nota tecnica do mpf sobre o projeto de acesso

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  • MINISTRIO PBLICO FEDERAL6 Cmara de Coordenao e RevisoGrupo de Trabalho Conhecimentos Tradicionais

    NOTA TCNICAObjeto: PL n 7.735/2014

    1. O objeto da nota tcnica

    A presente nota tcnica ora produzida pelo Grupo de Trabalho (GT) Conhecimentos Tradicionais da 6 Cmara de Coordenao e Reviso do Ministrio Pblico Federal, tendo por objeto o projeto de lei (PL) n 7.735/2014, que tramita no Congresso Nacional em regime de urgncia e traz um novo regramento sobre o acesso ao patrimnio gentico e aos conhecimentos tradicionais a ele associados, disciplinando, entre outras coisas, a repartio dos benefcios derivados desse acesso, a concretizao da responsabilidade civil e administrativa decorrente desses acessos, a criao de um Fundo Nacional de Repartio de Benefcios, o funcionamento do Conselho de Gesto do Patrimnio Gentico (CGEN), a remessa de amostra do patrimnio gentico para o exterior, o depsito de amostras do patrimnio gentico e a criao de um banco de dados com componentes do patrimnio gentico e informaes sobre conhecimentos tradicionais.

    O projeto de lei em questo tem por objeto substituir, em grande parte, as normas hoje vigentes sobre o tema, as quais se encontram plasmadas na MP n 2.186-16/2001. Nesse sentido, o PL n 7.735/2014 tem a finalidade de alterar as normas legais que regulamentam a Conveno da Diversidade Biolgica, de 1992, j devidamente ratificada pelo Brasil, bem como o Protocolo de Nagoya, ainda no ratificado pelo Brasil.

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    Colacionamos aqui os principais pontos apresentados Presidente da Repblica pelos Ministros do Ministrio do Meio Ambiente, do Ministrio do Desenvolvimento, Indstria e Comrcio Exterior e do Ministrio da Cincia, Tecnologia e Informao como justificativas para a formulao do novo marco legal:

    2. De inicio cumpre observar que a Conveno sobre Diversidade Biolgica - CDB foi ratificada pelo Congresso Nacional, em 1994, e promulgada pelo Executivo, por meio do Decreto no 2.519, de 16 de maro de 1998. O texto estabelece a soberania dos pases sobre seus recursos genticos e sua autonomia para regular o acesso a tais recursos, mediante autorizao prvia da autoridade nacional competente. Estabelece ainda, que os pases receptores e usurios de recursos genticos de terceiros assegurariam a repartio justa e equitativa dos benefcios decorrentes de sua utilizao econmica.

    3. Preocupado com as repercusses negativas decorrentes do fornecimento de microrganismos brasileiros para outros pases, sem a respectiva previso de transferncia de tecnologia e repartio dos benefcios resultante do uso desses recursos, o Governo Brasileiro editou, em 29 de junho de 2000, a Medida Provisria no 2.052. A norma supracitada sofreu sucessivas reedies at a supervenincia da Emenda Constitucional no 32, de 2001, que veio a disciplinar o uso de Medidas Provisrias, dispensando de reedio as publicadas anteriormente a ela e fazendo com que estas perdessem o carter provisrio, at que fossem apreciadas definitivamente pelo Congresso Nacional. Por essa razo, a Medida Provisria no 2.186-16, de 2001, constitui-se, hoje, no marco legal que rege o acesso e a remessa de componentes do patrimnio gentico nacional, o conhecimento tradicional associado e a repartio justa e equitativa dos benefcios decorrentes da utilizao comercial dos recursos genticos.

    ()11. Contudo, a experincia de doze anos dessa legislao evidencia que ela deve

    ser revista e ajustada. A legislao tem se mostrado pouco efetiva em funo de um conjunto de restries sobre o acesso, que, por sua vez, vem resultando em um regime insatisfatrio para a repartio de benefcios decorrente do uso desse patrimnio ambiental e social.

    12. As restries mais graves so aquelas que dificultam a realizao do acesso a patrimnio gentico ou conhecimento tradicional associado para pesquisa ou desenvolvimento tecnolgico, que a etapa mais sensvel a entraves procedimentais. H uma extensa lista de requisitos que precisam ser atendidos e documentos a serem apresentados, independentemente do resultado que aquele acesso possa ter. Uma exigncia especialmente ilustrativa. Para realizar um acesso com o intuito de bioprospeco, isto , com o intuito de explorar economicamente o resultado do acesso, a Medida Provisria n 2.186-16, no 4 do art. 16, prev que o acesso ser autorizado pelo Conselho de Gesto do Patrimnio Gentico apenas aps a assinatura do Contrato de Repartio de Benefcios. Ou seja, o usurio obrigado a celebrar um contrato que carece de concretude, tendo em vista a falta de informaes sobre os produtos explorados e valores envolvidos.

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    14. Ademais, h gargalos tambm para a concesso de propriedade intelectual. So numerosas as instituies de pesquisa em cincia e tecnologia no pas que desenvolveram produtos e processos a partir do acesso ao patrimnio gentico ou ao conhecimento tradicional associado que se encontram impedidas de realizar o depsito do pedido de patente no Instituto Nacional de Propriedade Industrial-INPI, pelo fato de no possurem a autorizao de acesso emitida pelo Conselho de Gesto do Patrimnio Gentico.

    15. A incerteza jurdica e o custo regulatrio trazem riscos financeiros e reputacionais a pesquisadores e agentes econmicos. Por conta desses riscos e custos, os atores evitam incorporar produtos da biodiversidade brasileira em suas linhas de pesquisa e em suas atividades produtivas. Consequentemente, extratos e substncias da biodiversidade brasileira so comumente substitudas por substncias sintticas ou oriundas de espcies exticas, de forma a contornar o nus da necessidade de autorizao por parte do Conselho de Gesto do Patrimnio Gentico.

    16. Alm dos diagnsticos apresentados pelos setores cientfico, empresarial, comunitrios e rgos de governo sobre a desatualizao conceitual, jurdica, econmica e regulatria, as estatsticas sobre acesso e repartio de benefcios disponveis atestam que o sistema no atende adequadamente a demanda conhecida e potencial para o uso da sociobiodiversidade no Brasil.

    17. Nesse sentido, consideramos que premente alcanar um marco legal que assegure o efetivo cumprimento dos compromissos relativos pesquisa cientfica, ao desenvolvimento tecnolgico e repartio de benefcios. A facilitao da pesquisa para academia, indstria e demais setores fundamental. Ela permite o maior desenvolvimento cientfico e tecnolgico a partir de insumos nacionais, a gerao de negcios com base na sociobiodiversidade nacional e, posteriormente, a efetiva repartio de benefcios. Esses elementos contribuiro sobremaneira para alavancar ainda mais o modelo brasileiro de desenvolvimento sustentvel.

    18. Vale lembrar ainda que, a fim de resguardar o interesse pblico e respeitar os tratados internacionais dos quais o Brasil signatrio, incluindo o Protocolo de Nagoya, recentemente aprovado na 10 Conferncia das Partes da Conveno sobre Diversidade Biolgica, o Pas precisa estar preparado para responder a esses novos compromissos que esto sendo assumidos em mbito internacional, com vistas a garantir a efetiva repartio de benefcios provenientes do uso do patrimnio gentico brasileiro e dos conhecimentos tradicionais associados.

    19. Diante disso, e em face da relevncia, da importncia e, sobretudo, da urgncia da questo que ora se apresenta, foi elaborada uma nova proposta legislativa com base nos doze anos de experincia com a aplicao da Medida Provisria n 2.186-16, de 2001, incluindo ajustes que, no entendimento destes Ministrios, permitiro um melhor fluxo e gesto das atividades de acesso encaminhadas ao Conselho de Gesto do Patrimnio Gentico, bem como possibilitaro imprimir maior eficincia na repartio dos benefcios derivados do uso sustentvel da diversidade biolgica.

    As normas que so objeto do PL n 7.735/2014, de forma bastante evidente, afetam negativamente diversos direitos e interesses de povos indgenas e comunidades tradicionais do Brasil, conforme explicaremos a seguir.

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    2. A afetao de direitos e interesses jurdicos relevantes dos povos e comunidades tradicionais

    Para se constatar que o projeto de lei ora em exame atinge direitos humanos fundamentais de pessoas integrantes de povos indgenas e comunidades tradicionais, faz-se necessrio observar que o acesso a conhecimentos tradicionais associados ao patrimnio gentico elemento integrante do direito (direito de propriedade em sentido amplo) que tais povos e comunidades tm sobre a biodiversidade que conservam e sobre o patrimnio cultural e coletivo que desenvolveram por meio de seus relacionamentos com tal biodiversidade. Outrossim, o acesso aos conhecimentos dos povos indgenas e tradicionais, sem a concordncia adequada desses povos, viola, em tese, seus direitos humanos fundamentais autodeterminao. Alis, no somente o acesso indevido aos conhecimentos prprios desses povos viola tal direito autodeterminao, mas tambm o acesso indiscriminado a seu patrimnio biolgico (gnero este que abrange o patrimnio gentico).

    De acordo com o art. 1 do Pacto Internacional de Direitos Econmicos, Sociais e Econmicos (Decreto 591/92) e o art. 1 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Polticos (Decreto 592/92), todos os povos tm direito autodeterminao, sendo-lhes garantidos dispor livremente de suas riquezas e de seus recursos naturais. Nessa noo de povos, deve-se incluir necessariamente os povos tradicionais e indgenas, sendo-lhes tambm reconhecido o direito humano autodeterminao. E entre as riquezas deve-se compreender os conhecimentos tradicionais dos povos tradicionais, assim como entre os recursos naturais deve-se inserir o patrimnio biolgico da rea possuda pela comunidade.

    Esse direito autodeterminao dos povos indgenas est tambm expresso no artigo 3 da Declarao das Naes Unidas sobre os Direitos dos Povos Indgenas1. Transcrevemo-lo:

    Artigo 3 . Os povos indgenas tm direito autodeterminao. Em virtude desse direito

    1 A Declarao das Naes Unidas sobre os Direitos dos Povos Indgenas, tal qual a Declarao Universal dos Direitos Humanos, ainda que no tenha o status jurdico formal de tratado internacional, contm normas que so parte do direito internacional costumeiro de direitos humanos, que integra, em seu ncleo, o prprio conjunto do ius cogens internacional.

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    determinam livremente sua condio poltica e buscam livremente seu desenvolvimento econmico, social e cultural.

    O direito autodeterminao dos povos est intimamente relacionado ao direito que tais povos tm sobre seus patrimnios materiais e imateriais. Os povos tm direito a gozar com autonomia de seus patrimnios (territoriais, culturais, intelectuais, morais, econmicos etc.), sem serem violados por atos do Estado ou mesmo de agentes privados.

    Nesse mesmo sentido, deve ser conferida uma leitura ampliada aos artigos 13 e 14 da Conveno 169 da Organizao Internacional do Trabalho (Decreto 5.051/2004), que tratam de direitos humanos dos povos tradicionais. Assim, reconhecendo a especial relao da comunidade tradicional com seu entorno e sua terra, deve ser compreendido como estando includo em seu direito de propriedade e posse, tal como previsto na Conveno, o direito coletivo ao resguardo do patrimnio biolgico relativo a suas terras e o direito coletivo exclusividade no gozo cultural, moral e econmico de seus conhecimentos tradicionais.

    A Conveno 169 da OIT tem preceito que oferece suporte a nossa leitura sobre os direitos humanos dos povos tradicionais. seu artigo 15:

    Artigo 15 . Os direitos dos povos interessados aos recursos naturais existentes nas suas terras devero ser especialmente protegidos. Esses direitos abrangem o direito desses povos a participarem da utilizao, administrao e conservao dos recursos mencionados.

    Solidificando tal norma convencional, a Declarao das Naes Unidas sobre os Direitos dos Povos Indgenas estabelece expressamente como direito humano de tais comunidades a exclusividade na explorao de seu patrimnio biolgico e seus conhecimentos tradicionais. Vejamos:

    Artigo 31 .

    1. Os povos indgenas tm o direito de manter, controlar, proteger e desenvolver seu patrimnio cultural, seus conhecimentos tradicionais, suas expresses culturais tradicionais e as manifestaes de suas cincias, tecnologias e culturas, compreendidos os recursos humanos e genticos, as sementes, os medicamentos, o conhecimento das propriedades da fauna e da flora, as tradies orais, as literaturas, os desenhos, os esportes e jogos tradicionais e as artes visuais e interpretativas. Tambm tm o direito de manter, controlar, proteger e desenvolver sua propriedade intelectual sobre o mencionado

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    patrimnio cultural, seus conhecimentos tradicionais e suas expresses culturais tradicionais.

    2. Em conjunto com os povos indgenas, os Estados adotaro medidas eficazes para reconhecer e proteger o exerccio desses direitos.

    Nessa linha lgica, deve-se tambm desenvolver uma nova interpretao, evolutiva, ao direito de propriedade previsto na Conveno Americana de Direitos Humanos, o Pacto de San Jos (Decreto 678/92), em seu artigo 21. Assim, quando estabelece a conveno que toda pessoa tem direito ao uso e gozo dos seus bens, deve-se entender que tambm os povos tradicionais tm o direito humano de gozar com plenitude seu direito coletivo terra, ao patrimnio biolgico vinculado a sua terra e aos conhecimentos tradicionais respectivos.

    Relevante ainda salientar que a Conveno sobre a Diversidade Biolgica, em seu artigo 8.j, prev a obrigao dos Estados signatrios de respeitar, preservar e manter o conhecimento, inovaes e prticas das comunidades locais e populaes indgenas com estilo de vida tradicionais relevantes conservao e utilizao sustentvel da diversidade biolgica e incentivar sua mais ampla aplicao com a aprovao e a participao dos detentores desse conhecimento, inovaes e prticas; e encorajar a repartio equitativa dos benefcios oriundos da utilizao desse conhecimento, inovaes e prticas. (grifos acrescidos)

    Note-se que o PL n 7.735/2014, ao tratar do tema do acesso ao patrimnio gentico e aos conhecimentos tradicionais, trata do cerne de direitos humanos fundamentais dos povos e comunidades indgenas e tradicionais. Dessa constatao derivam duas concluses: (i) o projeto legislativo no pode violar ou restringir o ncleo fundamental dos direitos humanos fundamentais dos povos indgenas e tradicionais; (ii) qualquer norma relativa ao trato desses direitos somente pode ser elaborada, de forma legtima e vlida, se for produzida com o respeito ao direito consulta prvia e adequada dos mesmos povos indgenas e tradicionais.

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    3. A violao do direito de consulta prvia e adequada dos povos indgenas e comunidades tradicionais

    A despeito de a matria versada no PL n 7.735/2014 envolver diretamente os direitos dos povos e comunidades tradicionais, verifica-se que, at o presente momento, no foi viabilizada e instrumentalizada, por meio de consulta prvia e adequada, a participao dessas comunidades tradicionais no processo de elaborao desse novo marco jurdico nacional.

    A participao dos povos indgenas e tradicionais na elaborao do novo marco normativo que envolve regras sobre o gozo de seus direitos decorre no somente do fato de serem eles os povos indgenas e tradicionais os titulares dos direitos a serem afetados pela norma legal, mas tambm do direito consulta prvia e adequada que garantida pela Conveno n 169 da Organizao Internacional do Trabalho (OIT).

    A Conveno n 169/1989 da OIT prev, em seu artigo 6, que os Estados devero: (i) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, atravs de suas instituies representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetveis de afet-los diretamente; (ii) estabelecer os meios por meio dos quais os povos interessados possam participar livremente, pelo menos na mesma medida que outros setores da populao e em todos os nveis, na adoo de decises em instituies efetivas ou organismos administrativos e de outra natureza responsveis pelas polticas e programas que lhes sejam concernentes.

    Ou seja, a aplicao do direito consulta prvia e adequada se d quando houver medidas administravas ou legislativas que interfiram diretamente nos interesses de determinada comunidade tradicional, devendo o Estado criar meios pelos quais esses povos possam participar livremente no apenas da fase de execuo de um projeto, mas necessariamente deve participar dos estudos e planejamento, e depois da execuo, se for o caso, da avaliao final. Essa participao em todas as fases do processo se faz necessria para tornar possvel avaliar os impactos social, espiritual, cultural e ambiental da implementao das atividades planejadas, sendo que o resultado dessa anlise deve ser considerado critrio fundamental para a aprovao

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    ou no da medida.

    No caso em exame, considerando que o PL n 7.735/2014 versa sobre normas de acesso ao patrimnio gentico e a conhecimentos tradicionais, no restam dvidas de que o direito de consulta prvia e adequada deve ser garantido aos povos e comunidades indgenas e tradicionais. Impende destacar que o conhecimento tradicional sobre a origem gentica contida em espcime vegetal, fngico, microbiano ou animal, na forma de molculas e substncias provenientes do metabolismo desses seres vivos (ou de seus extratos), foi construdo ao longo dos anos no mbito das comunidades tradicionais e dos povos indgenas. Desse desenvolvimento de conhecimentos tradicionais decorreram direitos que so garantidos na Conveno da Diversidade Biolgica e nas normas internacionais de direitos humanos que antes mencionamos. Logo, evidente que tais direitos no podem ser negociados livremente pelo Estado brasileiro, ou sequer discutidos, sem a presena e a participao efetiva dos povos indgenas e tradicionais, que tm o direito de serem ouvidos e respeitados, por meio de um processo adequado de consulta prvia. Tal direito de participao, contudo, est sendo violado, na medida em que o processo legislativo que tem por objeto o PL n 7.735/2014 est tramitando sem que seja franqueado aos detentores desses saberes tradicionais o direito de consulta prvia e adequada, para que possam efetivamente tutelar seus prprios direitos e interesses legtimos.

    Registre-se, por oportuno, que um dos principais problemas enfrentados pelos povos e comunidades tradicionais reside no fato de que o Poder Pblico, reiteradamente, vem negligenciando o direito, garantido pela legislao internacional e incorporado pela ordem jurdica interna, de os povos tradicionais assumirem o protagonismo, por meio de consulta prvia e adequada, dos assuntos que so de seu interesse e que lhes afetam diretamente. No caso sob exame desta nota tcnica, porm, a ofensa ainda mais grave e intensa, j que se quer, com um s ato normativo, limitar direitos de povos indgenas e tradicionais sem a participao destes. Desta violao podero surgir diversas outras, decorrentes da futura aplicao de futura lei possivelmente invlida e ilegtima.

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    4. Pontos sensveis do PL n 7.735/2014

    No que diz respeito s normas potencialmente contidas no projeto de lei aqui examinado, devemos observar que h diversas regras que, aparentemente, violam direitos e interesses dos povos indgenas e tradicionais e que, portanto, merecem receber a ateno devida. Apresentaremos, a seguir, alguns desses pontos sensveis do PL n 7.735/2014.

    4.1. A repartio de benefcios

    O texto do PL n 7.735/2014 apresenta diversas opes de repartio de benefcios de ordem monetria e no-monetria. As normas sobre repartio de benefcios esto estabelecidas nos artigos 18 a 25 do mencionado projeto. Vejamo-los:

    Art. 18. Os benefcios resultantes da explorao econmica de produto acabado oriundo de acesso ao patrimnio gentico ou ao conhecimento tradicional associado, ainda que produzido fora do Pas, no qual o componente do patrimnio gentico ou do conhecimento tradicional associado seja um dos elementos principais de agregao de valor ao produto, sero repartidos, de forma justa e equitativa, em conformidade ao que estabelece esta Lei.

    1 Estar sujeito repartio de benefcios exclusivamente o fabricante do produto acabado, independentemente de quem tenha realizado o acesso anteriormente.

    2 Os fabricantes de produtos intermedirios e desenvolvedores de processos oriundos de acesso ao patrimnio gentico ou ao conhecimento tradicional associado ao longo da cadeia produtiva estaro isentos da obrigao de repartio de benefcios.

    3 Quando um nico produto acabado for o resultado de acessos distintos, estes no sero considerados cumulativamente para o clculo da repartio de benefcios.

    4 As operaes de licenciamento, transferncia ou permisso de utilizao de qualquer forma de patente sobre produto acabado ou processo oriundo do acesso ao patrimnio gentico ou conhecimento tradicional associado por terceiros so caracterizadas como explorao econmica isenta da obrigao de repartio de benefcios.

    5 As microempresas, as empresas de pequeno porte e os microempreendedores individuais, conforme disposto na Lei Complementar n 123, de 14 de dezembro de 2006, estaro isentos da obrigao de repartio de benefcios, nos termos do regulamento.

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    6 Caso o produto acabado no tenha sido produzido no Brasil, o importador, subsidiria, controlada, coligada, vinculada ou representante comercial do produtor estrangeiro em territrio nacional ou em territrio de pases com os quais o Brasil mantiver acordo com este fim responde solidariamente com o fabricante do produto acabado pela repartio de benefcios.

    7 A subsidiria, coligada, controlada, vinculada ou representante comercial a que se refere o 6 estar sujeita repartio de benefcios ainda que no explore economicamente o produto final acabado oriundo de acesso ao patrimnio gentico ou conhecimento tradicional associado em territrio nacional.

    8 Na ausncia de acesso a informaes essenciais determinao da base de clculo de repartio de benefcios em tempo adequado, nos casos a que se referem os 6 e 7, a autoridade administrativa arbitrar o percentual devido com base na melhor informao disponvel.

    9 A repartio de benefcios referente aos produtos acabados ocorrer exclusivamente sobre os produtos previstos na Lista de Classificao de Repartio de Benefcios, definida em ato conjunto pelo Ministrio do Meio Ambiente, Ministrio do Desenvolvimento, Indstria e Comrcio Exterior e Ministrio da Cincia, Tecnologia e Inovao, com base na Nomenclatura Comum do Mercosul - NCM, conforme regulamento.

    Art. 19. A repartio de benefcios decorrente da explorao econmica de produto acabado oriundo de acesso ao patrimnio gentico ou conhecimento tradicional associado poder constituir-se nas seguintes modalidades, a critrio do usurio, conforme regulamento:

    I - monetria; ou

    II - no monetria, incluindo, entre outras:

    a) projetos para conservao ou uso sustentvel de biodiversidade ou para proteo e manuteno de conhecimentos, inovaes ou prticas de povos indgenas ou comunidades tradicionais, preferencialmente no local de ocorrncia da espcie em condio in situ ou de obteno da amostra quando no se puder especificar o local original;

    b) transferncia de tecnologias;

    c) disponibilizao em domnio pblico de produto ou processo, sem proteo por direito de propriedade intelectual ou restrio tecnolgica;

    d) licenciamento, de produtos e processos, livre de nus;

    e) capacitao de recursos humanos; e

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    f) distribuio gratuita de produtos em programas de interesse social.

    Art. 20. Quando a modalidade escolhida for a repartio de benefcios monetria decorrente da explorao econmica de produto acabado oriundo de acesso ao patrimnio gentico, ser devida uma parcela de um por cento da receita lquida anual obtida com a explorao econmica, ressalvada a hiptese do art. 21.

    Art. 21. Com o fim de garantir a competitividade do setor contemplado, a Unio, por meio dos Ministrio do Meio Ambiente, Ministrio do Desenvolvimento, Indstria e Comrcio Exterior e Ministrio da Cincia, Tecnologia e Inovao, poder celebrar acordo setorial que permita reduzir o valor da repartio de benefcios monetria para at um dcimo por cento da receita lquida anual obtida com a explorao econmica do produto acabado oriundo de acesso a patrimnio gentico.

    Pargrafo nico. Para subsidiar a celebrao de acordo setorial, os rgos oficiais de defesa dos direitos de povos indgenas e comunidades tradicionais podero ser ouvidos, nos termos do regulamento.

    Art. 22. Nas modalidades de repartio de benefcios no monetrias correspondentes s alneas a, e e f do inciso II do caput do art. 19, a repartio de benefcios dever ser equivalente a, no mnimo, setenta e cinco por cento do previsto para a modalidade monetria, conforme os critrios definidos pelo CGen.

    Pargrafo nico. O CGen poder delimitar critrios ou parmetros de resultado ou efetividade que os usurios devero atender, em substituio ao parmetro de custo previsto no caput para a repartio de benefcios no monetria.

    Art. 23. A repartio de benefcios no monetria correspondente ao acesso e transferncia de tecnologia poder realizar-se, dentre outras, mediante:

    I - participao na pesquisa e desenvolvimento tecnolgico;

    II - intercmbio de informaes;

    III - intercmbio de recursos humanos, materiais ou germoplasma entre instituio nacional de pesquisa e instituio de pesquisa sediada no exterior;

    IV - consolidao de infraestrutura de pesquisa e de desenvolvimento tecnolgico; e

    V - estabelecimento de empreendimento conjunto de base tecnolgica.

    Pargrafo nico. Ato conjunto dos Ministros de Estado dos Ministrios afetos s respectivas atividades econmicas ou cadeias produtivas disciplinar a forma de repartio de benefcios de que trata o caput.

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    Art. 24. Quando o produto acabado for oriundo de acesso ao conhecimento tradicional associado de origem no identificvel, a repartio decorrente do uso desse conhecimento dever ser feita na modalidade prevista no inciso I do caput do art. 19 e em montante correspondente ao estabelecido nos arts. 20 e 21 desta Lei.

    Art. 25. Quando o produto acabado for oriundo de acesso ao conhecimento tradicional associado que seja de origem identificvel, o provedor de conhecimento tradicional associado ter direito de receber benefcios mediante Acordo de Repartio de Benefcios.

    1 A repartio entre usurio e provedor ser negociada de forma justa e equitativa entre as partes, atendendo a parmetros de clareza, lealdade e transparncia nas clusulas pactuadas, que devero indicar condies, obrigaes, tipos e durao dos benefcios de curto, mdio e longo prazo.

    2 A repartio com os demais detentores do mesmo conhecimento tradicional associado se dar na modalidade monetria, realizada por meio do Fundo Nacional de Repartio de Benefcios.

    3 A parcela devida pelo usurio para a repartio de benefcios prevista no 2, a ser depositada no Fundo Nacional de Repartio de Benefcios, corresponder a metade daquela prevista no art. 20 desta Lei ou definida em acordo setorial.

    4 A repartio de benefcios de que trata o 3 independe da quantidade de demais detentores do conhecimento tradicional associado acessado.

    5 Em qualquer caso, presume-se, de modo absoluto, a existncia de demais detentores do mesmo conhecimento tradicional associado.

    Observamos, no texto do prprio projeto, uma contradio lgico-semntica. No artigo 18 do projeto, est dito que os benefcios resultantes da explorao econmica de produto acabado oriundo de acesso ao patrimnio gentico ou ao conhecimento tradicional associado sero repartidos de forma justa e equitativa. Por outro lado, no artigo 20, est estabelecido que, quando for escolhida a repartio de benefcios monetria decorrente da explorao econmica de produto acabado oriundo de acesso ao patrimnio gentico, ser devida uma parcela de um por cento da receita lquida anual obtida com a explorao econmica. Ou seja, considerou-se que o percentual de 1% da receita lquida obtida com a explorao do produto final seria considerado o suficiente para que a repartio de benefcios seja considerada justa e equitativa, o que claramente um absurdo. Para esse percentual extremamente mdico no se apresenta qualquer explicao lgica ou econmica.

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    Aparentemente, trata-se de um percentual escolhido por presso das indstrias e empresas que normalmente acessam o patrimnio gentico brasileiro (bem como os conhecimentos tradicionais dos povos indgenas e comunidades tradicionais do Brasil), grupos econmicos estes que no tm o interesse econmico de aumentar seu custo de produo com o pagamento de royalties devidos pelo acesso ao patrimnio gentico.

    Considerando que o acesso a conhecimentos tradicionais d-se, em geral, de forma conjugada com o acesso ao patrimnio gentico, teme-se que os percentuais estabelecidos nos artigos 21 a 23 do projeto de lei tambm sejam aplicados (formal ou informalmente) aos contratos de utilizao de conhecimentos tradicionais. Caso isso ocorra, sero violados direitos que so prprios dos povos e comunidades tradicionais, os quais devem gozar de autonomia para a definio das condies de acesso a seus prprios conhecimentos. De fato, no compete ao Estado-legislador definir ou mesmo induzir qual seja o percentual da repartio de benefcios com as comunidades tradicionais. Esse percentual deve ser negociado com as prprias comunidades. No mximo, o que poderia o Estado-legislador definir, considerando a vulnerabilidade ftica das comunidades tradicionais do Brasil, seria um percentual mnimo para a repartio de benefcios. Jamais poder o Estado tolher da prpria comunidade o direito de negociar percentuais maiores dos que esto definidos no projeto de lei.

    Outrossim, relevante observar que, ao prever as modalidades de repartio de benefcios (monetrias e no-monetrias) o art. 19 do projeto de lei, em sua literalidade, deixa a critrio exclusivo do usurio a opo entre as duas modalidades previstas, em clara violao aos termos da Conveno da Diversidade Biolgica, que prev que o acesso a recursos genticos e conhecimentos tradicionais associados depende de termos mutuamente acordados entre os respectivos provedores e os usurios.

    De forma ainda mais injustificada, o artigo 21 do projeto sob exame estabelece que a Unio, por meio dos Ministrio do Meio Ambiente, Ministrio do Desenvolvimento, Indstria e Comrcio Exterior e Ministrio da Cincia, Tecnologia e Inovao, poder celebrar acordo setorial que permita reduzir o valor da repartio de benefcios monetria para at um dcimo por cento da receita lquida anual obtida com a explorao econmica do produto

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    acabado oriundo de acesso a patrimnio gentico. Ou seja, aparentemente, o projeto de lei pretende facultar aos rgos do Governo Federal o poder de ceder presso das empresas que acessam patrimnio gentico (e, possivelmente, tambm conhecimentos tradicionais, ainda que de forma indireta) e assim reduzir a mdica repartio monetria de 1% para o percentual de 0,1% da receita lquida obtida com o produto final. Tal norma encontra-se incompatvel com os legtimos interesses dos povos indgenas e comunidades tradicionais.

    Na mesma linha de desconsiderao dos direitos dos povos indgenas e comunidades tradicionais, o PL n 7.735/2014, em seu art. 18, 5, simplesmente isenta as micro e pequenas empresas do dever de repartir benefcios com os povos indgenas e comunidades tradicionais titulares dos conhecimentos tradicionais. Ou seja, mais uma vez, o projeto em comento desconsidera os direitos dos povos que so titulares dos conhecimentos tradicionais. Somente a eles, titulares dos direitos acessados, competiria isentar qualquer pessoa fsica ou jurdica do dever de repartir benefcios econmicos; nunca o Estado-legislador.

    Apenas para que se estabelea parmetros comparativos, a disposio legal proposta (art. 18, 5) no encontra paralelo no sistema clssico de proteo da propriedade intelectual, sob a forma de patentes e marcas. Ora, no sistema da Lei n 9.279/96, que regula direitos e obrigaes relativos propriedade industrial, o titular da patente tem direito de impedir que terceiro, sem o seu consentimento, produza, use, coloque venda, venda ou importe o produto patenteado, independente da condio desse terceiro2. Ora, se o sistema de patentes, que 2 Art. 42. A patente confere ao seu titular o direito de impedir terceiro, sem o seu consentimento, de produzir, usar, colocar venda, vender ou importar com estes propsitos:I - produto objeto de patente;II - processo ou produto obtido diretamente por processo patenteado. 1 Ao titular da patente assegurado ainda o direito de impedir que terceiros contribuam para que outros pratiquem os atos referidos neste artigo. 2 Ocorrer violao de direito da patente de processo, a que se refere o inciso II, quando o possuidor ou proprietrio no comprovar, mediante determinao judicial especfica, que o seu produto foi obtido por processo de fabricao diverso daquele protegido pela patente.Art. 43. O disposto no artigo anterior no se aplica:I - aos atos praticados por terceiros no autorizados, em carter privado e sem finalidade comercial, desde que no acarretem prejuzo ao interesse econmico do titular da patente;II - aos atos praticados por terceiros no autorizados, com finalidade experimental, relacionados a estudos ou pesquisas cientficas ou tecnolgicas;III - preparao de medicamento de acordo com prescrio mdica para casos individuais, executada por profissional habilitado, bem como ao medicamento assim preparado;IV - a produto fabricado de acordo com patente de processo ou de produto que tiver sido colocado no mercado interno diretamente pelo titular da patente ou com seu consentimento;V - a terceiros que, no caso de patentes relacionadas com matria viva, utilizem, sem finalidade econmica, o produto patenteado como fonte inicial de variao ou propagao para obter outros produtos; eVI - a terceiros que, no caso de patentes relacionadas com matria viva, utilizem, ponham em circulao ou comercializem um

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    se destina proteo de direitos incidentes sobre bens destinados ao uso comercial, no isenta as empresas de pequeno porte e os microempreendedores individuais da submisso ao regime legal, com menor razo se aplicaria tal iseno no caso do acesso a conhecimentos tradicionais, detidos por comunidades sujeitas a especial proteo do Estado.

    Igualmente, nos pargrafos 2 e 3 do mesmo art. 18, fica excluda a responsabilidade civil das pessoas fsicas e jurdicas que so intermedirias do processo de acesso a patrimnio gentico e conhecimentos tradicionais. A par de excluir os fabricantes de produtos intermedirios e desenvolvedores de processos oriundos de acesso ao patrimnio gentico ou ao conhecimento tradicional associado ao longo da cadeia produtiva da obrigao de repartir benefcios, o projeto de lei limita a repartio de benefcios, nos casos de mltiplos acessos, a apenas uma destas intervenes.

    Ora, para cada acesso realizado deve corresponder uma repartio de benefcios, mesmo que referente a um s produto. No se olvide a possibilidade de que cada um destes acessos poder resultar na descoberta de funcionalidades distintas ou ter sido realizado por mltiplos sujeitos. Assim, no se vislumbra legtima ratio para tal limitao.

    4.2. A composio do CGEN

    A atual composio do Conselho de Gesto do Patrimnio Gentico (CGen) sempre foi objeto de crticas por parte dos provedores de conhecimento tradicional (bem como por diversos setores da sociedade, inclusive o MPF), tendo em vista a total ausncia de representao destes interessados no referido Conselho, composto apenas por representantes de rgos e de entidades da Administrao Pblica Federal. As comunidades tradicionais do Cerrado, na Carta de Mineiros de 2013 (Declarao sobre os Direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais do Cerrado Brasileiro), defenderam publicamente que a fim de se legitimar enquanto rgo colegiado que deve proteger e garantir os direitos dos povos e comunidades

    produto patenteado que haja sido introduzido licitamente no comrcio pelo detentor da patente ou por detentor de licena, desde que o produto patenteado no seja utilizado para multiplicao ou propagao comercial da matria viva em causa.VII - aos atos praticados por terceiros no autorizados, relacionados inveno protegida por patente, destinados exclusivamente produo de informaes, dados e resultados de testes, visando obteno do registro de comercializao, no Brasil ou em outro pas, para a explorao e comercializao do produto objeto da patente, aps a expirao dos prazos estipulados no art. 40.

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    tradicionais, deve o Estado brasileiro estudar formas de modificao da composio do CGEN, a fim de garantir maior representatividade dos povos e comunidades tradicionais.

    No projeto que ora examinamos, mais especificamente no art. 6, 2, conquanto no se exclua, em tese, a participao dos representantes de comunidades indgenas e tradicionais no CGen, remete-se a questo da composio desse importante conselho para regulamento a ser posteriormente expedido, no considerando, em seu texto, a necessidade de que a participao ativa dos provedores de conhecimentos tradicionais seja garantida, em respeito s normas da Conveno n 169 da OIT.

    4.3. A inexistncia de normas criminais de proteo contra o acesso indevido

    O PL n 7.735/2014, no obstante estabelea regras de responsabilidade civil e administrativa para os casos de acesso indevido a patrimnio gentico e conhecimentos tradicionais, no prev a criminalizao desses graves casos de violao de direitos de povos indgenas e comunidades tradicionais.

    A inexistncia de norma repressora criminal no novo marco legal, alm de gerar impunidade em casos graves de biopirataria, termina por proporcionar uma proteo insuficiente das j vulnerveis comunidades indgenas e tradicionais. Tais comunidades, que j apresentam dificuldades para exercer seus direitos violados em aes civis de responsabilizao pelo acesso indevido a seus conhecimentos tradicionais, ficam, com o novo marco legal, sem a proteo de tipos penais que poderiam coibir prticas ilcitas que hoje atentam contra seus patrimnios jurdicos.

    4.4. A participao dos povos indgenas e comunidades tradicionais nos processos decisrios sobre acesso a conhecimentos tradicionais

    Os arts. 8, 1, e 10, IV, do projeto de novo marco legal preveem que aos povos indgenas e comunidades tradicionais fica assegurada a participao no processo de tomada de deciso sobre os assuntos relacionados ao acesso ao conhecimento tradicional associado e

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    repartio de benefcios dele decorrentes. Tais previses normativas representam um claro retrocesso em relao legislao vigente3, que reconhece aos povos indgenas o direito de decidir sobre o uso de seus conhecimentos tradicionais. Tal direito de deciso abrange, inclusive, o direito de no permitir o acesso aos seus conhecimentos tradicionais, direito este que no est contemplado na proposta legislativa.

    A supresso do direito de negar acesso a conhecimento tradicional atenta contra o patrimnio imaterial das comunidades indgenas e tradicionais, violando, especialmente em relao s primeiras, o disposto no art. 231 da Constituio da Repblica, que reconhece aos ndios sua organizao social, costumes, lnguas, crenas e tradies, e os direitos originrios sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo Unio demarc-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. Tambm so igualmente violadas as diversas normas internacionais de direitos humanos que so mencionadas na presente nota tcnica.

    Permitir-se a eventual utilizao de conhecimentos tradicionais contra a vontade de seus legtimos detentores representa verdadeiro ataque aos bens das referidas comunidades, podendo ainda violar os costumes e a cultura dessas populaes, mormente ante a existncia de conhecimentos cuja difuso para pessoas no pertencentes a certas comunidades vedada segundo os usos e costumes adotados.

    3(Redao da MP 2.186-16: Art. 8o Fica protegido por esta Medida Provisria o conhecimento tradicional das comunidades indgenas e das comunidades locais, associado ao patrimnio gentico, contra a utilizao e explorao ilcita e outras aes lesivas ou no autorizadas pelo Conselho de Gesto de que trata o art. 10, ou por instituio credenciada. 1o O Estado reconhece o direito das comunidades indgenas e das comunidades locais para decidir sobre o uso de seus conhecimentos tradicionais associados ao patrimnio gentico do Pas, nos termos desta Medida Provisria e do seu regulamento.()Art. 9o comunidade indgena e comunidade local que criam, desenvolvem, detm ou conservam conhecimento tradicional associado ao patrimnio gentico, garantido o direito de:(...)II - impedir terceiros no autorizados de:a) utilizar, realizar testes, pesquisas ou explorao, relacionados ao conhecimento tradicional associado;b) divulgar, transmitir ou retransmitir dados ou informaes que integram ou constituem conhecimento tradicional associado;)

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    4.5. A anistia legal

    Os artigos 39 e 40 do projeto aqui examinado concedem anistia para os que acessaram conhecimento tradicional e patrimnio gentico sem autorizao do CGen. Medidas desta natureza, tal como a abrigada no novo Cdigo Florestal, so verdadeiro incentivo a prticas ilegais. Na hiptese em exame, basta que o infrator notifique as autoridades do acesso irregular e faa a repartio de benefcios, para que fique isento de qualquer sano, mesmo reconhecendo a ilegalidade. Ademais, o infrator tem o dilatado prazo de um ano para adequar-se aos termos na nova lei.

    Outrossim, o artigo 41 do mencionado projeto tambm autoriza o Estado brasileiro a regularizar acessos indevidos a patrimnio gentico e conhecimentos tradicionais sem a participao dos titulares dos direitos violados. Deveras, a despeito de abranger tambm os casos de acesso a conhecimento tradicional, o chamado Termo de Compromisso, destinado a regularizar acessos pretritos irregulares, no contar com a participao das comunidades provedoras dos conhecimentos, em clara afronta aos direitos dos detentores desse patrimnio imaterial.

    4.6 A normatizao sobre acesso a patrimnio gentico e conhecimentos tradicionais para a atividade agropecuria

    O artigo 4, II, do projeto de lei aqui analisado exclui de seu objeto de regramento as atividades de acesso a patrimnio gentico ou conhecimento tradicional associado para alimentao e agropecuria. Trata-se, por bvio, de opo poltica destinada a favorecer o setor econmico do agronegcio. Porm, de acordo com que manifestam as comunidades tradicionais e indgenas, necessrio proteger os conhecimentos tradicionais que esto internalizados no prprio patrimnio gentico das chamadas sementes crioulas. Deixando de oferecer proteo legal a esses casos de acesso, est o Estado brasileiro, mas uma vez, negligenciando no respeito aos direitos humanos fundamentais dos povos indgenas e comunidades tradicionais do Brasil.

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    Concluso

    Por todo o exposto, conclui-se que a atual tramitao PL n 7.735/2014 viola frontalmente o direito de consulta prvia e adequada dos povos indgenas e comunidades tradicionais, direito este que garantido pela Conveno n 169 da OIT e pela prpria CDB. Conclui-se, outrossim, que as normas contidas no referido projeto deixam de proteger adequadamente diversos direitos humanos fundamentais dos povos indgenas e comunidades tradicionais do Brasil, razo pela qual sua aprovao, na forma como se encontra, deve ser considerada um retrocesso na garantia de direitos a esses povos e comunidades, podendo, inclusive, futuramente, justificar a responsabilizao do Estado brasileiro perante rgos e tribunais internacionais de direitos humanos.

    Braslia, 13 de agosto de 2014.

    Deborah Macedo DupratSubprocuradora Geral da Repblica

    Coordenadora da 6 Cmara de Coordenao e Reviso

    Eliana Pres Torelly de CarvalhoProcuradora Regional da Repblica

    Coordenadora do GT Conhecimentos Tradicionais

    Anselmo Henrique Cordeiro LopesProcurador da Repblica

    Antnio Jos Donizetti Molina DaloiaProcurador da Repblica

    Maria Luiza GrabnerProcuradora Regional da Repblica

    Sandra Akemi Shimada KishiProcuradora Regional da Repblica

    Wilson Rocha AssisProcurador da Repblica

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