte.

Jogaram fora 30 quilos de ouro e o balão princi-piou a subir. Milagrosamente, o Vitória saltou sobre oturbilhão e foi arrastado com uma incrível velocidadeacima daquele mar espumante. Às 3 horas a tormen-ta abrandou e ao cair da noite o Vitória pairava dian-te de um oásis40. Ali existiria água.

Fergusson abriu a válvula de escapamento e man-samente o balão desceu próximo ao oásis. Em apenas4 horas haviam vencido uma distância de 380 quilô-metros. Encontraram um poço no qual puderamsaciar a sede e fazer novas reservas de água. Comotinham víveres suficientes, decidiu o doutor ficar aliaté que soprasse um vento favorável. Passaram duasnoites lá, mas, durante a madrugada, finalmente ovento apareceu, anunciando uma tempestade. Entra-ram na barquinha e desapareceram na escuridão.

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39 Atracar-se: entrar em luta corporal, engalfinhar-se.

40 Oásis: terreno coberto de vegetação,que forma como umailha no meio de umdeserto árido.

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À medida que avançavam, a região começava amudar de aspecto. Encontravam-se num território deaparência selvagem, era Nigrícia. Finalmente umgrande rio surgiu aos olhos dos viajantes e o doutor,pelos imensos formigueiros que encontrou em suavolta, reconheceu o rio Benué, um dos principaisafluentes do rio Níger.

Contra seus desejos, o doutor Fergusson marcha-va para o nordeste, em direção ao monte Mendif,cujos picos desapareciam entre as nuvens. Foi neces-sário elevar a temperatura a 100 graus para erguer obalão a mais de 3.000 metros, altitude máxima atingi-da durante a viagem, ocasionando uma temperaturaatmosférica tão baixa que o doutor e seus compa-nheiros tiveram de recorrer às mantas.

Às 5 da tarde, o Vitória finalmente desceu numavasta e isolada clareira. Kennedy embarafustou-se41

nas matas e não tardou a regressar com meia dúziade patos selvagens que Joe transformou numa sabo-rosa refeição.

Na manhã seguinte, 11 de maio, estavam sendolevados para o norte. O vento ameaçava diminuir e oVitória se encontrava a 20 metros do solo, podendoassim ser avistada a capital de Logum. Era uma ver-dadeira cidade, com casas enfileiradas e ruas conside-ravelmente largas. A visão do Vitória causou a reaçãode sempre: gritos e espanto.

O governador de Logum saiu para a rua e faloualgo que o doutor não conseguiu entender. Logocomeçou uma correria de cavaleiros em todas asdireções, tornando claro que as tropas do governa-

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41 Embarafustar: entrarde modo violento ou desordenado, penetrar.

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dor se preparavam para dar combate ao invasor.Pela gesticulação do xeque42, o doutor percebeuque ele ordenava aos viajantes para se afastarem.Fergusson teria cumprido essa ordem de bomgrado, se a falta de vento não o impedisse. Quan-do os soldados se prepararam para atacar, o Vitóriaconseguiu se erguer calmamente, fugindo à mirados selvagens.

À noite, o vento novamente deixou de soprar e obalão ficou imóvel a uns 100 metros do chão. Pres-sentindo alguma cilada da tribo selvagem que não seencontrava tão distante deles, o doutor redobrou avigilância. De repente, milhares de pombos com cau-das guarnecidas de matéria combustível cercavam oaeróstato, ameaçando incendiá-lo. Samuel imediata-mente atirou um pesado bloco de quartzo e conse-guiu escapar das aves.

Estavam a 12 de maio, portanto fazia 25 dias deviagem. Cerca de 9 horas da manhã, alcançaram amargem meridional do lago Tchad. Ali estava o marinterior, o Cáspio da África, cuja existência durantetanto tempo fora considerada lendária e até então sóatingido pelas expedições de Denham e de Barth.Fergusson teve vontade de examinar a água, que seacreditava ser salgada. Perdeu altura e a barquinhaquase roçou a superfície do lago. Joe encheu umagarrafa até a metade; era uma água pouco potável ecom acentuado gosto de carbonato de sódio.

Passaram por Kuka, a famosa capital do Bornu.Kuka era composta de duas cidades: uma parte rica eoutra, pobre.

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42 Xeque: chefe de triboárabe ou africana;sheik.

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O Vitória sobrevoava numerosas ilhas habitadas porpiratas perigosíssimos. Joe, que avistava o horizonte,cutucou Kennedy para lhe mostrar um bando de aves.Kennedy, que se apossava do espírito de caçador, pre-parou a carabina para atirar, mas foi interrompido porSamuel, que já havia identificado essas aves como enor-mes abutres voando em direção ao balão.

— Não, Dick. Seria o mesmo que convidá-los anos atacar. Fique preparado, mas não atire sem minhaordem.

O doutor achou prudente subir um pouco mais obalão, no entanto os abutres o acompanharam. Esta-vam a mil metros de altura quando uma das avesinvestiu contra o Vitória.

— Fogo! Fogo! — gritou Samuel.

Mal acabou de falar e a ave, morta, despencou.Kennedy conseguiu acertar mais um e Joe atingiu aasa de outro. O bando, com redobrada violência,resolveu mudar de tática. Os abutres elevaram-seacima do balão e pouco depois ouviu-se um barulhoda seda se rompendo. As aves, com seus bicos,haviam rasgado o tafetá do balão e com isso o Vitó-ria foi perdendo altura.

— Não há mais nada para jogar! — respondeuKennedy.

— Há sim — disse Joe.

— Joe! Joe! — bradou Fergusson estupefato43.

Mas o valente rapaz já havia se atirado pela bordada barquinha. O balão retomou sua marcha ascensio-

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43 Estupefato:pasmado; atônito.

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44 Paragem: lugar ondese para; qualquer sítio.

nal, subindo a 300 metros e sendo arrastado pelovento para as bandas setentrionais do lago.

— E agora? — perguntou Kennedy num tomdesesperado.

— Atirou-se para nos salvar! — acrescentou odoutor.

E grossas lágrimas escorreram pelas faces daque-les homens. O Vitória pousou numa praia deserta,uma centena de quilômetros ao norte do lago. Nessanoite nenhum dos dois conseguiu dormir. Quandoamanheceu, os dois amigos trataram de fazer umreconhecimento do lugar e se propuseram a encon-trar o colega Joe a todo custo.

Levaram 4 horas para arrancar a parte externa doVitória e fazer surgir o balão interno, que era umquinto do tamanho natural. O atual Vitória possuíauma capacidade de 2.412 metros cúbicos. A força desubida era de 1.500 quilos e os acessórios mais opeso dos tripulantes — incluindo também o peso deJoe — davam 1.420 quilos. Ainda poderiam carregar80 quilos de lastro.

Entraram na barquinha com a intenção de alcan-çar novamente a parte setentrional do lago, sobre-voando as suas margens até esgotarem todos osrecursos para encontrar Joe.

Levado por uma corrente, o Vitória não tardou aatingir o meio do lago. Procuraram e nada! Era difícilcrer que Joe se afogara, só que aquelas paragens44

estavam infestadas de crocodilos...

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45 Pacto: acordo; ajuste.

Uma nova corrente, com a força de um furacão,surpreendeu-os, levando-os para uma outra direçãosem que Samuel pudesse orientar o balão. Porém osdois amigos não desanimaram e fizeram um pacto45.

— Nós voltaremos, Samuel!

— Quanto a isso não há a menor dúvida.

— Joe sacrificou-se por nós, devemos sacrificar-nos por ele!

Enquanto isso, vejamos o que aconteceu a Joequando caiu no lago.

Após voltar do mergulho, a primeira coisa que fezfoi avistar o Vitória, que devido ao vento era levadopara o norte. Tranqüilo por ver seus companheirossalvos, ele tratou de se safar. Avistou uma ilha e foinadando em direção a ela. À medida que se aproxi-mava da terra, via as margens do lago cobertas decrocodilos. Mergulhou rapidamente, mas não o sufi-ciente para evitar o contato com um corpo enorme.Julgando-se perdido, começou a nadar com desespe-rada energia. Sentiu estar sendo agarrado por umbraço e, depois, pelo meio do corpo. Atirou-se à lutacom vigor, só que não estava sendo levado para ofundo do lago, como fazem os crocodilos, e sim paraa superfície. E, quando abriu os olhos, viu-se entredois negros.

Um alívio tomou conta dele. Sensação essa quedurou poucos minutos, pois ele poderia ter caído emoutro perigo, o de ser prisioneiro de uma tribo selva-gem. Contudo, não foi difícil perceber que era objetode adoração, fato que não deixou de agradá-lo.

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46 Suculenta:substancial; saborosa.

Por fim lhe ofereceram uma suculenta46 refeição eum bom lugar para dormir. Como estava exausto,logo pegou no sono.

Durante a madrugada Joe foi acordado por umaumidade que chegava até a sua cintura. Estava empleno lago Tchad. Submersa durante a noite, não res-tava nada da tal ilha.

Joe avistou uma espécie de tronco de árvore edeixou-se levar por uma corrente rápida para a mar-gem setentrional. Diversas vezes olhou para cima naesperança de avistar o Vitória, não deixando de terconfiança no seu patrão.

Quando o dia despontou, ele caminhou bastanteaté dar numa imensa floresta e, a poucos passos, viuum grupo de selvagens. Pensou em se esconderquando, através de uma folhagem, avistou o Vitóriadirigindo-se para o lago. Seus olhos encheram-se delágrimas. Esperou os negros se afastarem e correupara as margens, mas o balão já estava longe. Nãodesanimou, pois com certeza ele passaria de novo. Epassou, realmente, porém mais para leste. Só que ovento arrastava o Vitória com uma incrível velocida-de. Continuou a andar, mas logo suas forças estavamse esgotando. Prosseguindo desse modo, foi dar a umlugar que só depois percebeu ser um pântano. Ines-peradamente caiu num lamaçal. Minutos depois esta-va enterrado até a cintura. Não tinha nenhum pedaçode madeira para se agarrar; debatia-se com força, oque só servia para enterrá-lo mais ainda no solomovediço. Parou de lutar e desesperado gritou:

— Patrão! Patrão!

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Voltemos agora para Kennedy e Fergusson. Dickestava de luneta em punho, observando atentamenteo horizonte. De repente mostrou ao doutor um grupode cavaleiros, provavelmente árabes. Devido à velo-cidade do balão, em meia hora puderam avistarmelhor o bando. A princípio, Kennedy concluiu queo chefe ia à frente e todos corriam no seu encalço.

— Curioso! — exclamou Kennedy, que continua-va espiando na luneta. — Não estou compreenden-do... Espere... parece que os árabes perseguem algu-ma coisa.

Aí ele percebeu que se tratava de uma caçada e,o mais importante, uma caçada a um homem!

— Um fugitivo! — exclamou Samuel esperançado.

O balão aproximou-se dos cavaleiros e o caçadordeu um grito:

— É ele, Samuel!

Ele dizia tudo. Era Joe que estava num cavalofugindo dos árabes. Joe conseguiu avistá-los, mas nãoparou de correr. Confiava na inteligência de seus ami-gos. O doutor estava situado na frente da barquinhae segurava a escada de corda, pronto para lançá-la.Kennedy se preparava para jogar o lastro.

— Joe! — gritou Fergusson.

Sem frear o cavalo, o criado viu a escada e, nomomento em que a agarrou, Dick jogou o lastro que,como tinha peso superior ao de Joe, fez com que obalão desse um salto para o alto. Joe agilmente resis-tiu aos violentos balanços e ao subir na barquinha

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caiu nos braços dos companheiros, desmaiando emseguida.

Joe estava quase nu, com os braços ensangüenta-dos e o corpo cheio de contusões. Com paternal cari-nho, o doutor fez-lhe os curativos e deitou-o sob otoldo. Quando recuperou os sentidos, Joe apertou amão dos companheiros e disse que ia contar a suaaventura, mas logo o sono o derrubou.

O Vitória seguia uma linha oblíqua para oeste.Após percorrer uma distância de 40 quilômetros, aoentardecer alcançou o grau 10 de longitude.

No outro dia, um vento forte e irregular, orasoprando para o norte, ora para o sul, finalmentelevou o Vitória para o oeste. Joe já se sentia totalmen-te recuperado e pôde contar suas peripécias desdeque havia se separado dos amigos. Várias vezes odoutor não se conteve com a narrativa do amigo Joee apertava sua mão. Finalmente o relato chegou aoponto em que o criado, atolando-se no pântano, gri-tou por socorro.

— Quando estava atolado naquela areia movedi-ça vi que estava perdido e pensei no senhor, patrão.De repente vi uma corda e com um esforço indescri-tível agarrei a ponta. Puxei e ela resistiu. Então, icei-me por ela até conseguir pisar terra firme. No outroextremo da corda sabem o que encontrei? Uma ânco-ra! A âncora do Vitória. Compreendi que o senhorhavia descido ali. Saí do pântano e esse achado deu-me novas forças, até que fui dar à orla de uma flores-ta onde vi, num cercado, vários cavalos pastando.Pulei em cima de um, que logo disparou em direção

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47 Comovido:impressionado; enternecido.

48 Impetuosidade: fúria;violência.

ao norte. Contava avistar o Vitória voando no mesmorumo, mas fui cair no acampamento dos árabes. Meucavalo já não agüentava mais de cansaço e eles cadavez chegando bem próximos de mim. Afinal, o cava-lo caiu e eu com ele, mas pulei para a garupa de umárabe. O resto os senhores já sabem.

O doutor estava comovido47 e, mais uma vez,apertou a mão do fiel criado.

O Vitória venceu uma maravilhosa travessia de500 quilômetros e às 10 horas da noite parou sobrevasto e adormecido povoado. O doutor Fergussonconcluiu que estavam na latitude de Agadés. O Vitó-ria desceu a uns três quilômetros da cidade, sem queninguém o visse.

Fergusson estava com uma séria preocupação.Duvidava da qualidade do segundo balão. Notara umcerto desperdício de gás e resolveu evitar as paradasnoturnas. No entanto, uma chuva desabou, preocu-pando-o mais ainda, pois aquele dilúvio aumentava opeso do balão e da barquinha.

Ao meio-dia o Vitória sobrevoou Gao, uma mise-rável povoação que já tinha sido uma grande capital.Finalmente o Níger apareceu. Suas águas rolavamcom força, mas os viajantes, levados pela impetuosi-dade48 do vento, mal puderam apreciar os contornosdo rio.

No dia 20, pela manhã, o balão passou por cimade rede de canais e rios que constituem os afluentesdo Níger. Mais tarde passaram por Tombucutu, umamisteriosa cidade, que também teve suas escolas de

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sábios e filósofos. Arrastados pelo vento do deserto,retomaram o sinuoso curso do rio e logo a cidadepassou a ser uma lembrança da viagem.

Devido ao desperdício de gás, a força ascensionaldiminuía cada vez mais e o balão tornava-se demasia-damente pesado, obrigando o doutor Fergusson ajogar lastro fora com a finalidade de chegar até acosta.

Samuel também lançou alguns objetos considera-dos inúteis para manter o Vitória numa altura desejá-vel. Segundo seus cálculos, seria preciso dois diasnessa direção para alcançarem o rio Senegal semgrandes canseiras.

No dia 27 de maio, a região se apresentou sobnovo aspecto, anunciando a proximidade de monta-nhas. Tinham de cruzar a cadeia que divide o vale doNíger do vale do Senegal. Até o Senegal, esta parte daÁfrica é considerada bastante perigosa. Portanto, odoutor não tinha a menor intenção de descer ali. Sóque o Vitória baixava de maneira sensível. Durantemais de 200 quilômetros desceram e subiram repeti-das vezes, e o envoltório do balão, já meio flácido,fazia com que o hidrogênio escapasse. O único recur-so que tinham era aliviar o peso do balão. Não esta-vam longe do rio Senegal, mas, pressentindo que obalão não agüentasse até a outra margem, Fergussonoptou pela margem mais próxima. Porém, para che-gar a ela teriam de transpor montanhas, um percursonada fácil levando-se em conta o estado do balão.

Parecia que aqueles obstáculos se aproximavamcom extraordinária rapidez, ou melhor, o vento atira-

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va o Vitória contra os agudos píncaros49. Era precisosubir depressa. Até a reserva de água do maçarico foijogada fora. O Vitória conseguira subir quase 40metros; jogaram a carne em conserva e pouco adian-tou. A situação era terrível.

— Talvez tenha de desfazer-se das suas armas,Dick — disse Samuel.

— Minhas armas! — exclamou emocionado ocaçador.

— Infelizmente não há outro recurso, caro amigo.

Absolutamente mudo, Kennedy lançou os váriossaquinhos de balas e de chumbo. O balão subiu, con-tudo a barquinha achava-se ainda um pouco abaixoda perigosa crista50 contra a qual inevitavelmente ia sechocar.

Fergusson não tinha outra saída senão ordenarque Kennedy jogasse suas armas, mas Joe foi maisrápido.

— Joe! Joe! — gritou Kennedy.

— Idiota! — falou colericamente Fergusson.

Roçando o solo, a barquinha dava pinotes sobreos agudos cascalhos.

— Estamos passando! — disse uma voz que fezFergusson estremecer.

O astuto rapaz segurava-se com as mãos norebordo inferior da barca e corria a pé, livrando,assim, o balão de todo o peso do seu corpo. Ao che-gar à vertente oposta, Joe pulou para dentro. Agora o

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49 Píncaros: cumes.50 Crista: ponto mais

elevado; cume.

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Vitória só tinha que descer e não tardou a equilibrar-se a 70 metros do chão.

Como já estava anoitecendo, o doutor achou pru-dente parar. Achavam-se a 40 quilômetros do Senegale o único recurso seria atravessar o rio. Para isso eranecessário desfazerem-se de mais carga. Livraram-sedas caixas do maçarico, da pilha de Bunsen e da ser-pentina, que pesavam quase 400 quilos. À meia-noiteestavam exaustos e, após uma refeição fria, Fergussontomou o posto de vigia. Às duas horas, Kennedysubstituiu-o. Nesse momento reinava o maior silêncioe a barca balançava suavemente, convidando o caça-dor para uma soneca. Ele não conseguiu vencer afadiga e adormeceu. Quanto tempo se passou nãopôde dizer ao acordar, quando viu diante de si a flo-resta em chamas.

— Fogo! Fogo! — gritou mesmo sem compreender.

Naquele momento, retumbaram51 uivos sob afolhagem. Eram os selvagens talibas que puseramfogo na mata para incendiar o balão com mais segu-rança. As chamas cercavam o Vitória e num impulsoSamuel cortou a corda da âncora. O balão deu umarranco e subiu mais de 300 metros. Mas a persegui-ção dos talibas não parou aí e continuou por toda amanhã. O Vitória baixava cada vez mais. Depois dapartida já haviam perdido mais de 100 metros e oSenegal distava ainda uns 25 quilômetros; o tempopara alcançá-lo seria de no mínimo três horas.

Um novo rebuliço52 chamou a atenção dos três via-jantes. Eram os talibas que apressavam o galope, espo-reando os cavalos. A causa de tal agitação dos selvagens

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51 Retumbar: ecoar;repercutir

52 Rebuliço: agitação;desordem.

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era a queda visível do Vitória. A barquinha estava a 5metros do solo e o vento não soprava mais com força.

Para mantê-los um pouco mais a distância, Joedisparou num dos cavaleiros mais avançados, querolou por terra, fazendo com que seus companheirosse detivessem um pouco.

Quase raspando o chão, a barquinha elevou-seem meio à gritaria dos talibas, mas dali a meia hora obalão descia vertiginosamente, com o gás escapandopelo enfraquecido envoltório. Pouco depois a barcatocou o solo, mas, como sempre acontecia, o Vitóriadeu um salto e só foi parar dois quilômetros adiante.Os talibas disparavam a pouco mais de duas centenasde passos. Antes de jogar as espingardas, Dick conse-guiu acertar quatro cavaleiros. Novamente o Vitóriaergueu-se aos solavancos53. O balão agonizava, esva-ziando-se, murchando, com as pregas do tafetá esfre-gando-se umas nas outras. Kennedy não tinha maisesperanças e Joe não sabia o que fazer. Porém Fer-gusson teve uma idéia:

— Ainda nos restam 120 quilos a perder.

Dick pensou que o amigo havia enlouquecido,pois não havia mais nada na barquinha.

— A barquinha! — exclamou Fergusson. —Agarrem-se depressa na rede. Alcançaremos o riopendurados na malha.

Ninguém hesitou em tentar tal meio de salvação.Ao cortar as cordas que sustinham a barca, o balãosubiu 100 metros. Assim, os viajantes conseguiramescapar dos talibas.

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53 Solavanco: balançoviolento e imprevistode um veículo.

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Agarrados à rede, os três amigos passaram por umacolina e logo em seguida avistaram o rio Senegal.

— Mais um pouco e estaremos salvos! — disseFergusson.

Porém não havia de ser assim. Quase vazio, obalão caía pouco a pouco em terreno de grandesdeclives e coberto de pedregulhos. Repetidas vezes oVitória tocou o solo, seus saltos diminuíam progressi-vamente de altura e extensão, até que por fim pren-deu-se pela parte de cima da rede no galho de umbaobá. Estavam a cem passos do rio.

Com uma largura de 700 metros, o Senegal preci-pitava-se da altura de 50, correndo de leste paraoeste. Era impossível atravessar aquela torrente. E alionde estavam era bem provável que os talibas osencontrassem, uma vez que não desistiriam tão fácilda perseguição. Somente o doutor tinha uma únicaesperança!

— Temos pelo menos uma hora na frente dos tali-bas e, portanto, não podemos perder tempo. Arran-quem bastante quantidade dessa erva, pois, já quenão temos mais gás, atravessaremos o rio com arquente!

O doutor abriu mais o orifício do aeróstato e emseguida colocou certa quantidade de galhos secos sobo invólucro. Acendeu e pouco depois o Vitória come-çou a inchar.

Pelos gritos e pelo galopar dos cavalos, os viajan-tes puderam concluir que o bando de talibas estava aapenas uns 4 quilômetros de distância.

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Ao cabo de dez minutos, o balão começou a sacu-dir-se, indicando sua tendência a subir. O Vitóriafinalmente conseguiu se elevar, agora só se ouviam osgritos coléricos dos inimigos. Minutos após se aproxi-mavam da outra margem do rio, de onde avistaramum grupo de homens envergando uniforme francês.Um espanto tomou conta dos oficiais, quando viramo balão. Os comandantes, que estavam a par da auda-ciosa expedição, avisaram os soldados de que se tra-tava de uma arrojada viagem em benefício dos estu-dos geográficos.

Os franceses, então, se lançaram ao rio e recolhe-ram os três viajantes. Neste momento, o Vitória eralevado pela correnteza, precipitando-se nas cataratasde Gouina.

A missão militar fora mandada para as margensdo rio pelo governador do Senegal com a incum-bência de escolher um local apropriado ao ergui-mento do posto de Gouina. Já estavam lá havia doisdias, quando testemunharam a chegada do doutorFergusson.

Os ingleses foram levados ao acampamento eredigiram um documento atestando oficialmente achegada do doutor Samuel Fergusson, juntamentecom Kennedy e Joe, às cataratas de Gouina.

No relatório, que se encontra nos arquivos daSociedade Real Geográfica de Londres, está escrito:

“Nós, abaixo-assinados, atestamos que nesta datavimos chegar o doutor Samuel Fergusson e seus com-panheiros Ricardo Kennedy e Joe Uílson, suspensos à

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rede de um balão, tendo este último sido levado pelacorrenteza para as cataratas de Gouina. Em testemu-nho da verdade, assinamos o presente juntamentecom os acima mencionados, para os efeitos legais.Cataratas de Gouina, em 24 de maio de 1862.”

Samuel Fergusson

Ricardo Kennedy

Joe Uílson

Dufraisse — tenente de infantaria naval

Rodamel — guarda-marinha

Dufays — sargento

Flippeau, Mayor, Pelissier, Lorois, Rascagenet,Guillons e Lebel — soldados.

A 26 de junho chegaram a Londres e foram rece-bidos com festivas homenagens que consideravamessa viagem como o feito mais notável de 1862.

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Nenhuma outra obra literária refletiucom tanta fidelidade a história desua época como a coletânea dos ro-

mances de Júlio Verne, conhecida como Viagensextraordinárias.

Nascido em Nantes, na França, a 8 de fevereirode 1828, filho de Pedro Verne, cuja família orgulha-va-se de sua tradição na advocacia, e de Sofia Alotte,proveniente de rica família de armadores, JúlioVerne mostrava uma forte inclinação para a literatu-ra desde sua infância.

Talvez devido à sua formação familiar, Vernetenha se inclinado para um novo gênero literário: aficção-científica, resultado da união de seus conheci-mentos sobre a vida dos homens do mar, daquelaépoca, cheia de aventuras, e sua formação escolar,na faculdade de direito, que o ensinara a raciocinarlogicamente, e a aceitar somente os fatos como ver-dadeiros.

Júlio Verne, entretanto, viveu durante uma épocaprivilegiada. O homem do século XIX conjugava har-moniosamente a ciência e a tecnologia. Uma mesmageração assistiu ao descobrimento da eletricidade, doautomóvel, do avião, do rádio, do submarino, dostecidos sintéticos, do cinema...

Verne assistiu a todos estes acontecimentos eantecipou-se a muitos deles. Maravilhava-se, assimcomo seus contemporâneos, com a velocidade que

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O Autor

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o progresso adquiria. Tudo isto o levou a uma idéia,em que trabalhou com afinco desde seus 24 anos atésua morte em 24 de março de 1905: escrever a nove-la da ciência, estabelecendo uma ponte entre a ciên-cia e a literatura. Para tanto, contava apenas comuma ferramenta: sua imaginação fértil, cujo ponto departida era o estudo, a observação e a curiosidade.

Nem mesmo seu casamento com Honorina Hebè,o nascimento de seu filho Michel, ou suas ocasionaisrusgas com seu pai, o desviaram de seu propósito.

Seu profundo respeito para com a ciência nunca odeixou afastar-se do racionalismo ou realismo. E,mesmo em obras mais fantásticas, como Viagem ao cen-tro da Terra, Da Terra à Lua e outras, sua finalidade erausar a fantasia para ilustrar os conhecimentos de suaépoca em astronomia, matemática, física, paleontologia,mineralogia etc.

Em suma, sua vida resumiu-se a retratar suaépoca, por isso Verne está profundamente imerso emseu tempo e expressa aspectos importantíssimosdesse período. Seus personagens, em sua maioria,não são senão veículos de uma idéia ou agentes deuma empresa, quando não meros símbolos.

A coragem, a tenacidade, a lealdade, a nobreza desentimentos não isenta de uma certa ingenuidade, taiscomo as principais características, em ocasiões umtanto estereotipadas, do herói verniano, que não sedefine tanto por si mesmo como pelo que faz.

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18531853 Publica Colin-Maillard.

18551855 Publica Les Compagnons de La Marjolaine.

18601860 Publica L'Auberge des Ardennes.

18631863 Cinco semanas em um balão, novela que havia sido publicada emcapítulos pelo periódico Magazin d' Éducation et de Récréation,é publicado em volume único.

18641864 Publica Viagem ao centro da Terra.

18651865 Publica Da Terra à Lua.

18681868 Publica Os filhos do Capitão Grant.

18701870 Publica Vinte mil léguas submarinas, Capitão Hatteras e Viagemao redor da Lua.

18731873 Publica A volta ao mundo em oitenta dias.

18741874 Publica A ilha misteriosa e, junto a Dennery, monta a peça adap-tada do romance homólogo A volta ao mundo em oitenta dias.

18751875 Publica O Chanceler, diário do passageiro J.R. Kazallon.

18761876 Publica Miguel Strogoff.

18781878 Publica Um Capitão de quinze anos, e adapta, para o teatro, oromance Os filhos do Capitão Grant.

18791879 Publica Tribulações de um chinês na China.

18821882 Estréia a comédia, em três atos, Voyage à travers l' impossible.

18831883 Estréia a peça: Kéraban le Tètu.

18871887 Estréia Mathias Sandorf, peça em cinco atos adaptada do roman-ce homólogo.

18881888 Publica Dois anos de vocações.

18961896 Publica As viagens do Capitão Cook.

18981898 Publica Le Superbe Orénoque.

18991899 Publica Le Testament d'un Excentrique.

19001900 Publica Seconde Patrie.

19011901 Publica Le Village Aérien.

19021902 Publica Les Frères Kip.

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As Datas

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01. O que pretendia fazer Samuel Fergusson?

02. Quem era Ricardo Kennedy e o que queria?

03. Quais expedições, anteriores à de Fergusson, fracassaram ao tentardescobrir as nascentes do Nilo?

04. Quem era Joe?

05. Como não se podia dirigir um balão, como Fergusson pretendiaresolver o problema de subida e descida, pois para o balão subir énecessário perder lastro e, para descer, soltar gás?

06. Iniciada a viagem, o que descobriram em 23 de abril?

07. Dentre as várias aventuras, uma noite foram despertados pelo barul-ho de selvagens que fugiram assim que Joe e Kennedy abriram fogocontra eles. Depois de ouvirem um grito de socorro, o que viram?

08. Onde o sacerdote foi enterrado e qual a ironia em relação à suavida?

09. Joe quis levar alguns blocos de ouro, mas Fergusson advertiu-o deque, se fosse obrigado, os jogaria fora. Quando surgiu essa situação?

10. Quando abutres rasgaram o tafetá do balão, o que ocorreu, já quenão havia mais lastro para jogar fora?

11. Quando o Vitória pousou numa praia deserta, Fergusson e Kennedyarrancaram a parte externa do Vitória, fizeram surgir o balão inter-no e subiram para procurar Joe. O que havia acontecido com ele?

12. Como Kennedy e Fergusson conseguiram resgatar Joe?

13. Como no segundo balão o desperdício de gás era maior, eles pas-saram por vários apuros. Um dos maiores foi transpor montanhas.Como conseguiram?

14. Como os talibas tentaram atingir o balão?

15. Qual a idéia de Fergusson para que o balão voltasse a subir?

16. O Vitória desceu rapidamente e a parte de cima da rede prendeu-se no galho de um baobá. Como Fergusson conseguiu que o balãovoltasse a inchar?

17. Quem testemunhou a chegada do Vitória às cataratas de Gouina?

18. Onde se encontra arquivado o relatório dessa chegada?

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Roteiro de Leitura

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O grupo de Samuel Fergusson partiu da ilha de Zanzibar, ao lado de Dar-és-Salaam. Atravessando a África Central, o balão chegou ao lagoTchad (também conhecido como Chade) e finalmente ao Senegal.

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