nota 3 (badiou, são paulo)
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Marx: filósofo ou antifilósofo do ponto de vista de Badiou?TRANSCRIPT
Marx: filósofo ou antifilósofo, do ponto de vista de Badiou?
Germano Nogueira Prado
Parto do que está consignado no primeiro esquema do dia 10.09.13 da seção “Referências” do site
do CEII. O que segue é quando muito um esboço. Comecemos passando em revista as
características que identificariam um filósofo. Uma das operações que perfariam essa operação é o
“apreender as verdades de seu tempo, produzidas por suas condições”. Tais condições, como se
sabe, são, para Badiou: o amor, a arte, a política, a ciência. Ora, me parece mais ou menos claro que
Marx procede (ou tenta proceder) a essa apreensão. O célebre Prefácio ao “Para a Crítica da
Economia Política” parece ser um dos documentos mais eloquentes e sintéticos a esse respeito: ali,
em linhas bem gerais, todas as relações humanas possíveis são pensadas a partir de sua relação
fundamental com o modo de produção a partir do qual e em meio ao qual surgem.
Suposto que a determinação se dá aí a partir de uma ciência (a economia política), Marx realiza ou
tenta realizar a referida apreensão a partir de uma operação de sutura que, se não é específica da
filosofia ou pelo menos não se realiza sempre na filosofia (na medida em que o esquema do qual
parto não a inclui dentre as operações filosóficas), pode ser (ou sempre é?) operada por filósofos
(no esquema, o exemplo de sutura é Heidegger, incluído entre os filósofos). Todavia, na medida em
a ciência da economia política, talvez não fosse demais pensar se a sutura se dá aí não só a partir da
verdade de uma das condições (ciência), mas de duas (ciência e política) – pensando,
concomitantemente, se e em que medida isso é possível. (De uma perspectiva talvez não tão
próxima a Badiou, se compreendemos filosofia como discurso acerca do fundamento (e, quiçá, do
abismal (Ab-grund), do súbito, do “espontâneo” ligado ao acontecimento de fundamento (Grund)) e
se compreendemos que em Marx, e em seu tempo próprio, a economia política é o fundamental,
então talvez pudéssemos dizer que Marx é filósofo justamente quando faz economia política (ou,
por outra, enquanto se apropria filosoficamente da economia política como (lugar próprio ao)
fundamento)).
Sobre o fato de Marx procurar pensar as verdades das outras duas condições (amor e arte), é
possível dar, por exemplo, as seguintes indicações: a discussão sobre o amor feita no fim do terceiro
dos Manuscritos Econômico-Filosóficos, onde lá pelo meio encontramos isso também isso "(...) a
fraternidade dos homens não é nenhuma frase, mas sim verdade para eles [os trabalhadores, os
operários socialistas do qual Marx participavam da reunião], e a nobreza da humanidade nos
ilumina a partir das figuras endurecidas pelo trabalho" (esses trechos e outros são retomados por
Leandro Konder no seu texto Sobre o amor); a discussão sobre a arte esboçada no final da
Introdução do Para a Crítica da Economia Política. Se Marx não forneceu uma discussão
sistemática e desenvolvida das verdades do amor e da arte, ao menos aí ele indicou claramente que
isso seria realizável a partir dos marcos da sua filosofia – e isso parece bastar com relação a uma
pretensão de apreensão das verdades. (Aliás, para ambas as condições, arte e amor, não poderíamos
buscar alguma coisa na novela escrita por Marx, Escorpião e Félix, um romance humorístico
(1837), rs?)
O filósofo ainda teria uma segunda operação própria: conheceria e se engajaria na crítica aos
sofistas, procurando “reduzi-los ao silêncio”. O sofista, tal como caracterizado no esquema do qual
se parte aqui, soa um pouco como um cético. Pois “cético” é justo aquele que nega a possibilidade
de existir uma verdade e/ou uma certeza universais (e objetivas). Se Badiou pretende usar isso
também para falar dos que historicamente, na Grécia Antiga, eram chamados de sofistas, há que se
pensar se isso tem de fato validade – e se um sofista como Górgias, por ex., não teria clareza de que,
ao negar a possibilidade do conhecimento (fundado na impossibilidade do ser, da comunicação e do
próprio conhecer), ele estaria fundando justo aí da única verdade universal. Todavia, isso não parece
ser o central na delimitação da figura do sofista: trata-se daquela figura tradicionalmente
enxovalhada do não filósofo, oriunda de uma certa interpretação dos diálogos do Platão (e que,
nesses diálogos, aparece em uma relação certamente mais ambígua com o filósofo do que se
costuma supor). Trata-se, até onde posso ver, e grosso modo, do relativista em oposição ao filósofo
que defende a possibilidade do conhecimento absoluto, do “contextualista” em oposição à verdade
universal do filósofo, do “convencionalista” em oposição ao filósofo que defende o acesso ao ser e
à physis, nos quais as convenções/leis (nómoi) em última instância se fundariam. Claro está que daí
emerge, como espelho invertido do sofista, uma imagem do filósofo.
Pois bem: que Marx seja um que acredite na possibilidade do conhecimento (científico), que
produziria verdades universais e descobria leis naturais (do funcionamento da sociedade), parece
incontestável – sobretudo se, ou ao menos se, abstrairmos do sentido dessa “crença”. Mas quem
seriam os seus sofistas? Os seus adversários, ou alguns de seus adversários no interior do
movimento socialistas? Dentre os jovens hegelianos? Dentre os economistas burgueses?
Por fim, há a operação de atravessar as antifilosofias, de modo a extrair o seu “cerne racional” e
universalmente transmissível. Poderíamos dizer, por um lado, que essa operação não é
imprescindível à constituição de um filósofo: com efeito, na reunião, dentre os casos mencionados,
em apenas um (Lacan antifilósofo de Badiou) a antifilosofia precedia a filosofia; nos demais, esta
vinha antes daquela (como em Kierkegaard como antifilósofo de Hegel, por ex.). Todavia, a
expressão mesma “ extrair o 'cerne racional'” de uma antifilosofia pode nos levar à questão: não
seria Hegel o antifilósofo de Marx? Este não diz que sua relação explícita com aquele é justo a de
um que quer “extrair o cerne racional” da dialética do invólucro “místico” que seu mestre deu a ela?
Daí surgem ao menos dois questionamentos: (1) Em que medida Hegel poderia ser considerado
antifilósofo, se justo nele nada escapa ao pensamento e nada parece depender de uma experiência
pessoal? Poderíamos localizar essa antifilosofia no lugar especial (pessoal e intransferível?) que ele
mesmo parece atribuir a si na história da filosofia, configurando um lugar próprio de enunciação
(mas isso não o fazem outros filósofos?), bem como a importância dada à linguagem, explícita na
Fenomenologia do Espírito, por ex.? (2) Não deveríamos tomar essas classificações “filósofo”,
“antifilósofo” e mesmo “sofista” menos como gavetas para encaixar pensadores, e mais como
diferentes aspectos que poderiam ser encarnados por um mesmo pensador sob diferentes pontos de
vista? A esse respeito, aliás, foi dito na última reunião que a sofística é, em certo sentido, um
momento da filosofia.
Se este último questionamento faz sentido, então Marx poderia ser, sob um aspecto, filósofo, mas,
sob outro, antifilósofo. Acontece que nenhum dos aspectos expostos no esquema do site me
parecem caber (muito bem) ao pensamento de Marx: (1) não há, neste, uma dimensão do real “fora
do pensamento da verdade da filosofia”, ao menos se considerarmos a filosofia de Marx tal como
tentei esboçar mais acima. Talvez o único candidato seja a configuração das relações que se
costumam chamar de “superestrutura” quando da instauração de uma sociedade sem classes, uma
vez que só se saberá como serão aquelas “formas de consciência” quando da instauração real do
comunismo (cf. Questão de Método, em Crítica da Razão Dialética, de Sartre: não se pode sequer
imaginar como será a liberdade no comunismo, etc.). Mas é o comunismo, pensado assim, uma
dimensão do real? (2) Não há um ato existencial, pessoal e intransferível que rompe com a situação
– trata-se, ao que parece, de uma “consciência de classe” que, ainda que se encarne em um singular,
se liga a processos de subjetivação universalizáveis; (3) Marx não parece dar importância ao ato de
dizer com relação ao dito – pelo contrário, parece querer fundamentar tudo que diz a partir de leis
científicas universalmente reconhecíveis por quem quer que as compreenda; (4) por fim, não parece
que a linguagem tenha explicitamente uma importância própria. Ocorre-me um texto de Marx sobre
a questão da linguagem citado pelos irmãos Campos no prefácio a um volume das obras completas
do Oswald de Andrade; nele, Marx parece re(con)duzir a linguagem ao problema da consciência,
mais precisamente como consciência social1. Nesse sentido, a linguagem estatuto especial – que, de
1MARX & ENGELS. Sur la littérature el lárt. Editions Sociales: Paris, 1954. p. 142. Apud ANDRADE, Oswald de.
Obras completas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971, v. 11, p. 9-10
resto, parece caracterizar apenas as antifilosofias mais recentes, do século XX para cá. Esta última
consideração, por sinal, me faz pensar na seguinte questão: para um pensamento ser tomado como
antifilosofia, ele teria que ter todas as (três primeiras) características, ou apenas alguma delas? São
todas igualmente importantes (as três primeiras, já que a última parece ser mais recente), ou uma
teria “mais peso” – a remissão da verdade universal a uma experiência pessoal e intransferível,
como parece ter sido enfatizado na reunião?
Não obstante, no texto A Situação da Filosofia, Badiou coloca o marxismo entre as antifilosofias,
porque, ao que parece, este “teria esgotado sua capacidade filosófica” (p.14)... Dentre as
possibilidades de conciliar esta constatação e quanto foi dito no parágrafo anterior, vejo as
seguintes: (1) há outras características para identificar a antifilosofia, que não apenas as que
constam no quadro; (2) Badiou errou, foi incoerente com o que ele mesmo propôs; (3) (a mais
plausível e conciliadora, talvez) quando ele diz “marxismo” leia-se (sobretudo) a tradição marxista,
e não Marx. Trata-se de uma leitura razoável, sobretudo se considerarmos que o termo “marxismo”
muitas vezes é usado assim e que teria sido recusado pelo próprio Marx – e que, para se referir ao
pensamento deste, criou-se até o termo “marxiano” em oposição a “marxista”. Daí uma outra
questão: se e em que medida a tradição marxista é antifilosofia?
***
O segundo esquema do dia 10.09 da seção “Referências” do site do CEII trata da relação entre
universal (abstrato e simbólico), particular e singular. Tentando ser o mais breve possível, não
obstante o esquema seja bastante esclarecedor, me parece que a explicação de particular aí presente
não está totalmente de acordo (explicitamente, ao menos) com o texto de Badiou sobre São Paulo.
Isso porque Badiou parece usar “particular” aí para se referir (ambiguamente, talvez) não aos
indivíduos contidos sob um universal, mas aos grupos, às comunidades identitárias que “recortam”
a sociedade em várias minorias (negros, homossexuais, mulheres, etc.) e não aos membros de um
universal (abstrato). O universal (abstrato?) que estaria aí em jogo seria a unidade de conta do
capitalismo, que se relacionaria com os grupos particulares, cuja particularidade seria justamente o
do “recorte” em várias partes (subconjuntos) do todo que está submetido universalmente ao
processo de circulação capitalista – com o único objetivo, por sinal, de fazer disso que poderia ser
uma equivalência estática um processo de trocas entre “partes” que, para isso, precisam aparecer
como diversas (p. 17). Cf., por ex., “nem homogeneidade monetária, nem reivindicação identitária;
nem universalidade abstrata do capital, nem particularidade dos interesses de um subconjunto” (p.
20, grifos meus); “a reivindicação comunitária ou particularista” (p. 21, grifos meus). Pode-se
explicar isso, talvez, dizendo que a cada um desses subconjuntos equivale um universal abstrato –
explicação que, se entendi bem, também foi aventada na reunião. Mas achei que talvez convinha
sublinhar essa ambiguidade, ou sutileza, do texto do Badiou; ademais, seria preciso talvez ver a
relação entre esses universais abstratos dos subconjuntos e o universal “geral” que é o capitalismo.
A coisa se complica se acrescentarmos que para Badiou o capitalismo é uma singularidade (p. 17).
Mas é aí que o esquema, se o entendi bem, possa ser talvez de grande serventia. Pois não seria o
capitalismo um singular que, permanecendo singular e procurando anular a emergência de outras
singularidades ou, ao menos, não se relacionando com elas (p. 17), se faz valer como o que há de
comum a todos os singulares? Se é assim, em que sentido ele é “também” um universal abstrato?