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Alain Badiou A República de Platão recontada por Alain Badiou Tradução: André Telles Apresentação à edição brasileira: Danilo Marcondes Professor titular do Departamento de Filosofia da PUC-Rio

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Alain Badiou

A República de Platão recontada por Alain Badiou

Tradução:André Telles

Apresentação à edição brasileira:Danilo MarcondesProfessor titular do Departamento de Filosofia da PUC-Rio

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Prólogo: Conversa na mansão do porto (327a-336b)

No dia em que todo esse imenso dilema começou, Sócrates voltava do bairro do porto, na companhia do irmão mais moço de Platão, chamado Glauco. Haviam dado um ósculo na deusa dos Setentrionais, marinheiros ébrios, e nada perdido da festa em sua homenagem, grande estreia! Em todo caso, foi um carnaval o cortejo dos nativos do porto. E os carros dos Setentrionais, apinhados de damas desnudas, tampouco estavam mal.

Dentre os inumeráveis indivíduos chamados Polemarco, o que é filho de Céfalo viu-os de longe e lançou um guri em seu encalço. “Esperem-nos!” gritou o menino, puxando a túnica de Sócrates. “Ora, onde deixou seu patrão?” este perguntou. “Ele vem correndo atrás, espere-o!” – “Está bem!” consentiu o men-cionado Glauco, o jovem irmão de Platão. E quem chega poucos minutos mais tarde? Um bando inteiro! Polemarco, naturalmente, o que é filho de Céfalo, mas também Nicerato, filho de Nícias, e um punhado de outros que são filhos de um punhado de outros, bem como… adivinhem! A irmã de Platão, a bela Amanda. Todas essas pessoas, assim como Sócrates e Glauco, vinham da festa.

Polemarco, aquele que etc., informou então a Sócrates que, sozinho contra um bando inteiro não estava em condições de duelar, nem mesmo apoiado pelo mencionado Glauco, por mais irmão de Platão que ele fosse. Cumpriam então que ele aceitasse o imperioso convite, que todos vinham fazer-lhe, para ir jantar na soberba mansão com vista para o porto onde morava Céfalo. Sócrates objetou que, em vez de deflagrar uma discussão inglória, também era capaz de dialogar serenamente e convencer a todos de que havia boas razões para ele voltar para casa. Polemarco replicou que iam todos tapar os ouvidos e ignorar seus melífluos argumentos.

Foi nesse momento crítico que interveio, melíflua por dois, a petulante irmã de Platão, a supracitada Amanda: “Não sabem que esta noite, estendendo as festas pela deusa vesga dos Setentrionais, os armadores do porto organizaram uma corrida equestre de tochas? Hein! O que me dizem?” – “Raios!” exclama Sócrates, visivelmente encantado diante da desenvoltura da rapariga, “uma cor-rida de revezamento a cavalo? É passando os archotes que as equipes correm e

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vencem?” – “Exatamente!” responde Polemarco-filho, penetrando na brecha das defesas de Sócrates. “E, terminada a corrida, a municipalidade oferece um grande baile noturno. Iremos depois do jantar, teremos uma multidão! Beldades a granel, todas as amigas de Amanda, podemos conversar até a madrugada. Vamos! Ceda!”

O jovem irmão de Platão, o mencionado Glauco, capitulou na hora, en-quanto Sócrates alegrava-se secretamente por ter de acompanhá-los, ainda mais numa comitiva em que a jovem Amanda, literalmente, irradiava. Foi assim que o bando inteiro apareceu na casa de Céfalo. Muita gente já circulava pela mansão do porto. Estavam lá Lísias, Eutidemo, as irmãs de Eutidemo acom-panhadas por Trasímaco, aquele nascido na Calcedônia, Carmântides, o que nasceu em Peaneia, e também Clitofonte, que é filho de Aristônimo. E claro, o velho papai Céfalo, bastante decrépito, prostrado sobre almofadas, uma coroa atravessada na cabeça, pois acabava de degolar uma galinha no terreiro à guisa de sacrifício à deusa vesga dos Setentrionais.

Formou-se respeitosamente um círculo ao redor do simpático destroço. E ei-lo a repreender Sócrates:

– Caro Sócrates, não se pode dizer que você apareça muito neste subúrbio portuário para me visitar! Não obstante, isso seria “bacana”, como dizem os jovens que o seguem a toda parte. Se eu ainda tivesse forças para me deslocar com facilidade até o centro, você não precisaria se dar ao trabalho de vir até aqui, seria eu quem iria à sua casa. Porém, considerando o estado de minhas pernas, terá de vir com mais frequência. Devo confessar que, se pouco a pouco sinto que diminuem os prazeres que podemos extrair do corpo, ao mesmo tempo sinto aumentar os que extraímos da conversação. Não lhe seria possível, sem que isso implique você abandonar essa encantadora mocidade, vir aqui mais vezes, como um amigo, como um hóspede íntimo desta vivenda?

Sócrates responde sem titubear:– Naturalmente que sim, caro Céfalo! Na verdade, é o que desejo. É sempre

um prazer dialogar com anciãos veneráveis como você; parece-me efetivamente que convém inquirir-se junto a eles acerca da natureza exata dessa última porção do caminho da vida em que eles nos precedem e que, por nossa vez, deveremos percorrer. Será pedregoso e hostil esse caminho? Ou fácil e con-vidativo? Gostaria muito de saber sua opinião, uma vez que você alcançou o exato momento a que os poetas se referem pela expressão “limiar da grande idade”. Seria um período penoso da vida? Afinal, como o vê?

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– Como sabe, caro Sócrates, vou muito às reuniões do Círculo dos Idosos, um belo prédio que a municipalidade construiu ao sul do porto. Evidentemente, evocamos os bons tempos. Quase todos da minha faixa etária lastimam-se, corroídos pela lembrança dos prazeres da mocidade: sexo, álcool, banquetes, tudo o mais. Revoltam-se contra o tempo que passa como se houvessem per-dido fortunas. E digo a você que antes a vida era boa, e repito que hoje não é sequer vida digna de tal nome… Há quem remoa as afrontas que sofre em casa: os jovens de suas famílias tiram proveito de sua idade avançada, são só gracejos e insolências. Daí todos repisarem seus males, cuja causa, segundo eles, é a velhice. Já eu, de minha parte, penso que eles não questionam a verdadeira causa. Pois se fosse a velhice, eu também sofreria seus efeitos, e, junto comigo, todos, sem exceção, que atingiram a mesma idade. Ora, encontrei pessoalmente velhos numa disposição bem diferente. Um bom exemplo é o imenso poeta Sófocles. Eu estava nas imediações quando um jornalista veio entrevistá-lo e lhe perguntou, de maneira, devo dizer, assaz grosseira: “Então, Sófocles, como anda você no quesito sexo? Ainda sente-se em condições de deitar com uma mulher?” O poeta calou-o de maneira soberba: “Você está falando de ouro, cidadão!” respondeu-lhe. “Para mim é maravilhoso estar isento do desejo se-xual, finalmente livre das garras de um senhor irascível e selvagem!” Senti então claramente a beleza dessa resposta e ainda hoje seu efeito sobre mim não diminuiu. Quando chega a grande idade, todas essas histórias de sexo são encobertas por uma espécie de liberdade reconfortante. Os desejos arrefecem, ou mesmo desaparecem, e a sentença de Sófocles realiza-se de ponta a ponta: somos efetivamente libertados de uma massa de senhores tão loucos quanto exigentes. Enfim, todos esses queixumes de velhos com respeito às suas tribu-lações domésticas têm apenas uma única causa, que não é a velhice, mas os costumes dos homens. Para os que são disciplinados e abertos, a velhice não é realmente penosa. Para os que não são nem um nem outro, juventude e velhice são identicamente deploráveis.

Como a polidez exige que se aprove esse tipo de réplica, e até mesmo que se a instigue novamente, é com o objetivo exclusivo de restituir a palavra ao velho que Sócrates lança uma trivialidade:

– Quando você profere essas coisas sensatas e magníficas, meu caro Céfalo, imagino que seus interlocutores não concordem. Eles pensam que é menos árduo envelhecer quando se está sentado sobre um monte de ouro, e é a suas

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consoladoras riquezas que atribuem sua serenidade, em vez de à sua grandeza d’alma. Não tenho razão?

Céfalo aproveitou a deixa e prosseguiu:– Obviamente, eles não acreditam em mim. Aliás, não digo que sua crítica

não valha nada, mas ela é menos decisiva do que eles imaginam. Penso na maravilhosa história que me contaram a respeito do Grande Almirante da Frota. Um dia, ele é açoitado pelas ofensas de um fulano vindo de um buraco perdido do Norte, de Sériposse, creio. “Você não tem nenhum mérito próprio”, berra o sujeito, um republicano furioso, “reduzido a você mesmo, você não passa de um aborto! Você deve tudo ao poderio de Atenas e ao devotamento de seus cidadãos!” O Grande Almirante da Frota, muito calmo, diz então ao energúmeno: “Estou de acordo, cavalheiro, se eu fosse de Sériposse, ninguém conheceria meu nome. Porém, ainda que você fosse de Atenas, ninguém co-nheceria o seu.” Poderíamos nos inspirar no Grande Almirante para responder àqueles pouco afortunados que não toleram envelhecer: “Tudo bem, é possível que um homem cheio de sensatez tenha dificuldade para envelhecer em perfeita serenidade, ainda mais se não dispuser de todos os recursos; mas é certo que um homem desprovido de toda sensatez pode até ser costurado em ouro, nem por isso sua velhice será menos melancólica.”

Sócrates quer formalizar essa história a respeito do humor dos ricos:– Diga-me, Céfalo, você é um herdeiro ou um self-made-man?– Nem um nem outro. Meu avô, um Céfalo também, era um típico self-

made-man. Herdou uma fortuna comparável à minha, que ele multiplicou por cinco. Lisânias, meu pai, era um autêntico herdeiro: num piscar de olhos prati-camente reduziu a pó o que legara de meu avô, de modo que, quando morreu, tinha um pouco menos de dinheiro do que possuo atualmente. Como vê, subi um pouco a ladeira, mas não muito. Não sendo nem meu avô nem meu pai, limito-me a deixar a meus filhos nem muito mais do que eu mesmo herdei de meu pai, nem menos. “Um pouco mais”, esta é minha divisa em todas as coisas.

– Minha pergunta – responde Sócrates – deve-se ao fato de não me parecer que você adorasse o dinheiro. Ora, é este geralmente o caso daqueles que, mais herdeiros que self-made-men, não tiveram que fazer fortuna por conta própria. Os self-made-men são duas vezes mais aferrados ao dinheiro que os herdeiros. Como os poetas que adoram seus versos, ou os pais, seus filhos, os homens de negócios levam muito a sério os negócios, porque estes são obra pessoal.

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Além disso, como qualquer um, apreciam o conforto que eles proporcionam. Daí essas pessoas serem maçantes em sociedade: só têm o dinheiro na boca.

– Infelizmente – diz Céfalo –, isso é a pura verdade.Sócrates aproveita a deixa:

– Mas se aqueles que falam sempre de dinheiro são tão maçantes, o que dizer então do próprio dinheiro? Não é ele, na realidade, que é insuportável? Na sua opinião, Céfalo, que bem superior a qualquer outro a opinião comum discerne na posse de uma enorme fortuna?

– Devo ser praticamente o único a apreciá-la! Situemo-nos no momento em que alguém começa a pensar seriamente que vai morrer. Acha-se então às voltas com preocupações e temores relativos a coisas antes indiferentes para ele. Lembra-se das histórias contadas a respeito do Inferno, sobretudo que a justiça lá embaixo é feita de todas as injustiças daqui. Antigamente, como bon vivant, ele zombava dessas fábulas. Agora, como Sujeito, pergunta-se se elas são verdadeiras. Enfim, nosso homem, debilitado pela idade avançada e imaginando-se no umbral do além, escuta com uma atenção redobrada todas essas narrativas fabulosas. Atormentado pela desconfiança e o pavor, passa em revista as injustiças que foi capaz de cometer ao longo da vida. Encontrando uma profusão delas, desperta bruscamente à noite, aterrorizado como uma criança visitada por um pesadelo, e os dias para ele não passam mais senão de uma funesta expectativa. Contudo, se o seu exame de consciência nada revela de injusto, ele é invadido por uma agradável esperança, a que o poeta chama de a “nutriz da velhice”. Você deve se lembrar, caro Sócrates, desses versos em que Píndaro descreve aquele cuja existência foi tão somente justiça e piedade:

Nutriz do ancião,Ela é sua verdadeira companheira e lhe aquece o coração.A suave esperança, a única que consolaO pensador às portas da morte.

Píndaro mostra uma força e exatidão arrebatadoras nesses versos! É com eles na cabeça que respondo sem hesitação à pergunta que você me faz: a ri-queza do proprietário é bastante vantajosa não genericamente, mas para o homem que sabe servir-se dela com o objetivo de dar provas de equidade.

“Equidade” quer dizer aqui: jamais fazer uso da mentira ou do fingimento, se-

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quer involuntariamente, não ter nenhuma dívida com quem quer que seja, quer se trate de um homem a quem se devesse dinheiro ou de um deus a quem se devesse um sacrifício. Em suma, não ter nenhum motivo para recear a viagem para o além. É evidentemente mais fácil ser equânime quando se é um rico proprietário, e esta é uma vantagem enorme. A riqueza tem muitas outras, nós o sabemos; mas se as examinar uma a uma, não vejo nenhuma que, para um homem plenamente capaz de pensar, seja mais importante.

– Belo discurso! – exclama Sócrates. – Mas essa virtude de justiça, cuja importância você aponta, poderemos dizer que já a examinamos mediante as duas propriedades que você lhe reconhece: nas palavras, a verdade, e na vida prática, a restituição do que lhe emprestaram? A dificuldade, parece-me, é que uma ação em conformidade com essas duas propriedades pode ser ora justa, ora injusta. Tomo um exemplo: alguém emprestou armas a um amigo cheio de bom-senso, ora, esse amigo vira um louco furioso e exige suas armas de volta. Quem afirmará que é justo restituí-las ou mesmo buscar, a todo custo, dizer a verdade, nada senão a verdade, a esse doente mental?

– Eu não, em todo caso! – diz Céfalo.– Como pode constatar, “dizer a verdade” e “devolver o que lhe empresta-

ram” não formam uma definição de justiça.Polemarco, que ainda não se pronunciara, sai bruscamente de sua reserva:

– A crer no imenso poeta que é Simônides, é, ao contrário, uma excelente definição.

– Vejo que não saímos do impasse – comenta o velho Céfalo. – Deixo a sequên- cia do debate com vocês. Ainda tenho de fazer o sacrifício de um bode preto.

– Em suma – Sócrates graceja –, Polemarco herda sua conversa afortunada!– Exatamente! – sorri Céfalo.E desaparece para sempre do debate que nos ocupa e irá durar – os prota-

gonistas sequer desconfiam disso – mais de vinte horas!– Pois bem – retoma Sócrates, voltado para Polemarco –, você, herdeiro

das réplicas, fale-nos então um pouco por que tem em tão grande estima as declarações de Simônides, o poeta, sobre a justiça.

– Quando Simônides declarou ser justo devolver o que devemos a outro, ruminei: ele falou com pertinência.

– Ah, esse Simônides! Sábio, inspirado! Como não concordar com ele? Dito isso, o que significa efetivamente o que ele fala sobre a justiça? Você

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sabe, Polemarco? Pois eu, em todo caso, não faço a menor ideia. Está claro que de toda forma ele não defende – é nosso contraexemplo de ainda há pouco – que devamos devolver, a um camarada completamente louco que a exige, a pistola que ele entregou a alguém. No entanto, é na verdade uma coisa que lhe devemos. Ou não?

– Sim.– Concordamos então que, se você lhe entregou essa pistola, não é porque

seu proprietário, agora louco de pedra, a exige de volta que convém restituí- la. Simônides, o sábio poeta, quer então dizer outra coisa do que diz quando enuncia ser correto restituir o que devemos.

– É evidente que ele tem outra coisa na cabeça. “Restituir” significa que de-vemos retribuir aos amigos as provas de amizade que eles nos dão. Aos amigos fazemos o bem e nenhum mal.

– Tudo se ilumina, caramba! Um devedor que restitui a um emprestador o dinheiro que lhe tomou emprestado não devolve ao emprestador o que lhe é devido se essa restituição por parte do devedor, assim como sua aceitação pelo emprestador, for danosa ao mencionado emprestador e se, além disso, empres-tador e devedor forem ligados pela amizade. Ufa! Seria de fato este, segundo você, o sentido da frase de Simônides?

– Exatamente.– E aos próprios inimigos, convém devolver aquilo que, por um ardiloso

acaso, houvemos por bem lhes dever?– E como! O que devemos, devolvemos! E o que devemos a um inimigo, na

medida em que se trata de um inimigo é: o mal!– Foi como verdadeiro poeta, dir-se-ia, que Simônides transformou a defi-

nição da justiça num obscuro enigma. Ele afirma, se o entendi, que seria justo restituir a cada um o que lhe cabe e que ele curiosamente chamou de “o que lhe é devido”.

– E então – irrita-se Polemarco –, onde está o problema?– Nesse grau de profundidade poética, apenas o grande Outro pode sabê-

lo. Suponhamos que o grande Outro pergunte ao poeta: “Simônides! A arte chamada ‘medicina’, a quem ela restitui o que lhe cabe, ou, em seu jargão, o lhe é devido?” O que responderia o nosso poeta?

– Simples como andar para a frente! Ele responderia que a medicina dá aos corpos os remédios, a comida e a bebida.

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– E o cozinheiro?– O cozinheiro? Que cozinheiro? – indaga Polemarco, enlouquecido.– A quem ele dá o que lhe cabe, ou é “devido”, se preferir, e em que consiste

esse dom?– O cozinheiro dá temperos apropriados ao que cozinha.Nesse ponto, Polemarco está satisfeito consigo mesmo. Em todo caso, Só-

crates felicita-o:– Excelente! E a arte chamada “justiça”, então, ela dá o quê e a quem?– Se pautarmos a justiça pela cozinha e a medicina, e se formos fiéis a Si-

mônides, diremos: a justiça, conforme diga respeito a amigos ou inimigos, distribui vantagens ou calamidades.

– É isso! Claro como água da mina: Simônides diz que a justiça consiste em fazer bem aos amigos e mal aos inimigos. Perfeito, perfeito… Mas, diga-me: amigos adoecem, inimigos também. Quem é o mais capaz, em se tratando do par saúde-doença, de fazer bem a uns e mal a outros?

– Trivial: o médico!– E se amigos e inimigos embarcarem para uma longa travessia, capaz, em

caso de tempestade, de salvá-los ou afogá-los?– Não há motivo para preocupação: o piloto do navio.– E o justo? Em que circunstâncias práticas e com vistas a que objetivo ele

se mostra mais apto a servir os amigos e prejudicar os inimigos?– Esssa é fácil: na guerra. Defendemos uns, atacamos os outros.– Caríssimo Polemarco! Para os que vão bem de saúde, o médico é inútil;

quem caminha em terra firme não precisa levar consigo um capitão de corveta. Então, se bem o compreendo, “justiça” e “justo” não fazem nenhum sentido para os que não estão em guerra.

– Que conclusão absurda!– Logo, a justiça seria útil em tempos de paz?– Evidentemente.– Tal como a agricultura, para obtermos bons frutos, ou o sapateiro, para

obtermos sapatos. Qual seria então a utilidade da justiça em tempos de paz? O que ela permite adquirir?

– Ela permite avalizar, assegurar, consolidar relações simbólicas.– Você quer dizer convenções acertadas com alguém?– Sim, pactos que têm regras cujo respeito é assegurado pela justiça.

Prólogo 25

– Examinemos mais detidamente. Quando você joga xadrez, você coloca as peças no tabuleiro numa certa ordem. É uma convenção simbólica, segundo suas palavras. O mais eficaz, no que se refere a essa disposição das peças, é o homem justo ou o jogador profissional? Outro exemplo: você constrói uma casa. Para dispor como convém, segundo a regra, tijolos e pedras, quem é mais útil, quem é o melhor: o homem justo ou o pedreiro? Veja, mais um: o músico é seguramente melhor que o justo no que se refere a arranhar as cordas de um violão segundo a convenção que rege os acordes. Então, em que situação, quando está em pauta uma regra simbólica, o justo é um parceiro melhor que o jogador, o pedreiro ou o violonista?

– Penso que nos assuntos envolvendo dinheiro.– Que assuntos de dinheiro? Se formos usar dinheiro, por exemplo para

comprar um cavalo, o bom conselheiro, o homem dos símbolos eficazes, será o exímio cavaleiro; e se formos vender um barco, é preferível estar associado a um marujo do que a um justo que não entende nada do assunto. Insisto na pergunta: se tivermos de receber ou gastar dinheiro, em que circunstâncias o justo será mais útil que os demais?

– Julgo ser quando queremos recuperar sem perdas o dinheiro que deposi-tamos ou emprestamos.

– Em suma, é quando não temos a intenção de usar o dinheiro e o deixamos dormir? Eis o que é muito interessante! A justiça serve na mesma proporção que o dinheiro não serve para nada…

– Receio deveras.– Continuemos nessa trilha promissora. Se quisermos deixar um compu-

tador mofando no armário, a justiça é útil; se quisermos usá-lo, é o técnico em informática; se tivermos de guardar um violino empoeirado ou um fuzil enferrujado num canto do porão, é então que a justiça é indispensável! Porque, se quisermos tocar um concerto ou matar um faisão, é preferível um violinista ou um caçador.

– Não vejo muito aonde pretende chegar.– A isto: a crer no poeta Simônides, seja qual for a prática considerada, a

justiça é inútil na ação e útil na inação.– Estranha conclusão! O que pensa sobre isso o amigo Polemarco? – insinua

Amanda.Sócrates bate o martelo.

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– Em suma, para Simônides e para você, a justiça não tem nenhuma impor-tância. O que vale uma coisa que não é útil senão quando é inútil? Mas há pior! Suponho que admita que um pugilista profissional cujo soco é temível também sabe aparar os golpes do adversário… Ou melhor: que aquele que sabe proteger- se de uma infecção sexual transmissível é o mesmo que sabe contaminar seu parceiro ou parceira sem que ele ou ela sequer desconfiem.

– Amigo Sócrates! – queixa-se Polemarco. – Está fugindo do assunto! O que a sífilis ou a aids têm a ver com isso?

– Permita-me um último exemplo. Aquele que se mostra impecável defen-sor de um exército em campanha e aquele que sabe ocultar do inimigo seus projetos e planos de ação, não são eles um único e mesmo homem?

– Sim, sim, claro! Seus exemplos só fazem repetir a mesma ideia…– … ideia que é a seguinte: aqueles dotados para a vigilância o são igual-

mente para o roubo.– Isso no fundo não seria uma obviedade?– Talvez, talvez… Mas nesse caso, se o justo é dotado para guardar o di-

nheiro que lhe entregaram, o é igualmente para roubá-lo.– Era aí que pretendia chegar o célebre Sócrates?O duelo Sócrates-Polemarco é acirrado. Glauco e Amanda contam os pontos:

– Exatamente! – retorque Sócrates. – O justo, tal como você o definiu, aparece- nos subitamente como uma espécie de ladrão. E creio que você aprendeu essa estranha doutrina em Homero. Com efeito, nosso poeta nacional adora o avô de Ulisses, um tal de Autólico, a respeito do qual afirma sofregamente que, no que se refere a roubo e perjúrio, não temia ninguém. Daí, deduzo que, para Homero, para Simônides e para você, caro Polemarco, a justiça é a arte do ladrão…

– De forma alguma! De forma alguma! – interrompe-o Polemarco.– … com a condição – continua imperturbavelmente Sócrates – de que essa

arte sirva aos amigos e prejudique os inimigos. Roubar dos inimigos para dar aos amigos não é sua definição de justiça? Ou o compreendi mal?

– Você está confundindo minha cabeça, nem sei mais o que eu queria dizer. Mas insisto num ponto: a justiça consiste em servir aos amigos e prejudicar aos inimigos.

– O que chama de amigo? Aquele que lhe parece ser um sujeito legal ou aquele que é realmente uma pessoa de bem, ainda que não aparente tal coisa? E faço-lhe a mesma pergunta para o inimigo.

Prólogo 27

– Faz sentido amar aqueles que julgamos ser pessoas de bem e detestar os canalhas.

– Contudo, você bem sabe, acontece de nos enganarmos: às vezes vemos pessoas de bem onde só há canalhas, e canalhas onde todo mundo é honesto. Nesse caso, são os bons que são nossos inimigos e os maus, nossos amigos.

– Infelizmente acontece, é um fato – concede Polemarco.– Continuando nessa hipótese, constatamos – se aceitarmos a definição

de Homero, de Simônides e a sua – ser justo prestar serviço aos canalhas e prejudicar as pessoas de bem. Como as pessoas de bem são justas e jamais cometem injustiça, devemos concluir que, segundo você, é justo prejudicar os que nunca são injustos.

– Mas o que você está dizendo? Só um canalha pode pensar assim!– Logo, é aos injustos justo prejudicar e aos justos injusto não servir?– Ah! Melhorou muito!– Sendo assim, a partir do momento em que alguém se enganou sobre a

verdadeira natureza das pessoas, é possível que seja justo, no que lhe concerne, prejudicar seus amigos, que no fim não passam de canalhas e justo servir a seus inimigo que são pessoas de bem. O que é diametralmente oposto ao discurso que atribuímos a Simônides.

Satisfeito, Sócrates volta-se para os jovens: ele marcou um ponto, certo? Mas Polemarco não desiste:

– Esse belo raciocínio prova apenas uma coisa, Sócrates, que nossa definição de amigos e inimigos não é correta. Afirmamos que o amigo é aquele que nos parece ser uma pessoa de bem. Cumpre dizer: o amigo é aquele que ao mesmo tempo parece e é uma pessoa de bem. Aquele que parece ser uma pessoa de bem sem o ser não é um amigo, é um mero fingidor. Juntaremos da mesma forma o ser e o parecer no caso do inimigo.

– Magnífico! O honesto então é o amigo e o canalha, o inimigo. Por conse-guinte, devemos mudar a definição de justiça. Era: é justo fazer bem a um amigo e mal a um inimigo. Na realidade, convém dizer: é justo fazer bem a um ami- go que é uma pessoa de bem e fazer mal a um inimigo que é um canalha.

– Creio – diz Polemarco, aliviado com o aparente consenso – que encontra-mos a solução do problema.

Sócrates, porém, com um sorriso no canto da boca, retruca:

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– Devagar com o andor! Mais uma perguntinha. A natureza de um homem justo autoriza-o a prejudicar seu próximo, seja ele quem for?

– Claro! Você acaba de dizê-lo: devemos prejudicar todos os canalhas, prin-cipalmente se forem nossos inimigos.

– A propósito dos cavalos, dizem…– Cavalos? – sobressalta-se Polemarco. – De onde vêm esses cavalos? Algum

cavalo teria sido um dia um canalha inimigo de alguém?– … dizem – obstina-se Sócrates – que, se os maltratarmos, eles não me-

lhoram.– Isso é mais que sabido! Maltratar um cavalo é transformá-lo num rocim.– E a respeito dos cães?– Cães, agora! Por acaso estamos procurando a justiça num zoológico!– Não, mas eu constato, examino, comparo. Se maltratarmos os cavalos, eles

pioram, em relação ao que é a virtude própria do cavalo, que é galopar sempre em frente carregando alegremente seu cavaleiro, a couraça do cavaleiro, suas perneiras, sua lança e suas provisões. Bem entendido, a virtude própria do cavalo não é a do cão, longe disso. Para o cão, está fora de questão carregar o encouraçado e suas perneiras. O que continua sendo verdade é que se maltra-tarmos um cão, ele se torna ora medroso, ora feroz, mas, em todo caso, muito mau relativamente à sua virtude própria de cão doméstico, que não é, repito, a do cavalo. Logo, isso é verdade para cães e cavalos.

– O que é verdade, Sócrates? Assim avançamos feito mulas.– A verdade é que se os maltratamos, desnaturamos sua virtude própria. Do

cavalo e do cão ao homem, o que deduzimos? Se maltratamos a espécie humana, ela não se torna pior, relativamente à sua virtude própria?

– Compreendi! Você estava introduzindo o homem por meio do cão! A conclusão me parece excelente. Mas ainda precisamos determinar o que é a virtude própria do homem. Não é como galopar ou ladrar!

– Mas é disso que falamos desde o início da noite! Afirmamos que a virtude própria da espécie humana é a justiça! Resulta de nossa comparação, portanto, que, se maltratamos os homens, tornamo-los mais injustos do que eram. Logo, é impossível um justo maltratar quem quer que seja.

– Espere! Alguma coisa me escapou nesse ponto, não vejo a lógica do ra-ciocínio.

Prólogo 29

– Um músico não pode, exclusivamente mediante o efeito de sua música, formar um analfabeto musical, assim como um cavaleiro, exclusivamente me-diante a arte equestre, um cavaleiro pífio. E sustentaremos que um justo pode, exclusivamente mediante o efeito de sua justiça, deixar alguém mais injusto do que é? Ou, para resumir, que a virtude dos bons é o que engendra os ca-nalhas? Isso é tão absurdo quanto sustentar que o efeito do calor é esfriar ou o da secura, molhar. Não, não pode estar na natureza de uma pessoa de bem prejudicar quem quer que seja. E como o justo é uma pessoa de bem, não está em sua natureza prejudicar seu amigo, ainda que seja um canalha, nem, de resto, prejudicar quem quer que seja. Esta é uma propriedade do injusto, que, por sua vez, é um canalha.

Aturdido, Polemarco capitula:– Devo render-me, receio. Você é demais para mim.Sócrates nocauteia o interlocutor:

– Se alguém, mesmo Simônides, mesmo Homero, declara que a justiça con-siste em devolver a alguém o que lhe devemos e se o seu pensamento subjacente é que o homem justo deve prejudicar seus inimigos e servir a seus amigos, sustentaremos intrepidamente que essas declarações são indignas de um sábio. Porque, pura e simplesmente, isso não é verdade. A verdade – ela refulgiu para nós em todo seu brilho ao longo do diálogo – é que nunca é justo prejudicar. O fato de vários luminares, de Simônides a Nietzsche, passando por Sade e muitos outros, sustentarem o oposto não nos impressionará mais, nem a mim nem a você. De resto, muito mais que aos poetas ou pensadores, a máxima “é justo prejudicar os inimigos e servir aos amigos” parece-me apropriada aos Xerxes, Alexandre, Aníbal, Napoleão ou Hitler, a todos aqueles em quem a extensão do poder provocou, por um tempo, uma espécie de embriaguez.

Polemarco exulta:– É toda uma visão de mundo que você nos descortina! Estou pronto a

cerrar fileiras ao seu lado.– Então, comecemos pelo começo. Se a justiça não é o que os poetas e tiranos

afirmam que é, o que será então?