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NOTAS CIÊNCIA para a do conceito de e. j. moreira da silva | ponta delgada | 2011 E A edição do autor

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NOTAS

CIÊNCIA

para a

do conceito de

e. j. moreira da silva | ponta delgada | 2011

EAedição do autor

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Notas para a elucidação do conceito de

Ciência

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E. J. MOREIRA DA SILVA

Notas para a elucidaçãodo conceito de

Ciência

PONTA DELGADA | 2011

EAedição do autor

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Índice

I. Etimologia do termo "ciência" e historicidade do seu sentido 7 II. A componente subjectiva, e as três grandes vias, do conhecimento 9 III. A componente objectiva do conhecimento eaclassificaçãodasciências 13 IV. Que é a ciência? 20 V. Acercadainduçãoedadedução,aparde algumasconsideraçõescomrelaçãoà historicidade do entendimento de "ciência" 36 VI. De episteme e scientia (de "ciência" em sentido lato) a "ciência" em sentido restrito, passandopeladesignação"filosofianatural" 43 VII. Conhecimentocientificoeconhecimento não-científico:trêsgrandesdiferenças 65VIII. Conhecimentocientíficoeconhecimento não-científico:diferençadecorrentedorigor e da completude do primeiro deles 71 IX. Conhecimentocientíficoeconhecimento não-científico:diferençadecorrente dofundamentoobjectivodoprimeirodeles 78 X. Conhecimentocientíficoeconhecimento não-científico:diferençadecorrente da validade doprimeirodeles 88 XI. Relaçõesentreciênciaefilosofia: epistemecomoconhecimentocientífico-filosófico 108 XII. Relaçõesentreciênciaecultura 131

Bibliografia 195

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1. O termo "ciência" deriva etimologicamente do substanti-vo latino scientia. Este último, que encontra a sua raiz no verbo latino scire ("saber"), significava, no seu sentido lato, "conhe-cimento" tout court, e, no seu sentido restrito, "conhecimento rigoroso de alguma coisa".

2.Destesdoissignificados,otermo"ciência"tendeaguar-darparasi,hoje-em-dia,apenasosegundo,ode"conhecimentorigorosodealgumacoisa";paranãodizerquetendeaexpressaro sentido ainda mais restrito de "conhecimento rigoroso da Na-tureza".

3.Nãoobstanteotermo"rigoroso" surgir no presente con-textocomo inevitávelcarácterdepars pro toto (edaío factodeseencontrarem itálico), anoçãode "rigor"éaqui sobeja-mente importante, uma vez que, sendo a ciência "conhecimento rigoroso", o conhecimento que um determinado momento his-tóricopossa identificarcomociênciaseencontradirectamentedependentedograudeprecisãoquepossaconsiderarconstituir"rigor".

4.Porsuavez,ograudeprecisãoqueumdeterminadomomentohistóricopossaconsiderarconstituir"rigor"encontra-sedependenteemgrandepartedosinstrumentosdemediçãoe dosmétodos de confirmação e de validação de que possadispor.E,assimsendo,nãoserádeestranharqueoconheci-mentoqueumdeterminadomomentohistóricoháconsideradorigoroso—e,porconseguinte,ciência—nãosejaconsideradonessaqualidadeporummomentohistóricoposterior.

5.Há,pois,quemanteremmenteque,comotantosoutros,o sentido do termo "ciência" varia de momento de viragem para momentodeviragemdoseucursohistóricooudasuahistorici-dade. Isto é, que esse mesmo sentido varia na medida em que vãosurgindométodosetécnicasdeaquisiçãodeconhecimentocada vezmais precisos e seguros, os quais vão restringindo,porassimdizer,oslimitesdaconcepçãovigentede"rigor"e,porconseguinte,de"cientificidade".

I. Etimologia do termo “ciência” e historicidade do seu sentido

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6.Apardisso,háqueconsiderarqueotermo"conheci-mento"éextremamentevago.Istoé,háqueconsiderar,porumlado,queexistemformasdiferentesdeconhecimento;poroutrolado,quenemtodaselassãopassíveis,sejaqualforomomentohistóricoemquenossituemos,deatingiromesmograuderigore,porconseguinte,decertezae indubitabilidade:decientifici-dade.

7. Na realidade, e dado que todo o conhecimento apresen-taumamesmaexigência—aexistênciadeumsujeito(deumconhecedor) e de um objecto (deumconhecido)—,opróprioconhecimentorevela-sepassíveldesermaisoumenosrigorosoe indubitávelem funçãosobretudodeduasgrandescondicio-nantes.

8.Umadessasduas condicionantes, que será conside-rada já a seguir (na secção II.), diz respeito precisamente aosujeito.Aoutra,queseráconsideradaumpoucomaisàfrente(nasecçãoIII.),prende-seprecisamentecomoobjecto. Melhor dizendo, consiste na natureza do objecto.

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II. A componente subjectiva, e as três grandes vias, do conhecimento

1. A primeira das duas condicionantes que acabam de ser mencionadas, a que diz respeito ao sujeito, consiste na via espe-cíficaporqueeste(osujeito)maioritariamentesefazconhecedor.

2.Trata-se,porum lado(i),daviaactivadarazão(Ver-nunft) e do entendimento (Verstand),enquantofaculdadesquesão responsáveispeloconhecimento ideal,oqualépornatu-reza sintético e abstracto. Trata-se, por outro lado (ii), da viapassivadasensaçãooudossentidos,enquantofaculdaderes-ponsávelpeloconhecimento real,oqualésempreconcretoeparticular.Trata-se,poroutroladoainda(iii),daviaintuitiva da chamada"visãointerior"(insight), a qual proporciona acesso a leiturasdasmaisdiferentesrealidades(imanentesoutranscen-dentes)—eformasdeascorrelacionarevivenciar—que,dadaasuanaturezasubjectivaouatémesmoidiossincrática,nãosãopassíveisdesercorroboradasouvalidadasquerobjectivaquerintersubjectivamente.

3.Aviada"visãointerior"encontra-senaorigemsobretudodo conhecimentodeíndolereligiosaepoética,aoqualtradicio-nalmentesehárecusadooestatutodeconhecimentorigorosoe,porconseguinte,deciência,nãoobstanteserfrequentevê-loa ser equacionado com a verdadeira sabedoria.

4.OpoetainglêsAlfredTennyson(1809–1892)eoroman-cistaamericanoHermanMelville(1819–1891)dão-nostestemu-nhodetalformadeconhecimento.

5.Oprimeiro,Tennyson,aoafirmar:"Pensoquenãoso-mosapenascérebro,|Imitaçõesmagnéticasquesãoescárnio...|Nãotão-somentehábeiscorposmoldadosembarro:|Queseponhaaciênciaaprovarqueosomos,pois|Queimportaanós,homens,aciência,|Pelomenos,aohomemquesou?|Nãoacorroboraria eu. | O homem que de ora em diante despontar, | Essequeseponha,maissábio,acomportar-se|Comoosímiosuperior,logoapartirdecriança,|Queeunasciparaoutracoisa."1

1AlfredLordTennyson.In Memoriam A. H. H. (CXX). In: — Poems and Plays.Ed.T.HerbertWarren,Oxford,OxfordUniversityPress,1983,p.262.("I thinkwearenotwhollybrain, |Magneticmockeries... |Notonlycunning

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6.Osegundo,Melville,aoafirmar:"...atravésdasespes-sas neblinas das sombrias dúvidas da minha mente, através detodaselas,intuiçõesdivinasdespontamdequandoemvez,iluminandoomeunevoeirocomumraiodefogoceleste.Edougraças a Deus por isso; porque todos têm dúvidas, emuitossãoosquenegam,aopassoque,dúvidasounegações,poucossãoosque,apardelas,têmintuições.Dúvidascomrespeitoatodasascoisasterrenaseintuiçõesdealgunsaspectosceles-tiais—comestacombinação,nãoseécrenteneminfiel;é-seum homem que olha ambas com imparcialidade."2

7.Passemosagoraaconsiderar(1)aviaactivadarazãoedoentendimento,enquantofaculdadesquesãoresponsáveispelo conhecimento ideal, e (2) a via passiva (porque receptiva) dasensaçãooudossentidos,enquantofaculdadequeérespon-sávelpeloconhecimentoreal.

8.Todooconhecimentohumanoexigeaautoconsciência.Istoé,exigeaconsciênciadaconsciênciadequeseconhece,seja aquilo que se conhece (o objecto) (i) pensamento (produ-ção ouposição damente, idealidade) ou (ii) sensação (dado objectivo, realidade).

9. No primeiro destes dois casos (i), o conhecimento é pura idealidade, uma vez que tanto o conhecedor (a autoconsciência do sujeito) como o conhecido (o objecto)sãopensamentoe,porconseguinte, idealidade. No segundo caso (ii), o conhecimento é tantoidealidadecomoapreensãodarealidade,umavezque,seo conhecedor (a autoconsciência do sujeito) permanece pensa-mentoouidealidade,oconhecido(oobjecto)é,agora,sensaçãoou dadoobjectivoe,comotal,apreensãodarealidade.

10. Enquanto pura idealidade ou conceptualidade que re-flectesobresimesma(i),oconhecimentoéaconsciênciaque

castsinclay:|LetScienceproveweare,andthen|WhatmattersScienceuntomen,|Atleasttome?Iwouldnotstay.|Lethim,thewisermanwhosprings|Hereafter,upfromchildhoodshape|Hisactionlikethegreaterape,|ButIwasborn to other things.")

2 Herman Melville. Moby-Dick (cap.85).Ed.HaroldBeaver,Harmon-dsworth,PenguinBooks,1980,p.482. ("...throughall the thickmistsof thedimdoubts inmymind,divine intuitionsnowand thenshoot,enkindlingmyfogwithaheavenly ray.And for this I thankGod; forallhavedoubts;manydeny;butdoubtsordenials,fewalongwiththem,haveintuitions.Doubtsofallthingsearthly,andintuitionsofsomethingsheavenly;thiscombinationmakesneitherbelievernorinfidel,butmakesamanwhoregardsthembothwithanequaleye.")

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o sujeito temdos raciocínios quea actividadedo seuprópriopensamentoproduz(oudasconclusõesaqueoseupensamen-to chega) ao tomar por objecto determinados pensamentos (de-terminadas entidades meramente ideais), os quais podem ser particulares e privados(porexemplo,oraciocínio"abandoneiomeufilho;logo,souummaupai")ouuniversaisepúblicos (por exemplo,opensamento"2+2=4").

11.Enquantosimultaneamenteidealidadeeapreensãodarealidade (ii),enquanto formaconceptualque reflectesobreoconteúdo de uma determinada realidade, o conhecimento é a consciênciaqueosujeitotemdosraciocíniosqueaactividadedoseuprópriopensamentoproduz (oudasconclusõesaqueeste chega) ao tomar por objecto: (a) umadeterminada reali-dadeconcretaeparticular;(b)asrelaçõesparticularesqueob-jectivamente se estabelecem entre uma determinada realidade concreta-particular(ente,eventoouacção)eoutrasrealidadesigualmenteconcretas-particulares(qualitativamentehomogéne-asouheterogéneas);(c)asrelaçõesuniversaisqueconceptu-almente (ou in abstracto) se estabelecem entre os membros de umasériehomogéneaderealidadesconcretas-particulares(en-tes,eventosouacções);(d)asrelaçõesuniversaisqueconcep-tualmente (ou in abstracto) se estabelecem entre os membros deduasoumaissériesheterogéneasderealidadesconcretas-particulares(entes,eventosouacções).

12.Aquiloqueacabadeserditopõeemevidênciaduascoisas.

13. Uma dessas duas coisas é que, enquanto simulta-neamente idealidade e apreensão da realidade (ii), enquantoconhecimentodomundoexteriorouobjectivo,oconhecimentopode ser conhecimento (imediato) de uma realidade individual ouparticular(porexemplo,"oJoão")oudeumconjuntodereali-dadesindividuaiseparticulares(porexemplo,asrealidadesquepossampreencherumdeterminadoespaçoouumdeterminadocampodevisãonumdeterminadomomento).

14.Aoutracoisaéque,enquanto,nãomenos,conheci-mentodomundoexteriorouobjectivo(ii),oconhecimentopodeigualmente ser conhecimento (mediato) quer das constantes objectivas (das leis invariáveis) que o pensamento abstrai daexperiência concretadoprópriomundoexterior (porexemplo,as constantes objectivas que determinam a espécie "Homem"

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ou a força da gravidade), quer dos constructosmentais (dosconceitos)queelemesmo,pensamento,constróiapartirdaex-periênciaempírica(porexemplo,oconceitode"justiça"oude"universalidade").

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III. A componente objectiva do conhecimento e a classificação das ciências

1.Umpoucoatrás(nasentradas7.–8.dasecçãoI.),disse-sequeoconhecimentoserevelapassíveldesermaisoumenosrigoroso e indubitável em função sobretudo de duas grandescondicionantes. Vimos de considerar sumariamente a que diz respeitoaosujeitoouàcomponentesubjectiva do conhecimen-to.Torna-senecessário,agora,tomaremlinhadecontaacondi-cionante que diz respeito ao objectoouàcomponenteobjectiva dopróprioconhecimento.

2.Comoseviu(naentrada7.dasecçãoI.),todooconhe-cimento—e,logo,todaaciência—implicaaexistênciadeumsujeito (de um conhecedor) e de um objecto (de um conhecido), pertençaesteúltimoaomundointerioreidealdosujeitoouaomundoexteriorereal,comoqualoprópriosujeitoseconfron-taedoqual fazparte.—Noprimeirocaso(aqueleemqueseconfrontacomomundoexteriorereal),consideradoele,sujei-to, qua res cogitans (no dizer de Descartes) ou ente pensante; considerado qua idealidade. No segundo caso (aquele em que fazpartedomundoexteriorereal),consideradoqua res extensa (tambémnodizerdeDescartes)ouentefísico;consideradoqua realidade.

3.Aquiloquevemdeserditopõeemevidênciaqueaide-alidadenãoserestringeàesferadosujeitotout court, em oposi-çãoàquiloqueseverificacomarealidade,queserestringeàes-feradoobjecto real. Assim acontece na verdade, uma vez que, comoseviu(nasentradas8.–9.dasecçãoII.),opensamento(aesferadaidealidade)secaracterizaporteracapacidadeparatomar a si mesmo por objecto. Istoé,caracteriza-sepelasuareflexividade;porsersimultaneamentesujeitoeobjecto.

4.Ora,comosepercebe,decorredisso,porforça,queoobjecto tanto pode ser objecto ideal, pensamento ou idealidade, como objecto real ou realidade — sendo que, neste segundo caso (aquele em que é objecto real), pode assumir sobretudo umdedoisaspectosfundamentais:ouoaspectodecorponão-humano ou, inversamente, o aspecto de corpo humano. O mes-moédizer,oaspectodaquelarealidadeespecíficasemaqual

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nãopodehaveridealidade,dadoque,seaidealidade(naformade eu pensante) pode assumir como objecto ideal a si mesma (naformadeeu meramente pensado ou de mim) e como objec-to realtantoarealidadenão-humana(naformadeoutronão-humano)comoarealidadehumana(naformadeoutro huma-no),issosósetornapossívelporqueocorpohumanoproduzaprópria idealidadee,poressemodo,devémsimultaneamenteobjecto (real) e sujeito (ideal).

5.Ora,peranteisso,nãoserãodeestranharduascircuns-tânciassignificativas.

6.Umadelaséacircunstânciadeaclassificaçãodasciên-ciasquevigorahoje-em-diasedeixardeterminar,praticamenteem primeira instância, pela dualidade objecto de natureza ideal / objecto de natureza real.

7.AoutracircunstânciaéadeaseparaçãoentreCiênciasExactas e Ciências Inexactas decorrer grosso modo: por um lado(i),daexistênciadedoistiposdeobjectos de natureza ideal (aquelesquesãopassíveisdeserconhecidosdemodoexactoeaquelesquenãosãopassíveisdisso);poroutrolado(ii),daexis-tência de dois tipos de objectos de natureza real (aqueles que sãopassíveisdeserconhecidosdemodoexactoeaquelesquenãosãopassíveisdisso);poroutroladoainda(iii),daexistênciadeáreasdaexperiênciahumanaquesãoobjecto de natureza simultaneamente ideal e real, e que, em ambos estes aspectos, nãosãopassíveisdeserconhecidasdemodoexacto.

8. Na qualidade de objecto (de conhecimento) de nature-zaidealqueépassíveldeserconhecidoecorrelacionadocomtotalexactidão,temosasconstantesqueagrupamosnoforodalógica,damatemáticaedageometria,asquaissãoestudadaspelas ciências que assumem, respectivamente, esses nomes.

9. Na qualidade de objecto (de conhecimento) de natureza idealquenãoépassíveldeserconhecidoecorrelacionadocomtotalexactidão,temos,porexemplo,aIdeiadeEstado,aIdeiadeJustiça,aIdeiadeBeleza,etc.,asquaissãoconsideradaspordiferentesáreasdaFilosofia.

10. Na qualidade de objecto (de conhecimento) de natu-rezarealqueépassíveldeserconhecidoecorrelacionadocomtotal exactidão, temos, por exemplo, as constantes objectivasquedeterminamomundomaterial,asquaissãoestudadasso-bretudopelaFísicaepelaQuímica.

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11. Na qualidade de objecto (de conhecimento) de natu-rezarealquenãoépassíveldeserconhecidoecorrelacionadocom total exactidão, temos, por exemplo, os testemunhos daevolução das espécies, os quais são estudados pelaHistóriaNatural.

12. Na qualidade de objecto (de conhecimento) de nature-za simultaneamente real e ideal — de objecto que, em ambos estesaspectos,nãoépassíveldeserconhecidoecorrelaciona-do com totalexactidão—,temos,porexemplo,ostestemunhosdopassadocivilizacional(quesãoestudadospelaHistória)ouosentes,asacçõeseoseventosdecaráctersocial(osquaissãoestudadossobretudopelaSociologia).

13.A classificação das ciências que vigora hoje-em-diacomeça, geralmente, por distinguir entre (i) CiênciasTeóricasouPurase(II)CiênciasPráticasouAplicadas—nãoobstanteofactoevidentedeodesenvolvimentodestasúltimasseencon-trar grandemente dependente do desenvolvimento e da evolu-çãodasprimeiras.

14.Assegundas,asCiênciasPráticasouAplicadas,cons-tituem, cada uma delas, um conjunto de conhecimentos e de procedimentosespecializadosquesempretêmemvistasatisfa-zerumououtrofimespecífico,eque,porconseguinte,sempretêmumautilidadeparticular.Entreelas,contam-se,porexem-plo, a Medicina e a Engenharia Civil — sendo que a primeira se caracterizaesejustificaporteremvistasatisfazeranecessida-dedeeliminaradoençaoudereporasaúde,easegundasecaracterizaejustificaporteremvistasatisfazeranecessidadedeconstruircasaseedifícioscadavezmaisseguroseadequa-dosàssuasfunçõesprimordiais.

15.Pelocontrário,asprimeiras,asCiênciasTeóricasouPuras,consistem,cadaumadelas,nãoapenasnumconjuntode conhecimentos e de procedimentos especializados cuja uti-lidade lheséextrínsecae,por isso,maisoumenosacidental, mastambémnaaplicaçãopersistenteecoerentedeummétodoespecíficodedescoberta,deconfirmaçãoedepredição, cujofimseesgotatão-somentenaampliaçãoesistematização,vezavez,deconhecimentosjáadquiridosouderesultadosjáobtidos.

16. Neste sentido, cada uma das Ciências Puras consiste numaactividadequetememvistaoincremento,aconfirmaçãoeasistematizaçãodeumcorpoespecíficodeconhecimentos

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por motivos de natureza puramente intelectual. Isto é, consiste numestudoenumaactividadeque,algoàsemelhançadaquiloqueacontececomaFilosofia,aPinturaeaLiteratura,encon-tra a sua razão de ser, emprimeira instância, na curiosidadedesinteressada que caracteriza amente humana: no impulsonatural para conhecer apenas pela necessidade e pelo prazer de conhecer.

17.AdentroexclusivamentedoâmbitodasCiênciasTeóri-casouPuras,aclassificaçãodasciênciasquevigorahoje-em-diaestabeleceumadivisãoque,comofoiditoatrás(naanteriorentrada 6.), decorre da dualidade objecto (de conhecimento) de natureza ideal / objecto (de conhecimento) de natureza real. É elaadivisãoentreasCiênciasFormaiseasCiênciasEmpíricasouExperimentais.

18.EntreasCiênciasFormais,enaqualidadedeciênciascujo objectoénãosódenaturezaideal,mastambémpassíveldeserestudadoecorrelacionadocomexactidão,encontram-seaLógica,aMatemáticaeaGeometria.

19.NoquetocaàsCiênciasEmpíricasouExperimentais,deparamos com a divisão entreCiênciasNaturais eCiênciasHumanaseSociais.

20.AsCiênciasNaturaisincluem,porexemplo,aFísica,aQuímica,aAstronomia,aGeografiaeaBiologia,cujosdiversosramos constituem as chamadas Ciências da Vida.

21.AsCiênciasSociaiseHumanasincluem,porexemplo,aAntropologia,aPsicologia,aSociologia,aFilosofia,aHistória,oDireitoeaLinguística—nãoobstanteserevidentequenemtodas estas ciências se prestam a ser consideradas (pelo me-nos,porinteiro)CiênciasEmpíricasouExperimentais.

22. De entre estes dois tipos de ciências, as Naturais e as SociaiseHumanas,sãoasprimeiras,asCiênciasNaturais,quesedistinguemdasCiênciasFormaispelaviadeseremciênciascujo objecto é de natureza real. E isto uma vez que as Ciências SociaiseHumanassecaracterizamcomociênciascujoobjec-to tendeaseroupuramenteideal(comoacontece,porexem-plo,comaHistóriadasIdeias)ousimultaneamenterealeideal(comoacontece,porexemplo,comaEconomiaeaHistóriapro-priamente dita).

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23.Agora,afronteiraentreasCiênciasExactaseasCiên-ciasInexactasequivaleàfronteiraentreasciênciascujoobjecto épassíveldeserconhecidoecorrelacionadocomtotalexacti-dão(irrespectivamentedeserobjecto de natureza ideal ou real) e, por outro lado, as ciências cujo objectonãoépassíveldisso(irrespectivamente, também, de ser de natureza ideal ou real).

24.E,assimsendo,essamesmafronteiraagrupaaumladoasCiênciasFormaiseasCiênciasNaturais,naqualidadedeCiênciasExactas,enquantoagrupaaoutroladoasCiênciasSociaiseHumanas,naqualidadedeCiênciasInexactas.

25.Porém,setaldivisãoé,narealidade,aqueseobtémquando se entra em linha de conta apenas com a possibilidade ou a impossibilidade de o objecto (de estudo) ser conhecido e correlacionado com totalexactidão,aconteceque,adentrodasCiênciasNaturais,oestatutodeciênciaexactatendeaserre-servadoemparticularparaaFísicaeparaaQuímica—umavez que, entrando agora em linha de conta com a componente idealouformalquetodooconhecimentopornaturezaimplica,estasduasciênciassãoasquemaissecaracterizamporestu-dar os seus respectivos objectosreaisemfunçãodasconstan-tes numéricas (e, por conseguinte, das constantes ideais) que asCiênciasFormaistomamporobjecto. Isto é, uma vez que a FísicaeaQuímicasãoasciênciasquemaissecaracterizamporser estudo e conhecimento do mundo real que se processa por viasobretudodemediçõesprecisasoudeexpressõeseprevi-sõesquantitativas.

26.Chegadosaqui,trêsconstataçõesseimpõem.27.Umadessasconstataçõeséadeque,afinal,aclassi-

ficaçãodasciênciasquehoje-em-diavigoranosconfrontacomdoissentidosde"ciência":porumlado(i),comumsentidolatodessetermo,oqualexpressaaideiadeconhecimento sistema-tizado e tão rigoroso quanto o objecto de estudo possa permitir, irrespectivamente de ele, objecto, ser de natureza real ou ideal; por outro lado (ii), com um sentido restrito desse mesmo termo, oqualexpressaaideiadeconhecimento sistematizado e exacto dos objectos de natureza ideal e dos objectos de natureza real que são passíveis de ser estudados com total exactidão.

28. No primeiro desses seus dois sentidos, o lato, o ter-mo"ciência"temaplicaçãotantoàsCiênciasFormaiscomoàschamadasCiênciasEmpíricas ouExperimentais, sejam estas

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Ciências Naturais ou Ciências Sociais e Humanas. E, assimsendo, abrange tanto as Ciências Exactas como as CiênciasInexactas.

29. No segundo sentido, o restrito, o termo "ciência" tem aplicaçãoapenasàsCiênciasExactas, asquais, comosehávisto(naanteriorentrada25.),incluemasCiênciasFormaise,naqualidadedeCiênciasEmpíricas,sobretudoaFísicaeaQuímica.

30.Asegundadastrêsconstataçõesqueforamreferidasatrás(naanteriorentrada26.)decorredaprimeira.Éelaacons-tataçãodequeos dois sentidosde "ciência" que vêmde serconsiderados (um lato, o outro restrito) decorrem da componen-te objectivadoconhecimento.Istoé,decorremdograudeexac-tidãoedecertezaqueosdiferentesobjectos de conhecimento permitemàsrespectivasciênciasalcançar.

31.A terceiraconstataçãodecorre igualmentedaprimei-ra.Éelaaconstataçãodeque,nãoobstantese tender,hoje,a pensar quase exclusivamente na Física, na Química e naAstronomia quando se ouve ou lê o termo "ciência", este tem genuinamenteaplicação,porviadoseusentido lato,a todooesforçoparaconhecer,definirecorrelacionardemodosistemá-ticoetãorigorosoquantopossíveltodoequalquerobjecto com que a mente humana possa deparar, irrespectivamente de ser objecto de natureza real, ideal ou simultaneamente real e ideal. Omesmoédizer,irrespectivamentedeconsistirnumdeváriosmundos ou de ser objecto que constitui parte de um desses mesmos mundos.

32. Tais mundos, que se interpenetram, são, grosso modo,osseguintes:(i).omundoreal,naqualidadeespecíficade mundo material dos entes inertes (não-vivos) não-criadospelo homem (a Natureza); (ii) o mundo real, na qualidade espe-cíficademundomaterialdosentesvivos,dosanimais(incluindoo homem), dos vegetais e dos restantes organismos vivos (a Natureza);(iii)omundoreal,naqualidadeespecíficademundomaterialdosentesinertes(não-vivos)criadospelohomem;(iv)omundoreal-ideal,naqualidadeespecíficademundosimbólicoe,por conseguinte, de mundo produzido pelo homem; (v) o mundo real-ideal,naqualidadeespecíficademundosociale,porcon-seguinte,naqualidadedemundoconstituídoevividopeloho-mem;(vi)omundoideal,naqualidadeespecíficademundodasconstantes formais (lógicas, matemáticas e geométricas) que

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intersubjectivamente determinam todo o conhecimento; (vii) o mundoideal,naqualidadeespecíficademundodosconstructosmentais, e, por conseguinte, na qualidade de mundo produzido evividopelohomem;(viii)omundoideal-real,naqualidadees-pecíficademundopsicológicoeemocional,e,porconseguinte,na qualidade de mundo vivido e sentido pelo homem.

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IV. Que é a ciência?

1.Torna-se,agora,possívelconsiderarsucintamenteaqui-lo em que a ciência consiste quando por "ciência" se entende, no sentido lato do termo, conhecimento sistematizado e tão rigoro-so quanto o objecto de estudo possa permitir, irrespectivamente de ele, objecto, ser de natureza real, ideal ou simultaneamente real e ideal.

2.Omesmoédizer:torna-se,agora,possívelconsideraraquiloque,semexcepção,todaaciênciaé,umavezque,en-quanto sentido genérico e mais abrangente, o sentido lato de "ciência" engloba ou abrange o sentido restrito.

3. Em primeiro lugar, toda a ciência consiste numa pers-pectivaounumamirada formalmenteespecífica.Significa isto,consiste num modo particular de olhar e de considerar o objecto, seja ele qual for— sendo que essemodo particular assentasobretudonapredisposiçãoparaabraçaraverdadedopróprioobjecto,pormaisinesperadaqueelapossavirarevelar-seoupormaisterríveisedevastadorasqueassuasconsequênciassepossam mostrar. O mesmo é dizer, sendo que esse modo parti-cular de olhar e de considerar o objecto,essaposturametódicadecarizfilosófico-científico,severificaapenasquandoosujeitoque procura conhecer o objectonãointerpõeentreesteúltimoeele próprio qualquer tipodepré-conceitos oudepré-juízos;qualquer tipodeexpectativaspré-determinadasque,na formade filtro subjectivo ou de interesse pessoal ou partilhado, pos-saminquinaroesforçoparalevaroobjectoarevelar-senasuaverdade ou na sua essência.Éesta,aconcepçãode"ciência"queGeorgeOrwell tinhaemmenteaoescreveroseuensaioquetemportítulo"WhatisScience?"("QueéaCiência"?).

4. Em segundo lugar, toda a ciência consiste numa acti-vidade;consiste,maisemconcreto,naactividadedeexpandir,validar e sistematizar o conhecimento de um determinado ob-jectoespecífico.

5. Em terceiro lugar, e enquanto apenas actividade que tememvistaexpandirouaumentaroconhecimentodeumde-terminado objectoespecífico,todaaciênciaassumetambémo

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aspecto de produção. Ou seja, assume também, como se perce-be,oaspectodeproduçãoeaquisiçãodenovoconhecimento,oqual,independentementededarounãoorigemaumnovoramodoconhecimentocientíficoemgeral(comoaconteceporvezes),poderáviraterefeitocumulativo,validativoouinvalidativonosconhecimentos da área (científica) a que pertence que o hãoantecedidoequeaelehãoconduzido.

6. Em quarto lugar,edadoquetodaaproduçãoimplicaum produto ou um produzido, toda a ciência consiste, momen-toamomentodasuaevolução,nissomesmo:numproduto ou produzido. Ou seja, consiste, momento a momento, num corpus maisoumenosextensoesistematizadodeconhecimentosdeum determinado objectoespecífico(porexemplo,omundoma-terial dadoounão-criadopelohomem)—sendoqueumtalcor-pustambémpoderáserconsideradomaisoumenosfechado e maisoumenosestável.

7. Mais ou menos fechado,nosentidodeserconstituídopor conhecimentos de aspectos mais ou menos abrangentes ou macrocósmicos de um determinado objecto específico.Ouseja,nosentidoemque,porexemplo, sepoderádizerqueocorpus daFísicaNuclear(aqualestudaosconstituinteseasin-teracçõesdonúcleoatómico)émaisfechadodoqueodaFísicaAtómica(aqualestudaosátomosenquantosistemaderelaçõesentreonúcleoeoselectrões).

8.Maisoumenosestável,nosentidode,noseutodoouem parte, os conhecimentos que constituem um tal corpus se-rempassíveisdemanterasuaintegridadesistemáticaeasuavalidadeporperíodosmaisoumenoslongos.Ouseja,nosenti-dodeaaquisiçãodenovosconhecimentospoderviraacarretarconsigoasuperaçãooua reconfiguraçãodeumdeterminadocorpus, no seu todo ou em parte, passado maior ou menor tem-poapósa constituiçãodessemesmocorpus. Quer isto dizer, apósesteúltimotersidoiniciadoporviadaaquisiçãoecorrela-ção,numprimeiro momento, dos conhecimentos de que a sua identidade e sistematicidade mais possam depender.

9. Em quinto lugar,eenquantoproduçãoesistematiza-çãodeconhecimentosdeumdeterminadoobjectoespecífico,toda a ciência consiste, de modo mais ou menos consciente e rigoroso, na aplicação de um método.Ouseja,naaplicaçãodoconjuntoderegrasedeprocedimentosquesetornanecessário

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seguirparaproduziroualcançaroconhecimentoespecíficoquese tem em vista.

10.Ora,oconhecimentoespecíficoqueumadeterminadaciênciatememvistaalcançarouqueintentaproduzirencontra-se determinado, em primeira instância, pela natureza do objecto que ela pretende conhecer (a qual, como se tem vindo a ver, tanto pode ser ideal, como real, como simultaneamente ideal ereal).E,assimsendo,oprópriométodoqueestaouaquelaciênciasevênanecessidadedepôrempráticanumcertomo-mentodasuahistóriaoudasuaevoluçãonãopoderádeixardese encontrar determinado, em primeira instância, pela natureza do objecto ou dos objectos que ela pretende conhecer.

11. Daquilo que vem de ser dito, resultam, in extremis, duas circunstâncias opostas. Uma delas é a circunstância de o objecto quesepretendeconhecer(porexemplo,oconceitode"cultura"oude"literatura")serdenaturezaideale,porisso,não-passíveldeserconhecidoeexplicadoexperimentalequantitativamente.A outra circunstância é a de, inversamente, o objecto que se pretendeconhecerserdenaturezareale,comotal,passíveldeserconhecidoeexplicadoexperimentalequantitativamente.

12. Em circunstâncias como a primeira destas duas, o mé-todo de produçãodeconhecimentoteráporforçadeassumirocaráctersobretudodeconjuntodeprescriçõeseprocedimentos mentais.Ouseja,ocarácterdemétodo de conduzir a razão ou o pensamento correctamente,parautilizarotítulodaconhecidaobra de Descartes (Discours de la méthode pour bien conduire sa raison, et chercher la vérité dans les sciences),aqualexpres-saaconvicçãodequeaexactidãoeacertezadoconhecimentomatemáticopodemseremuladasespeculativamenteporviadeo pensamento se ater a regras como a de "aceitar como ver-dadeiroapenasaquiloqueé indubitável",ade "começarcomos aspectos mais simples e ascender posteriormente aos mais complexos",eade"recapitularcomafrequênciaqueforneces-sáriaparacontinuamentemanteroargumentoemmentenasuatotalidade".1

13.Jáemcircunstânciascomoasegundadasduasqueforamexplicitadas(naanteriorentrada11.),ométododeprodu-çãodeconhecimentovariaránãosódeacordocomaciência

1 Veja-se: René Descartes.Discours de la Métode. Ed. GenevièveRodis-Lewis,Paris,Flamarion,1966,p.47.

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específicadequesetratar,mastambém,demodomaissignifi-cativo,deacordocomomomentohistóricoemquedeparamoscomela.Istoé,deacordocomoestádiodeevoluçãoemqueela se encontrar e, por conseguinte, também de acordo com a concepçãovigentedotipodeciênciaemqueelaseinserir.

14.Porexemplo,sementalmenterecuarmosatéàciênciapré-socrática(séculosVIeVA.C.),quehojeéentendidacomo"filosofia",iremosdepararcomosphysiologoioufísicosgregos,comosfundadoresdaFísicaocidental,autilizarcomométododeproduçãodeconhecimentodomundorealdado (da physis ou da Natureza) um conjunto de regras implícitas não muitodiferentesdasqueDescartesprescreveaopensamentoouaoraciocínionoseuDiscours de la méthode(nãomuitodiferentes,naquiloquetocaàsuanaturezaouaoseumododeexecução, nãonaquiloquetocaaoseufundamentofilosófico).

15.Contudo,hoje-em-dia,quandopor"ciência"seenten-de quase exclusivamente as Ciências Naturais quemais sãoconsideradasexactas (aFísicaeaQuímica), todoequalquerramo da ciência que tenha por objecto o mundo real dado (a Na-tureza), inclusive o da Biologia e das restantes Ciências da Vida, sóseráconsideradoverdadeiraciênciaseseativeraochamado"MétodoCientífico".

16. Isto é, se o método de produção de conhecimento que seguirforométodoexperimental,oqualsecaracterizasobretu-doporconsistirnosseguintesprocedimentos:(i)observarcons-tantesquantitativaserelaçõesdecausalidadenoobjecto de co-nhecimento;(ii)formularhipótesescomrespeitoàdescrição(ao"como")detaisconstanteserelações,emlugardecomrespeitoàsuaexplicação(ao"porquê");(iii)partindodetaishipóteses,formular hipóteses com respeitoànatureza (ao "quê") doob-jecto;(iv)formularexperiênciasquepermitamtestaravalidadeounão-validadedetais(doistiposde)hipótesesemlinguagemquantitativa (matemática) e com o auxílio de instrumentos deobservaçãoedeaferição;(v)analisarosresultadosobtidos;(vi)retirardetalanáliseconclusõescomrelaçãoàconfirmaçãooudesconfirmaçãodavalidadedashipótesesformuladas.

17. Em sexto lugar,enaqualidadedeproduçãodeumtipo específico de conhecimento, toda a ciência consiste, emmaior ou menor grau, numa forma específica de linguagem ou de discurso.

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18. Naquilo que a isto diz respeito, deparamos, em primei-ra instância,comofactodetodaequalquerciênciaterdecon-sistiremlinguagemverbal.Eistoportrêsrazõesnecessárias.

19.Emprimeirolugar,pelarazão(quedecorredasduasqueaseguirsãoenunciadas)de,mesmoenquantoproduçãodenovoconhecimento,todaaciênciaterdecomeçarporconsistirnum determinado corpusdeconhecimento:—querqua corpus de conhecimento do objecto,umavezquesenãopodepreten-der conhecer algomais extensa e profundamente sem saberque coisapossaser(talcomosenãopodetentarencontrarumacoisasemconhecerquecoisaespecíficaelaseja),querqua cor-pus de conhecimento dela mesma (ciência), considerada como actividade conceptual e/ou experimental que intenta alcançarumcertonúmerodefinsespecíficosporviadeumcertonúmerodemeiosedemétodosigualmenteespecíficos.

20.Emsegundolugar,pelarazãode,comexcepçãodoconhecimento puramente sensitivo ou intuitivo (do conhecimen-to do mundo exterior que nos chega exclusivamente via dos sentidos), todo o conhecimento (e, logo, também o conhecimen-toespecíficoemque todaaciência temdeconsistirab initio) terdeserconceptualizaçãooupensamento.Terdeser,melhordizendo, objecto discursivo que o pensamento produz para si mesmo e de que, como tal, se encontra consciente.

21.Em terceiro lugar,pela razãode todaaconceptuali-zaçãooutodoopensamento(e,logo,opensamentodiscursivoem que, qua conhecimento específico, toda a ciência tem deconsistir ab initio)sópodersubsistir (antesdemais)na formade linguagemverbalouconceptual:na formadediscurso-em-representação(Vorstellung).

22. Em segunda instância, deparamos com o facto detodaaciênciaterdeconsistir,comoaquicomeçouporserdito(naanteriorentrada17.),numaformaespecíficadelinguagemoudediscurso,sendoqueaespecificidadequeacabadeserreferida(adalinguagemoudodiscurso)decorresobretudodeduas circunstâncias.

23. Uma dessas circunstâncias é a de toda ciência ter de consistir em conhecimento que é produzido e que opera maio-ritariamente através do mediumsimbólico(i)dalinguagemqua-litativa ou, inversamente, (ii) da linguagem quantitativa. Isto é, conhecimento que é produzido e que opera maioritariamente

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porviadeconceitosclassificatórios(noprimeirocaso)ou,pelocontrário(enosegundocaso),porviadeconceitosquantitativose de conceitos comparativos numéricos.—

24. Por "conceitos classificatórios", entenda-se aquelesque classificam (subsumem numa classe) quanto à espécie(e.g.,"animal","juízodegosto")equantoaospredicados(e.g., "pesado","conceptual").Por"conceitosquantitativos",entenda-se aqueles que necessariamente remetem para uma escala de valores numéricos pré-determinada (e.g., "temperatura", "peso"). Por "conceitos comparativos numéricos", entenda-seaquelesqueestabelecemcomparaçõesdemagnitudeemfun-çãodeumaescaladevaloresnuméricospré-determinada(e.g., "maispesado","maisquente"),emlugardeemfunçãodeumaescala de valores numéricosmeramente implícita (e.g., "mais belo", "mais poético", "mais imaginativo").2

25. Como ciências que operam maioritariamente através do mediumsimbólicodalinguagemqualitativaeque,porisso,sãoconsideradasCiênciasInexactas,temossobretudoasquegrosso modo se enquadram na classe das Ciências Humanas e Sociais.Ouseja, temossobretudociênciascomoaHistória,aFilosofia,oDireito,aPsicologia,etc.

26. Como ciências que operam maioritariamente através do mediumsimbólicodalinguagemquantitativaeque,porisso,sãoconsideradasCiênciasExactas,temos,porumlado,aMa-temática(que,naqualidadedeCiênciaFormal,temporobjecto, nasuaformapuraouabstracta,osconceitosquantitativoseasrelações lógicas que entre eles se estabelecem) e, por outrolado,aFísicaeaQuímica(paraasquais,demododiferente,osconceitos quantitativos e os conceitos comparativos numéricos assumemocarácterdeconstantes lógico-simbólicasque lhespermitemquantificar,analisaredescreverosseusrespectivosobjectos).

27.Asegundadasduascircunstânciasquehápoucofo-ramreferidas(naanteriorentrada22.)éaseguinte:ade,en-quanto conhecimento de um objectomaisoumenosespecífico,e, por conseguinte, também enquanto linguagem qualitativa ab initio mais oumenos específica, toda a ciência se confrontar

2Comrespeitoaestestiposdeconceitos,veja-se:RudolfCarnap.An Introduction to the Philosophy of Science.Ed.MartinGardner,NewYork,Do-ver,1996,pp.51–61.

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com a necessidade de gradualmente se constituir discurso parti-cular (se se quiser, discurso técnico)nãosópelaviadeseleccio-narparasiumnúmeromaisoumenosrestritodoslexemasqueentramnaconstituiçãodachamada "linguagemcomum",mastambémpelaviadegerar,elamesma,osconceitosespecíficos(e,logo,ovocabulárioouostermosincomuns)quesevãoreve-landonecessáriosàsuainterrogação,interpretação,teorizaçãoeclassificação(denovosaspectos) do objecto.

28. Àquilo que acaba de ser dito, acrescem quatro reparos.29. Um primeiro reparo é o de que, sobretudo no caso

dasciênciasdeobservaçãoeexperimentação,anecessidadede pensar e falar em termos de um vocabulário específico emais ou menos profissional vai de par a par com a necessida-dedecriaredesignarnovosinstrumentosdeobservaçãoedeaferição.

30. Um segundo reparo é o de que, em geral, a lingua-gemespecíficaqueconstituiparteimportantedeumaciênciaémaisoumenospartilhada—senãomesmoanalisada—pelameta-ciênciaquetomaporobjecto essa mesma ciência. Isto é, peloramodaFilosofiadaCiênciaquemaispossalidarcomosproblemas de conceptualização e de natureza epistemológicaque essa mesma ciência possa levantar.

31.Umterceiroreparoéodeque,nãoobstantearepe-tibilidadedosprocedimentosdeobservaçãoedeexperimenta-çãoqueumaciência(empírica)possarequerer,todaaciênciaconsiste,emprimeirainstância,emconceptualizaçãoeemex-pressão:emdiscurso-em-representação(Vorstellung) e em dis-curso-em-comunicação.—Sendoque,poressarazão,senãodeveriafalar,emtermosestritos,eporexemplo,da"linguagemdaFísica"ouda"linguagemdaFilosofia".—

32.Ouseja,sendoquesedeveráfalar,issosim,da"lin-guagem que a Física é" e da "linguagem que a Filosofia é", entendendo "linguagem" no sentido de "discurso" e, por conse-guinte,nãoapenascomoumdeterminadosistemadeconceitosedetermosespecíficos,mastambémcomoumadeterminadalógica e uma determinadagramática. Isto é, entendendo "lin-guagem",porumlado,comoumaformaespecíficadepensardiscursivamenteederaciocinar(deformularjuízosedededuzirconclusõesdestesúltimos);poroutrolado,comooconjuntode

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regrasquedeterminamaexpressãoverbal(oralouescrita)des-samesmaformadepensarederaciocinar.

33. Na ausência de um tal entendimento de "linguagem", nãosetornariapossível,aliás,falar,porexemplo,enaquiloquerespeitaàsdiferentesciências,da"linguagemdaclassificação",da"linguagemdashipóteses",da"linguagemdaexperimenta-ção"ouda"linguagemdaquantificação".3

34.Umquartoeúltimoreparodesdobra-seemquatroaspectos.

35.Umprimeiro aspecto é o de que, como se há visto(por exemplo, na entrada 23. da secção III.), omaior oume-nor grau de exactidão e de indubitabilidade do conhecimentoque constitui uma ciência se encontra determinado, em primeira instância, pela natureza do objecto dessa mesma ciência (dado que,porexemplo,objectos de natureza ideal como os conceitos de "mente",de "razão"oude "imaginação"nãosãopassíveisde ser quantificados ou analisados e descritos em linguagemmatemática).

36. Um segundo aspecto, que se liga com o primeiro, é odequeaexactidãoquecaracterizaasCiênciasExactassósetornapossívelviadaaplicação a objectos de natureza real dasconstantesconceptuaislógico-numéricas,que,porsuavez,constituem o objecto (de natureza ideal) de estudo das Ciências Formais.

37. Um terceiro aspecto é o de que, sem dúvida alguma, asmagnitudes numéricas concretas que asCiênciasExactasimputam ao objecto (e.g., 4.5 micrometros ou milionésimos de metro),aoaferi-loedescrevê-loemtermosdassuaslinguagensquantitativas e das respectivas unidades de medida (e.g., micro-metro,nanometro,etc.),nãosãograndezasarbitráriasoumeraconvenção.Istoé,nãosão,nasuaconcretude,meroposto ou meraatribuição subjectiva, mas sim, na verdade, dado ou deter-minaçãoobjectiva.

38. Um quarto e último aspecto (que é aquele que aqui interessa,quetornounecessáriaaexposiçãodosanterioreseque de modo algum contradiz aquilo que vem de ser dito) é o de que,pelocontrário,osconceitos(ousignificados)quantitativos

3AcabodemelimitaratranscreveralgunsdostítulosqueoíndicedeUnderstanding the Language of Science, deStevenDarian,(Austin,UniversityofTorontoPress,2003)apresenta.

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comqueasCiênciasExactasoperam—e,porconseguinte,alinguagem quantitativa de que tais ciências se tecem e em que seexpressam—sãotãoconvençãoquantocadaumdoslexe-mas(significantes,emlinguagemsaussureana)ecadaumdossímbolosqueosdesignam.Ouseja,sãotãoconvençãoquantooé,porexemplo(eseseignorartodasequaisquerrazõesdeordemetimológica)ofactodeafaculdadedoentendimentoserdesignadapelolexema"entendimento"emPortuguês,pelole-xema"understanding"emInglêsepelo lexema"Verstand"emAlemão.

39.Ademonstrarqueassimé,temos,porexemplo,ofac-todeaunidadequeéutilizadaparamedirmassaanívelatómicoemolecular: ter começado por equivaler (a partir de 1803) àmassadeumátomodehidrogénio(comadesignação"Dalton"eosímbolo"Da");terposteriormentepassadoacorrespondera1/16damassadeumátomodeoxigénio,comosímbolo"uma"(unidadedemassaatómica);econsistiractualmenteem1/12damassadeumátomodecarbono-12(1.660538291(73)×10−27 kg), comosímbolo"u"(unidadedemassaatómicaunificada).

40. Em sétimo lugar, e enquanto sobretudo corpus de conhecimentoeproduçãodenovoconhecimento,todaaciên-ciapassa,porassimdizer,pelorecursoaumsódedoistiposdiferentesdeinstrumentosoupelorecurso a ambos esses dois tipos de instrumentos.

41. Um desses dois tipos de instrumentos conglomera aquelesutensíliossemosquaismuitodificilmentesepoderáal-gumavezproduzirconhecimentoextensooualgoextenso,umavezqueaproduçãodesteúltimoexigequesejafixadoàmedi-da em que vai sendo conceptualizado ou gerado mentalmente. Comosepercebe, trata-se,paraentraemlinhadecontacomasuaevoluçãohistórica,deinstrumentosouutensílioscomooestilete,apena,acaneta,amáquinadeescrever,ocomputadore,concomitantementecomestes,atábuadebarro,opapiro,opapeleoprocessadordetexto.

42. O outro tipo de instrumentos conglomera todos os utensílios e aparelhos de observação, medição e experimen-tação que tão característicos são das ciências laboratoriais eempíricas.

43.Agora,verifica-se,semdúvida,paraodizeremtermosconcretos,aquiloquehápoucofoiditoemabstracto(naanterior

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entrada 40). Nomeadamente, que toda a ciência que é conhe-cimentoextensooualgoextensosesocorre,porforça,daqueleprimeiro tipo de instrumentos, enquanto apenas as ciências de ob-servaçãoouexperimentaistambémsesocorremdosegundotipo.

44. Poderá parecer, à primeira vista, que, no caso dasciênciasdeobservaçãoouexperimentais, os instrumentosdosegundotipo(osquaissempresãomaisoumenoscomplexoseinvulgares) adquirem um estatuto muito diverso dos do primeiro tipo.Queristodizer,poderáparecerqueosinstrumentosdose-gundo tipo são, de algum modo, ciência (em lugar de derivado objectivo da ciência, tecnologia), enquanto os do primeiro tipo nãoosão.

45.Averdade,porém,équeassimnãoacontece.Ouseja,a verdade, porém, é que, tal como os do primeiro tipo, os ins-trumentos do segundo tipo sãomeramente instrumentos semosquaisaproduçãodosconhecimentosemqueasciênciasdeobservaçãoconsistemnãoseriapossível,aqualéarazãoporquetambémsãoinstrumentoscujaconcepçãoefabricaçãode-pendem,asmaisdasvezes,dosconhecimentos(jáadquiridos)oudosavançoscientíficosqueostornamnecessários.

46.Narealidade,eparadarumexemploqueilustreaqui-lo que acaba de ser dito, tais instrumentos (os do segundo tipo) prestam-seaserentendidoscomoparte integrantedaciênciaexperimentalpropriamenteditadevidoaestaúltimamantercomelesumarelaçãodedependênciaalgosemelhanteàquelaqueopensamentomantémcomocérebroeoosdiferentestiposdesoftware mantêm com o hardware a que chamamos "computa-dor".Oqueistosignificapassa,paraabreviar,pelasseguintesconstatações.

47.Emprimeirolugar,pelaconstataçãodequeopensa-mentonãoéocérebro,talcomoocérebronãoéopensamento.

48.Emsegundolugar,pelaconstataçãodeque,naver-dade, um e outro (pensamento e cérebro) têm naturezas diame-tralmente opostas, dado que o primeiro (o pensamento) sempre é ideação e, por conseguinte, de natureza ideal, enquanto osegundo (o cérebro) sempre é matéria e, por conseguinte, de natureza real.

49.Emterceirolugar,pelaconstataçãodeque,nãoobs-tanteisso,opensamentodepende(nãosubsisteàparte)docé-rebro,enquantoocontrárionãoseverifica.

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50.Emquartolugar,pelaconstataçãodeque,naqualida-de de actividade de produção e corpus de conhecimento, toda ciênciaé,propriamentedita,ideaçãooupensamento.

51.Emquintolugar,pelaconstataçãodeque,emprimeirainstância,aciênciaexperimentalsediferenciadaciêncianão-experimental tão-somentepelaviadeconsistirem ideaçãooupensamento—emconhecimento—cujaproduçãodependedamaterialidade e consequente objectividade de certos instrumen-tosdeobservaçãoeaferiçãotantoquantodependedamateria-lidade e consequente objectividade do cérebro.

52. Em sexto e último lugar, pela constatação de que,considerada na qualidade de ciência propriamente dita — na qualidadedeconhecimentoe,porconseguinte,deideaçãooupensamento—,aciênciaexperimentalpossuinaturezaqueétãodistintadanaturezadosreferidosinstrumentosdeobserva-çãoeaferição(nãoobstanteasuaproduçãodependerdemodomediatodeles)quantoédistintadanaturezadocérebro (nãoobstanteasuaproduçãodependerdemodoimediatodele).

53. Em oitavo lugar, toda a ciência constitui, de modo mais ou menos consciente, concretização parcial do inconcreti-zável ideal humano de conhecimento absoluto. Isto é, do inconcre-tizávelidealhumanodeconhecimentoinsuperávelnãoapenasdo "quê", do "como" e do "porquê" do mundo real (considerado nosseusmúltiplosaspectosenainfinidadedecadaumdeles),nãoapenasdo"quê",do"como"edo"porquê"domundoideal(de igual modo considerado nos seus múltiplos aspectos e na infinidadedecadaumdeles),mastambémdasrelaçõesquees-ses dois mundos naturalmente estabelecem entre si (de entre as quaisarelaçãomatéria-espíritoassumeestatutoparadigmático)e da unidade última ou da causa primeira de ambos (Deus).

54.E,naverdade,sefigurativamentepensarmosnoco-nhecimentoabsolutocomoconhecimentonãosódatotalidadedas infinitas peças de umpuzzle esférico e fechado sobre simesmo, mas também como conhecimento da totalidade das re-laçõesquecadaumadetaispeçasestabeleceriacomtodasasrestantes,nãopoderemosdeixardeassentiremque,defacto,cadaciênciaconsiste,aolongodoseudeviredasuaevoluçãohistóricos,numesforço(e,porconseguinte,tambémnumcontributo)paradesvendaroindesvendávelsegredo desse misterioso puzzle.

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55.Éque,naverdade,asmotivaçõesdesinteressadasquese encontram e sempre se encontraram na origem das Ciências TeóricasouPuras radicam,emprimeira instância,navontade de conhecimento absolutoquecaracterizaarazãohumana.Istoé,radicamnacircunstânciadearazãohumanasesentirnatural-mentecompelidaasintetizarnumaunidadeúltimaeinsuperáveltodos os diversos e isolados conhecimentos que possa produzir, oqualéomotivoporqueaprópriarazãoformalmentecondena o homem, pelo lado do pensamento ou da idealidade, ao ab-solutoeaoinfinito,nãoobstantetodooindivíduoseencontrarconcomitantemente condenado, agora pelo lado do corpo ou da realidade,aofinitoeaorelativo.

56.Emfacedaquiloqueacabadeserexposto,esecon-tinuarmos a pensar no conhecimento absoluto como conheci-mentodatotalidadeinfinitadeumpuzzleesféricoeinfinitamen-tefechadosobresimesmo,poderemosdizerfigurativamenteoseguinte:porumlado,queohomemsempreseencontra,comrelaçãoaoconhecimentoabsoluto,nasituaçãoemqueseen-contrariacadaumdosinfindospontosqueconstituiriamocírcu-lodeterminadoporumasecçãodeumtalpuzzle; por outro lado, que, não obstante isso, o homem se distingue dos restantesanimais sobretudo por se encontrar naturalmente predestinado acontinuamentelevaracaboesforçosemelhanteaoquecadaumdaquelesmesmospontosfariacasoseencontrasseimpul-sionado pela vontade de conhecer tanto o todo do seu círculocomootododasrelaçõesdesteúltimocomoespaçoesféricoque o englobaria. Ou seja, caso se encontrasse impulsionado pela vontade de conhecerotododequeconstituiriaumaparteínfima.

57.NoseuensaioquetemportítuloLiterature and Scien-ce (Literatura e Ciência), o poeta e ensaísta inglês MatthewArnold(1822–88)afirma,comironia,queoantepassadodoho-mem, o progenitor distante tanto do homem como do chimpan-zé,ocultavanasuanaturezaalgoquehaveriadevira tornar-senecessidadede literatura.Poisbem,nãoserá,certamente,desajustado,emfacedaquiloqueseacabadever,afirmarqueaquele consabido antepassadode todos nós ocultava na suanaturezaalgoquehaveriadeviratornar-senecessidadeimpe-riosa de ciência!

58.Éque,narealidade,eparanãorecuartantonotempo,já o homemdas cavernas olhava oSol, esse eterno símbolo

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da divindade e do conhecimento absoluto, com tropismo pela ciência semelhante ao que leva as borboletas a ansiar possuir a luz das lâmpadas e a morrer, queimadas, em resultado disso. A ciênciamodernahádadoaohomem,porassimdizer,asasas.Quandoconseguiráelevoarparaumpoucomenoslongedoinfi-nitamentelongínquoSol do conhecimento absoluto? E que tem-po,queciência,lhedará,porviadisso,amortedaespécie?

59. Em nono lugar, toda a ciência constitui ou inaugura uma tradição.Istoé,constituiouinauguraumprocessohistóri-codeproduçãodeconhecimentomaisoumenosparadigmático(quer no sentido de ser mais ou menos exemplar, quer no sen-tido de ser mais ou menos sui geniris, mais ou menos distinto eindependentedeoutrosprocessoshistóricosdeproduçãodeconhecimento) — sendo, pois, que, como acontece com qual-quertradição,todaaciênciasecaracterizatantopelacontínua superaçãodesimesma(e,porconseguinte,pelaidentidade-na-diversidadeemquetodaaauto-superaçãoconsiste)comoporse encontrar sujeita a ser superada por uma emergente e nova ciência.— Que é aquilo que tende a acontecer sobretudo em momentoshistórico-culturaisde revoluçãode índolecientífica,osquaissepautamporinstaurarrupturasdefinitivascomestaououtraciênciavigente (comestaououtra tradiçãocientíficavigente),emresultadodirectodeinstauraremrupturadefinitivacom a tradição de um anterior entendimento de "ciência" ou,melhordizendo,comatradiçãodeumaanteriorconcepçãodosmétodos de produçãoedevalidaçãodeconhecimentoquede-verãoserconsideradoscientíficos.

60. Que, na verdade, toda a ciência particular constitui ou inaugurauma tradiçãoespecíficanoseioda tradiçãomaisabrangenteque,noseutodo,asdiversasciênciasformam(ouseja, que toda a ciência particular constitui ou inaugura a iden-tidade de umdeterminadodevir histórico oudeumadetermi-nadaevoluçãohistórica),prova-oporsinãosóanecessidadeeaconsequenteexistênciadesubdisciplinascomoaHistóriadaMatemáticaeaHistóriadaFísica(asquaisse inseremnoâmbitomaisgeraldaHistóriadaCiência),mastambémaneces-sidadeeaconsequenteexistênciadeumameta-ciênciacomoaHistoriografiadaCiência(aqualestudaahistóriaeasmetodo-logiasdaprópriaHistóriadaCiência).

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61.Que,naverdade,todaaciênciaquesefazalgoper-durante se caracteriza pela contínuasuperaçãodesimesma,demonstram-no,porexemplo,oscasosespecíficosdaFísicaedaFilosofia,pararespeitaraquiaseparaçãodaFísicamoder-na(queoutrorahásidodesignadaFilosofiaNatural)daactualFilosofia4—aqualorapermanecequasesónaqualidadedeFilosofiadoEspírito.

62. E isto uma vez que, sem dúvida (e com relação àFísica), a física aristotélica constitui superação da física pré-socrática,quea físicanewtonianaconstitui superaçãoda físi-caaristotélicaeque,porassimdizer,a físicaquânticaoraseconstituisuperaçãodafísicanewtoniana.—Umavez,também(agora, com relação à Filosofia), que, não obstante as duasgrandes linhasdecontinuidadequeopensamentoplatónicoeopensamentoaristotélicoininterruptamentetraçamaolongodopensamentofilosóficodoOcidente(inclusiveocontemporâneo),opensamentocartesianoinauguraasuperaçãodafilosofiaan-tiga e medieval, do mesmo modo que (adentro do vasto âmbito de tal superação) o criticismo kantiano supera o pensamentocartesianoeopensamentodeFichte,SchellingeHegelseas-sumesuperaçãodoprópriocriticismokantiano.

63. Que esta ou aquela outra ciência se encontra sujeita a ser superada por uma emergente e nova ciência ou, por outro lado, a ser sujeita a uma reconceptualização que instaure noseuinteriorumarupturadetalordem,queaumsótempolheretireoestatutodeciênciae,extinguindo-a,afaçadarlugaraumanovaciência,mostra-oporsisóocasoparadigmáticodaAlquimiaoudaQuímicaantiga,aqualveioasoçobraràmedidaemqueaQuímicamodernasesolidificouapartirdeRobertBoy-le(1627–91)edeAntoineLavoisier(1743–94).

64. A este respeito, tem interesse notar que, no século XVII, o estudo da matéria e dos seus constituintes ainda era designado tanto "Alquimia" como "Química", e queoprimeirodestesdoistermospassouasignificarespecificamenteapseu-do-ciênciadetransmudarmetaisvisemouroapenasapartirdoséculo seguinte (o século XVIII).

65.Acabámosdedistinguirnoveaspectosdessaentidade ideal a que chamamos ciência. O primeiro aspecto caracteriza a

4Essaseparaçãoseráconsideradamaisadiante,nasecçãoVI.

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ciência como (1) perspectiva;osegundocaracteriza-acomo(2)actividade;oterceirocaracteriza-acomo(3)produção; o quarto caracteriza-acomo(4)produto;oquintocaracteriza-acomo(5)aplicação de um método;osextocaracteriza-acomo(6) lingua-gem ou discurso específico; o sétimo caracteriza-a como (7)utilização de certo tipo de instrumentos;ooitavocaracteriza-acomo(8)concretização de um ideal;finalmente,ononocaracte-riza-acomo(9)tradição.

66.Ora,aoterminarestasecção,importapôremevidên-cia o que se segue.

67.Emprimeirolugar(i),que,constituindoumatradição,toda a ciência particular consiste, como se viu (na anterior entra-da 60.), na identidade ou continuidade de um devir ou de uma evoluçãohistóricos,eque,porconseguinte,ésemprepassívelde ser analisada sobretudo em termos da sua historicidade.

68. Em segundo lugar (ii), que os pontos de viragem mais determinantes com que geralmente se depara ao longo do devir históricooudaevoluçãodeumadeterminadaciênciasedeixa-rãoclassificar,grosso modo, em três grandes categorias.

69. Uma é (a) a categoria daqueles momentos que mar-cam o aparecimento de um novo modo de questionar e equa-cionar o objecto—o aparecimento de umaperspectivação ede uma formade correlação que, dadas as suas implicaçõesteóricas,obrigamaumareconceptualizaçãodaprópriaciênciaedosseusmétodosespecíficos.

70. Outra é (b) a categoria daqueles momentos que mar-camadescobertadenovosinstrumentosdeobservaçãoe/oudeaferiçãoquepermitemaprofundarapercepçãovigentedoob-jectoeque,emresultadodisso,ocasionamumareavaliaçãodoshorizontes da ciência a que respeitam, o seu desdobramento em novosramosdeinvestigaçãoouatémesmooaparecimentodeumanovaconcepçãodorigorquepodeedevecaracterizarasciênciasexperimentais.

71. Outra, ainda, é (c) a categoria daqueles momentos quemarcamumareconceptualizaçãogeneralizadadaIdeiade"ciência", a qual é reconceptualização que se caracteriza porpassar, em primeira instância, pelo descrédito gradual de um métodoestabelecidodeproduçãodeconhecimentoindubitável (porexemplo,oaristotélico)epelagradualadopçãoeinstituição

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deumoutro (porexemplo,obaconiano),5 que assim passa a adquirircarácterparadigmático.

72. Em terceiro lugar (iii), que uma ciência assume o ca-rácterde tradiçãoparticularnãosóem resultadodeconstituirprodução e corpus de conhecimentos que se inserem no âmbito maisvastodeumagrandetradiçãocomoaquelaquesetememmenteaofalardaciência do Mundo Ocidental,nãosó,deigualmodo,em resultadodeconstituir umprocessohistórico (maisoumenoslinear)deaquisiçãoeacumulaçãodeconhecimentosacerca de um determinado objecto(maisoumenosespecífico),mas tambémem resultado de constituir, elamesma, o fio decontinuidadequeligaentresisucessivosmodosparadigmáticos(e,porconseguinte,inicialmenterevolucionários)dequestionare equacionar um mesmo objecto(comodecorredaanterioralí-nea(a)ecomoThomasS.Kuhntãobempõeemevidêncianumdos seu conhecidos estudos).6

73.Emquartolugar(iv),que,comofacilmentesedepreen-de de tudo quanto vem de ser dito, tanto o conceito de "ciência" como o entendimento que se possa ter de uma determinada ci-ência(porexemplo,aFísica)sãoconstructosmentaisempírico-historicamente determinados e, por isso, relativos.

74.Emquintoeúltimo lugar(v),que,assimsendo,nãoserádeestranhar:porumlado,queoconhecimentoque,numdeterminadomomento, é considerado científico no âmbito deumadeterminadaciênciadeixedeoserapartirdoinstanteemquetalciênciaexperimenteumamudançadeparadigmae,emresultadodisso,sejaalvodeumaprofundareconceptualização;por outro lado, que o entendimento medieval de "ciência", por exemplo, se revele profundamente diferente do entendimentomoderno; por outro lado ainda, que este último (o entendimen-tomodernode"ciência")sejapassíveldedarlugaraoutro(e,porconseguinte,passíveldeserrelegadoparaopassado)tãocedoquantosevenhaaverificarumareavaliaçãodochamado"métodocientífico"tãoprofundaquantoaquelaquelhehádadoorigem (quanto a que ocasionou o abandono do método aristo-télicoeinstaurouemseulugarométodoexperimental).

5Comrelaçãoaoadjectivo"baconiano",veja-se,adiante,aentrada35.dasecçãoVI.

6Veja-se:ThomasS.Kuhn.The Structure of Scientific Revolutions. 3. ed.,Chicago,TheUniversityofChicagoPress,1996.

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V. Acerca da indução e da dedução, a par de algumas considerações com relação à historicidade do entendimento de “ciência”

1.Chegadosaesteponto,impõem-sealgumasconsidera-çõesimportantes.

2. Uma primeira consideraçãoéadeque,desdeoiníciodaTradiçãoOcidental,desdeospensadoresdachamadaGréciaClássica(apartirdosséculosVeIVA.C.),oestatutodeconhe-cimentorigorosooudeciênciafoireservadoparaoconhecimen-to do universal (ao invés de também para o conhecimento das qualidadesparticularesdosentesoudoseventos,asquaissãosemprevariáveiseimpermanentese,porisso,nãosãopassí-veis de ser conhecidas sub especie).

3.Istoé,umaprimeiraconsideraçãoéadequeoestatutodeconhecimentorigorosoesistematizadooudeciênciafoire-servado para o conhecimento que o pensamento é capaz de ad-quirir(i)dasleislógicasqueuniversalmentedeterminamoseucorrectoempregoefuncionamento,(ii)dasconstantesobjecti-vas(ouleisinvariáveis)queelemesmo,pensamento,abstraidaexperiênciaconcretadomundoexteriore (iii)dosconstructosmentais (dos conceitos) que ele mesmo, pensamento, produz (derivativamente)apartirdessaexperiência.

4. Uma segunda consideraçãoéaseguinte:adeque,en-quanto o conhecimento que o pensamento é capaz de adquirir dasleisoudasconstanteslógicasqueuniversalmentedetermi-namoseucorrectoempregoefuncionamentoéconhecimentodasuaprópriaidealidade,oconhecimentoqueele,pensamen-to, é capaz de adquirir das constantes objectivas (das leis in-variáveis)quedeterminamaconstituiçãoeainvariabilidadedomundoexteriorouobjectivoé,naverdade,conhecimentodestemesmomundo(omundoexteriorouobjectivo)naqualidadedemundosimultaneamentereale ideal,emlugardetão-somentena qualidade de mundo real (como temos tendência a pressupor).

5. É que, na verdade, tão depressa quanto o chamadomundoexteriorouobjectivosetransformaemobjecto do pensa-mento (e, por esse modo, sofreaimposiçãodaactividadesintéti-caeclassificatóriadoprópriopensamento,oqualnãoépossívelsemadimensãosimbólicada linguagem), logose transforma

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ele(omundoexteriorouobjectivo)emmundosimultaneamentereal e ideal. Quer isto dizer, logo assume ele o estatuto de subs-tratorealque,porassimdizer,setornainseparáveldoacetato ideal em que o pensamento o envolve.1

6.Contrariamenteàquiloqueporvezesseafirma,oho-memnãoé,qua ens congitans, ponte entre o mundo ideal e o mundoreal:entreoinfinitoeofinito,oabsolutoeorelativo,odever-ser e o ser. É, por assim dizer, continente que resulta da sobreposiçãooudadeterminaçãomútuadessesdoismundos—comobemdemonstraporsisóofactodeopensamentoserincapazdetomarochamado"mundoexterior"porobjecto sem osubmeteràssuasprópriasleisformais.

7. Uma terceira consideração é a de que, sobretudo en-quantoconhecimentodomundoexteriorouobjectivo,oconheci-mento é adquirido e produzido pelas duas grandes vias — pelos dois grandes métodos de inferência — que o pensamento segue naconstruçãológicadosraciocínios.Trata-sedaviaindutivaouda indução e da via dedutiva ou da dedução.

8. O termo inferência deriva do substantivo latino inferen-tia.Porsuavez,estedesignaaacçãoqueéexpressapelover-bo inferre (inferir),oqualcorrespondeaoverbogregopherein eéformadopeloprefixo in-(queexpressaaideia"movimentopara dentro") e pelo verbo fero(quesignifica"levar"ou"trazer").Istoé,o termo"inferência"significaetimologicamenteaacçãode "levar para dentro", tendo sido deste sentido geral, que veio a resultar(apartirdoséculoXVI)osentidoespecífico"levarparaoupreencherointeriordeumaconclusão".Ouseja,"construirou formarumaconclusão"—sendoqueéaquilo que se leva "para o interior" da conclusão, que determina se a inferênciaconsisteeminduçãooudedução.

9. O termo indução deriva do substantivo latino inductio, que corresponde ao substantivo grego epagoge (ep- (para) +agoge (levar)). O substantivo inductio designa a acção que éexpressapeloverbo inducere (induzir),oqualé formadopelo

1Aindaqueissopossanãoserevidente, tem-seaquiemmente,so-bretudo,aconcepçãode"conhecimento"ede"ciência"(e,logo,de"Natureza"ou"mundoobjectivo")queImmanuelKant(1724–1804)inauguroucomoseuidealismotranscendental,emconsequênciadoseufirmepropósitodesupe-rarapericlitânciateóricaparaqueDavidHume(1711–76)haviaarrastadoofundamentoobjectivodaciênciaviadasuaconsabidacríticaaosconceitosde"causalidade"ede"necessidadeontológica"(aoinvésde"lógica").

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prefixoin-(queexpressaaideia"movimentoparadentro")epeloverbo ducere(quesignifica"conduzir").Assimsendo,otermo"in-dução"significaetimologicamentemaisoumenosomesmoqueotermo"inferência".Contudo,viadeCícero(106–43A.C.) terutilizado inductioparatraduzirosentidofilosóficoqueAristóteles(384–322A.C.)haviaatribuídoaepagoge,"indução"incorpora,hoje, esse mesmo sentido. Isto é, o sentido de ascender a uma conclusão geral partindo do conhecimento das regularidades(daunidade-na-diversidade) que são invariavelmente exibidaspor uma ou mais séries de particulares. O mesmo é dizer, levar ou conduzirparaointeriordocírculoformaldaconclusão(assima construindo) a unidade geral ou abstracta das regularidades concretasque,casoacaso,são invariavelmenteexibidasporuma ou mais séries de particulares.

10.Ailustraroprocessodeindução,temos,porexemplo,oseguinte raciocínio indutivo: (A)Todosospássarosquesãoconhecidostêmoutiveramasas;logo,(B)ospássarostêmasassub specie—sendoque(A)expressaaregularidade"terasas"na sua diversidade concreta e particular e (B) expressa essamesma regularidade na sua unidade geral ou abstracta.

11. Em termos mais abrangentes, e tomando a actual con-cepçãode"ciências indutivas"porpontodereferência,poder-se-ácaracterizarainduçãocomoaquisiçãoeproduçãodeco-nhecimento seguroascendendodaobservaçãoderecorrênciasespecíficas(oparticular)àconstruçãodehipótesesedeteorias(ouniversal). Istoé,seguindo,debaixoparacima,oseguintepercurso: (1)sériedeobservações; (2)constataçãodas regu-laridadesoudasrecorrênciasexibidaspelosfenómenosobser-vados;(3)formulaçãodehipótesescomrelação,porexemplo,àscausaseaosefeitosdasregularidadesourecorrências;(4)confirmaçãoounão-confirmaçãode tais hipóteses; (5) formu-laçãodeumateoriapartindodahipóteseoudashipótesesqueapresentemmaior probabilidade de corresponder à realidadedosfactos.

12. Por seu lado, o termo dedução deriva do substantivo latino deductio, que corresponde ao substantivo grego apagoge (ap-(paraforade)+agoge (levar)). O substantivo deductio de-signaaacçãoqueéexpressapeloverbodeducere (deduzir), o qualéformadopeloprefixode-(queexpressaaideia"parabai-xo")epeloverboducere(quesignifica"conduzir").Cunharam-

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noospensadoreslatinosparatraduzirosentidofilosóficoqueAristóteles(384–322A.C.)haviaatribuídoaapagoge. E, assim sendo,expressouele(osubstantivodeductio), desde a sua ori-gem,osentidoque"dedução"lhefoibuscarapartirdoséculoXVI.Istoé,osentidodedesceraumaconclusãoparticularpar-tindodeumaproposiçãogeraledeumaproposiçãoparticular.O mesmo é dizer, levar ou conduzir (inferir)parao interiordocírculoformaldaconclusão(assimaconstruindo),descendodaproposiçãogeralparaaproposiçãoparticular,apredicaçãoqueaprimeiradestasduasproposições(ageral)necessariamenteinclui na segunda (a particular).

13.A ilustrar o processodededução, temos, por exem-plo, o seguinte raciocínio dedutivo: (A)Todosos homens sãomortais;(B)Sócrateséhomem;(C)logo,Sócratesémortal—sendoqueaproposiçãogeral(A)predicadetodososhomensa qualidade "mortal", que a proposição particular (B) predicadoenteSócratesaqualidade"homem"equeaconclusão(C)expressa a necessidade lógica de, na qualidade de homemparticular,Sócratespartilharcomtodososhomensopredicadogenérico "mortal".

14.Comosetornaevidente,oraciocíniodedutivosegueumpercursodiametralmenteopostoàquelequeoraciocínioin-dutivosegue,assimtambémchegandoaumaconclusãoquali-tativamenteoposta.Esteúltimo(oraciocínioindutivo)ascendedo particular ao geral, e chega, pois, a uma conclusão geral.Inversamente,oprimeiro(oraciocíniodedutivo)descedogeralparaoparticular,assimchegandoaumaconclusãoparticular.

15.Emtermosmaisabrangentes,poder-se-ácaracterizaradeduçãocomoaquisiçãoeproduçãodeconhecimentorigorosodescendodaconstruçãodeteoriasedehipóteses(ouniversal)paraosfactos(oparticular)queaspossamconfirmar.Istoé,se-guindo,decimaparabaixo,oseguintepercurso:(1)formulaçãodeumateoriaoudeumaoumaisproposiçõesgerais;(2)formu-laçãodehipótesescomrelaçãoàsproposiçõesparticularesqueateoriapossaimplicar;(3)observaçãodosfactosoudoseven-tos a que as hipóteses possam respeitar; (4) confirmação ounão-confirmaçãodashipótesese,porconseguinte,dateoria.

16.Agora,facilmenteseconcluioseguinte:porumlado(1),queoconhecimentoaquesechegaindutivamentesópodeser considerado seguroouatémesmoindubitávelenquantonão

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se deparar com uma excepção que invalide a universalidadedasconclusõesemqueeleconsiste(porexemplo,aexcepçãoum pássaro sem asas); por outro lado (2), que também o conhe-cimentodequesepartededutivamente,naformadeproposiçãogeral,sópodeserconsideradoseguroouatémesmoindubitávelcasosejaconfirmadoouvalidadofactualmente;poroutro ladoainda, (3) que o conhecimento de que se parte dedutivamente, na formadeproposiçãogeral, nemsempreépassível deserconfirmadoouvalidadofactualmente.

17. Com respeito a este terceiro aspecto, considere-se,porexemplo,oseguinteraciocíniodedutivo:(A)aBíbliaéreve-laçãodivinae,porconseguinte,todasassuasafirmaçõessãoabsolutamenteverdadeiras;(B)aBíbliaafirmaqueoSolgiraàvoltadaTerra;(C)logo,oSolgiraàvoltadaTerra.

18. Como se sabe, a pressuposta verdade absoluta de um talraciocíniodedutivopareceuser,duranteséculos,confirmadaindutivamente.Istoé,ascendendoàproposição"oSolgiraàvol-tadaTerra"apartirdomovimentoaparentedoSoledosfenó-menosastronómicosquecomeleserelacionamdirectamente.E,contudo,comohojeseafirmaserindubitável,éaTerraquegiraàvoltadoSol,enãoocontrário.Porém,sehoje-em-diaoconhecimentodequeaTerragiraàvoltadoSoléindubitável,talfica-seadeveraofactodeohomemdispordeinstrumentosquepossibilitam comprová-lo, ao passo que isso nãoaconte-ciaduranteoslongosséculosemqueaverdadedoraciocíniodedutivoqueatrásfoiapresentado(naentradaimediatamenteanterior)nãopôdedeixardeserconsideradaindubitável.

19. Isto conduz a uma quarta consideração, que se desdo-bra em cinco aspectos.

20. Em primeiro lugar, no aspecto de que, enquanto ser atemporalmente dividido entre as conclusões a que o pensa-mentochegaporsisóoudedutivamenteeasconclusõesaqueoprópriopensamentochegaindutivamenteoupartindodoteste-munho dos sentidos, o homem ora tende a privilegiar o conheci-mentoobtidodedutivamenteeaconsiderá-lonaturalmentemaisrigoroso e seguro do que o conhecimento obtido indutivamente (como aconteceu durante toda a Idade Média), ora tende, pelo contrário,aprivilegiaroconhecimentoobtidoindutivamenteeaconsiderá-lonaturalmentemaisrigorosoesegurodoqueoco-

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nhecimento obtido dedutivamente (como tem vindo a acontecer desde os séculos XVI e XVII).

21. Em segundo lugar, no aspecto de que, sempre que o homem privilegia o conhecimento obtido dedutivamente e o considera naturalmente mais rigoroso e seguro, também o con-sideraconhecimentocientíficoouciênciaporexcelência.

22.Emterceirolugar,queocontráriotambémseverifica.Isto é, que, sempre que o homem privilegia o conhecimento ob-tido indutivamente e o considera naturalmente mais rigoroso e seguro,tambémoconsideraconhecimentocientíficoouciênciaporexcelência.

23.Emquartolugar,queofactodeohomemconsideraro conhecimentoobtidodedutivamenteconhecimentocientíficoouciênciaporexcelênciaseencontradirectamenterelacionadocomduascircunstâncias:porumlado,comacircunstânciadeohomem pressupor que tem intelectualmente acesso a verdades quetranscendemomundosensíveleque,porisso,sãopassí-veisdeserconhecidasapenasviadarazãooudedutivamente,ao invés de via dos sentidos ou indutivamente; por outro lado, com a circunstância de, em resultado daquilo que acaba de ser dito,ohomemtenderanãoseempenharnoconhecimentodomundosensívelenadescobertadeinstrumentosquelhepermi-tam investigar este último.

24.Emquintolugar,queocontráriotambémseverifica.Istoé,queofactodeohomemconsideraroconhecimentoob-tidoindutivamenteconhecimentocientíficoouciênciaporexce-lência se encontra directamente relacionado com duas circuns-tânciasinversas:porumlado,comacircunstânciadeohomempressuporquenãotemintelectualmenteacessoaverdadesquetranscendamomundosensívelequesejampassíveisdeserco-nhecidasapenasviadarazãooudedutivamente;poroutrolado,com a circunstância de, em resultado daquilo que acaba de ser dito,ohomemseempenharnoconhecimentodomundosensívele na descoberta de instrumentos que lhe permitam investigar este último.

25. Destes cinco aspectos, resulta uma quinta considera-ção.Nomeadamente, a consideração de que, como começouporserdito(nasecçãoI.),oconceitode"conhecimentorigoro-so" ou de "ciência" adquire o seu mais privilegiado e generaliza-dosentidodeacordocomascircunstânciashistórico-culturaisque o determinam. Isto é, de acordo, sobretudo, com o modo

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como, numdeterminadomomento histórico, o homemconce-beoseuposicionamentofaceaomundoimanenteeaomundotranscendente, bem como, antes disso mesmo, de acordo com a predisposiçãodoprópriohomemparaabraçarmaioritariamenteasuadimensãoidealouasuadimensãosensorial.

26. Uma sexta consideração se impõe.Assumeela trêsaspectos.

27. Em primeiro lugar, assume o aspecto de que, uma vez que o homem sempre cai no erro de considerar o momento his-tóricoemquevivenaqualidadedeúnicamodernidade e de total superaçãodetodooseulongopassado,tambémcai,porforça,noerromaisrestritodeconsiderarqueaconcepçãode"ciência"eaciênciadoseutempoconstituemaverdadeiraconcepçãode"ciência"eaverdadeiraciência(sobretudoporcomparaçãocomaconcepçãoincipientede"ciência"ecomaciênciaincipientedetempos mais recuados).

28. Em segundo lugar, assume o aspecto de que, nãoobstanteaquiloqueacabadeserdito,oconhecimentocientífico—oconhecimentoindutivoouexperimental—dequeonossopresente tanto se orgulha e que tanto considera rigoroso, seguro e indubitávelnãopoderádeixardeviraserconsideradopelohomemdofuturotãoincipienteeerróneoquantooconhecimen-tocientíficoda IdadeMédia,porexemplo,éhojeconsideradoincipienteeerróneo.

29. Em terceiro lugar, assume o aspecto de que aquilo que acaba de ser dito pode bem vir a acontecer por uma de trêsgrandesvias:pelavia(i)de,talcomoohomemdonossopresente, o homem do futuro abraçarmaioritariamente a suasensorialidade e privilegiar, na qualidade de ciência, o conheci-mento obtido indutivamente; pela via (ii) de, tal como o homem da IdadeMédia,ohomemdo futuroabraçarasupremaciadaidealidade e, em resultado disso, privilegiar, na qualidade de ci-ência, o conhecimento obtido dedutivamente; pela via (iii) de, tal comoohomemdaGréciaClássica,ohomemdofuturotenderaabraçarumarelaçãodecomplementaridadeentreidealidadeesensorialidade, e, em resultado disso, a privilegiar, na qualidade deciência,tantooconhecimentoobtidodedutivamentequenãoentreemcontradiçãocomoconhecimentoobtidoindutivamentecomo,aoinverso,oconhecimentoobtidoindutivamentequenãoentreemcontradiçãocomoconhecimentoobtidodedutivamente.

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VI. De episteme e scientia (de “ciência” em sentido lato) a “ciência” em sentido restrito, passando pela designação “filosofia natural”

1AlfredNorthWhitehead.Science and the Modern World. London,FreeAssociationBooks,1985,pp.4–6passim.

1.Importa,agora,pôremevidênciaagrandemudançadesentidodequeo termo"ciência"se foi tornandoalvomaisoumenos a partir do século XVII, em resultado da qual passou a significar,comooraacontece,umaformaparticulardeconheci-mento e de produçãodeconhecimento,aoinvésdetão-somenteconhecimento mais ou menos rigoroso.

2.ComoofilósofoinglêsAlfredNorthWhiteheadpõeemevidêncialogonasprimeiraspáginasdoseuescritoA Ciência e o Mundo Moderno (Science and the Modern World),"nãopodehaverciênciavivaamenosquehajaumageneralizadacrençainstintivanaexistênciadeumaOrdem das Coisas e, em par-ticular, de uma Ordem da Natureza." Ouseja,nãopodehaverciênciasemqueapercepçãodasconstantesouregularidadescomqueaNaturezaconfrontaohomemtenhalevadoesteafor-mar "a ideia da Ordem da Natureza" e, concomitantemente com isso, a desenvolver "a completamentalidade científica".Queristodizer,amentalidadesemaqualsenãopodeverificarnema perspectiva (o modo desinteressado de considerar o objecto) que atrás (na entrada 3. da secção IV.) se disse ser ciência,nem,apardisso,aconvicçãodequesetornapossível"explicartodososfenómenosnaqualidadederesultadodeumaordemdascoisasqueseestendeaomaisínfimoevento":aconvicçãoinstintivadeque"todasascoisas,grandesepequenas,sãopas-síveisdeserpensadasnaqualidadedeexemplosdeprincípiosgerais que regem a ordem natural."1

3.Aexpressão"princípiosgeraisqueregemaordemnatu-ral"presta-se,talvez,alevar-nosapensaremprimeirainstânciaemleisgeraisquedeterminamdoexteriorquerosenteseoseventosqueconstituemaNatureza(como,porexemplo,onas-cereopôrdoSol),querasrelaçõesdecausalidadequeocor-rementreeles(como,porexemplo,aquelaquetemosemmentequandoafirmamos"aáguaextingueofogo").Istoé,presta-se,talvez,alevar-nosapensaremtaisprincípiosgeraissobretudo

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naqualidadedeleisquedeterminamdoexterioromododeagirdedeterminadosenteseasrelaçõesregularesqueentreelesseverificam(o"como"doseventosquetaisentesocasionameque os ocasionam), em lugar de na qualidade de leis que deter-minamoseuserouasuaconstituição(oseu"quê").

4.Ofacto,porém,équeentretaisprincípiosgeraistam-bémterãodeseencontraraquelesquenosvemosobrigadosaconcebernaqualidadedeprincípiosresponsáveispelaschama-das "essências".Ouseja, responsáveispelacircunstânciade,para poder ser aquilo que é enquanto ente ou enquanto cons-tructo mental, um ente ou um constructo mental ter de apresen-taraconstituiçãoespecífica,oconjuntodepredicadosessen-ciais ou o logos,queofazseruniversalmentereconhecidocomomembro de uma certa espécie e/ou de um certo género.

5.Ora,assimsendo,a"acompletamentalidadecientífica"(paracontinuarausaraspalavrasdeWhitehead)caracteriza-se também, inevitavelmente, por conduzir aqueles que mais a possuema interrogaçõescomo:"OqueéoHomem?""OqueéaJustiça?""OqueéaBeleza?"Ouseja,poroutraspalavras,ainterrogaçõescomo:"QualéologosdoHomem?""Quaissãoasqualidadesouospredicadosnaausênciadosquaisnãosepoderáestarempresençadeumhomem?"

6. O termo grego logos é, aqui, de suma importância (sen-doque,senãoconstituísseanomaliadepararcomumapalavracujoradicalecujosufixoremetessemetimologicamenteparaumsóemesmotermo,talvezsepudessederivardeleduplamente,do termo logos, o substantivo logogia, para designar a ciência dainterrogaçãodasqualidadesessenciaisousine quibus non). De modo a perceber o sentido de logos que as presentes notas maisconsideram,atente-senaanalogiaquesesegue.

7.Pense-senasituaçãoemqueumQuímicoseveriacon-frontadocomaquestão"oqueéágua?"—aqual,naverdade,équestãoqueemnadadiferedesta:"qualéologos de água?" QuerespostadariaumtalQuímico?Semdúvida,estaresposta:"H

2O"—aqual,porsuavez,érespostaelípticaque,nasuafor-

mulaçãomaisextensa,emnadadiferedaquelaquesesegue.8. O logos de "água" corresponde à formula que determi-

na quais são os tipos de elementos que têm de constituir uma molécula de água (a mais pequena porção possível de água), bem como qual é o número de elementos de cada um desses

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tipos que tem de se encontrar presente e qual é o modo como esses mesmos elementos têm de se encontrar organizados en-tre si. Assim sendo, definir o logos de água implica enumerar os princípios universais que regem a ordem natural da própria água. Ou seja, implica explicitar o seguinte:

9. (i) Que os tipos de elementos que têm de constituir uma molécula de água são dois, o hidrogénio (H) e o oxigénio (O); (ii) que o número de elementos do primeiro tipo (o hidrogénio) são dois (átomos); (iii) que o número de elementos do segundo tipo (o oxigénio) é um (átomo); (iv) que cada um dos elementos do primeiro tipo (o hidrogénio) é composto por um núcleo formado por um protão, bem como por um electrão; (v) que o elemento do segundo tipo (o oxigénio) é composto por um núcleo formado por oito protões e oito neutrões, bem como por oito electrões, seis dos quais orbitam o próprio núcleo a um nível mais perifé-rico do que o dos restantes dois electrões; (vi) que as forças de atracção e de repulsão que são responsáveis pela unidade de cada um dos referidos elementos (os dois átomos de hidrogénio e o átomo de oxigénio) têm de interagir, de modo a que eles se atraiam uns aos outros e formem um todo estável; (vii) que esse todo estável tem de apresentar a organização específica que resulta de o elemento do segundo tipo (o átomo de oxi-génio) partilhar com cada um dos dois (elementos) do primeiro tipo (com cada um dos dois átomos de hidrogénio) um dos seus seis electrões mais periféricos; (vii) que, assim sendo, a referida organização específica tem de ser a que decorre de o núcleo de cada um dos dois elementos do primeiro tipo (o núcleo de cada um dos dois átomos de hidrogénio) passar a ser orbitado por dois electrões (em lugar de um só), um dos quais pertence à periferia do elemento do segundo tipo (o átomo de oxigénio).

10.Arespostaquevemdeserformuladaconsiste,noseutodo,naexplicitaçãodeumdos"princípiosgeraisqueregemaordem natural", e, por conseguinte, enumera uma série de co-nhecimentosespecíficos.Aindagaçãodologos de uma qualquer entidade real (como a água) ou ideal (como a justiça)inicia-se,porém, tão-somentecoma ideiaoua formaconceptualqueoprópriotermologos designa, e, por conseguinte, coloca o inda-gadoremposiçãosemelhanteàquelaemqueseencontraria,porexemplo,oindivíduoque,vendo-senapresençadearroz doce pelaprimeiravezedesconhecendodetodoomododeconfec-

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cionar essa sobremesa, decidisse descobrir por si mesmo qual poderia ser o seu logos.Significa isto,decidissedescobrirporsimesmoquaissãooselementosqueentramnaconstituiçãodo arroz doce,qualéaproporçãoquecadaumdeles temdeassumirporrelaçãocomosrestantes,qualéaordemporquetêmdesercombinadosequaissãoosprocessosque,passoapasso, constituem o método correcto de os combinar.

11.Orabem,aatitudedeum tal indivíduo revelar-se-ia,sem dúvida, assaz diferente da de outro que se contentasseapenas com comer arroz docepelaprimeiravezecomexpres-sar o agrado ou desagrado que isso lhe pudesse trazer — sendo que bem se poderia dizer que a diferença fundamental entretais duas atitudes decorreria de a primeira delas se encontrar determinada,aopassoqueasegundanão,poruma"completamentalidadecientífica" (paravoltarautilizaraspalavraspres-timosasdeWhiteheadsemdeixarde levaremcontaquenosencontramosaquiempresençadeumacomparaçãobastantesimplificadora).

12.Grandepartedaquiloquevemdeseditoteveemvista,afinal,dar-nosaperceberquaissãoascaracterísticasmaisfun-damentaisda"mentalidadecientífica",aqual,defacto,seen-contranaorigemdademandasistemáticapeloslogoi das diver-sasrealidadescomqueohomemsevêconfrontadoeassenta,emprimeirainstância,nacrençainstintivanaracionalidadeoulogicidade da Natureza, considerada esta, por conseguinte, sob o aspecto de logosúltimoeinsuperável(naquiloqueseprendecom o mundo objectivo).

13. Ora, naquilo que respeita ao Ocidente, a "completa mentalidade científica" surge pela primeira vez na chamadaGréciaClássica,onde,comonãopoderiadeixardeacontecer,avamos encontrar a dar origem ao conceito de "ciência" (episte-me)e,emestreitarelaçãocomele,aosconceitosdelogos e de "ordem universal" (Kosmos).

14.Foi,narealidade,pelamãodosprimeirospensadoresgregos, que nasceu "a ideia de um saber que sejairrefutável".Istoé(paracontinuarausarpalavrasdeEmanueleSeverino),"Aideiadeumsaberquenãopodesernegadonemporhomensnempordeuses,nempormudançasdostemposoudoscostu-mes";deum"saberabsoluto,definitivo,incontroverso,necessá-rio, indubitável."E,como jáestamosemposiçãodeperceber,

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2EmanueleSeverino. Filosofia Antiga (La Filosofia Antica).Trad.JoséEduardoRodil,Lisboa,Edições70,1986,p19.

3 Ibidem, p. 25.

um tal saber teria de se assumir, desde logo, como conhecimen-todofundamentoda"Totalidade das coisas":dologos de todos os logoi:daunidaderacionaldetodososprincípiosuniversaise,por conseguinte, da ordem (kosmos)quesedáaconhecernaqualidade de ser ou de estar último.2

15.Estaúltimaexpressão("naqualidadedeser ou de es-tarúltimo")poderáparecerestranhaàprimeiravista.Acontece,porém, que, em resultado de transmitir a ideia de fundamento in-superável e inegável de todas as coisas (de solo do ser de todas as coisas, para evocar o sentido do termo inglês ground e do termoalemãoGrund), se encontra directamente na origem da palavra grega episteme.Eistodadoque,"Senóstraduzirmosesta palavra por 'ciência'," como geralmente acontece, "esque-cemosqueelasignifica,àletra,o'estar'(steme)queseimpõe'sobre' (epi)tudoaquiloquepretendenegaraquiloque'está':o'estar'queéprópriodosaberinegáveleindubitáveleque,gra-çasaestasuainegabilidadeeindubitabilidade,se impõe 'sobre' todooadversárioqueopretendanegaroupôremdúvida."3 Ou seja, se impõe "sobre" todaaformadechaos, o qual é termo queexpressaoopostodekosmos (ordem) e, por conseguinte, a ideia de ausência de limite (apeiron):aideiadeausênciadedeterminação(péras) ou de logos.

16. Temos, pois, que a ideia de "conhecimento que é ciên-cia"começaporsurgirnaformadeepisteme, a qual, contudo, éconcepçãoqueapenasdistingueoconhecimento teóricodoconhecimentopráticooudosaber fazer (techne). Isto é, a qual éconcepçãoque,aoentraremlinhadecontacomoconheci-mento"definitivo,incontroverso,necessário,indubitável",nãoodistinguedeumconhecimentoqueonãosejaouquenãopossaserconsideradociência,umavezque,dopontodevistafilosófi-coqueseencontranasuaorigem(naorigemdaconcepçãode"ciência" como episteme), todo o conhecimento (todo o saber digno de ser considerado conhecimento) seria, por natureza, "definitivo,incontroverso,necessário,indubitável".Ouseja,umavezque,detalpontodevista,aoposiçãopertinenteteriadeseverificarentreo conhecimento(osaber"definitivo")e,poroutro

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lado, a doxa(ameraopiniãooucrençainfundada)eapistis (a crençanosentidode"fé").4

17.Paraalémdisso,temosumoutrofactoimportante.Éeleofactode,emconsequênciadaquiloqueacabadeserdito,a palavra epistemelogosetertornadomaisoumenossinónimade sophia: do "saber"emqueafilosofiaconsiste—umavezque philosophiasignificaliteralmente"amizade(philia)àsophia" —, enquanto saber daquiloquesemanifestadeformaevidente,ou se desocultapelaviaimediatadasuaclarividência,enãoépassível,porisso,desernegadoourecusado.Omesmoédizer,enquanto "saber" ou conhecimento da verdade — uma vez que a palavra grega que equivale a "verdade", a palavra aletheia, significaliteralmentenão estar escondido).5

18. Agora, se, no mundo latino, o termo grego shophia en-controu equivalente no termo sapientia ("saber", "sabedoria"), nãoobstanteotermogregophilosophia ter sido adoptado com estasuatransliteração(comagrafiaphilosophia), o termo epis-teme deu lugar ao termo (latino) scientia.

19.Comojáseviu(naentrada1.dasecçãoI.),esteúltimotermo, o termo scientia,significava,noseusentidolato,"conhe-cimento" tout court,enquanto,noseusentidorestrito,significava"conhecimento rigoroso de alguma coisa".

20.Paraobviaràsambiguidadesaqueessesdoissen-tidosafinsmasdiferentes teriamdedarorigem,osfilósofoseteólogosmedievais (os quais escreviam em Latim) faziam-sesocorrerdoqualificativodemonstrativa(istoé,utilizavamaex-pressãoscientia demonstrativa)paradiferenciarosegundode-les (o sentido restrito de scientia) do primeiro (o sentido lato) —tambémnisso,afinal,partindodeAristóteles(384–322A.C.),uma vez que, quando pretendia distinguir episteme no sentido de conhecimento indemonstrável dos primeiros princípios6 de

4Aeste respeito, considerem-seas seguintesafirmaçõesdeNevilleMcMorris:“...otermoepistemeerausadosemqualquerqualificativoparasigni-ficar...‘ciência’ou‘conhecimentocientífico’...Tanto‘ciência’como‘conhecimen-tocientífico’constituemtraduçõesdeepisteme...” (Neville McMorris. The Natures of Science.Rutherford,FairleighDickinsonUniversityPress,1989,p.28.)

5Veja-se:EmanueleSeverino.Op. cit., p. 20.6“Primeirosprincípios”(archai)sãoaquelesquenãosãopassíveisde

serdeduzidosdequaisqueroutros,comoacontece,porexemplo,comoaxio-ma euclidiano de que, considerados, num plano, uma linha e um ponto que nãocoincidacomela,umaeumasólinhapoderá,emtalplano,coincidircomessepontoeserparalelaaessalinha.Ospensadoresmedievaisreferiam-seataisprincípioscomo"verdadesevidentes"ou"axiomasevidentes".

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episteme no sentido de conhecimento demonstrado a partir de taisprincípios,oEstagiritaacrescentavaàqueletermo(episte-me)oqualificativoapodeitike, de modo a obter episteme apodei-tike("conhecimentoapodíctico"ou"conhecimentodemonstrati-vo", no sentido, precisamente, de conhecimento passível de ser demonstrado necessário e indubitável dedutivamente).7

21.Agora,importatrazeràmenteduascircunstâncias.22.Aprimeiraéacircunstânciadeagrandemudançaque

apresentesecçãopretendedelinearemtraçosgerais,agrandemudançadesentidodequeo termo "ciência" se foi tornandoalvo mais ou menos a partir do século XVII, nos colocar, grosso modo, perante duas tradições.Porumlado,atradiçãoaristotéli-ca,aqual,partindodeAristóteles,seestendeatémaisoumenosao século XVI e se caracteriza em geral, naquilo que aqui nos diz respeito, pelo entendimento aristotélico de que toda a ciência (todooconhecimentoexactoeindubitável)consistesobretudoem conhecimento demonstrativo (scientia demonstrativa) ou em conhecimento obtido dedutivamente.8Poroutrolado,atradiçãobaconiana,9 que, musculada pelo volte-facemetodológicoqueo

7Porexemplo,noseguintepassodeAnalíticos Posteriores (I, 2, 71b), noqualAristótelescaracterizaosprimeirosprincípios,aexpressão"conheci-mento demonstrativo" corresponde a episteme apodeitike:"Agora,seoconhe-cimento é como o havemos concebido, o conhecimento demonstrativo tem de proceder de premissas verdadeiras, primeiras, imediatas, conhecidas melhor doqueaconclusão,anterioresaelaequedelasejamascausas."(Aristotle.Posterior Analytics.Trad.HughTredennickeE.S.Forster,Cambridge,Mass.,HarvardUniversityPress,1960,p.31.)

8TalcomoopensamentodePlatão(noqualradicamduastradiçõesdiametralmenteopostas,aquedefendeapossibilidadedoconhecimentoderealidadesabsolutaseimutáveiseadocepticismoepistemológico,quetantocaracterizaodiscursodoSócratesplatónicoevemaressurgir,naRenascen-ça,comMontaigne),opensamentodeAristótelesconstitui,porassimdizer,umdelta—umdos seus dois cursos sendo a tradição que acima vemdeser referida,eooutroa tradiçãoquehá tomadoo lugardela:a tradiçãodoempirismofilosóficoedoindutivismo,quetantocaracterizaasmodernasciên-ciasexperimentais.Nãoobstanteisso,nãodeixadeserverdade,comoRobinSmithafirma,eparasersucinto,queAristóteles"revelapoucapreocupaçãocomomoderno 'problemada indução'";que, "emboraconfiraà induçãoumpapelepistemológicodeterminante,naqualidadedemeioparaaobtençãodoconhecimentodeprincípiosgerais,elejamaisprocuraestabelecerregrassis-temáticasparaaconstruçãodeargumentosindutivos."(RobinSmith."Logic".In:JonathanBarthes,ed. The Cambridge Companion to Aristotle. Cambridge, CambridgeUniversityPress,1995,pp.32,33.

9Comrelaçãoaoadjectivo"baconiana",veja-se,adiante,aentrada35.destasecção.

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experimentalismodeGalileu(1564–1642)eafísicaNewtonianainauguraram, nos conduz, partindo do século XVII e da chama-daRevoluçãoCientífica,aoactual(einverso)entendimentodequetodaaciência(todooconhecimentoexactoe indubitável) temporfundamentoprimeiroaobservação,ainduçãoeaexpe-rimentação.

23.Asegundadasduascircunstânciasquehápoucofo-ram mencionadas (na anterior entrada 21.) é a de que a sepa-ração(senãomesmoaoposição)entreciênciaefilosofia,quehojesenosafiguratãonaturaletãoevidente(aopontodequasenãoserquestionada),éseparaçãoqueaprimeiradasduastra-diçõesquevêmdeserapontadas,aaristotélica,desconheceude todo — como teria de desconhecer, dado que a ciência (o conhecimentoexactoeindubitável)consistia,doseupontodevista, sobretudo em conhecimento demonstrativo (scientia de-monstrativa),comosehávisto.Omesmoédizer,dadoqueahomogeneidadequalitativacomquea tradiçãoaristotélicade-parava nos diversos ramos da ciência (a homogeneidade decor-rente da partilhada demonstrabilidade destes últimos) jamais lhe poderiapermitirpensarnostermosdaseparaçãoentreCiênciasExactaseCiênciasInexactas—aqual,hoje,serevelanecessá-riaemteoria,mas,naprática,tendeatraduzir-senaseparaçãoentre conhecimento que é ciência stricto sensu (o conhecimento matemático-experimentaldasCiênciasExactas)econhecimen-toqueonãoé.10

24.Aristóteles,éclaro,haviadivididooconhecimentoemdiferentesáreas,umavezquenãopoderiaterdeixadodecon-cluirque,nãoobstanteasuahomogeneidadeformal(denovo,ahomogeneidade decorrente da sua demonstrabilidade), a epis-teme apodeitike (o conhecimento dedutivo) partia, no seu todo, deprimeiros princípios (de "premissas verdadeiras, primeiras,imediatas")denaturezadiferente—e,porconseguinte,quenãose tornaria possível provar (demonstrar) a indubitabilidade deconclusões deumcerto tipo partindo das verdades evidentes(dosprimeirosprincípios)queseimpunhamàrazão(nous) como causasoupremissasfundamentaisdeconclusõesdeoutrotipo.

10Comobemrevelaofactodeoactualedisseminadoentendimentode"ciência"tenderaocultarnosseusinterstíciosuminequívocoassentimentoàconhecidaafirmaçãodeLordKelvin:"Senãopodesercontado[numerica-mente],nãoéciência"(citadoporStevenDarian:op. cit., p. 19).

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25. Dos três grandes tipos de entendimento (dianoia) que Aristótelesdistingue,11(i)oprático,(ii)oprodutivoe(iii)oteórico,é este último (o teórico) que assume o carácter deepisteme apodeitike (de conhecimento demonstrativo), dado que, como o próprioAristótelesafirma:"...considera-sequeasabedoria[so-phia] consisteem formas teóricasdeconhecimento,em lugardeemformaprodutivas.Torna-se,pois,claroqueasabedoria[sophia]éconhecimentoteóricocomrelaçãoacertosfactoresirredutíveisecertosprincípios."12

26. Aquilo que isto tem em vista por em evidência é o seguinte: em primeiro lugar, que, como já se viu (na anteriorentrada 17.), sophiaou"sabedoria"significavao"saberouco-nhecimento da verdade"; em segundo lugar, que, assim sendo, nãoédeestranhardepararmoscomAristótelesadefinirsophia ou"sabedoria"como"conhecimentoteóricocomrelaçãoacer-tosfactoresirredutíveisecertosprincípios",e,porconseguinte,como episteme apodeitike (conhecimento demonstrativo); em terceiroeúltimo lugar,que, facea isso, tambémnãoserádeestranharverificarqueAristótelesdivideoconhecimentoteóricoemtrês"filosofiasteóricas"(philosophiai theoretikai):(i)ameta-física(afilosofiaprimeiraouteologia),(ii)amatemáticae(iii)afilosofianatural(afísica).13

27.Ora,chegadosaqui,estamosjáemposiçãodeconsta-tarumaspectoimportante,queseprendecomaquiloqueatrásfoidito(naentrada61.dasecçãoIV.)comrespeitoàseparaçãoentreciênciaefilosofia,aqualécorrelatodaseparaçãomaisabrangenteentreCiênciasExactaseCiênciasInexactas.Resi-deesseaspectonofactode,aolongodatradiçãoaristotélica,aFísica(aciênciaquehoje-em-diamaissedestacaentreasCi-ênciasExactas)tersidoininterruptamenteconsideradaFilosofia(FilosofiaNatural), ao invésdeconstituir ciênciadesvinculadadaprópriaFilosofia(comohojeacontece)pelaviadupladeselhe opor na qualidade de Ciência Natural (uma vez que, hoje, a FilosofiaseinserenasCiênciasSociaiseHumanas)edeCiên-ciaExacta.

11Veja-seMetafísica, VI, 1025 b.12 Ibidem,I,982a.MinhatraduçãodatraduçãoparaInglêsdeRichard

Hope (Aristotle. Metaphysics.Trad.RichardHope,AnnArbor,TheUniversityofMichiganPress,1998,p.6).

13Veja-seIbidem, VI, 1026 a.

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28. O aspecto importante que acaba de ser constatado, torna-o sobejamente claro, de forma sucinta, a seguinte afir-maçãodeNevilleMcMorris:"...talcomoAristótelesaentendia,aquiloquehojechamamos'ciência'nãoconstituíaumaactivida-dediferentedafilosofia."14

29.TantoparaAristótelescomoparaaquelesqueose-guiramaolongodosséculos,cabiaàciênciaquedesignamos"Física"explicarosfenómenosdaNaturezadedutivamente.Istoé, demonstrando as suas causas ou o seu "porquê" partindo de princípiosuniversais,aoinvésde,comohojeacontece,pondoem evidência sobretudo o seu "como" ou o seu modo de ser e de operarpordeterminaçãodecertasleisgerais.Assimsendo,"Aciêncianãoera",naverdade,"umaactividadeseparada—era,issosim,parte—daspreocupaçõesepistemológicasdosfiló-sofos.Era,defacto,episteme.15Melhordizendo:era,defacto,philosophia theoretike.

30.O percurso histórico ao longo do qual a separaçãoentreciênciaefilosofiase foigradualmenteestabelecendo—istoé,opercursohistóricoquepoucoapoucofoiconduzindoaoactual hábitomental de identificar "ciência" praticamenteape-nas como as Ciências Naturais — é assaz longo e conturbado. Assimsendo,nemsequera tarefade identificarosseuspon-tos de viragem mais determinantes poderia alguma vez caber, erevelar-seapropriada,nocurtoescopodaspresentesnotas.Importa,porém,tecer,comrelaçãoaessemesmopercursohis-tórico,algumasconsideraçõesgerais.

31. Emprimeiro lugar, há que pôr emevidência que talpercursohistóricocompreende,grosso modo, dois grandes pe-ríodos.

32.Oprimeiroperíodoestende-semaisoumenosdes-deo séculoXII ao séculoXVI, e inicia-se, demodoqueaquinãopodeserpormenorizado,comasgrandestransformaçõesdenaturezafilosóficaqueocasionaramaseparaçãodafiloso-fiapropriamentedita(oestudodaverdadenatural)dateologia(o estudo da verdade revelada) e, por essa via, acabaram por dar um novo rumo, por assim dizer, ao pensamento medieval. Trata-se,umpoucomaisemconcreto,dasgrandestransforma-çõesqueocorreramsobretudoemresultadodeaprioridadeea

14 Neville McMorris. Op. cit., p. 27.15 Ibidem.

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importância que tradicionalmente eram dadas ao conhecimento conceptual (dedutivo) terem transitado para o conhecimento ob-tidoatravésdossentidos,comaconsequênciadecisivanãosóde o estudo do mundo sobrenatural ter passado a ceder lugar ao estudodomundonatural,mastambémdeestetercomeçadoaserinvestigadoeexplicadoempírico-indutivamente.

33.Nesteprimeiroperíodo,enaquiloquerespeitaempar-ticularàsmutaçõesqueoconceitodeFilosofiaNaturalsofreuem resultado de uma pronunciada reconceptualização do de-dutivismopropugnadoporAristótelesedafísicadestefilósofo,destacam-sesobretudo,numaprimeirafase,oscontributosteó-ricosdepensadorescomoRobertGrosseteste(c.1175–1253),RogerBacon(1214–94)eWilliamofOckham(c.1288–1348).SeaRogerBaconseháficadoadever,emparticular,ospri-meirosesforçossignificativosparamatematizaraFilosofiaNa-turalepara,poressavia,a transformardeciênciaqualitativaem ciência quantitativa, em qualquer deles se depara com as preocupaçõesmetodológicasquehaveriamdeviratransformaraprópriaFilosofiaNaturalemciênciaexperimental. Istoé,emtodoselessedeparacomaconsciênciaeadefesadequeoconhecimentodomundonaturaldevecomeçarindutivamenteeprosseguirdedutivamente:deveascenderdosefeitosàscausas(aosprincípios),antesdedescenderdestasaosefeitos.

34. O segundo período estende-se mais ou menos doiníciodoséculoXVIIameadosdoséculoXIX,ecompreendeasdiversasfasesaolongodasquaisoactualentendimentode"ciência"sefoisolidificando,àmedidaemqueaFísica,aQuími-caeaBiologiamodernasforamemergindodoantigocasulo da FilosofiaNatural,eemque,deparaparcomisso,esta(aFilo-sofiaNatural)sefoimetamorfoseandono invólucro conceptual que hoje corresponde ao nome Ciências Naturais.

35.Comomarcoimportantedoiníciodestesegundoperío-do,impõe-seemparticularapublicaçãodeduasobrasseminaisdeFrancisBacon(1561–1626):The Advancement of Learning (1605) e Novum Organum(1620).Estaúltima(àqualseficamadever,emprimeirolugar,asdesignações"métodobaconiano"e"tradiçãobaconiana")contémaprimeiradefesasistemáticadométodoexperimentalqueaEuropaconheceu.Comooseutítuloindica,produziu-aoautorcomaintençãoexpressaderelegardefinitivamenteparaopassadooOrganonaristotélico:oconjun-

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todostratadosdelógicadeAristóteles,viadosquaisesteinsti-tuíra,elegaratantoàAntiguidadecomoàIdadeMédia,aideiapersistentedequetodooconhecimentoindubitávelteriadeseiniciarcomfundamentodedutivo,aoinvésdecomfundamentoempírico-indutivo(comoBaconargumenta).

36. Porém, a obra que mais se veio a revelar determinan-teparaaRevoluçãoCientíficadoséculoXVII(e,porviadela,para a transformação da antiga FilosofiaNatural emCiência)surgiuem1543;porconseguinte,significativamenteantesdasduasquevêmdeserreferidas.ÉelaotratadoDe revolutionibus orbitum coelestium (Acerca das revoluções das órbitas celes-tes), noqual, comoésabido,NicolauCopérnico (1473–1543)defendeaverdadedoheliocentrismo.

37. É que, se a teoria do heliocentrismo veio a encontrar comprovação,e,emconsequênciadisso,deitouporterradefiniti-vamenteogeocentrismodaantigatradição(astronómica)aristo-télico-ptolemaica(comaqual,afinal,soçobrouogigantescoedi-fíciomedievaldaortodoxiacatólico-cristã),talcomprovaçãosóveioverdadeiramenteaocorrerapósastremendasimplicaçõesfísico-matemáticasdaastronomiacopernicianateremproduzidoassuasmaisdirectasconsequências.Significaisto,após,pelamãodeDescartes(1596–1650),Galileu(1564–1642),eKepler(1571–1630),mas sobretudo pela deNewton (1642–1727), aantigaFilosofiaNaturalterassimiladoamatematizaçãoemmas-sadequenecessitavaparapoderdarrespostaàquestãofulcraldesaberqueforçasequeleisuniversaispoderiamasseguraromovimentodaTerraeregerasórbitasdosrestantesplanetas.

38.Apartirdaconsumaçãodafísicanewtoniana,apartirdaassimilaçãodonovoSistemadoMundoqueNewtondeuaconhecer via da sua opus magnum (a qual, significativamen-te, temo título Princípios Matemáticos da Filosofia Natural),16 omundonaturalnãomaisfoiomesmoqueforaparaaIdadeMédiaeparaaRenascença:deixoudesermundodivinocriadoeconservadoemfunçãodosarquétiposdamentedeDeus,parapassar a ser a grande máquina cósmica,cujosconstituintes,for-çasemovimentosserevelavamreduzíveis,emúltimaanálise,a

16 Philosophiæ Naturalis Principia Mathematica.A primeira edição éde1687.Subsequentemente,Newtonapresentouduasoutrasedições:ade1713 e a de 1726.

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umcomplexosistemadeproporçõesedefórmulasgeométrico-matemáticas.

39. Porém, se talmudança radical veio, na verdade, averificar-se,issoficou-seadeveràgrandeenãomenosradicaltransformaçãoqueatornoupossível.Trata-sedatransformaçãoqueaFilosofiaNaturalsofreuconcomitantemente,nãoobstantemanterasuaantigadesignaçãoouoseuantigoinvólucro verbal, emvirtudedeseterdesvinculadodaFísicaaristotélicaedeteradquiridoocarácterquehojea fazserpraticamentesinónimode "ciência stricto sensu".Istoé,emvirtudedeterdeixadodeanalisaredeexplicaromundoobjectivoemtermosdecausasfinaisouteleologicamente,parapassaraexplicá-loemtermosde mecanicidade.

40.De facto,seoPrincipia de Newton compartilha, em termos formais,ofilãometodológicoque inevitavelmentecon-tinua a ligar a ciência moderna ao dedutivismo aristotélico,17 marca, em termos de conteúdo ou das premissas concretas de queparte(paranãoconsiderarcomoantecedentesignificativoastrêsleiskeplerianasdomovimentoplanetário),ocorteradicalqueseparaaNovaFísicadaFísicaedaMetafísicaaristotélicas.

41. Isto é, marca (o PrincipiadeNewton)afronteiraapar-tir daqual a causa formal deAristóteles se vertedeprincípioqualitativo em leis quantitativamente (matematicamente) deter-minadas,eacausafinalsetornadetododesnecessária,emre-sultado de o novouniversosedeixarexplicarapenasemtermosdematériaedeforça,e,porconseguinte,emtermosdacausali-dade que determina o seu devir em actualidade e a partir do pas-sado, ao invés de em potência e em direcçãoaofuturo.Ouseja,em resultado de o novouniversosedeixarexplicarnaqualidadede universo inerte e mecânico (na qualidade de matéria e de forçasquesubsistemeoperamem si, na ausência de qualquer

17ComoNevilleMcMorrisafirma,refugiando-senaautoridadedeTho-masS.Kuhn:"...aciênciamodernadesenvolveu-seapartirdedoisfilões.Ofilãoprincipaldaciênciahaviasidoodoseuracionalismo,quepartedeAristó-telesedePlatãoesegueatéàIdadeMédia...Ooutrofilãodaciênciaéodaobservaçãoedoexperimentalismo,quefoifilosoficamenteinstituídonaépocamodernaporFrancisBacon.[...]Newton...foioprimeirocientista, no sentido dequefoioprimeiroatornarvisíveis[estesdois]ingredientesdaciência...OPrincipia, no qual deparamos com as leis do movimento e a teoria gravitacional deNewton,contémoaspectomatemáticodoracionalismodaciência;noÓp-ticadeNewton,detectamosexperimentalismonãosógenuíno,mastambémconducente a uma teoria das cores." (Neville McMorris. Op. cit., p. 214.)

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impulso vital que as propulsioneparaaconcretizaçãodeformaseternamenteperfeitasquelhessejamidealmenteexteriores),ede,emconsequênciadisso,osconceitosde "finalidade"ede"teleologia"nãopoderemterlugarnasuaexplicação.

42.Nãoobstanteasprofundasmutaçõesquevêmdeserapontadasatraçoslargos,asquaisocorreramnoâmbitomaisrestrito daFísica, esta última continuoua ser designadaFilo-sofiaNatural(como,denovo,atesta,porsisó,otítulodaobramaiordeNewton).E,naverdade,muitodificilmentesepode-ria terverificadoocontráriodisso,umavezque,porregra,asgrandestransformaçõesquevêmaocasionarqueosentidoqueumadesignaçãoexpressasejasubstituídoporoutro,ouquesesintaanecessidadedeutilizarumadesignaçãojáexistenteparareferirumanovarealidade,ocorremeperdurammuitoantesdeisso mesmo vir a acontecer.

43.Autilizaçãoactualdotermo"ciência",aqual,naprá-tica, restringe a aplicação desse mesmo termo às CiênciasNaturaise,dentrodestas,àFísica,àQuímicaeàAstronomia,decorre,aliás,aumsótempo,tantodeumamudançadesentidocomodanecessidadedeutilizarumadesignação jáexistente("ciência")parasubstituiroutra ("filosofianatural"),cujautiliza-çãoserevelavajádesadequada.Eistoumavezque,defacto,oemprego restrito que hoje é dado em masse ao termo "ciência" sóveioatornar-sepossível:porumlado,pelaviade"ciência"deixardeexpressarosentidogenérico (de "género") que epis-teme apodeitike e scientia demonstrativahaviamexpressado(osentido genérico "filosofia teórica" ou "especulativa", por opo-siçãoa"filosofiaprática);poroutrolado,pelaviade,concomi-tantemente com isso, esse mesmo termo ("ciência") passar a expressarosentidoespecial (de "espécie") "ciência natural", e de,assimsendo,tomarolugardaantigaejádesadequadade-signação"filosofianatural".

44.Por conseguinte, o termo "ciência"não foi cunhadopara expressar uma nova realidade. Pelo contrário, foi sendogradualmente deslocado do seu sentido genérico original (o sentido"conhecimentorigorosoemetodológico",e,porissofilo-sófico) para um dos sentidos especiais que, naquela qualidade, subsumia (o sentido "filosofia natural"). E isto não obstante oprópriotermo"ciência"manterformalmenteoseuestatutoinicialdedesignaçãogenérica,queéarazãoporque,narealidade,

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deparamoscomele,hoje,aarrogar-seeausurpar,naprática,osentido"conhecimentorigorosoemetodológico".

45. De novo, a mudança semântica que consistiu emsubstituir a designação "filosofia natural" pelo termo "ciência"não ocorreu tão cedo quanto se começou amanifestar a ne-cessidadedeaefectuar,sendoque,comoNevilleMcMorrisco-menta:"atémesmonaalturaemqueoestudodaNaturezaseestavaaseparardafilosofiaemtermosdemetodologia,aquelesqueopraticavamcontinuaramaser'filósofosnaturais',talcomoessemesmoestudocontinuouaser'filosofianatural.Jáentãopraticavam eles 'ciência', mas esta palavra ainda encerrava sen-tidosquevigoravamdesdehámuitoequeremetiamdeformainequívocaparaatradiçãoracionalista[pré-copernicianaepré-newtoniana]".18

46.Como já foi referido (naanteriorentrada42.),ane-cessidadededesignarumanovarealidadenãoconduzaoapa-recimento de um novo termo, ou à apropriação de um termojáexistente, imediatamente.Significaisto,talaparecimentoouapropriaçãosóvemaocorrer,regrageral,àmedidaemqueanovarealidadesetornapersistentementevisíveledoconheci-mentogeral;àmedidaemqueadécalageentresignificadoeausênciadesignificante,ouentrenovosignificadoesignificanteantigo e desadequado, se torna incómoda e, por isso, obriga a queselheponhafim.

47.Ora,nocasoda transiçãode"filosofianatural"para"ciência",ecomojáestamosemcondiçãodeperceber,taldé-calage foi-se fazendo sentir cada vezmais por determinaçãosobretudo de cinco vectores principais: (i)aênfase teóricanoindutivismoounoexperimentalismodaverdadeira ciência; (ii) a prática do tipoespecíficodeFilosofiaNatural que conduziu(acomeçarcomDescartes)àactualconcepçãomecanicistadomundo objectivo e, no seguimento disso, à transformação daprópriaFilosofiaNatural emparadigmadaverdadeira ciência; (iii) a prática cada vez mais generalizada, no âmbito da verda-deira ciência, dométodoindutivo-experimental,(iv)apercepçãodo aparecimentodonovomundo-máquinaedasuaestreitare-laçãocomanovaeverdadeira ciência; (v) a necessidade cada vez mais premente de designar a nova e verdadeira ciência por

18NevilleMcMorris.Op. cit., p. 215.

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viadeumtermocujasassociaçõesnãotrouxessemàmenteaextinta ligação entre a verdadeira ciência e a antiga FilosofiaNatural.

48. De par a par com esses cinco vectores, mas na reali-dade em resultado sobretudo dos primeiros quatro, deparamos, porém, com um outro — que, hoje, praticamente se recusa a ser identificado(comonãopoderiadeixardeacontecer).Trata-sedovectorqueconsistenatransiçãodoentendimentomedievaldoMundo e do Homem, que se caracteriza por ser eminentemente hiper-idealistaequalitativo,19 para o entendimento do Mundo e do Homem que é resultado directo e parte integrante da moder-na verdadeira ciência, o qual é entendimento que se caracteriza porsereminentementehiper-realistaequantitativo.20 Quer isto dizer(quandosetemcomoreferência—comoaconteceaqui—oentendimentohelénico-clássicodeHomemedeMundo,quese caracteriza por ser idealista e realista em proporções tenden-cialmenteequânimes): trata-sedovector da Modernidade que consistenatransiçãodahegemoniamedievaldoespíritooudaalma para a hegemonia moderna da matéria e do corpo — a qual,naverdade,émenostransiçãodoquerevolução, uma vez quehá afastadoo homemmodernocento e oitenta graus do homem medievo, em lugar (como deveria ter acontecido) de o conduzirarevalidaraperspectivaepistemológicaclássicae,porisso,holística(de trezentos e sessenta graus).

49.Éque,naverdade,oposicionamentoepistemológicoquese fazprevalecentenumcertomomentohistórico-culturalnãodeterminaapenaso tipodearte (pintura,poesia,música,etc.)quecaracterizaesteúltimo(momentohistórico-cultural).Ouseja,nãodeterminaapenasse,numcertomomentohistórico-cultural,seproduzmaioritariamente,porexemplo,arteclássicaouarteromântica:determinatambémomodocomosenomeiaaquilo que se nomeia, os termos que se escolhe para designar asnovasrealidadesquedespontamdanovaformadeconcebero Homem e o Mundo a que ele mesmo, posicionamento episte-mológico,dáorigem.

19Testemunhodissoé,sóporsi,aseguinteafirmaçãodeWhitehead:"Seaomenososescolásticostivessemmedido,emlugardeclassificar,quantonãopoderiamelesteraprendido!"(AlfredNorthWhitehead.Op. cit., p. 37.)

20Comrelaçãoaosconceitosde"hiper-idealismo"ede"hiper-realis-mo",bemcomocomrelaçãoaoseucorrelato,oconceitode"idealismo-realis-mo",vejam-sesobretudoasduasúltimassecçõesdestasnotas,aXI.eaXII.

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50.Ora,umavezqueassimé, jamaissepoderáestra-nharoseguinte:que,sendooposicionamentoepistemológicoquecaracterizaaModernidadeaqueleaquesedeveráchamar"hiper-realismo","materialismo"e"quantitativismo",21 apenas as ciênciasfísico-quantitativas,aquelasqueconsistememconhe-cimentodarealidadeexterioroudamatéria,tenhamvindoaserentendidas como verdadeira ciência e, em resultado disso, a merecer(quase)exclusivamenteonome"ciência".

51.Hoje-em-dia,asciênciasquerecebem(quase)exclusi-vamenteonome"ciência"aindaoriginamváriasquerelas, que, entretanto,sefizeramantigas.Deentreelas,destacam-se,semdúvida, a querela Religião-Ciência, a querela Humanidades-Ciência e a querela entre Ciência e aqueles que a acusam de constituir Cientismo.22

52. A segunda destas três querelas (a querela Humanida-des-Ciência)encontraosseusprimeirostestemunhosnoséculoXIX,23e,comoacabadeserdito,permaneceentrenós.Atercei-ra (a querela entre Ciência e aqueles que a acusam de constituir Cientismo) encontra os seus primeiros testemunhos também no século XIX,24e,domesmomodo,permaneceentrenós.Porém,

21Comoseirátornarclaroquandoláchegarmos,estasafirmaçõesnãocontrdizemaquiloque(nasecçãoXII.)iremosverHeideggerpôremevidênciano seu escrito "Die Zeit des Weltbildes" ("O Tempo da Imagem do Mundo").

22Comosetornaevidente,otermo"cientismo"temreferência,nestecontexto,apenasàconvicçãodequetão-somenteo indutivismoeoexperi-mentalismo,bemcomoo rigormetodológicoquede igualmodocaracterizaasCiênciasExactasNaturais, constituemciência ouprática científica, e deque,porconseguinte,qualquerestudoouinvestigaçãoqueosnãofaçaounãopossafazerseus(devidoànaturezadoseuobjecto)nãopoderáserconside-radociência.Ouseja:essemesmotermonãoincluiaquiosentido(igualmentepejorativo) usurpação da cientificidade das Ciências Exactas por parte de um ramo do conhecimento que naturalmente a não pode atingir.

23 Mais em concreto, na guerra de letrasentreosensaios"ScienceandCulture"(1880),deT.H.Huxley,e"LiteratureandScience"(1882),deMatthewArnold,osquaisserãoanalisadosnaúltimasecçãodestasnotas,aXII.

24 Provavelmente, o ensaísta inglês JohnRuskin (1819–1900) foi oprimeiroadar-lhe início.NumadasnotasaoseuAriadne Florentina (o qual reúneseisconferênciasproferidasnauniversidadedeOxfordem1872,acercadaartede fazergravurasemmadeiraeemmetal),pode ler-seoseguinte:"Entreosmatemáticos,químicosefarmacêuticosmodernos,tornou-semodaconsentidaautodenominarem-se'homensdeciência'[scientific men], por opo-siçãoaosteólogos,poetaseartistas.Elestêmconsciênciadequeasuaesferaéumaesferaàparte;porém,asuaridículaconcepçãodequeelaécientíficademodopeculiarnãodeveriaserpermitidanasnossasuniversidades.Háumaciência daMoral, uma ciência daHistória, uma ciência daGramática, uma

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a querelacomaparcialidadeepistemológicaemqueaconcep-çãomoderna de "ciência" assenta, com o hiper-realismo dosnossos dias, que consiste em entrar em linha de conta prati-camente apenas comomundoexterior e objectivo, enquantomundoquantificável...Porém,essaquerela,jásóavemos,hoje-em-dia,adarosseusúltimosestertores,naformasobretudodequeixumeclericaleimpotentecontraomaterialismoexacerbadodanossasociedade—nãoobstantedepararmoscomela,nasuaformainicialerobusta(e,porconseguinte,noseugenuínoaspecto de querela com a única e verdadeira ciência), também no século XIX.25

ciência da Música e uma ciência da Pintura; e, para o intelecto humano, todas estasconstituem,semcomparaçãopossível,camposdosabermaiselevadosdoqueosdaquímica,daelectricidadeedageologia,bemcomorequeremri-gorquedependedeumaobservaçãomaisintensadoqueaqueladequeestasúltimas dependem." (In: The Works of John Ruskin.Ed.E.T.CookeAlexanderWedderburn,London,GeorgeAllen,vol.22,1906,p.396.)

Em1878,numadasnotasaumartigointitulado"Pre-Rephaelitism:ItsThreeColours",Ruskinacrescentou:"Ousodapalavrascientia como se di-ferissedeconhecimento constitui um barbarismo moderno, o qual em geral adquirerelevoviadopressupostodequeoconhecimentodadiferençaentreácidosealcalinosémaisrespeitáveldoqueoconhecimentodadiferençaen-trevícioevirtude."(Ibidem,vol.34,1908,p.157.)

25Por exemplo, num artigo intitulado "TheSigns of theTimes", pu-blicadoem1829(noperiódicoEdinburgh Review), o escritor inglês Thomas Carlyle(1795–1881)escreviaoseguinte:"PortodaaparteseadmitequeaCiênciaMetafísicaeaCiênciaMoralseencontramemdecadência,enquantoasCiênciasFísicasacumulam,cadadiaquepassa,maisrespeitoeatenção.NamaioriadospaísesdaEuropa,nãosedeparahojecomumaCiênciadaMente; apenas com maior ou menor progresso no campo da ciência geral, ou dasciênciasespeciais,damatéria.[...]Essaactualcondiçãodosdoismaioresramosdoconhecimento—oprimeiro,oestudodomundoexterior,aserculti-vadoexclusivamentecombaseemprincípiosmecânicos,osegundo,oestudodomundointerior,aserabandonado,devidoanãopoderproduzirresultadosquandosepretendecultivá-locombasenaquelesmesmosprincípios—de-monstrasobejamentequaléopreconceito intelectualdosnossostempos:asuatendênciageneralizadaparaaqueletipodeinterrogaçãoedepesquisa.De facto,umacertapersuasão interior têm-sevindoadisseminardesdehámuito, chegando mesmo a ser verbalizada de quando em vez. É ela a per-suasãodeque,exceptoaquelasqueestudamomundoexterior,nãoexistemverdadeiras ciências; de que a única via que se pode conceber como via para omundointerior(seeleaindaexistir)éomundoexterior;deque,pararesumir,tudoquantonãoépassíveldeserinvestigadoecompreendidoemtermosdemecanicidade não pode ser investigado e compreendido de todo." (In: The Collected Works of Thomas Carlyle.London,ChapmanandHall,vol.3,1858,pp. 103, 105.)

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53.AcircunstânciadeareferênciaaoséculoXIXse terrepetidodehápoucoparacáapontabemnosentidodetersidoentãoqueotermo"ciência"definitivamenteadquiriuosignifica-do que hoje apresenta e que o levou a tomar o lugar da antiga e tradicionaldesignação"FilosofiaNatural".Eque,narealidade,assim aconteceu,26confirma-nos,porexemplo,RaymondWilliams.

54.NasecçãodoseuKeywords: A Vocabulary of Culture and Society que concerne a "Science", afirma aquele autor oseguinte:"Adistinção[entreciênciaexperimentalenão-ciência]tornou-semais rígidanoprimeiro quartel e por volta demea-dosdoséculoXIX.Emboraaindaentãoseverificassemváriosempregos residuais [do termo 'ciência'noseuantigosentido],deparamosporvoltade1867comaseguinteafirmação,aqual,deformasignificativa,serevelatãodestemidacomoconscientedanovidadequeespecifica: 'iremos...usaro termociência no sentidoqueosInglesestãocomummentelhedão...comotermoquedesignaaciência físicaeexperimentaleque,porconse-guinte,excluia[ciência]teológicaea[ciência]metafísica'.Estasduasexclusõesespecíficasconstituem,nestepasso,oclímaxdeumargumentodecisivo,sendoqueaespecialização[dequeotermo'ciência'éalvo]excluiemseunomemuitasoutrasáreasdo conhecimento e do estudo. Científico, método cientifico e ver-dade científicaverteram-seemdesignaçõescujaespecialidadeasrestringiuaosbem-sucedidosmétodosdasciênciasnaturais,que,emprimeirainstância,passampelafísica,pelaquímicaepelabiologia.Outrasáreasdeestudo,écerto,podiamserconsi-deradasteóricasemetódicas.Porém,esseaspecto[formal]nãoera aquilo que interessava: o elemento que assumiu carácterdiscriminatóriofoianaturezamaterialeobjectiva tanto do con-teúdo como do método, a qual, quer num caso quer no outro, é recorrentenasreferidasciências[asciênciasnaturais]."27

55.Comoseviujá(naentrada5.dasecçãoIV.),todaaciênciaassumetambémoaspectodeprodução.Ora,emfacedisso, importasublinharoseguinte:porumlado,que,porsuavez,todaaproduçãoimplica,porforça,umprodutor;poroutrolado, que, assim sendo, toda a ciência implica um produtor.

26SobretudonocasodaInglaterra,quetambémnesteaspectopodebem ser tomada como representativa das grandes tendências da Europa em geral.

27RaymondWilliams.Keywords: A Vocabulary of Culture and Society. London,Fontana,1990,pp.278–79.

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56.Hoje-em-dia,quandotudoànossavoltaconspiraparaqueotermo"ciência"nospareçatertidosempreosentidores-trito com que nele deparamos, designamos e reconhecemos esse produtor (o da ciência), sem qualquer hesitação, via dosubstantivo"cientista".Jácomosnossosavós,provavelmente,amesmacoisaacontecia.E,assimsendo,nadanospoderápa-recer mais natural do que supor que aquele mesmo substantivo ("cientista") sempreexistiu.

57.Averdade,porém,équeosubstantivo"cientista"sóentrounovocabuláriodaEuropamaisoumenospelaalturaemquesefezsentiranecessidadeprementedeotermo"ciência"vir a adquirir o sentido restrito que hoje apresenta e que o tor-noucapazdesubstituiradesignação"FilosofiaNatural".Quemocunhou,parasubstituirotermo"filósofo",quepassaraaserseguidodequalificativoscomo"natural"ou"experimental"sem-pre que era aplicado, manquejando, a um dos homens da nova ciência,foioteorizadoringlêsWilliamWhewell(1794–1866).

58. Na sua obra The Philosophy of the Inductive Sciences, Founded upon their History (A Filosofia das Ciências Indutivas, com Fundamento na História delas),quefoipublicadapelapri-meiravezem1840,WhewelldistingueasCiênciasNaturaisdasrestantesnãoporviadelhesaplicarexclusivamenteotemo"ci-ência",massimporviadeasdesignar"ciênciasindutivas".Nãoobstanteisso,nãosecoíbeeledefazer,aquieali,afirmaçõesque inequivocamentesãoquase tãodiscriminatóriasquantoaafirmaçãoque(naanteriorentrada54.)vimosRaymondWillia-msfazerremontaracercade1867.

59.Comoexemplomaissignificativode taisafirmações(deWhewell),temosaseguinte:"AsciênciasaqueonomeCi-ênciaéconferidodemodomaisgeneralizadoesemqualquerhesitaçãosãoaquelasquedizemrespeitoaomundomaterial...E, no que respeita a qualquer uma de tais ciências, parte-sefamiliarmente doprincípio dequeas suasdoutrinas sãoobti-daspeloprocesso,atodascomum,dealcançarverdadesgeraisapartirdefactosparticularesquesãoobservados,sendoqueesse processo é designado Indução."28

28WilliamWhewell.The Philosophy of the Inductive Sciences, Foun-ded upon their History.2.ed.,London,JohnW.Parker,1847,vol.1,p.2.

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60.NamentedoWhewellde1840,jásefaziaclara,pois,adistinçãoentre "ciência"nosentido lato todas as ciências e "ciência" no sentido restrito as ciências naturais.Eassimnãopoderia, na realidade, deixar de ser.— Por um lado, porque,comoovimospôremevidência,taldistinçãojáentãosetornarageneralizada.Poroutrolado,porqueseisanosantes(em1834),nodecursodeumarecensãocríticanão-assinadaaOn the Co-nexion of the Physical Sciences(daautoriadeMarySomerville),já pusera em evidência que atémesmo asCiênciasNaturaismostravam estar a perder, em termos do seu conteúdo, a unida-dequeformalmenteasfizeradevirciência em sentido restrito.

61. Ora, acontece que é precisamente a essa perda de unidade,queWhewellatribui"afaltadeumqualquernomeporque se possa designar colectivamente aqueles que estudam o conhecimento do mundo material." E acontece também que é no seguimentodestasuaobservação,quesugere(incognito e de modoirónico)quetalfaltavenhaasersupridaporviadotermo"cientista".

62. Imediatamenteaseguiràspalavrasquevêmdesertraduzidas,escreveele:"Fomosinformadosdequeestadificul-dadehásidoopressivamentesentidapelosmembrosdaAsso-ciaçãoBritânicaparaoProgressodaCiência,nodecursodassuas reuniões emYork,Oxford eCambridge dos últimos trêsverões.Nãohavianenhumtermogenéricoqueaquelessenho-respudessemusarcomrelaçãoasimesmoseàssuasinvesti-gações.Filósofospareceu-lhesserumtermodemasiadamentelatoeempolgado,e,alémdisso,foi-lhesinterditadocombastan-tepropriedadepeloSr.Coleridge[opoeta-filósofoSamuelTaylorColeridge],tantonasuacapacidadedefilólogocomonademe-tafísico.Savans revelou-se-lhesdemasiadamentepresunçoso,sendoque,paraalémdisso,éumtermofrancês,emlugardeinglês.Uminventivosenhor[opróprioWhewell]propôs,então,que poderiam cunhar cientista, por analogia com artista,... mas issonãogranjeouagradogeral”.29

63.Vinteequatroanosmaistarde(em1858),deparamos,porfim,comWhewellnãosóaconstatarmaisumavezaausên-ciadeumtermocapazdeterreferênciaatodososprodutores de ciência (em sentido restrito), mas também a propor de novo

29[WilliamWhewell].The Quarterly Review,1834,vol.51,p.59ss.

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(agora,semqualquerironia)quetalausênciafossesupridapor"cientista". É no livro quarto do seu Novum Organon Renova-tum30(quetemportítulo"DaLinguagemdaCiência"),queissoacontece.Ali, escreve ele: "As terminações ize (em lugar de ise), ism, e ist têmaplicaçãoapalavras de todasasorigens.Assim sendo, temos to pulverize, to colonize, Witticism, Heathe-nism, Journalist, Tobacoonist.Porconseguinte,é-nosfacultadocunharpalavrasdessassemprequetalfornecessário.Umavezquenãopodemosusarphysician[médico]comrelaçãoàquelequecultivaafísica,denomineiestePhysicist [Físico].Precisa-mosbastantedeumnomeparanosreferimosàquelequecultivaaciênciaemgeral. Inclino-meachamá-loScientist [Cientista].Nasequênciadisso,poderíamosdizerque,talcomoumArtistaéMúsico,PintorouPoeta,umCientistaéMatemático,FísicoouNaturalista."31

64. Como se torna evidente, Whewell entende por "ciência em geral" a generalidade da "ciência" em sentido restrito. Isto é, ageneralidadedasCiênciasNaturais,enãoageneralidadequeo termo grego episteme e o termo latino scientia abrangiam.

30 O qual constitui a segunda parte de The Philosophy of the Inductive Sciences.

31 William Whewell. Novum Organon Renovatum.3.ed.,London,JohnW.Parker,1858,pp.337–38.

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VII. Conhecimento científico e conhecimento não-científico: três grandes diferenças

1. No seu ensaio "Acerca do Valor Educativo das Ciências daHistóriaNatural" ("On theEducationalValueof theNaturalHistorySciences"),ThomasHenryHuxley(1825–1895),ogran-depaladino,noséculoXIX inglês,da introduçãodasCiênciasNaturais nos curriculaescolares,afirmaoseguinte:"...osimen-sosresultadosqueaCiênciaobtémnãosãoalcançadosatravésdefaculdadesmísticas,atravésdeprocessosmentaisdiferen-tesdaquelesqueorientamcadaumdenósnosdomíniosmaishumildesemaistriviaisdavida.[...]Naverdade,ohomemdaci-ênciatão-somenteusacomescrupulosaexactidãoosmétodosquetodosnósusamosdescuidadamenteporhábitoemomentoa momento..."1

2. Por "processosmentais", Huxley entende os proces-sosdeinduçãoedededução,decujaaplicaçãonodia-a-diadáexemplosquesãodetodosconhecidos.Oqueimportaperceber,contudo,éque,emresultadodasuamotivaçãoparadesvincularosóbrioexercício da ciência do exercício,porviade"faculdadesmísticas",dafilosofiaedapoesia,elereduzadiferençaentreoconhecimento comumeoconhecimentocientíficopraticamenteà"escrupulosaexactidão"quecaracterizaesteúltimo.Comoeleafirma,semrebuços:"ACiência,estoudissoconvencido,nadamais é do que senso comum sujeito a treino e sistematização, delediferindotão-somentedomesmomodoqueoveterano[operito]podediferirdorecruta[doiniciado]."2

3.Traz-nosistodenovo,comosetornaevidente,ànoçãode "rigor", a qual foi utilizada até aqui precisamente para de-marcar(aindaque,porforça,semgranderigorouexactidão)agrandediferençaquea única e verdadeira ciência tanto capricha em interpor entre elamesmae todas as restantes formas deconhecimento.

1T.H.Huxley.“OntheEducationalValueoftheNaturalHistoryScien-ces” (1854). In: —. Collected Essays. Bristol, Thoemes Press, 2001, vol. 3 (Science and Education),pp.45–46.

2 Ibidem., p. 45.

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4.Aessanoção,ànoçãode "rigor", foram-se juntando,entretanto,nodecursodasanterioressecções,outrasnoções,taiscomoasde"certeza","exactidão","sistematização"e"indu-bitabilidade".Porém,issonãonospossibilitadarporcumprido aquele que é o grande objectivo da presente secção: preci-samente, tornar claro tantoquantopossível quais sãoas trêsgrandesdiferençasque,antesdequaisqueroutras,separamoconhecimento não-científico — chamemos-lhe "conhecimentocomum"—doconhecimentocientífico.

5.Teremosdecomeçarporpôremevidência,comrelaçãoa isso, três circunstâncias.

6. Uma primeira circunstância é a de, na verdade, o cha-mado"conhecimentocientífico"nãosediferenciardoconheci-mento comum qualitativamente ou em termos qualitativos, como Huxleypõeemrelevo.

7.Paraquesepossaperceberoqueistosignifica,impor-ta atentar no sentido que o advérbio "qualitativamente" adquire aqui. Por exemplo, todas e quaisquer cores (azul, vermelho,etc.) são subsumidas pela espécie "Cor". E, enquanto mem-brosdessaespéciedepredicados,diferemqualitativamentedosmembros de todas e quaisquer outras espécies de predicados (Extensão,Peso,Temperatura,Textura,etc.),aopassoque,pre-cisamenteporaquelarazão(porserem,todaselas,subsumidaspelaespécie"Cor"),nãodiferemqualitativamenteumasdasou-tras.Ouseja,aopassoque,paradarumexemploconcreto,acor "azul" não difere qualitativamente da cor "vermelho" e detodas as restantes cores.

8.Recapitulando:Temosaquiogénero"Predicados",emcujaesferaconceptualentra,apardemuitasoutrasespécies(Extensão,Peso,Temperatura,Textura, etc.), a espécie "Cor"(azul, vermelho, etc.). Assim sendo, os membros desta espécie depredicados(daespécie"Cor")diferemqualitativamentedosmembros das restantes espécies (de predicados) que comparti-lhamaesferanocionaldaquelegénero(ogénero"Predicados");contudo,nãodiferemqualitativamenteunsdosoutros.Ouseja,contudo,omembro"corazul",porexemplo,nãodiferequalitati-vamente do membro "cor vermelho".

9. Ora, é nesse sentido que, se pressupusermos (por conveniênciateórica)quetodosostiposdeconhecimentosãomembrosdeumasóespécie,daespécie "Conhecimento", se

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tornaevidentequeochamado"conhecimentocientífico"nãodi-ferequalitativamentedoconhecimento comum (nosentidodenãoapresentarqualidadesque resultemdeserproduzidoporfaculdades diferentes das que produzem o conhecimento co-mum).Istoé,quenãodiferequalitativamentedoconhecimentoque se adquire por via do senso comum.

10.A segunda das três circunstâncias que foram referi-das (na anterior entrada 5.) decorre daquela que se acaba de constatar (a primeira). É ela a circunstância de esses dois tipos deconhecimento(oconhecimentocientíficoeocomum)diferi-remumdooutro,issosim,intensivamenteou,sesepreferir,emtermos de intensidade ou de saturação — bem como também extensivamenteouemtermosdecompletude.

11. "Intensidade" ou saturação equivalem aqui, por analo-gia,sobretudoa"grauderigor"ou"graudeexactidão".

12. Pensemos em duas tonalidades da cor "azul", uma maisclaradoqueaoutra.Istoé,uma,porexemplo,com25%desaturação,eoutracom50%.Nestecaso,aprimeiratonalida-de seria, em termos qualitativos, tão cor quanto a outra; porém, seria,agoraemtermosquantitativosdesaturação(emlugardeemtermosdeextensão),umavezmenos(25%menos)intensado que a segunda.

13. Pensemos agora numa tonalidade da cor "azul" com 25%desaturaçãoenumatonalidadedacor"vermelho"com50%desaturação.Nestecaso,aprimeira tonalidadecontinuariaaser, em termos qualitativos, tão cor quanto a outra; e, do mesmo modo,continuariaaser,emtermosquantitativosdesaturação,umavezmenos(25%menos)intensadoqueasegunda.

14. Ora, se pensarmos na primeira de tais tonalidades (a dacor"azul",com25%desaturação)comoequivalendoaoco-nhecimento comum e na segunda (a da cor "vermelho", com 50%desaturação)comoequivalendoaoconhecimentocientífi-co,perceber-se-á,semdúvida,oquesignificaafirmarqueestesegundotipodeconhecimento(ocientífico)nãodiferequalita-tivamentedoprimeiro(ocomum),nãoobstantediferirdeleemtermos quantitativos de intensidade. Ou seja, em termos quanti-tativosderigor,oudeexactidão.

15. De modo semelhante, se continuarmos a pensar na primeira daquelas duas tonalidades (a da cor "azul") como equi-valendo ao conhecimento comum e na segunda (a da cor "ver-

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melho")comoequivalendoaoconhecimentocientífico,masse,a par disso, também pensarmos na segunda delas (a tonalidade da cor "vermelho") como tonalidade que se estende por uma áreamaisextensadoqueaáreaqueaprimeiraocupa(queatonalidadedacor "azul"ocupa),perceber-se-á,semdúvida,oquesignificaafirmarqueestesegundotipodeconhecimento(ocientífico) não difere qualitativamente do primeiro (o comum),nãoobstantediferirdeleemtermosquantitativosdeextensão.Ou seja, em termos quantitativos de completude.

16.Aúltimadastrêscircunstânciasqueatrás(naanteriorentrada5.) foramreferidas (edaqualsepassaagoraa falar)prende-secomadiferençaqueseverificaentreosdoistiposdeconhecimentoqueestamosaconsideraraoníveldoseufunda-mento objectivo.

17.Pense-se(denovo,poranalogia)numlagocujasuper-fícieseencontrassecobertapornenúfares.Pense-se,desegui-da,noseguinte:porumlado,emque,comopassardotempo,novosnenúfaresteriam,porforça,deirsurgindonasuperfíciede um tal lago (enquanto outros teriam de ir desaparecendo); poroutrolado,emque,assimsendo,asrelaçõesespaciaisqueosnenúfaresestabeleceriamentresiàsuperfíciedolagoteriam,porforça,deseiralterandocomopassardotempo;poroutroladoainda,que,nãoobstanteisso,asdiversasraízesdosnenú-faressemanteriam,nofundodolago,maisoumenosunitáriaseinalteradas(bemcomo,porconseguinte,asrelaçõesespaciaisqueentreelasaliseverificassem).

18.Agora,pense-senoconhecimentocomumnosseguin-testermos:comoconhecimentoque,paraalémdeserconheci-mentotão-somentedasuperfíciedolagoedosnenúfaresqueacobririam, entraria em linha de conta apenas com a constância dasrelaçõesquese iriamestabelecendono interiordecertosgruposdenenúfares,ao invésdecomaconstância, também,dasrelaçõesquecadaumdessesgruposestabeleceriacomto-dos os outros, ao longo de todaaextensãodolagoquefossepossívelconhecer.

19.Agora, pense-se no conhecimento científico nos se-guintes termos:comoconhecimentoque,paraalémdeentraremlinhadecontacomasrelaçõesqueseiriamestabelecendoedesestabelecendo,àsuperfíciedolago,entretodos os nenú-faresetodososgruposdenenúfares,procurasseserconheci-

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mentodasunidadesúltimasdessasmesmasrelações.Ouseja,como conhecimento que procurasse mergulhar tanto quanto lhe fossepossívelatéàsraízesdecadagrupodenenúfares,comvista a, por esse modo, poder relacionar com a muito maior per-manência e imutabilidade delas as diversas e sucessivas muta-çõesqueiriamocorrendoàsuperfíciedolago.

20. Nos termos desta analogia, e se pensarmos na uni-dade das raízes dos nenúfares como equivalendo à unidadeformaldasleisnaturaisquedeterminamodevirearecorrênciadosfenómenosqueconstituemanossaexperiênciadomundoobjectivo,oconhecimentocientíficonãopoderádeixardenossurgircomoconhecimentoquesediferenciadoconhecimentocomum,deformaimportante,porviadeserconhecimentotantodadimensãosuperficialdetaisfenómenos(osqueconstituemanossaexperiênciadomundoobjectivo)comodasuadimensãoprofundaoudoseufundamentoobjectivo.

21.Atente-se, porém, numa outra diferença importante.Decorre ela de a maior intensidadeeamaiorextensãodoco-nhecimentocientífico (oseumaior rigormetodológicoeasuamaior completude) valerememambososcasos:querquandooentendemoscomoconhecimentodamaiorextensãopossíveldasuperfícieemdevirdolago,querquandooconsideramoscomoconhecimento exclusivodapermanênciadofundodolago.

22.Chegadosaqui, temosduasgrandesdiferençasen-treoconhecimentocomumeoconhecimentocientífico:porumlado,adiferençaqueseprendecomomuitomaiorgraudein-tensidade(derigormetodológico)eamaiorextensão(oucom-pletude)dosegundodeles(oconhecimentocientífico);poroutrolado,adiferençaqueseprendecomofactodeosegundodeles(oconhecimentocientífico)se preocupar com ser conhecimen-to intensoeextensonãosódasuperfície do lago(asuperfícieda nossa experiência empírica),mas também do fundamentoobjectivo (profundo) de tal superfície (de novo, a superfície da nossaexperiênciaempírica).

23.Destasduasdiferençasimportantes,decorreumaou-tra.Éelaade,emtermosabstractos,oconhecimentocientífi-co se caracterizar por possuir validadeque,emgeral, senãoesperadoconhecimentocomum—devendoaquientender-sevalidade no sentido de verdade universal ou, tout court, de uni-versalidade.Istoé,nosentidode,emcontrárioaoconhecimento

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comum,oconhecimentocientíficotenderaassumiroestatutode conhecimento verdadeiro e seguro, ou até mesmo de conhe-cimento(relativamente)indubitável,em todo e para todo o uni-verso.Queristodizer:nãosóemqualquerespaçoparticulardomundoterrestre,nãosó,deigualmodo,emqualquermomentotemporaldessemesmomundo,mastambémcomrelaçãoaosentes e aos eventos com que se possa deparar em qualquer espaçoparticulareemqualquermomento temporalde todo o universo!

24.Apartirdaqui,importaespecificarumpoucomaisemqueconsistecadaumadessastrêsgrandesdiferenças(de in-tensidade,defundamentoedevalidade).Paraquetalsejaviá-velnocurtoescopodaspresentesnotas,torna-se,porém,ne-cessárioprocederdoseguintemodo:porumlado(i),continuarapensarnaprimeiradetaisdiferençasemtermosdediferençadeintensidade(derigormetodológicoedecompletude);poroutrolado(ii),passarapensarnasegunda(adiferençaquesepren-decomofundamentoobjectivodoconhecimentocientífico)emtermos das leis ou das constantes objectivas que a ciência (so-bretudoasCiênciasNaturais)procuradescobrireformular;poroutroladoainda(iii)passarapensarnaterceira(adiferençaquese prende com a validade universaldoconhecimentocientífico)em termos do tipo de necessidade3 (lógicaouontológica) que tais leis ou constantes objectivas possam parecer apresentar.4

3 "Necessidade" é aqui um termo filosófico que, por assim dizer, setornainevitável.Aformamaissucintaemaissimplesdeclarificaroseusentidoéprovavelmentedizer,citandoAristóteles(Metafísica,XII,1072b),oseguinte:"...anecessidadeéatribuída...àquiloquepuraesimplesmentenãopodeserdiferentedoqueé."

4 Ao invés daquilo que tem vindo a acontecer até aqui, os argumentos queastrêssecçõesseguintesirãopassaraapresentarconstituemsumariza-ção,sistematizaçãoeclarificaçãodepalavrasalheias.Trata-se,emconcreto,de palavras de The Structure of Science: Problems in the Logic of Scientific Ex-planation (Indianapolis,Hackett,1979),daautoriadofilósofodaciênciaErnestNagel.Porassimdizer,taispalavrasirão,deseguida,serparafraseadasemtrêsblocos.Oprimeirobloco,quedizrespeitoàprimeira(i)dastrêsrubricasqueacabamdeserexplicitadas(naentrada24.)ecorrespondeàsecçãose-guinte(aVIII.),seguedepertoa"Introdução"daquelaobra(quetemportítulo"ScienceandCommonSense");osegundobloco,quedizrespeitoàsegunda(ii)daquelastrêsrubricasecorrespondeàsecçãoIX.,seguedepertoocapí-tuloquinto(quetemportítulo"ExperimentalLawsandTheories");finalmente,oterceirobloco,quedizrespeitoàterceira(iii)detaisrubricasecorrespondeàsecçãoX.,seguedepertoocapítuloquarto(quetemportítulo"TheLogicalCharacterofScientificLaws").

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VIII. Conhecimento científico e conhecimento não-científico: diferença decorrente do rigor e da completude do primeiro deles

1.Viu-sehápouco(nasentradas1.–2.dasecçãoanterior,aVII.)queThomasHuxleycontrastaoconhecimentocientíficocomoconhecimentoqueéalcançadoporviadosensocomum(common sense), ao pôr em evidência que "A Ciência... nada mais é do que sentido comum sujeito a treino e sistematização." Ora bem, no seu estudo The Structure of Science, Ernest Na-gel adopta a mesma estratégia (a de contrastar o conhecimento científicocomoconhecimentoqueéalcançadopelosensoco-mum);porém,fá-locomointuitocontrário,odepôremevidên-ciaasprincipaisdiferençasqueseparamaquelesdoistiposdeconhecimento um do outro. E, assim sendo, as suas palavras1

prestam-sebastanteasersintetizadasaqui,comvistaacarac-terizarumpoucomelhoraprimeiradastrêsdiferençasqueatráshãosidoestabelecidas (naentrada24.dasecçãoanterior):adiferença de intensidade ou de rigormetodológico e de com-pletude.

2. Em primeiro lugar, Nagel caracteriza o conhecimento dosensocomumcomoconhecimentoquesediferenciadoco-nhecimentocientíficoporviade,nãorarasvezes,nãosercapazdeexplicarosfactosaquesereporta.Comotestemunhodisso,dá-noseleaver,temosaincapacidade—não-incomum—paraexplicar com fundamentonaexistênciade forçasde fricçãoofactodesermuitomaisdifícil (ouatémesmo impossível)mo-verobjectospesadossemoauxíliodaroda(semoauxílio,porexemplo,deumacarroça).

3.Emsegundolugar,Nagelrealçaque,noscasosemqueosensocomumtentaexplicarcertosfactos,ofazfrequentemen-te sem grande rigor e completude. Isto é, sem averiguar até que pontoasexplicaçõesqueapresentasão,naverdade,explica-çõespassíveisdeservalidadaspelosfactosquepretendeex-

1Veja-se(noseguimentodaquiloqueacabadeserditoedanotaderodapé4.daanteriorsecção):ErnestNagel."Introduction:ScienceandCom-monSense".In: —. The Structure of Science. Indianapolis, Hackett, 1979, pp. 1–14passim.

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plicar,emlugardetão-somenteexplicaçõesqueerroneamenteassume serem verdadeiras e, por isso, relevantes.

4.Com relaçãoaesteaspecto,Nagelafirmaqueaori-gemdaciênciaseencontraprecisamentenoensejodeformularexplicaçõesquesejampassíveisdeserrepetidamentecompro-vadaspelaevidênciafactualdosfenómenosaquesereportam.Ouseja,põeemevidênciaqueaciêncianãoprocuraexplicaresteouaqueleeventoparticular(porexemplo,estaouaquelaformaçãode gelo), enquanto evento de umdeterminado tipo,massimdescobrirquaissão,eformularemtermosgerais,ascondiçõesque têmdesersatisfeitas,paraque todosequais-quer eventos de um determinado tipo (por exemplo, todos equaisquer eventos que consistam em formação de gelo) pos-sam,defacto,verificar-se.

5.Adescobertaeaformulaçãodetaiscondiçõespodem,porém,geraresferasdedescriçãoedeexplicaçãomaisoume-noscompreensivas.Istoé,esferasdedescriçãoedeexplicaçãoquesevãotornandomaisamplasnamedidaemque,emlugarde abrangerem apenas este ou aquele outro tipo de eventos ou defenómenos(porexemplo,atransformaçãodaáguaemgeloe em vapor), passam a contemplar uma diversidade de acon-tecimentosqueaparentementenãoapresentamqualquerrela-ção entre si.Comoexemplo de explicações de sobremaneiracompreensivas, temosaexplicaçãonewtonianadagravidade,aqual,nãoobstanteconsistirnasistematizaçãodeunspoucosprincípios gerais, se revela passível de descrever, justificar epreverfenómenostãodísparesquantoosmovimentosdospla-netas, o movimento das marés e o trajecto de balas e de outros projécteis.

6.Emterceirolugar,Nagelfaz-nosverque,emoposiçãoaoconhecimentocientífico,oconhecimentodosensocomumig-nora,nãorarasvezes,ograueoslimitesdaeficáciadedetermi-nadaspráticasoudedeterminadosagentes.Comrelaçãoaisto,apresentaelecomoexemploohábitodefertilizaroscamposdeculturaporviadeosestrumar.Apóstersidoutilizadaumcertonúmerodevezesnummesmocampo,talformadefertilizaçãopodevirarevelar-secontraproducente.Noentanto,aquelesquealevamacabonãoserãocapazes,asmaisdasvezes,nãosódeexplicaressefacto,mastambémdeestabelecerquaissãooslimitesparaalémdosquaisseterãodeconfrontarcomele.

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Issoaconteceporquenãoconhecem—e,porconseguinte,nãopodemcontrolar—asrazõesdenaturezaquímicaebiológicaqueseencontramnaorigemdeoestrumeserevelareficiente,naqualidadedefertilizante,apenasdentrodecertoslimites.

7. Também neste aspecto, o conhecimento comum se di-ferenciademodosignificativodoconhecimentocientífico,sen-doqueumadasgrandescaracterísticasdestesegundotipodeconhecimento(ocientífico)é,precisamente,asuacapacidadepara colmatar a incompletude, a impotência e a inépcia que ten-dem a ser atributos do primeiro (o conhecimento comum).

8. Em quarto lugar, Nagel evidencia que o senso comum revelapoucoounenhuminteresseemexplicardemodosiste-máticoosfactoscomquesedeparae,porconseguinte,tambémem sistematizar os conhecimentos de ordem diversa de que se apodera.

9.Agrandecausadetaldesinteresse,encontra-aNagelnacircunstânciadeosensocomumtenderapreocupar-seex-clusivamentecomosresultadosdenaturezaprática,eporissoimediatos,doconhecimento.Emresultadodisso,oprópriosensocomumnãoseapercebe,asmaisdasvezes,dequãoestreitossãooslimitesdentrodosquaisassuaspressuposiçõeseexpli-caçõesserevelamválidasoucapazesdeteraplicaçãofrutífera,bemcomonãoserevelaconscientedascontradiçõesaqueassuasconvicçõesopodemconduzire,emvirtudedisso,dequãograndepodeserohiatoentreexpectativaeresultadofinalcomquesepodedepararaoagirdeacordocomelas(convicções).

10.Opostamente,o conhecimentocientíficocaracteriza-se pela sua cada vez maior e mais compreensiva sistematicida-de, bem como, em resultado disso, pela sua capacidade para, maiscedooumaistarde,detectarascontradições,osconflitoseasincoerênciasdequeeventualmentepossaenfermarnumde-terminadomomento.ComoNagelfazver,acontece,aliás,queaocorrênciadeconflitoentrejuízosdenaturezadiferenteconstituiumdosgrandesestímulosdodesenvolvimentoedaexpansãodoconhecimentocientífico,umavezque,semprequesedeparacomesteoucomaqueleoutroconflitonoseuinterior,oconheci-mentocientíficosevênanecessidadedereavaliaraintegridadedasuasistematicidadeede,aofazê-lo,entraremlinhadecontacomnovosfactores,novasexplicaçõesenovasconsequênciasdeordemteórica.

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11.Emquintolugar,Nagelconsideraquãooconhecimentocomumsedistinguedoconhecimentocientíficoporviadafaltaderigor,deprecisãoedeespecificaçãodalinguagememqueéformulado.Aesterespeito,Nageldácomoexemploaformula-ção,porpartedosensocomum,doprincípiodequeaáguaso-lidificaapartirdomomentoemqueseencontrasuficientementearrefecida.

12.Por"água",osensocomumentendeaáguadatornei-ra,aáguadomar,aáguadosrios,aáguaemformadechuva,etc.Contudo,nãoentendetambém,porexemplo,olíquidoqueseobtémaoespremerumasériedefrutosouolíquidoqueaflo-raaocimodapelequandonosexpomosaosolouquandofa-zemosesforçofísicodurantealgumtempo.E,porconseguinte,osensocomumconsideraqueoprincípio "aáguasolidificaapartirdomomentoemqueseencontrasuficientementearrefeci-da"temaplicaçãoapenasàáguadatorneira,àáguadomar,àáguadosrios,àáguaemformadechuva,etc.,enão,também,àáguaemformadesumoouemformadesuor.

13.Poroutro lado,Nagel fazverquão imprecisotemdeser,porforça,otermo"suficientemente",emresultadodepoderter referência tantoa temperaturasquepoucodifiramumadaoutra,irrespectivamentedequaispossamserassuasnão-afas-tadaslocalizaçõesnumaescaladevaloresnuméricosespecífi-ca,comoatemperaturasquemuitoseafastemumadaoutra.

14.Deparaparcomisso,háaconsideraraarbitrariedadecom que, em geral, o senso comum ignora as excepções àsregrasque formula.Porexemplo,confrontadocomo factodeaáguasalgadasolidificara temperatura inferioràquelaaqueaáguanão-salgadasolidifica,osensocomumrevelar-se-á,asmaisdasvezes, inclinadoanãoatribuirgrande importânciaaessefacto.—Assim,continuandoapressuporquetodaaáguasolidificaàmesmatemperaturaousensivelmenteàmesmatem-peratura.Ou,então,passandopuraesimplesmentearaciocinarque,nãoobstanteserágua,aáguasalgadanãosedeixacontarentreasrestantesformasdeágua,naquiloquerespeitaàtem-peraturaaquesolidifica—ao invésde,comgenuínoespíritocientífico,partirparaadescobertadascausasdadiferençae,emresultadodisso,nãosóchegaràconclusãodequeelaseficaadeveràpresençadesalnaáguasalgada,mastambém

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quantificarcomprecisãoaproporcionalidadedosefeitosprodu-zidosporessamesmapresença.2

15.Pelocontrário,oespíritocientíficocaracteriza-seporsefurtaratodoequalquergraudeindeterminação,deimpreci-sãoedearbitrariedade.Assimsendo,vê-senanecessidadedecriar e de adoptar uma linguagem qualitativa o mais precisa pos-sível,demodoapoder identificareenunciardistinçõesclarasentresubstânciasqueaparentementesãoidênticas.Domesmomodo,vê-senanecessidadede formularassuasexplicaçõesem linguagem quantitativa, de modo a poder estabelecer com rigornumérico,porexemplo,asrelaçõesconstantesdepropor-cionalidadequeseverificamobjectivamenteentrecertascausaseosseusrespectivosefeitos.ComoNagelpõeemevidência,o senso comum poderá contentar-se com saber apenas queo ferroémaisdurodoqueochumbo;porém,ocientistaquepretendaexplicarasrazõesdeserdissoterá,porforça,deseconfrontarcomanecessidadedeaferircomprecisãonuméricaqual é a diferença de rigidez que subiste demodo invariávelentreumeooutro,bemcomoquaissão,emtermostantoqua-litativoscomoquantitativos,asdiferençasdeestruturaqueseencontram na sua origem.

16.Emsextolugar,Nagelsublinhaque,emresultadodi-recto da ausência de rigor e da incompletude que as caracteriza, asexplicaçõesoudescriçõesqueosentidocomumfornecenãosão,asmaisdasvezes,passíveisdeserconfirmadasexperi-mentalmente, bem como, assim sendo, capazes de predizer com precisão que, sempre que se verificarem certas circuns-tâncias,certosefeitos terãodeocorrer.E,na realidade,comosepoderáalgumaveztestarexperimentalmente,porexemplo,a verdade de que a água se solidifica sempre que haja sidosuficientemente arrefecida? Bem como, por outro lado, comosepoderáalgumavezpredizerqueaáguairáinvariavelmentesolidificar-sesemprequecertascircunstânciasexactasseverifi-carem,senãosecomeçarporrestringiroescoposemânticodosubstantivo"água"(demodoaexcluirdele,porexemplo,osen-tido"águasalgada")esenãoseverteraimprecisãodoconceito

2Enquantoaáguapotávelsesolidificaa0grauscentígrados,aáguasalgadasolidifica-seatemperaturasinferiores,asquaisvariamdeacordocomasalinidadeoucomograudesaturaçãodaprópriaágua(salgada).

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"suficientemente"naprecisãoeinvariabilidadedeumdosváriosmembros de uma escala de valores numéricos?

17. Inversamente ao conhecimento do senso comum, o conhecimentocientíficocaracteriza-se,pois,nãosóporserpro-duzidoexperimentalmente—edaíofactodeasuaverdadeouvalidade poder ser testada tanto repetidamente como universal-mente —, mas também pela sua capacidade para predizer que, semprequecertascircunstânciasexactasseverificarem,certosefeitosexactosseverificarãodeigualmodoesemexcepção.

18.Aquiloquevemdeserditoemtermosgeraisnãonegaa evidência de que o conhecimento comum se revela capaz de fazercerto tipodepredições.Porém,aponta inequivocamentenosentidodeque,semprequeissoforocaso,taisprediçõesseterãoderevelarassazimprecisas.Aesterespeito,considere-seque,comoNagel fazver,umacoisaépredizer(combaseemconhecimentocomum)queumeclipsedoSoliráocorrerduranteoOutono,outra,muitodiferente,predizer(combaseemconhe-cimentocientífico)qual iráserodiaequalomomentoexactodessediaemqueumtaleclipseiráocorrer.

19. Por assim dizer, o senso comum aposta pouco na exactidãodassuaspredições.E,assimsendo,tempoucoaper-der sempre que elas vêm a pôr em evidência a sua ausência de fundamentoirrefutável.Pelocontrário,oespíritocientíficoapos-ta a si mesmo, aposta a sua verdade e a sua universalidade. E, assimsendo,teriatudoaperder,inclusiveareputaçãoquelhegranjeia a sua diferença,casoassuasprediçõesseviessemarevelarinfundadaseimprecisas—sendoestaarazãoporquecaprichaemtestar-seeconfirmar-sedeantemão,bemcomoemestabeleceràpartidaamargemdeerrodassuaspredições.

20.Emconclusão,cabedizer,seguindooexemplodeNa-gel,queasváriasdiferençasquevêmdeseridentificadaspo-demsersintetizadasnumasógrandediferença.Taldiferençaéaqueresultadeasconclusõesaqueoespíritocientíficochegaserem obtidas, de modo mediato e sistematizadamente, via do chamado"métodocientífico",aopassoqueasconclusõesaqueosensocomumchegasãoemgeral obtidas,maisoumenosimediataenão-sistematizadamente,viadaexperiênciahetero-géneadosfenómenosedoseventosaquesereportam.

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21.E,para terminarestasecçãoem formade resposta,quaissão,demodosumárioeemgeral,asgrandescaracterís-ticasdométodocientífico?

22.Sãoestas:(i)ofactodeexigirtantoumaobservaçãorigorosaerepetidadosfenómenosquesepretendedescrevereexplicarcomoaformulaçãodedescriçõeseexplicaçõesque,paraalémdecorresponderemàinvariabilidadeobjectivadetaisfenómenos, para além de serem indutivamente verdadeiras,provemserdedutivamenteválidas; (ii) o factodeexigirqueaverdadedasconclusõesaquesechegasejarepetidamentetes-tada ou validade, de modo a que a sua universalidade possa ser rigorosamenteestabelecida,comvistaaservirde fundamentoaprevisõeseprediçõesfiáveisequantificáveis;(iii)ofactodeexigirqueasconclusõesaquesechegasecorroboremumasàsoutras,enquantoparcelasorgânicasdeumtodoepistémicohomogéneoesistematizado;(iv)ofactodeexigirque,nointeriordessemesmotodo,teoriaeexperimentaçãoseexpliquemesecomplementemmutuamente,aoinvésdeentrarememconflitoumacomaoutra; (v) o facto deexigir que, paraque tal sejapossível,todaaobservaçãoeexperimentaçãodecorraemcir-cunstânciastotalmentecontroláveis,pormenorizadamentedes-critasepassíveisdeserrepetidamenterecriadas;(vi)ofactodeexigirquetaiscircunstânciaseosresultadosqueseobtémemfunçãodelassejamregistadoseinterpretadosomaisobjectivaedesinteressadamentepossível,demodoaqueasuaverdade nãosejadistorcidaporquaisquerpré-conceitosepré-juízos;(vii)ofactodeexigirqueasexplicaçõesqueseformulaeosdadosqueastêmdeacompanharatítulodeprovasejamreconhecidoscomoidóneoserelevantespelarespectivacomunidadecientífi-ca,demodoapoderemseroficialmenteconsideradosfrutodeum sistema de pesquisa institucionalizado.

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IX. Conhecimento científico e conhecimento não-científico: diferença decorrente do fundamento objectivo do primeiro deles

1.Ao iniciar esta secção, torna-se necessário tecer trêsreparos.

2.O primeiro reparo (que reitera uma das observaçõesqueforamfeitasnaentrada24.dasecçãoVII.)éodeque,aoconsiderar aquilo que se segue, importa pensar na segunda das trêsgrandesdiferençasqueestãoaserclarificadas—adiferen-çaqueseparaoconhecimentonão-científicodoconhecimentocientíficocomrespeitoaofundamentoobjectivodesteúltimo—em termos das leis ou das constantes objectivas que a ciência (sobretudoasCiênciasNaturais)procuradescobrireformular.

3.Osegundoreparoéodeque,emoposiçãoàquiloqueseverificounaanteriorsecção,taldiferençanãoirásereviden-ciadaaquiporviadecontinuamenteseestabelecercomparaçãoentreoconhecimentonão-científicoeoconhecimentocientífico,massimdoseguintemodo: (i) tomandocomoassenteaquelaqueéumadasprincipaisconclusõesdasecçãoanterior(queosentidocomumnãosistematizaassuasexplicaçõesnão-cien-tíficase,porconseguinte,nãoas formulana formade leisdaNatureza,asquaissempresãoenunciaçãodofundamentoob-jectivo da invariabilidade desta ou daquela outra realidade); (ii) tentandotão-somente,emresultadodisso,tornarclaroomodocomoaschamadas"leiscientíficas"ou"leisdaNatureza"sãocoroláriodirecto,etestemunho,dofundamentoobjectivodoco-nhecimentocientífico.

4.Oterceiroeúltimoreparoéodeque,àsemelhançadoqueseverificounasecçãoanterior,aquiloquesesegueconsis-temaioritariamenteemsumarização,sistematizaçãoeclarifica-çãodepalavrasdeErnestNagel.1

5. Importa, antes de mais, esclarecer o conceito de "lei".2

6.Existemsobretudodoistiposdeleis:oprimeirocompre-ende as chamadas "leis humanas" ou "leis morais"; o segundo

1Veja-se:ErnestNagel."ExperimentalLawsandTheories".In: —. The Structure of Science.Indianapolis,Hackett,1979,pp.79–105passim.

2Comrespeitoaesseconceito,veja-se,porexemplo,aentrada"Ley"em:J.FerraterMora.Diccionario de Filosofía. Barcelona, Ariel, 2001, vol. 3, pp.2129–133.

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compreendeaschamadas"leisnaturais",asquaistambémsãodesignadas"leisdaNatureza"ou"leiscientíficas".

7.Agrandediferençaque,emprincípio,subsisteentrees-ses dois tipos de leis resulta, prima facie,deasleisnaturaisnãoserempassíveisdeconhecerexcepçãoe,porconseguinte,deseremvioladas,enquantoissonãoacontececomasleishuma-nas ou morais.

8.Dessadiferença,decorreumaoutra.Éelaaquecon-siste emas leis naturais expressaremumqualquer ter-de-ser (e,porisso,seremformuladasnomodoindicativo),eemasleishumanasoumoraisexpressaremumqualquerdever-ser (e, por isso,porseremprescritivas,seremformuladasnomodoimpe-rativo).

9.Agora,eparaterminarestasbrevesconsideraçõespro-pedêuticas,impõem-se,semdúvida,duasquestões.Aprimeiraéesta:Emqueconsiste,demodosumário,umaleinatural?Asegundaéaseguinte:Quaissãoasfunçõesqueumaleinaturaldesempenha?

10.A respostaàprimeiradessasduasquestõeséesta:Uma lei natural consiste na expressão de uma das várias re-lações constantes ou regularidades que a Natureza apresenta; consiste, melhor dizendo, na formulação do fundamento objec-tivo, do logos, de uma dessas relações constantes ou regulari-dades.

11.A respostaàsegundaquestãoéaseguinte:Cabe a uma lei natural descrever (formular) a regularidade da Nature-za a que respeita, bem como explicar tal regularidade (enunciar o "como" da sua invariabilidade) e predizê-la. Ou seja, afirmar que, sempre que se verificarem as circunstâncias objectivas que descreve, se verificarão também os modos e os efeitos que ela, lei, determina. Por exemplo, que sempre que a conjunção de dois átomos de hidrogénio e um átomo de hidrogénio se verificar de um certo modo, também se verificará a presença de uma molécula de água.

12.Agora, se se quiser especificar sumariamente quaissãoopontodepartidaeopontodechegadadoconhecimentocientíficoemgeral, poder-se-áafirmar, comoNagel faz,ose-guinte:queopensamentocientíficoparte,emprimeirainstância,

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deproblemasquesãolevantadospelaobservação3 dos entes edoseventoscomqueaexperiênciadodia-a-dianosconfron-ta; que o seu grande objectivo é compreender tais entes e tais eventos,enquantorealidadesobserváveis,porviadedescorti-narnelesumaordemsistemática,sendoqueapedra-de-toquedecisiva que utiliza para testar a validade das leis por via das quaisformulaassuasexplicaçõeseprediçõeséaconcordânciaounão-concordânciadessasmesmasleis(consideradassoboaspectodeenunciação) como seu fundamentoobjectivo.Ouseja,comasconstantesobjectivasqueaobservaçãoidentifica.

13.Narealidade,muitasdasleisqueasciênciasformulamexpressam relaçõesquesubsistementreentes (porexemplo,entreosaleaágua),ouentreatributosdeentes (porexem-plo,entreoestadolíquidoeoestadosólido,enquantoatributosdaágua),quecomummentesãoconsideradospassíveisdeserobservados, seja a olho nu, seja com a ajuda de certos instru-mentos.Entretaisleis(ascientíficas),conta-se,porexemplo,aleideque,semprequeforaquecida,aáguaqueseencontrarnumrecipientesemtampaacabaráporseevaporar.Ou,então,a leidequeochumbosederreteàtemperaturade327 graus centígrados.

14.Umavezquesãoobtidasviadaobservaçãoequeasuavalidadeépassíveldeser testadaexperimentalmente,as

3Estetermo("observação")surgeaquicomosentidolatoqueasCiên-ciasExperimentaislheconferem.Paraquesepossapercebê-lo,considerem-seasseguintesafirmaçõesdeRudolfCarnap—queentramemlinhadecontanãocomoactodeobservaremsi,massimcomosenteseeventosquepodemserobservados(osobserváveis)eosentesque,inversamente,nãopodemserobservados(osnão-observáveis):"Osfilósofoseoscientistasusamostermos'observável'e'não-observável'demodomuitodiferente.Paraumfilósofo,'ob-servável' temumsentidomuito restrito: temaplicaçãoapropriedadescomo'azul','duro','quente',asquaissãopassíveisdeserdirectamenteapreendidaspelossentidos.Paraumfísico,otermopossuiumsentidomuitomaisamplo:inclui qualquer magnitude quantitativa que possa ser medida de modo rela-tivamente simplesedirecto.Umfilósofonãoconsiderariaa temperaturade80grauscentígrados,porexemplo,ouopesode93.5libras,umobservável,devido a taismagnitudes não se deixaremapreender directamente atravésdos sentidos.Paraum físico, porém, cadaumadessasduasmagnitudeséumobservável,devidoapodersermedidademodoextremamentesimples.Oobjectoquesequerpesarécolocadosobreumabalança.Atemperaturaémedidacomumtermómetro.Ofísiconãodiriaqueamassadeumamolécula,muitomenosamassadeumelectrão,éumobservável,umavezque,agora,osprocedimentosquesãorequeridosparaefectuaramediçãosãomuitomaiscomplexoseindirectos."(RudolfCarnap.Op. cit.,pp.225–26.)

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leiscientíficasdessetipoprestam-seaserdesignadasleis expe-rimentais (ou leis empíricas).

15.Porém,nemtodasasleiscientificassãoleisdaNatu-rezanosentidoemqueosãoasquevêmdeserespecificadas.Istoé,nemtodasessasmesmasleistêmreferênciaarealidadesquesãoobserváveisoupassíveisdeserconhecidasexperimen-talmente,sendoque,porisso,setornanecessárioidentificarumsegundotipodeleiscientíficas.

16. Esse segundo tipo de leis decorre directamente de um factodecisivo.Éeleofactodenemtodasasrealidadescomqueumdeterminado sistema de explicações e descrições temdeentraremlinhadecontaserempassíveisdeserobservadasouconhecidassensorialmente.Porexemplo,sesetornapossívelobservarque,quandoéaquecida,aáguadefactoseevapora,omesmojánãoacontececomasrealidadescomquesetemdeentraremlinhadecontaparadescrevereexplicarascausasfundamentais,asrazõesúltimas,dainvariabilidadedessefenó-meno. Melhor dizendo, dessa lei da Natureza.

17.E,assimsendo,está-se,naverdade,peranteumse-gundo tipode leiscientíficas,apartirdomomentoemquesetransitadodomíniodaexperiênciaempíricaparaodomíniodaconceptualizaçãocomvistaaexplicaraevaporaçãodaáguaemtermosdaconstituiçãoatómicadaprópriaáguaedaestruturamolecular desta última. Ou seja, a partir do momento em que, comvistaaisso,nosvemosforçadosapassardodomíniodaobservaçãosensorial(paraaqualosátomoseasmoléculassãoentesdetodoinapreensíveisourealidadesmetafísicas)paraodomíniodavisãoteórica(àluzdaqualosprópriosátomoseasprópriasmoléculasdevêmrealidades tãoobjectivamentedadas quantoaquelasdecujaexistênciasensívelsenãopodeduvidar).

18. Ora, como se percebe, em resultado daquilo que vem de ser dito, as leis desse segundo tipo prestam-se, por natu-reza, a ser designadas leis teóricasoutão-somenteteorias — nãosedevendo,contudo,inferirdissoquesetratadeleiscomfundamentopuramenteideacional.Ouseja,quesetratadeleiscujaformulaçãoconstituiummeroposto, em lugar de leis que, nãoobstantenãoserempassíveisdeserconfirmadasexperi-mentalmentedemododirecto,encontramfundamentoobjectivona invariabilidade e consequente necessidade dos entes e dos eventos a que se reportam.

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19.Éque,naverdade,ecomoNageltambémpõeemevi-dência,ofactodeasleisteóricasouteoriasserempassíveisdesertestadaseconfirmadasindirectamente,aindaqueporviadeextensassériesdeinferências,quesempreacarretamconsigoummaior oumenor número de pressuposições irredutíveis atodaequalquerfactualidade—éque,naverdade,essefacto,nãodeixadereduzirconsideravelmenteagrandediferençaque,numprimeiromomento,separaasprópriasleisteóricasdasleisexperimentais.

20.Nãoobstanteaquiloqueacabadeserdito,essames-ma diferença persiste, sendo que o que se torna necessário,comvistaaexplicitá-latantoquandopossível,éconcluirquaissãoostraçosfundamentaisqueseencontramnasuaorigem.Ouseja,quaissãoasmarcasqueseparamasleisexperimen-taisdasteóricas,apartirdomomentoemquesedeixaparatráso facto de, emprimeira instância, se diferenciaremumasdasoutrasemfunçãodeasrealidadesquedescrevemeexplicamseremounãoobserváveis.

21.Ora,umavezqueapercepçãodealgunsdessesmes-mostraçoséporventuraamelhorviaindirectaparaseadquiriruma ideiadomodocomooconhecimentocientíficoadquireeexpressa o seu fundamento objectivo, importa aqui constatar,aindaquedemodosumário,quaissão,deentreaquelesqueNageldetecta,os(traços)queserevelammaisdeterminantese, por isso, mais representativos.

22.Demodoafacilitaracompreensãodosprimeirosdoistraços opostos que Nagel detecta com relação às diferençasque separamas leis teóricas das leis experimentais, torna-senecessáriointroduziraquidoisconceitosqueeleapresentaemoutro lugar.4

23.Trata-sedosconceitosde"determinável"ede"deter-minação".Comvistaacompreendê-los, traga-seàmentequeosentesqueentramnaesferanocionaldeumacertaespécieou classe partilham entre si um certo número de atributos. Por exemplo,todososentesqueentramnaesferanocionaldaespé-cie"Velas",todasasvelas,partilhamosseguintestrêsatributos:"Cor","Extensão","Peso".Porém,naausênciadeumaqualquervela in concreto,nãosetornapossívelsabercomquecorespe-cífica,comqueextensãoespecíficaecomquepesoespecífico

4Veja-se:ErnestNagel.Op. cit., p. 75.

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sehaverádeentraremlinhadeconta.Poisbem,pense-senacorespecífica (e.g., "vermelho"),naextensãoespecífica (e.g., "20cm")enopesoespecífico(e.g., "100 g") de uma vela espe-cíficacomoconcretizações daforma in abstracto dos atributos "Cor","Extensão"e"Peso"—faça-seisso,enãoserádifícilper-ceberoseguinte:porumlado,quenosdeveremos,naverdade,referiràformain abstracto de cada um de tais atributos por via donome"determinável"(umavezque,porexemplo,aformain abstracto doatributo"Peso"sedeixadeterminarin concreto pelo peso"100g"tantoquantoporqualqueroutropesoespecífico);poroutrolado,que,assimsendo,nosdeveremosreferiràsqua-lidades (e.g., "vermelho") e aos valores (e.g.,"100g")quedãoconcretudeàforma(in abstracto) de cada um daqueles mesmos atributosporviadonome"determinação".

24.Voltemosaondeestávamos.Nagelestabelececomotraçofundamentaldeumaleiexperimentalofactodecadaumdosdetermináveisqueverbalmenteentramnasuaenunciação(porexemplo,odeterminável"Temperatura")seencontrardirec-tamenteassociadoapelomenosummododeobservaredeafe-rirexperimentalmentequaléadeterminação(porexemplo,"100

grauscentígrados")queoactualizain concreto e de modo inva-riávelsemprequecertascircunstânciasespecíficasco-ocorremobjectivamente(porexemplo,semprequeaáguaforaquecidadurante o tempo t1 por uma chama com intensidade i1).

25.Poroutraspalavras:nocasodeumaleicientíficaserlei experimental, elanãosóenunciaem termos formaisou in abstractoasrelaçõesqueobjectivamenteocorrementrecertosdetermináveis (por exemplo, entre "Temperatura" e "Volume",nos casos em que um gás é aquecido), mas também reme-te indirectamente para os procedimentos experimentais (porexemplo,osmodosdemensurar)eparaasescalasnuméricasquefacultamobservareaferirasdeterminaçõesconcretas(porexemplo,asdeterminações"15 grauscentígrados"e"0.20m3") que objectivamente actualizamos referidos determináveis emcertascircunstânciasespecíficas.Istoé,asdeterminaçõesque,semprequeumamesmacircunstânciaespecíficaserepetirdemodoinvariável,conferirãoconteúdoempíricoe identidadein-variáveisaosreferidosdetermináveis,assimostornandoexpe-rimentalmenteidentificáveis.

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26.Daqui,resulta,demodosignificativo,que,nosenun-ciadosdasleisexperimentais,entram,verbalmente,sobretudodetermináveiscujasdesignações(e.g.,"Temperatura"e"Exten-são")possuemsignificadoinvariável,devidoacorresponderemin abstractoadeterminaçõesque,paraalémdeseremobjecti-vamente dadas,sãoobserváveisin concreto — o mesmo acon-tecendo,comosetornaóbvio,comasdesignaçõesdosentes(e.g.,"Cobre"e"Água")dequeessasmesmasdeterminaçõessãoatributos.

27.Emoposiçãoàquiloqueseacabadeconstatar,depa-ramos,nosenunciadosdas leis teóricasou teorias,sobretudocomdesignaçõesdeentes(e.g., "Átomo" e "Molécula") e com designações de determináveis (e.g., "Peso", "Carga", "Posi-ção") que, devido a estes (entes e determináveis) não serempassíveisdeserobservadosin concreto,devidoaoseucarác-ter inferencial,possuemsignificado tão-somente ideacionalouconceptual.

28.Comrelaçãoaisso,importa,seguindoNagel,desta-car quatro aspectos.

29. Um primeiro aspecto é o de que, na realidade, a maior partedasdesignaçõescomqueasleisteóricasnosconfrontam(designações como "Electrão", "Núcleo", "Protão", "Neutrão"e, com relação aos correspondentes determinantes, "Peso","Carga", "Posição") possuem conteúdo semântico concebidoporanalogiacomoconteúdoempírico-objectivodeentesede-terminantesquesãoobserváveisin concreto.— Como se torna evidenteaoconstatar,porexemplo,que,sedesignaçõescomo"Átomo"e"Electrão"nosconduzemaconceptualizarasrealida-desqueverbalizamereferenciamemtermosdepartículasoude pedaços minúsculos dematéria quenão sãoobserváveis,issoaconteceporanalogiacompartículasoupedaços minús-culosdematériaquesãoobserváveisin concreto(porexemplo,partículasdepó).

30.Umsegundoaspectoéodeque,emvistadisso,enãoobstante o fundamento objectivo dos efeitos observáveis queosdãoainferir,osconteúdossemânticosdetaisdesignaçõesconstituem um postoconceptualtantoquantoasleisteóricasouas teorias em cujos enunciados possam entrar — sendo que, por conseguinte, os sentidos que esses mesmos conteúdos se-mânticosconfiguramsãodeterminaçãocasuísticadaspróprias

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teoriasqueosexplicitam,nãoapresentando,porisso,ainvaria-bilidade que tende a caracterizar sentidos (empiricamente deter-minados) como "Água" ou "Cobre".

31. Um terceiro aspecto relaciona-se directamente comoanterior.Éeleoaspectodeque,contrariamenteàquiloqueacontececomasdesignaçõesouosdescritivosdequeosenun-ciadosdasleisexperimentaissetecem,asdesignaçõesouosdescritivoscomquesedeparanosenunciadosdasleisteóricasmudam de sentido sempre que o sentido mais geral destas últi-maséalteradooureconfigurado.Equeassiméprova-osóporsi,porexemplo,acircunstânciade,naverdade,adesignação"Átomo"adquirir sentidosespecíficosdiferentes (remeterparaconcepçõesde"Átomo"diferentes)noseiodeleisteóricascon-ceptualmentedeterminadaspordiferentes teoriasatómicas.Omesmoédizer,pordiferentesexplicaçõesdasdimensõesató-micaesubatómicadamatéria.5

32.Finalmente,umquartoaspecto,que,dealgummodo,justifica os restantes, é o seguinte: o de que, contrariamenteàs leis experimentais, e nãoobstante o fundamento objectivodosefeitosobserváveisqueasdãoainferir,asleisteóricasnãoserempassíveisdeservalidadasexperimentalmentedemododirectooupelaviasensitivadaobservação.

33.Faceaesteúltimoaspecto,surge inevitavelmenteaseguintequestão:Porquemodosetorna,então,possívelcon-firmarofundamentoobjectivodeumaleiteórica?

34.Antesdedarrespostaaessaquestão,importapôremevidência dois outros aspectos.

35.Oprimeiroaspectoéodeque,semexcepção,umaleiexperimentalformulaoter-de-ser de uma certa regularidade

5Aeste respeito,considerem-se,porexemplo,asseguintes trêscir-cunstâncias.A primeira circunstância é a de a designação "átomo" corres-ponderàpalavragregaatomos,quesignifica"não-dividido" ("não-compostoporpartes")e,porextensão, "não-divisível"ou "não-fissionável".Asegundacircunstânciaéadeesse(s)sentido(s)revelar(em)bemqueosátomosforamconcebidosoriginariamente(pelosGregosdaAntiguidade)comomónadase,porconseguinte,comoelementosúltimoseirredutíveis.Aterceiracircunstân-ciaé,porfim,adeadesignação"átomo"continuaraserelementofundamen-taldasleisteóricasdaFísicaAtómicaeSubatómica,nãoobstanteamodernaconcepçãode"átomo"queasdeterminaequeelasmesmasexpressamserradicalmentediferentedaconcepçãoorigináriaquesevemdeconstatar.Ouseja,serconcepçãoqueentraemlinhadecontacoma"divisão"dosátomosempartesesub-partes,bemcomocomapossibilidadedeosprópriosátomosseremfissionados.

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objectivana formadeumsóerelativamentecurtoenunciado,aopassoqueumateoriaouumaleiteóricaassumeaformadeenunciadoquecorrelacionaentresiesintetizaváriosenuncia-dos,eque,porisso,apresenta,emgeral,maiorcomplexidadeeextensão.

36. O segundo aspecto, que se encontra na origem do anterior,consisteemareferencialidadeobjectivadeumateoriaser, por natureza,mais abrangente do que a referencialidadeobjectivadeumaleiexperimental.Significaisto,consisteemosentes e eventos que são subsumidospor uma lei experimen-tal tenderem a ser qualitativamente homogéneos e, por isso, do mesmo tipo ou do mesmo género, ao invés daquilo que, em geral,severificanocasodeumateoria,aqual,precisamente,se caracteriza por correlacionar entre si e sistematizar entes e eventosassazheterogéneosoudediferentestipos.

37.Comrespeitoaisto,Nageldácomoexemplo,noquetocaàsleisexperimentais,aleideArquimedes(c.287–c. 212 A.C.) que enuncia que a magnitude da força de impulsão que é exercida verticalmente (de baixo para cima) num objecto imerso num fluído é igual ao peso do volume de fluído que é deslo-cado por esse objecto. Esta lei experimental, fá-lo verNagel,temreferênciaaumasériedeentesconcretos(comosetornaevidentesesesubstituir"gelo","pedaçodemadeira",etc.,por"objectoimersonumfluído"e"água"ou"óleo"por"fluído").Con-tudo,todosessesentesnãopoderãodeixardeserevelaralgohomogéneos. Por um lado, devido a todos eles entrarem na ca-tegoria "objecto". Por outro lado, devido a todos terem, para que asreferidascircunstânciasseverifiquem,deseencontrarmaisoumenosimersosnumfluído.

38.Jánocasodeumaleiteórica,nãoaconteceomesmo.E que assim é dá-nos a entrevê-lo, por exemplo, o chamado"principio da covariância" — o qual estipula, no âmbito da teoria geral da relatividade, deEinstein, que todasas leis daFísica(enãoestaouaquelaleiespecífica)permanecemasmesmasemtodosossistemasdecoordenadas(espaço-temporais),querestesseencontrememmovimentouniformeounão.

39.Terminemosapresentesecçãotentandodarrespos-ta,agorasim,àquestãoquefoiformuladaumpoucoatrás(naentrada33).Istoé,àquestão:Porquemodosetornapossívelconfirmarofundamentoobjectivodeumaleiteórica?

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40. Jáseconcluiuqueo fundamentoobjectivodas leisexperimentais(apartirdoqualelasmesmassãoindutivamenteformuladas)épassíveldeserconfirmado(melhordizendo,re-confirmado)demododirecto.Istoé,porviadecertosprocessosexperimentais,entreosquaissedestacamaquelesquepermi-temaferirquantitativamenteosenteseoseventosobservados.

41.Ora,partindodaqui,poder-se-ádizerque,pelocontrá-rio,ofundamentoobjectivodasleisteóricasserevelapassíveldeserconfirmadoapenasdemodoindirecto.Ouseja:através,porumlado(comoseviunaanteriorentrada19.),deextensassériesdeinferênciasquetêmcomopontodepartidaprocessoscomplexosdeexperimentaçãoeobservação;através,porou-trolado,daconfirmaçãodirectadofundamentoobjectivodeumcertonúmeroleisexperimentais.

42.Éque,nãoobstanteasdiferençasqueseparamasleis teóricasdas leisexperimentais, instaura-seentreelas,aonívelconceptual,umaestreita relaçãodecomplementaridade.Oqueistosignificaéoseguinte.—

43.Porumlado,queaevidênciaempíricadofundamentoobjectivodeumaleiexperimentalencontraconfirmaçãoconcep-tualnãosónamedidaemqueela, leiexperimental,corroborae é corroborada por outras leis do mesmo tipo, mas também na medidaemqueaunidadesistemáticadeuma teoriaaexige,conjuntamente com outras leis do mesmo tipo. Ou seja, melhor dizendo:mastambémnamedidaemqueaunidadesistemáticadeumateoriaconduzaela,leiexperimental,dedutivamente.

44. Por outro lado, que, de modo inverso, o (pressuposto) fundamentoobjectivodeuma lei teóricaencontraconfirmaçãoempíricaindirectanamedidadonúmerodeleisexperimentaisqueela,leiteórica,exigeouimplica.Eistotantonoscasosemquetaisleisexperimentaisjásãoconhecidas(e,porconseguin-te, o seu fundamento objectivo já há sido experimentalmenteconfirmado)comonoscasosemqueissonãoacontece(eemque,apósteremsidoformuladasdedutivamente,háqueconfir-maroseufundamentoobjectivoexperimentalmente).

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X. Conhecimento científico e conhecimento não-científico: diferença decorrente da validade do primeiro deles

1.Ao iniciar esta secção, torna-se necessário tecer trêsreparos,àsemelhançadoqueaconteceunaanterior(secção).

2.O primeiro reparo (que reitera uma das observaçõesqueforamfeitasnaentrada24.dasecçãoVIII.)éodeque,aoconsiderar aquilo que se segue, importa pensar na terceira das trêsgrandesdiferençasqueestãoaserclarificadas—adiferen-çaqueseparaoconhecimentonão-científicodoconhecimentocientíficocomrespeitoàvalidade deste último — em termos do tipo de necessidade (lógicaouontológica) das leis ou das cons-tantes objectivas que a ciência (sobretudo as Ciências Naturais) procuradescobrireformular.

3. O segundo reparo é o de que, à semelhança daqui-lo que se verificou na anterior secção, tal diferença não iráser evidenciada aqui por via de continuamente se estabelecer comparaçãoentreo conhecimentonão-científicoeo conheci-mentocientífico,massimdoseguintemodo:(i)tomandocomoassenteaquelaqueéumadasprincipaisconclusõesdasecçãoVIII.(queosentidocomumnãosistematizaassuasexplicaçõesnão-científicase,porconseguinte,nãoasformulanaformadeleisdaNatureza);(ii)tentandotão-somente,emresultadodisso,tornar evidente que a validadedaschamadas"leiscientíficas"ou "leis da Natureza" assenta directamente nos conceitos de "universalidade" e de "necessidade" — seja esta última conside-radanaqualidadedenecessidadelógica,denecessidadeonto-lógicaoudenecessidadenómica(jáseiráperceberoquecadaumadestasdesignaçõessignifica).

4.Oterceiroeúltimoreparoéodeque,àsemelhançadoqueseverificounasduasanterioressecções,aquiloquesegueconsiste em grande parte em sumarização, sistematização eclarificaçãodepalavrasdeErnestNagel.1

5.Torna-senecessárioaqui,antesdemais(antesdesepassar a considerar os argumentos de Nagel), esclarecer alguns conceitos. Comecemos pelo conceito de "validade".

1Veja-se:ErnestNagel."TheLogicalCharacterofScientificLaws".In: —. The Structure of Science.Indianapolis,Hackett,1979,pp.47–78passim.

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6. Esse conceito revela-se intimamente ligado a outrosconceitos. Nomeadamente, aos conceitos de "verdade", de "uni-versalidade" e de "necessidade", os quais, por sua vez, mantém relaçãoestreitacomadiferençaentre"idealidade"(sendoqueédenaturezaidealtudoquantodizrespeitoaopensamentoouàideação)e"realidade"(sendoqueédenaturezarealtudoquan-to pertence ao mundo material e, por isso, é conhecido por via dos sentidos).

7.Épráticacorrentereservarotermo"validade"paraasverdadesdecarácterlógico(e,porisso,ideal)2, e o termo "ver-dade"paraasverdadesdecarácterrealouobjectivo.Contudo,issopresta-se,comosetornaevidente,agerarconfusões.

8. Assim sendo, é melhor distinguir entre "validade" e "ver-dade"decarácter lógico (e, por isso, ideal) e, poroutro lado,"validade"e"verdade"decarácterreal.3

9.Paraquesepossaperceberoqueissosignifica,aten-te-senoseguinteraciocíniodedutivo:(A)Todasasárvoressãoazuis;(B)Todosospinheirossãoárvores;(C)Todosospinhei-rossãoazuis.

10.Ora,aconclusão"Todosospinheirossãoazuis"élo-gicamenteválida,nãoobstante, comoéevidente,nãoser re-almenteválida.Porém,ela tambémé logicamenteverdadeira,nãoobstantenãoserrealmente verdadeira. E isto uma vez que, seassumirmoscomoverdadesformaisquetodososmembrosdo género "Árvore" têm necessariamente como predicado a cor azul e que a espécie "Pinheiro" é subsumida pelo género "Ár-vore",nãopoderemosdeixardenossentir forçadosaconcluirqueessasmesmasverdadesformaisincluememsiab initio, e por issoexigem,averdadeformaloulógicadeque"Todosospinheirossãoazuis".

2ComoRogerScrutonafirma: "Avalidade...énormalmentedefinidaem termosdeverdade [lógica],umargumentoválidocaracterizando-sepor,nele,aspremissasnãopoderemserverdadeirasaomesmotempoemqueaconclusãoéfalsa."(RogerScruton.Modern Philosophy. An Introduction and Survey. Harmondsworth, Penguin Books, 1994, p. 5.)

3Avalidadeeaverdade lógicassãoconhecidasdiscursivamenteouideacionalmente.Avalidadeeaverdadereaissão,comosepercebe,validadeeverdadeempíricas.Ora,assimsendo,sãoelasconhecidasempiricamenteouporviadaexperiênciadomundoreal.Devidoaisso,podemelasserdesig-nadas"validadeempírica"e"verdadeempírica".

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11.Considere-seagoraoseguinteraciocínio:(A)Todasasárvoressãoazuis;(B)Todosospinheirossãoárvores;(C)Todosospinheirossãovermelhos.

12.Nestecaso,aconclusão"Todosospinheirossãover-melhos"nãodecorredaspremissasdequeseparte,umavezqueaprimeiradelasnãopredicadetodasasárvoresaqualida-de "vermelho" e que a segunda apenas estabelece que, para poderem ser considerados pinheiros, todos e quaisquer entes têmdeserárvores.Nestecaso,porconseguinte,aconclusão("Todosospinheirossãovermelhos")nãosónãoéválidaever-dadeira realmente,comotambémnãoéválidaeverdadeiralo-gicamente.

13.Considere-se,agora,oprimeirodessesdoisraciocínios(aquelequeaanteriorentrada9.apresenta)àluzdosconcei-tos de "universalidade" e de "necessidade", o primeiro dos quais implica prima facieausênciadeexcepçãoaosníveisespacialetemporal(masnãoaimpossibilidadedeausênciadeexcepção),e o segundo dos quais implica prima facie a impossibilidade de excepçãoaosníveisespacialetemporal.4

14.Aconclusãodesseprimeiro raciocínio ("Todosospi-nheirossãoazuis")é,jáovimos,válidaeverdadeiralogicamen-te,masinválidaenão-verdadeirarealmente. Ora, assim sendo, verificam-se as duas seguintes circunstância:— Por um lado,a circunstância de a sua necessidade (a necessidade da sua verdade e, por conseguinte, da verdade de todo e qualquer pi-nheiro terporpredicadoacorazul)sermeramente lógica,aoinvésdeaumsótempológicaereal(ouontológica).Poroutrolado, a circunstância de a universalidade ("Todos") que ela, con-clusão,expressasernecessáriameramenteemtermoslógicos,aoinvésdenecessáriatantoemtermoslógicoscomoreais(ouontológicos).

4Oconceitode"universal"opõe-seaoconceitode"particular",e,assimsendo,poder-se-ádizerqueoconceitode"universalidadeseopõeaoconceitode"particularidade".Oconceitode"necessidade"opõe-seaosconceitosde"contingência" e de "acidente". Assim sendo, o conceito de "verdade neces-sária"opõe-seaoconceitode"verdadecontingente"ou"verdadeacidental".Aprimeiraé,enquantoverdadenecessária,verdadecujocontrárionãoépossí-vel (logicamente ou realmente); a segunda é, enquanto verdade contingente ouacidental,verdadecujocontrárioseriapossível:éverdadequeacontece (contingit) ou que se verifica acidentalmente, e que, por isso, poderia nãoacontecerounãoverificar-se.

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15.Passemos,agora,aconsiderarumoutroraciocínioàluz desses dois conceitos (os de "necessidade" e de "universa-lidade").Éeleoseguinte: (A)Todasasárvoressealimentamatravésderaízes;(B)Todosospinheirossãoárvores;(C)Todosospinheirossealimentamatravésderaízes.

16.Comosepercebe,acontececomaconclusãodesteraciocínio("Todosospinheirossealimentamatravésderaízes")o contrário daquilo que se há constatado com relaçãoà con-clusãodoanterior raciocínio (aquelequeaanteriorentrada9.apresenta).Istoé,acontecequeestaoutraconclusãoéválidaeverdadeiranãosólogicamente,mastambémrealmente. E, as-simsendo,verificam-se,comrespeitoaela,duascircunstânciainversasàsanteriores(àsqueaentrada14.especifica):—Porum lado, a circunstância de a sua necessidade (a necessidade da sua verdade e, por conseguinte, da verdade de todo e qual-querpinheirosealimentaratravésderaízes)ser,aumsótempo,lógicaereal(ouontológica).Poroutrolado,acircunstânciadeauniversalidade("Todos")queela,conclusão,expressaserne-cessáriatantoemtermoslógicoscomoreais(ouontológicos).

17.Chegadosaqui,impõe-seesclareceralgumasdasde-signaçõesqueNagelutiliza.

18.Acabámosdeconstatararelaçãodirectaqueseins-taura entre os conceitos de "universalidade" e de "necessidade", oprimeirodosquais—recordemo-lo—implicaprima facie au-sênciadeexcepçãoaosníveisespacialetemporal,masnãoaimpossibilidade de tal ausência.

19.Ora,éemresultadodesde facto (emresultadodeoconceitode"universalidade"nãoimplicarnecessariamenteau-sênciadeexcepção),queNagelutilizaadistinçãoentreuniver-salidade acidental de facto (no sentido de se verificar factual-mentesemocontráriodissoser impossível)e,poroutrolado,universalidade necessária. A primeira, a necessidade acidental ou de facto,éuniversalidadequesempreseháverificadoempi-ricamente,masquenãosepodeafirmarterdecontinuaraveri-ficar-se.Pelocontrário,asegunda,auniversalidadenecessária,é universalidade que, para além de sempre se ter verificado,implica(parece implicar)a impossibilidadedealgumaveznãoseviraverificar.

20.As proposições que apresentam a forma "se..., en-tão..." (por exemplo "se fores ter comigo, então iremosao ci-

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nema"), designa-as Nagel, como é costume, condicionais. A proposição "se...", que expressa a condição, é designada "oantecedente"; a proposição "então...", que expressa a conse-quência, é designada "o consequente". Dentro das condicionais, contam-seaschamadascondicionais universais,queassimsãodesignadasdevidoaafirmaremauniversalidadedoconsequen-te(porexemplo,"entãoserápreto",comrelaçãoaoantecedente"seforcorvo").

21.Nagel fala tambémdecondicionais conjuntivas (sub-junctive conditionals), quando se quer referir a condicionaisque formulamoantecedentenopretéritomais-que-perfeitodoconjuntivo(porexemplo,"sefosseaquecido..."),emlugardenofuturoperfeitodessemesmomodoverbal(porexemplo"seforaquecido..."). A par destas, das condicionais conjuntivas, sur-gem as condicionais contrafactuais (por exemplo, "se tivessesidoaquecido..."),asquaissãodesignadasassimdevidoa,ne-las,oantecedenteafirmaranão-ocorrênciadeumadetermina-dacircunstânciae,poressemodo,enunciaranão-factualidadedessa mesma circunstância.

22. Nagel entra também em linha de conta com as chama-das verdades vacuosas,asquaissãodesignadasassimdevidoa, nelas, o antecedente afirmar (formalmente) uma classe deentesquenãoépreenchidapornenhumexistenteecujaesferanocionalsemantém,por isso,novácuo (porexemplo, "se forunicórnio,terádeserverde").5Assimsendo,refere-seeleaumterceirotipodeuniversalidade:auniversalidade vacuosa.

23.Àscondicionaisqueexpressamuniversalidadeaciden-tal(universalidadeque,tantoquantosepossasaber,severificafactualmentesemocontráriodissoserimpossível),Nagelcha-ma universais acidentais.Àscondicionaisqueexpressamuniver-salidadenecessária(universalidadeque,paraalémdesempreseterverificado,implica—pareceimplicar—aimpossibilidade

5Nagelfaznotarquealógicamodernaconsideraoconsequentedasproposiçõesvacuosasverdadeiroirrespectivamentedasqualidadesquepos-sapredicardoenteinexistentequeoantecedentedetermina.Istoé,faznotarque,dadoque,porexemplo,nuncaexistiram,nãoexistemejamaishaverãodeexistirunicórnios,alógicamodernaconsideraverdadeirotantooconsequentedaproposição"seforunicórnio,terádeserbranco"comooconsequentedaproposição"seforunicórnio,terádeserpreto".Arazãodisso,percebe-se,éa de, em qualquer destes dois casos, a necessidade que liga o predicado ao sujeitoserdenaturezaexclusivamentelógica.

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dealgumaveznãoseviraverificar),Nagelchamauniversais nomológicos.6

24.Comoconsequênciadisso,elefala,porvezes,deuni-versalidade nómica (na forma de lei),emlugardefalarde"uni-versalidadenecessária"—bemcomotambémfaladeuniversais restritossemprequesequerreferirauniversaisqueexpressamuniversalidade fortementecondicionada. Istoé,universalidadeque, ao invés de ser absoluta (ao invés de implicar ausência de excepçãoemtodososespaçosetodosostempos),é,dealgummodo,relativa(implica,dealgummodo,ausênciadeexcepçãoapenasnumcertoespaçoouduranteumcertotempo).

25.Voltemosanossaatenção,agora,paraosargumentosque Nagel apresenta.

26.Nagelcomeçaporfazerverquenãoexisteactualmen-teconsensoquantoaosentidodadesignação"leidaNatureza",sendo que, por exemplo, alguns consideram lei daNatureza,outrosnão,formulaçõesderegularidadesobjectivasquefazemreferênciaaentesindividuais(comooSol)ouagruposdetaisentes(comoodosplanetas).Ouseja,formulaçõescomoaqueafirmaqueosplanetassemovememtornodoSolemórbitaselípticas.

27.Ora, a principal razão dessa ausência de consensoradicasobretudonasfortesreticênciasqueofilósofoinglêsDa-vidHume(1711–76) introduziunoconceitode"leiNatural"viadasuapertinentecríticaàideiadeasrelaçõesdecausalidade(asrelaçõescausa-efeito)configuraremuniversalidadeabsolutaenecessária.7

6Oqualificativo"nomológico"derivadotermogrego(nomos) para "lei", e(nautilizaçãoqueNagellhedá)expressaaideia"àsemelhançadelei"(lawli-ke).Umavezqueclassificade"universaisacidentais"aquelesqueexpressamuniversalidadeacidental,Nageldeveria,emprincípio,classificarde"universaisnecessários"aquelesqueexpressamuniversalidadenecessária(emlugardeosclassificarde"universaisnomológicos").Seissonãoseverifica,éporque,comoseiráver,elepretendemanteraideiadequealgumasleisdaNaturezaexpressamuniversalidadequesenãopodeconsideraracidentaloucontingen-te — é porque ele pretende manter essa ideia sem, ao mesmo tempo, atribuir tal circunstância (a de a referida universalidade nãopoder ser consideradaacidental ou contingente) aqualquer formadenecessidade (lógica-ideal ouontológica-real).

7Porexemplo,noseuAn Enquiry Concerning Human Understanding (Investigação sobre o Entendimento Humano), Hume afirma, a certa altura(VII,ii,58),oseguinte:"Pareceque,pormaislongequeonossoescrutíniová,nãopodemosdescobrir,emcadacasoisoladodocomportamentodoscorpos,nadaparaalémdasucessãodeumeventoaoutro;nãosendocapazesde

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28.Talcrítica, tê-la-ásuperadoofilósofoalemãoImma-nuelKant(1724–1804)nasuaCrítica da Razão Pura (Kritik der reinen Vernunft),8porviadedefenderqueascategoriasdoen-tendimento (Verstand)—entreasquaisfazcontarascategoriasde relaçãocausa-efeitoedenecessidade-contingência—de-terminam a priori, e demodo necessário, a nossa percepçãoda Natureza.9 Porém, as dúvidas que os argumentos de Hume depositaram na Mente Ocidental tendem a permanecer ainda hoje—sobretudonasáreasdoconhecimentoque(comoadasCiênciasNaturais)continuamaperfilharmaioritariamenteasua(deHume)defesadoEmpirismo.E,assimsendo,nãoserádeestranhardepararmoscomErnestNagel,ofilósofodaciência,atomarrumoaparentadoaodopróprioHume.10 Isto é, a preten-derjustificarainevitabilidadedoconceitode"necessidade"semrecursoaosconceitosde"necessidadelógica"ede"necessida-deontológica".

29.Emseguida,Nagel faz ver quese tempartido taci-tamente do princípio de que as leis daNatureza assumem aformadecondicionaisgenéricas,nãoobstantenãoseverificarde modo algum que todos os enunciados que apresentam essa mesmaforma(aformadecondicionaisgenéricas)sãopassíveisde ser considerados leis da Natureza.

30. No seu aspecto mais simples, as condicionais gené-ricas enunciam que, "Para qualquer X, se XforA,entãoXseráB",aqualéformulaçãológicaque,sesubstituirmosA pelo su-jeito"Corvo",porexemplo,eBpelopredicado"Preto",assumirá

divisarqualquer forçaoupoderporviadoqualacausaopera,ouqualquerconexãoentreelaeoseusupostoefeito."Umpoucomaisadiante(VII,ii,59),lê-se: "Parece,pois,quea ideiadesubsistir conexãonecessáriaentredoiseventos desponta de a conjunção desses eventos semanter constante nonúmero de vezes em que eles ocorrem..."

8Aprimeiraediçãodessaobrasurgiuem1781;asegunda,em1787.9Demodosumário,oargumentoprincipaldeKantéoseguinte:(i)o

nosso softwarementalimpõedeterminadasleisa prioriànossapercepçãodaNatureza;(ii)entreessasleisformais,encontra-seaqueobrigaaqueasre-laçõescausa-efeitosejamnecessárias;(iii)logo,para nós,sujeitos,arelaçãodecausalidadeSol-calor,porexemplo,énecessária,nãoobstantepodernãoo ser à parte de nósoutransfenomenalmente.

10 O qual considerou a ideia de "necessidade" — e, com ela, a ideia deosraciocíniosindutivosassentaremnumfundamentoobjectivonecessário—resultadodeumcontínuoprocessodeassociaçãomental(e,porisso,denatureza meramente subjectiva)entrecadacausaespecíficaeoseuinvariávelefeito.

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aseguinte formaconcreta: "ParaqualquerX, se X forCorvo, entãoXseráPreto".

31. Com vista a pôr em evidência que, na verdade, uma condicionalgenéricapodesersusceptíveldenãoserconside-radaleidaNatureza,Nagelapresentaumoutroexemplo,oqualimplica universalidade acidental restrita (a um ente particular e aumtempoindeterminado)e,tão-somenteporviadisso,jamaispoderiaassumirtalestatuto(odeleidaNatureza).Esseexem-ploéoseguinte:"ParaqualquerX, se XforParafuso do actual carro de Smith,entãoXserá(parafuso)Enferrujado."

32.Partindodaqui,Nagelintroduzadistinçãoentreuniver-sais acidentais (condicionais que implicam universalidade aciden-tal de facto) e universais nomológicos (condicionais que implicam universalidadenómica).11

33.Comoexemplodosuniversaisacidentais,dá-noseleeste(quejásurgiuumpoucoatrás):"ParaqualquerX, se XforCorvo,entãoXseráPreto".Comoexemplodosuniversaisno-mológicos,apresentaeleoseguinte:"ParaqualquerX, se XforCobre,entãoX expandir-se-á se for suficientemente aquecido".

34.Alógicamoderna(prossegueNagel)interpretaosuni-versaisacidentaiscomocondicionaisqueafirmamtão-somenteoseguinte:quequalquerentequesejamembrodaclassequeoantecedenteespecifica(e.g.,aclasse"Corvo")satisfaráde fac-to,masdemodocontingente,ascondiçõesqueoconsequen-te especifica (e.g., a condição "ser preto").Ou seja, satisfarátaiscondições(asqueoconsequenteespecifica)emvirtudedofactode (tantoquantosepossasaber)nunca terhavido,nãohaverenãoirhavercorvosnão-pretos(nocasodesseexemploconcreto),nãoobstanteessemesmofactosercontingente,umavezquenãosetornapossívelencontrarqualquer fundamentoobjectivamentenecessárioparaele—eumavez,também,quenemsequersetornapossívelconfirmarcomcerteza(denovo,nocasodesseexemploconcreto)quenuncahouve,nãoháenuncairáhaverumqualquercorvonão-preto.

35.Porém,raciocinaNagel,écostumepartirdoprincípiodequeumaleidaNaturezanãoexpressaapenasuniversalida-

11Mantenha-seemmenteque,porrazõesquejáforamapontadas(ve-ja-se,atrás,anotaderodapé6.destasecção),Nagelfalade"universalidadenómica"(universalidadesemelhanteàqueéimplicadaporumaleinosentidopuro e durodestetermo),emlugardefalarde"universalidadenecessária".

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deacidental.Ouseja,écostumepartirdoprincípiodeque,pelocontrário,aconexãoqueumaleidaNaturezaestabeleceentreantecedente e consequente (entre sujeito e predicado) é mais forte do que a que aquele tipo de universalidade (a acidental) implica.Omesmoédizer,écostumepartirdoprincípiodeque,porexemplo,aleidaNatureza"ParaqualquerX, se XforCobre, entãoX expandir-se-á se for aquecido",afirmanãoapenasquenuncaexistiuumpedaçodecobreque,sefosseaquecido,nãosedilataria,mastambémqueaexistênciadeumtalpedaçodecobreéomnitemporalmenteimpossível.

36.Ora, é isso, faz-nos verNagel, que torna imperiosoentrar em linha de conta com condicionais que apresentem a forma de universais nomológicos. Ou seja, com condicionaisuniversais que, como a que acaba de ser considerada ("Para qualquer X, se XforCobre,entãoX expandir-se-á se for aqueci-do"),expressemuniversalidadenómica.

37.Deseguida,Nagelpropõequeimaginemosumpeda-çodecobreque tivessesidodestruídosemantesse tercon-firmadoquese teriaexpandidoaoseraquecido.Suponha-se,dizele,que,apósum tal pedaçodecobre ter sidodestruído,alguémperguntariaseseteriaexpandidoemconsequênciadetersidoaquecido.Querespostasetornariapossível?Dopontode vista da maior parte das pessoas, conclui Nagel, a resposta teriadeseradeque,setivessesidoaquecido,umtalpedaçodecobreter-se-iaexpandido.Ouseja,arespostateriadeassumiraformadacondicionalcontrafactual"Seumtalpedaçodecobretivessesidoaquecido,ter-se-iaexpandido".

38.Partindodaqui,Nagelchegaatrêsconclusões.39.Aprimeiraconclusãoéadequeagrandediferença

que decorre daquela que prima facie separa os universais nomo-lógicos(e.g., "Para qualquer X, se XforCobre,entãoX expan-dir-se-á se for aquecido") dos universais acidentais (e.g., "Para qualquer X, se XforCorvo,entãoXseráPreto")residenisto:emosprimeiros(osuniversaisnomológicos)garantiremquetantoaverdadedascondicionaiscontrafactuaisquelhescorrespondem(e.g.,"Seopedaçodecobrectivessesidoaquecido,ter-se-iaexpandido")comoaverdadedascondicionaisconjuntivasquede igual modo lhes correspondem (e.g., "Para qualquer X, se X fosseCobre e fosse aquecido,entãoexpandir-se-ia") é verdade

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nomologicamenteuniversal,aopassoque issonãoseverificacomrelaçãoaossegundos(osuniversaisacidentais).12

40.Asegundaconclusãoderivadaprimeira.Éelaacon-clusãodeque,umavezquegarantemqueaverdadedascon-dicionaiscontrafactuaisedascondicionaisconjuntivasquelhescorrespondem é nomologicamente universal (tal como acontece comosuniversaisnomológicos),osenunciadosqueformulamleis da Natureza assumem per seaformadeuniversaisnomoló-gicos(emlugardeaformadeuniversaisacidentais).

41.A terceira conclusão relaciona-secomaschamadas"verdades vacuosas", e adquire relevo em face sobretudo deleis da Natureza como a primeira das três leis newtonianas do movimento, a qual pressupostamente considera a classe vacuo-sa"corposnão-sujeitosaforçasexternas":Todo e qualquer cor-po mantém o seu estado de repouso ou de movimento uniforme em linha recta, a menos que seja forçado a mudar desse estado para outro por forças externas.

42. Essa terceira conclusão (de Nagel), que parte daconstatação de os universais nomológicos se caracterizaremporgarantirqueaverdadedascondicionaiscontrafactuaisedascondicionais conjuntivas que lhes correspondem é nomologica-menteuniversal,desdobra-seemtrêsaspectos.

43.Oprimeiroaspectoconsistenisto:emumacondicionaluniversal cujoantecedenteespecifiqueumaclasse (deentes)pressupostamente vacuosa (e.g., "Para qualquer X, se Xforumcorpo que não se encontre sob a acção de forças externas, en-tãoX não manterá uma velocidade uniforme")nãopodersequerexpressar a verdade ontológica do seu próprio consequente(emoposiçãoàquiloqueseverifica,dopontodevistadalógicamoderna,comrelaçãoàsuaverdadelógica)13 — e, por conse-guinte,muitomenosafirmarque,averificar-se,talverdadeserianomologicamente universal.

12ComoNagelressalta,ouniversalacidental"TodososparafusodoactualcarrodeSmithestãoenferrujados" ("ParaqualquerX, se X forPara-fuso do actual carro de Smith, entãoX será (parafuso)Enferrujado) não épassíveldejustificaraseguintecondicionalconjuntiva:"ParaqualquerX, se X fosseParafuso do actual carro de Smith,entãoXseria(parafuso)Enferrujado". Certamente, comentaNagel, ninguémmanteria comoverdade, faceaessacondicionalconjuntiva,que,seumparafusodelatãofosseinseridonocarrodeSmith,tambémele"seria(parafuso)Enferrujado."

13Veja-se,atrás,anotaderodapé5.destasecção.

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44.Osegundoaspectoconsistenisto:em,assimsendo,uma tal condicional — uma condicional universal cujo anteceden-teespecifiqueumaclasse(deentes)pressupostamentevacuo-sa—nãopodergarantiraverdade(ontológica)dacondicionalcontrafactualedacondicionaiconjuntivaquelhecorrespondam,e,porconseguinte,muitomenosgarantirque,averificar-se,talverdade seria nomologicamente universal.

45. O terceiro aspecto consiste, em vista dos dois anterio-res,noseguinte:emumacondicionaluniversalnãoserpassí-veldeassumiroestatutodeuniversalnomológicoapenascombasenofactodeoseuantecedenteespecificarumaclasse(deentes) vacuosa e de, por conseguinte, ser considerada (logica-mente) verdadeira irrespectivamente dos predicados que o seu consequenteespecifique.Omesmoédizer,oterceiroaspectoconsisteemumacondicionalvacuosamenteverdadeirasópoderserconsideradauniversalnomológicoseasuaverdadeforcor-roboradaempiricamentee/ouexigidadedutivamente(apartirdeoutrosuniversaisnomológicos,comoacontececomaleinewto-niana do movimento que a anterior entrada 41. reproduz).14

46. Nagel passa a sublinhar que ninguém nega que se torna imperioso distinguir entre universais acidentais e univer-saisnomológicos.Ouseja,entreuniversalidadeacidentaleuni-versalidadenómica.Aquiloqueserevelaproblemático,mostraele,ésaberseasdiferençasqueseparamossegundos(osuni-versaisnomológicos)dosprimeiros(osuniversaisacidentais),eque,porconseguinte,separamauniversalidadenómicadauni-versalidadeacidental,implicamaceitar,comrelaçãoaossegun-dos(osuniversaisnomológicos),oconceitode"necessidade".Significaisto,implicamaceitarqueauniversalidadequeosuni-versaisnomológicosexpressam,auniversalidadenómica,sejaconcebidaemtermosdeuniversalidadelogicamentenecessáriaoudeuniversalidadeontologicamentenecessária,15 em lugar de nos termosneutrosqueopróprio conceitode "universalidadenómica"instaura.

14Veja-se,adiante,aentrada61.destasecção.15Nagelparecenãoentraremlinhadecontacomapossibilidadedea

universalidadenecessáriaserinterpretada,emtermoskantianos,comouniver-salidade que implica necessidade transcendental. Isto é, como universalidade que, para além de ser determinada a priori pela categoria de universalidade, implica necessidade categórica: necessidade imposta ao conhecimento emgeral, a priori,pelacategoriadenecessidade-contingência.

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47. Nagel revela-se disposto a aceitar que assim sejaapenasemúltimainstância.Eistopelasseguintesrazões:porumlado,porqueoconceitode"necessidadeontológica"selheafiguraobscuroenão-passíveldeanálise;poroutrolado,por-queoconceitode"necessidadelógica"acarretaconsigoimpli-caçõesembaraçosas.

48. Em primeira instância, temos que o conceito de "ne-cessidadelógica"nãoserevelaadequadoanenhumdosuniver-saisnomológicosqueemgeralsãoclassificadoscomo"leisdaNatureza",umavezqueanegaçãodosconsequentesdessesmesmosuniversaisnãoacarretaconsigocontradiçãológica.16

49. Em segunda instância, temos que, se os universais nomológicosquesãoconsideradosleisdaNaturezaexpressam(universalidadequedecorre de) necessidade lógica, entãoasCiência Naturais contradizem-se, ao procurarem confirmaçãoparaumapressuposta lei daNaturezapor viadaobservaçãoouexperimentalmente.Eistoumavezqueomodocorrectodeconfirmaranecessidadelógicadeumaafirmaçãoédemonstrá-ladedutivamente;nãoaexperimentação.

50. Em terceira instância, temos que os universais no-mológicosquesãoconsiderados leisdaNaturezase revelamoperacionaisnoseiodossistemasdas respectivasciênciasàreveliadenemsequerserpossívelsaberseexpressam,ounão,(universalidadequedecorrede)necessidadelógica.17

16O que isto significa é, por exemplo, que a negação do universalnomológico:"ParaqualquerX, se X forCobre,entãoX expandir-se-á se for suficientemente aquecido"—queanegação(doconsequente)deumtaluni-versalnomológiconãoacarretaconsigocontradição lógica,emoposiçãoaoqueseverifica,porexemplo,comanegaçãodaproposiçãonecessária "10+10=20"oudaproposiçãonecessária "umanimalnãopodeestar vivoemortoaomesmotempo(nãopodeterporatributos,aomesmotempo,quali-dadesquesãoabsolutamenteopostas)"Tenha-seemmente,aesterespeito,que "proposição logicamentenecessária" é, pordefinição, todaaquela cujanegaçãoserevelalogicamenteimpossível.Ouseja,todaaquelaque,sendologicamenteverdadeira,nãopodeserpensadacomoproposiçãopassíveldeter sido falsa,emoposiçãoaoqueacontececomasproposiçõescontingentes,as quais, mesmo quando se revelam verdadeiras de facto (e.g., "um animal humanonormaltemtrintaedoisdentes"),sãoconcebíveiscomoproposiçõesque poderiamtersidofalsas(dadoque,paramanteroexemplo,aNaturezapoderia ter determinado que um animal humano normal se caracterizasse por ter mais ou menos do que trinta e dois dentes).

17PorexemploaleideArquimedesqueéconhecidacomoleidaflutu-ação(aleiqueenunciaquea magnitude da força de impulsão que é exercida verticalmente (de baixo para cima) num objecto imerso num fluído é igual ao

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51.Faceatudoisto,Nagelpropõe-secontinuaraconce-ber a universalidade que o sentido puro e duro de "lei" implica, a universalidadenecessária(lógicaouontologicamente),naquali-dadeneutradeuniversalidadenómica,bemcomoanalisarestaúltimaporviadepôremevidênciaquaissãoosrequisitosdena-turezalógicaeepistemológicaqueseimpõemàscondicionais,paraqueestaspossamserconsideradasuniversaisnomológi-cos. Ou seja, para que possam ser consideradas condicionais queexpressamuniversalidadenómica.

52.Emprimeiro lugar,Nagel interroga-seseumde taisrequisitospoderáseracondiçãodeoenunciadodeumuniver-salnomológiconãofazerreferênciaaentesparticulares,aumqualquerperíodotemporalouaumaqualquerconstantequan-titativa.

53.Porém,logoconcluielequenão,quetalcondiçãonãoépassíveldevigorar,umavezqueexcluiriadoestatutodeuni-versalnomológico(e,comisso,doestatutodeleidaNatureza)umasérieconsideráveldeenunciadosquegozamdessemes-moestatuto—taiscomooenunciadoqueafirmaque,novácuo,avelocidadedaluzéde300.000quilómetrosporsegundo(dadoqueincluiumaconstantequantitativa)eoenunciadoqueafirma(apartirdeKepler)queosplanetassemovemàvoltadoSolemórbitaselípticas(dadoquefazreferênciaaumenteparticular,oSol).18

54. Em vista disso, Nagel propõe-se comparar entre siduas condicionais universais que considera paradigmáticas.Umadelaséoseguinteuniversalacidental:"ParaqualquerX, se XforParafuso do carro de Smithduranteoperíododetempot, entãoXserá(parafuso)Enferrujado duranteoperíododetempo

peso do volume de fluído que é deslocado por esse objecto)tornapossívelàciênciaMecânicaexplicarepredizerumvastonúmerodefenómenos(queogeloflutuanaágua,queumaesferadechumboocasecomportadomesmomodo,enquantoumaesferadechumbosólidanão,etc.).E, contudo,nadaparece apontar no sentido de a necessidade que ela implica ser logicamente determinada.

18AcresceaistoqueaFísicasugere,actualmente,queexistemrazõespara crer que as regularidades que a Natureza apresentam variam de época cosmológicaparaépocacosmológica.Alevartalsugestãoemlinhadeconta,qualquerenunciaçãodeumaregularidadenaturaldeveria,emprincípio,fazerreferênciaaumaépocacosmológicaespecífica,sendoqueissoaexcluiriadoestatutodeuniversalnomológico,casofossenegadoaesteareferênciaatodae qualquer particularidade (qualitativa ou quantitativa).

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t." A outra é a lei kepleriana que enuncia que "Todos os planetas semovemàvoltadoSolemórbitaselípticas"("ParaqualquerX eparaqualquerperíododetempot, se XforPlaneta e t período de tempo suficientemente longo,entãoX mover-se-á à volta do Sol em órbita elíptica durante t").

55.A intenção deNagel é dar a ver que, não obstanteessasduascondicionaispartilharemacircunstânciade referi-remumenteparticular(noprimeirocasoocarrodeSmith;nosegundo,oSol),sedeixamdiferenciarumadaoutra,demododeterminante, a partir do momento em que se considera que cadaumadelasexpressauniversalidademuitodiferentedaque-laqueaoutraexpressa.

56.Naverdade,aprimeiradetaiscondicionaisexpressauniversalidadeextremamente restrita,umavezqueaqualida-dequeoconsequenteespecifica (serparafusoenferrujado)épredicada universalmente apenas de uns poucos sujeitos (os parafusosdocarrodeSmith),osquais,paraalémdisso,seen-contramconfinadosaumaesferaespacial(ocarrodeSmith)eaumaesferatemporal(operíododetempot) assaz limitadas.

57. Isso, porém, não acontece com a segunda condi-cional. É verdade que também no caso dela a qualidade que o consequente especifica (mover-se à volta do Sol em órbitaelíptica)épredicadauniversalmentedeumnúmeroreduzidodesujeitos (osplanetasdosistemasolar).Todavia,estesnãoseencontram,agora,confinadosaumaesferaespacialeaumaesferatemporalassazlimitadas.Eistosobretudonocasodestaúltima(esferatemporal),umavezque,comosetornaevidente,o"períododetempot"sepoderárepetirumnúmeroinfindávelde vezes.

58.Detudoisto,Nagelretiraaconclusãodequesetornaplausívelestabelecer como predicado sine qua non dos universais nomológicos a circunstância de serem universais não-restritos. Ouseja,acircunstânciade,semprequeexpressaremuniversa-lidade condicionada pelo lado do (número limitado) dos sujeitos (queoantecedenteespecificar),expressaremuniversalidadees-pacialetemporalmentenão-restritapeloladodospredicados.

59.Aseguir,Nagelpropõe-seidentificarcomopredicadosine quan nondosuniversaisnomológicosnãoseremvacuosa-menteverdadeiros.Istoé,propõe-seidentificarcomopredicadosine quan nondessesmesmosuniversaisofactodeoseuan-

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tecedenteespecificarumaclassedesujeitosquesesaibaserpreenchidapelomenosporumexistente.

60. Tal predicado, porém, levanta um problema que tem de ser levado em conta. É ele o problema que resulta de nem semprenosencontrarmosemposiçãodesaberseaclassedesujeitosqueumacondicionaluniversalexplicitaéefectivamen-tepreenchidapelomenosporumexistente—comose tornaevidente ao considerar, por exemplo, a primeira das três leisnewtonianas domovimento.Pressupostamente, esta afirmaaclassevacuosadecorposnão-sujeitosaforçasexternas(comosehávistonaanteriorentrada41).Porém,averdadeéquenãohácomosaberse,emtodoouniverso,existemounão,defacto,corpos que preencham tal classe.

61.Emvistadisso,Nagel reafirmaqueumacondicionaluniversalcujaverdadepareçaservacuosasópoderásercon-sideradauniversalnomológico(universalqueexpressauniver-salidadenómicae que, por isso, deve ser considerado lei daNatureza) caso haja comprovação indirecta da sua verdadepressupostamente vacuosa. Ou seja, caso uma tal verdade se reveleconsequêncianecessáriadeuniversaisnomológicos(deleisdaNatureza)paracujaverdadeexistacomprovaçãodirecta—comoacontececomareferidaleinewtoniana,que,porexem-plo,obtémcomprovaçãoindirectadacomprovaçãodirectaquevalidaaverdadedaleinewtonianadagravitaçãouniversal.19

19A lei newtonianadagravitaçãouniversal afirmao seguinte:Cada centro-de-massa do universo atrai todos os outros com uma força que se di-recciona ao longo da linha que passa por cada dois centros-de-massa e que é directamente proporcional ao produto das massas e inversamente proporcio-nal ao quadrado da distância que separa os seus centros. (A massa é medida emKg;adistância,emm;a forçaemNewtons).Deacordocomesta lei,aTerraatraiaLuacomforçagravitacionaldemagnitudeigualàquelacomqueaLuaatraiaTerra(talcomaaTerraatraiumcorpode70Kg,porexemplo,comforçagravitacionaldemagnitudeigualàdaquelacomqueessecorpoatraiaprópriaTerra).Porém,umavezqueaaceleraçãodeumcorposoboefeitodaforçadagravidadenãodependedasuamassa,massimdamassadocorpoqueoatrai,eumavezqueamassadaTerraémuitosuperioràdaLua,estaúltimaacelerariaemdirecçãoaocentrodaTerracasoseencontrasseamuitomenordistânciadela.Demodoinverso,seaforçagravitacionalquea(muitomaior)massadaTerraexercesobreamassadaLuanãofossesuficienteparamanterestaemórbitaàsuavolta,esenenhumaoutra forçaexterna fosseexercidasobreaLua,aprópriaLuamanter-se-iaemmovimentorectilíneouni-forme(não-acelerado).Istoé,aprópriaLuamanteriaoseumovimentoinercial,oqualéconstantementeredireccionadopelaforçacentrífugaqueamassadaTerraexercesobreela.E,assimsendo,nãosetornadifícilconstatarque,na

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62. Ora, tendo entrado em linha de conta com uma tal excepção (com a das condicionais universais cujas verdadespareçamservacuosas),Nagelpassaaformularmaisoumenosdo seguinte modo o segundo grande predicado que atribui aos universais nomológicos: uma condicional conta como universal nomológico, ou como lei da natureza, apenas se, para além de ex-pressar universalidade não-restrita, a classe de sujeitos que o seu antecedente especifica for preenchida por pelo menos um existente.

63.Seestesegundopredicadonãoseverificar (devidoasabermo-nosempresençadeumacondicionaluniversalcujaverdadeévacuosa),ousenãoforpossívelentraremlinhadeconta com ele (devido a não ser possível confirmá-lo), entãouma condicional que expresse universalidade não-restrita sódeveráserconsideradauniversalnomológicoseasuaverdadeforcomprovada indirectamentepor factosempíricosquecom-provem directamente a verdade sistematizada de universais nomológicos que a pressuponham ou a exijam.—Ou, então,seasuaverdade (adeuma tal condicional) fordedutível, forlogicamentederivável,dasverdadessistematizadasdecertosuniversaisnomológicos.

64. A possibilidade de uma condicional universal ser alvo deintegraçãonaesferasistémicadedoisoumaisuniversaisno-mológicosrevela-se,naverdade,factorpositivamentedecisivo,quando se trata de saber se também ela, condicional universal, deveráounãoserconsideradanaqualidadedeuniversalnomo-lógico.E istosobretudoquandoessamesmapossibilidadesetransformaemnecessidadeimperiosa,comoacontecesemprequeareferidaintegraçãoserevelavitalparaumadeterminadaesferasistémica.Ouseja,semprequenãointegrarumacondi-cional universal no sistema que lhe asseguraria o estatuto de universalnomológico(ousubtraí-laaumtalsistemaapósneleter sido integrada) implica suprimir a esse mesmo sistema a sua integridadeeasuavalidadeteóricas.

65.Éemvistadisso,queNagelocupaparteconsideráveldocapítuloqueaquiestáasersumarizadoeclarificadopondoemevidênciaasrelaçõesdecomplementaridadequeosenun-

verdade, a primeira das três leis newtonianas do movimento encontra (pare-ceencontrar)comprovaçãoindirectaviadacomprovaçãodirectaqueaórbitaelípticadaLuadá(equeasórbitaselípticasqueosplanetastraçamàvoltadoSoldão)daverdadedaleinewtonianadagravitaçãouniversal.

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ciadosqueformamumsistemadeleisdaNaturezaestabelecementresiporviadeacomprovaçãodirectaouindirectadeunsserevelarcomprovaçãoindirectaoudirectadeoutros.

66.Nãosetornapossível,porém,segui-loaquinospor-menores com que trata essa questão e outras que com elase relacionam. Assim sendo, resta apenas, para praticamente terminarapresentesecção,pôremevidênciaqualéoterceirogranderequisitoqueopróprioNagel identificacomonecessá-rio para que uma condicional universal possa ser considerada universalnomológico.Ouseja(éamesmacoisa),paraquesepossaconsiderarqueumacondicionalexpressauniversalidadenómica.

67.Comoseviuatrás(naanteriorentrada58.),Nagelpõeemevidênciaqueumacondicionalqueexpresseuniversalidadecondicionada pelo lado (do número limitado) dos sujeitos (que oantecedenteespecificar)sópoderáserconsideradauniversalnomológicose,concomitantementecomisso,expressaruniver-salidade espacial e temporalmente não-restrita pelo lado dospredicados.

68.Comonãopoderiadeixardeser,Nageltambémcon-sidera,porém,oscasosemque,paraalémdeexpressaruni-versalidadeespacialetemporalmentenão-restritapeloladodospredicados,acondicionalexpressauniversalidadenão-restritaou incondicionada pelo lado dos sujeitos. Ou seja, melhor dizen-do,peloladodonúmerodeexistentesqueemtodosostempose todos os lugares possam preencher empiricamente a classe desujeitosqueoantecedenteespecifica.

69.Trata-seagora,comosepercebe,decondicionaisuni-versaisqueassumamformulaçãológicaanálogaaesta:"Paraqualquer X, se X forCobre,entãoX expandir-se-á se for sufi-cientemente aquecido" — sendo que acontece aqui, sem dúvi-da,queoantecedentenãoimpõequaisquerrestriçõesnoquerespeita ao número de instanciações da espécie "Cobre" quepossam assumir o lugar de X,equeoconsequentenãoimpõesquaisquerrestriçõesespaço-temporaisàocorrênciadopredica-do(expansãoemconsequênciadesuficienteaquecimento).

70.Orabem,oterceirogranderequisitoquefoireferidoatrás (naanteriorentrada66.)éeste:odese terdeverificar,para que uma tal condicional possa assumir o estatuto de uni-versalnomológico,que não seja possível considerar que a tota-

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lidade dos existentes que do passado ao presente hão preenchido empiricamente a classe de sujeitos (que o antecedente especifica) esgota o número de existentes passíveis de actualizar essa mesma classe:—porexemplo,quenãosejapossívelconsiderarqueatotalidadedosexistentesquedopassadoaopresentehãosidocobrecoincidacomatotalidadedosexistentesquealgumavezhajam sido, sejam ou possam vir a ser considerados cobre.

71. Como se torna mais ou menos evidente, este predica-do sine qua nondecorrededoisfactoresimportantes.

72.Umprimeirofactorprende-secomacircunstânciadeanomicidadedeumuniversalnomológicodependerdeestesedemarcardecertosuniversaisacidentaisporviadenãoexpres-saruniversalidadequeserestrinjaaumaclasseexplicitamentefinita (e,por isso, fechada) de sujeitos — como acontece, por exemplo,comouniversalacidental"ParaqualquerX, se XforParafuso do actual carro de Smith,entãoXserá(parafuso)En-ferrujado", cujo antecedente especifica uma classe de entes(todososparafusosdoactualcarrodeSmith)queserevelamàpartidareduzidosaumnúmerorelativamentepequeno(e jánão só a umnúmero finito).Ou seja, cujo antecedente espe-cificaumaclassedeentes(todososparafusosdoactualcarrodeSmith)que,porviadisso,serevelamàpartidapassíveisdeserexaminadosumaum,comvistaaconfirmarse,naverdade,todoselesexibem,ounão,opredicadoqueoconsequentees-pecifica(serenferrujado).

73.Osegundofactorprende-secomisto:comofactodeumadasprincipaisfunçõesdeumuniversalnomológicoserfa-cultarprediçõesqueencontremfundamentonoelo(entresujei-toepredicado)aqueelemesmo,universalnomológico,aduzauniversalidadenómica—oqualéfactoquenãopoderádeixardeexcluirdacategoria"universalnomológico"todaequalquercondicionalquenãoestendaformalmenteaofuturolongínquo,desdelogo,auniversalidadequeaconteçapredicarformalmen-te desta ou daquela classe de entes.

74.Chagadosaqui, facilmentesepercebequena reali-dadeaconteceaquiloqueaprincípioseafirmou.20 Ou seja, que, consciente das dúvidas que o cepticismo deHume há lança-do sobre o conceito de "necessidade", Nagel envida todos os

20Veja-se,atrás,anotaderodapé6.destasecção.

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esforçosparaestabeleceracategoria"universaisnomológicos"(e,porconseguinte,acategoria "universalidadenómica")semsecomprometercomoconceitode"universalidadenecessária".Isto é, sem se comprometer ou com o conceito de "universalida-delogicamentenecessária"oucomoconceitode"universalida-deontologicamentenecessária".

75.Aliás, tantoéassim, que, a certaaltura, elenão secoíbedeargumentarqueaspremissasdequeumacondicionaluniversalnomológicapossaserdeduzida(possaserlogicamen-te derivada) se revelampassíveis de ser substituídas por umprincípiodeinferênciaempírica.

76.Paraquesepossaperceberoqueistosignifica,con-sidere-se a seguinte condicional universal nomológica: "Paracada X, se XforCobre,entãoX serábom condutor eléctrico".

77. Esta condicional pode ser deduzida (ou logicamente concluída)doseguintemodo:(A)Todasassubstânciasquecon-têmelectrõeslivressãobonscondutoreseléctricos;(B)Todoocobrecontémelectrõeslivres;(C)Todoocobreébomcondutoreléctrico.21Todavia,asegundapremissa(B)desteraciocínioearespectivaconclusão(C)sópoderãoserconsideradaslogica-menteverdadeirassesepartirdoprincípiodeque"contémelec-trõeslivres"épredicadoessencialousine qua non do sujeito in abstracto"Cobre".E,noentanto,issonemsemprefoipossível,uma vez que o conhecimento de que o cobre é um bom condutor eléctrico precedeu o conhecimento de que a causa desse seu atributoéofactodeconterelectrõeslivres.

78. Ora, antes de se ter sabido isso, a universalidade que aquelamesmacondicionalexpressanãopoderiatersidoconsi-deradalogicamentenecessária,massimuniversalidadenómica(ou,então,ontologicamentenecessária)inferidaempiricamente

21"Electrõeslivres"sãoaquelesqueorbitamonúcleodosátomosmaisperifericamentedoqueosrestanteselectrões.Ouseja,sãooselectrõesquesesituamnachamada"camadadevalência".Paracadaátomodecobre,porexemplo,verifica-seapresençadeumelectrãolivre.Numfiodessemesmometal, num fio de cobre, os vários electrões livresmantêm-se independen-tesdosrespectivosnúcleosatómicosapontodenãoserpossíveldistinguiraqueátomoespecíficopertencecadaumdeles.Emcondiçõesnormais,taiselectrõesmovimentam-se à volta dos diversos átomos em rotas aleatórias.Porém,semprequeumfiodecobreéligado,porexemplo,aosdoisterminaisdeumabateria,osrespectivoselectrõeslivresformamumfluxocontínuo(uma"correnteeléctrica")aolongodetodaasuaextensão(nadirecçãoquepartedo pólo negativo e chega ao pólo positivo), assim actualizando nele a suapotencial qualidade de "bom condutor".

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via do princípio de que todo o cobre até então conhecido serevelara,semexcepção,bomcondutoreléctrico.

79. Que relação tem isto com o argumento de Nagel?Bom,temarelaçãoqueresultadeoargumentodeNagelser,precisamente,oseguinte:odeque,nãoobstanteoraserpossí-veldeduziraquelacondicionaluniversalnomológicadaspremis-sas(A)e(B),sepoderácontinuaraderivaroseuconsequente("entãoX serábom condutor eléctrico")tãosomentedoseuan-tecedente ("se XforCobre"). Ou seja, melhor dizendo, tomando porfundamentodauniversalidadeespecíficaqueoseuconse-quente retira do seu antecedente tão-somente a nomicidadequesedeixainferirdofactoempíricodetodoequalquercobresempre se ter revelado bom condutor eléctrico.

80.Agora,importa,paraterminarestasecção,formularaseguintequestão:Seráque,aoescreveraspalavrasquevêmde ser sumarizadas, Nagel manteve em mente que a sua ten-tativadedefinirospredicadosessenciaisdosuniversaisnomo-lógicossemlevaremlinhadecontaoconceitodenecessidade lógica (comrespeitoaosseuspossíveisconteúdosempíricos)—queessasuatentativaseencontra,elamesma,formalmen-te determinada pela necessidade lógica de pensar o conceito de "universalidade nómica" como unidade formal dos predicadosqueanalítica ou sinteticamente22 o distinguem do conceito de "universalidade acidental"?

22Umaproposiçãoanalíticacaracteriza-sepor,nela,oconceitodopre-dicadoseencontrarlogicamentecontidonoconceitodosujeito.Porexemplo,aproposição"Todosostriângulostêmtrêslados"éumaproposiçãoanalítica,dadoqueopredicadoqueexplicita,opredicado"trêslados",seencontralogi-camentecontidonoconceitodosujeito:oconceitode"triângulo".Inversamen-te,umaproposiçãosintéticacaracteriza-sepor,nela,oconceitodopredicadonãoseencontrarlogicamentecontidonoconceitodosujeito.Porexemplo,aproposição"Todosostriângulossãobonitos"éumaproposiçãosintética,dadoqueopredicadoqueaduzaosujeito,opredicado"bonito",nãoseencontralogicamentecontidonoconceitodosujeito:oconceitode"triângulo".

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XI. Relações entre ciência e filosofia: episteme como conhecimento científico-filosófico

1.Asrelaçõesquehojesepoderáencontrarentreaciên-cia(nosentidorestritodotermo)eafilosofiaserãosempredeordemdiversae,devidoàsuacomplexidade,difíceisdeanali-sar.Assimsendo,ocurtoescopodapresentesecçãojamaispo-deriapermitirsequerenumerá-lasecorrelacioná-lasemtermosconcisos,mesmoquesedeixassemdetectarfacilmente.

2.Nãoobstanteisso,importaincorporarnestasnotasunspoucosapontamentosacercadasrelaçõesespecíficasentreci-ênciaefilosofiaquealgumasdasquestõesqueatéaquiforamtratadassugeremoupõememevidência.

3.Ao começarmos a retomar essasmesmas questões,impõe-se,porém,nãodescurarumaspectoimportante:odeofazermosdemodoa irproporcionandoumaideiadaquilocomqueseestáaentraremlinhadecontaaofalarde"filosofia".Eistopordoismotivos:porumlado,porquenãopoderáfazersen-tidoestabelecerrelaçõesentredoisobjectos sem, pelo menos, osirdandoaconheceràmedidaemquesefazissomesmo.Poroutrolado,porquenãosetornaviávelfazeraqui,comrelaçãoaoconceitode"filosofia",nemsequerdemodomuitomaissumárioeredutor,aquiloqueatrásseháfeitocomrelaçãoaoconceitode "ciência".

4.Poisbem,comvistaapodermoscomeçararelacionarosconceitosde "ciência"ede "filosofia"e,aomesmo tempo,adquirirumaideia(aindaquepálida)daquilocomqueseestáaentraremlinhadecontaaofalarde"filosofia",consideremosemprimeirolugaralgoquefoiditoatrás(naentrada25.dasecçãoV). Em concreto, que o conceito de "conhecimento rigoroso" ou de "ciência" adquire o seu mais privilegiado e generalizado sen-tido de acordo, sobretudo, com o modo como, num determinado momento histórico, o homem concebe o seu posicionamentofaceaomundoimanenteeaomundotranscendente,bemcomo,antesdissomesmo,deacordocomapredisposiçãodoprópriohomemparaabraçarmaioritariamenteasuadimensãoidealouasuadimensãosensorial.

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5.Éque,naverdade,ohomemé,pornatureza,discórdiaentreasuadimensãoidealeasuadimensãosensorial,comose torna evidente a partir do momento em que se percebe que cadaumadessasduasdimensõesoconfrontacomnecessida-deseexigênciasdiametralmenteopostas.Ouseja,apartirdomomentoemquesepercebe isto:que,enquantoadimensãosensorialoconfrontacomanecessidadeeaexigênciadeentrarpassivamente em linha de conta com a diversidade do mundo real(porexemplo,comadiversidadedosparticularessensíveisquesãosubsumidospelaespécie"Homem",oJoão,aManuela,oFrancisco,etc.),adimensãoidealoconfrontacomanecessi-dadeeaexigênciadeentraremlinhadecontaactivamentenãosócomaunidadeconceptualeauniversalidadedecadaumadas séries dos entes e eventos que constituem tal diversidade (porexemplo,comaunidadeeauniversalidadeconceptuaisdasérie "Homem"), mas também com a unidade última de todas as unidades conceptuais.1

6. Do facto que se acaba de considerar (do facto de ohomemser,pornatureza,discórdiaentreasuadimensãoidealeasuadimensãosensorial), resulta,emprimeira instância,oseguinte:que,emcertosmomentoshistóricos,ele,homem,se furtaàdualidadequeoconstitui(adualidadeidealidade/realida-de)porviadeabraçarmaioritariamenteasuadimensãoidealoudesatisfazermaioritariamenteosinteressesdestaúltima;que,emoutrosmomentoshistóricos,elese furtaàquelamesmadua-lidadeporviade,pelocontrário,abraçarmaioritariamenteasuadimensão sensorial ou de satisfazermaioritariamente os inte-ressesdestaúltima;que,emoutrosmomentoshistóricos,ainda,ele abraça tal dualidade, coma consequência de se esforçarporreconciliarosinteresseseasexigênciasdasuaidealidadecomosinteresseseasexigênciasdasuasensorialidade,evice-versa.Ouseja,comaconsequênciadeseesforçarportransfor-maradiscórdiaemquenaturalmenteconsiste(adiscórdiaentreidealidade e realidade) em discordia-concors.

7. Em qualquer uma de tais três circunstâncias, o homem caracteriza-se pelo seu posicionamento epistemológico. Ouseja, para utilizar umametáfora útil, caracteriza-se pela pers-pectivaformalquepassaadeterminartodooseuconhecimento

1Vejam-se,adiante,asentradas27–28destasecção.

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em resultado de ele mesmo, homem, se debruçar:oumaiorita-riamente de uma ou de outra das duas grandes janelas por que pode olhar e conhecer o mundo em que se insere e a si mesmo, ou equitativamente por uma e por outra de tais duas janelas.

8. Quando se debruça maioritariamente da janela da ide-alidade ou do mundo ideal, o homem devém hiper-idealista.Quanto,pelocontrário,se debruça maioritariamente da janela dasensorialidadeoudomundoreal,devémelehiper-realista.Quando se debruça equitativamente de uma e de outra de tais janelas, devém ele idealista e realista em proporções tenden-cialmente idênticas.

9.Querelaçãotemtudoistocomoconceitode"filosofia"?Tem,emprimeiraestância,arelaçãoqueresultadoseguinte:detodaafilosofia,todooconhecimentofilosófico,ser,pornaturezaconhecimentoquesedeixaalcançarapenasemduasdastrêscircunstâncias que vêm de ser consideradas. Isto é, ser conhe-cimentoquesedeixaalcançarapenasquandoohomemdevémhiper-idealista(e,porconseguinte,filosofasementrarsignifica-tivamenteemlinhadecontacomadiversidadesensíveloureal)ou idealista-realista (e, por conseguinte, filosofa entrando emlinhadeconta tantocomadiversidadesensívelou realcomocomaunidadeconceptualdecadaumadassériesempíricasde tal diversidade e com a unidade última de todas e quaisquer unidades conceptuais).

10.Agora, não obstante o homem hiper-idealista poderconhecer filosofando e o homem hiper-realista não poder co-nhecerporessemodo,umavezqueconhecerfilosofandoé,pornatureza, conhecer ou pela janela da idealidade ou por esta e pela janela darealidade(nuncatão-somentepelajanela da rea-lidadeoudadiversidadeeheterogeneidadesensível)—agora,nãoobstanteisso,oprópriohomemhiper-idealistaénãomenosmeio-homem,porassimdizer,doqueohomem-realista.E,as-simsendo,sósetornapossívelalcançaroconceitode"filosofia"nasuaunidadeformalsesechegar até ele pelo ponto de vista abrangente da totalidade do Homem. Ou seja, pelo ponto de vistadoconhecimentoespecíficoemqueaprópriafilosofiacon-siste quando é vista como conhecimento que é alcançado pelo homemidealista-realista.

11.Relacione-seaquiloquetemvindoaserexpostocomumadasdiferençasdeterminantesqueatrásconsiderámos(so-

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bretudo nas secçõesVII. eVIII). Em concreto, coma grandediferençaqueseparaoconhecimentocomum(oconhecimen-todosensocomum)doconhecimentocientífico(oudoespíritocientífico):adiferençaquedecorrede,emoposiçãoaosegundo(ocientífico),oprimeiro(ocomum)carecerdegenuínofunda-mento objectivo e de sistematicidade ou organicidade.

12.Osensocomum, fez-nosverNagel,possuiconheci-mento das regularidades ou invariâncias com que o mundo real ouobjectivonosconfrontanodia-a-dia.Contudo, tal conheci-mentorevela-seassazimprecisoeincompleto,devido,precisa-mente,àsuaausênciadefundamentoobjectivoedesistemati-zação.Deparamoscomoopostodisso,semprequepassamosaconsideraroconhecimentocientífico.

13.Ora, se se quiser percebermelhor as razões dessadiferençadeterminante,podemosbemilustrá-lasdomodoquese segue.

14. O senso comum possui conhecimento impreciso das regularidades da Natureza porque, ao passar de uma para outra ocorrênciadeummesmofenómeno(deumaparaoutrasdasin-findasocorrênciasqueconstituemasérieempíricadeumdeter-minadofenómeno),nãopodeevitarconstatarassemelhançascom que se depara em cada uma delas (ocorrências) a par de váriasdissemelhanças.Ouseja,porque(sesepensarnasérieempíricadeumdeterminadofenómenocomosefosseumali-nha tracejadaoucontinuamentedescontínua)nãopodeevitarligarmentalmenteentresi cadaumdos traçosseparadosemquecadaocorrênciadeummesmo fenómenofigurativamenteconsiste.Contudo,continuaeleaconsiderarasériedeumtalfe-nómenoapenasemtermosdasuadescontínuadiversidadereal— em termos apenas de cada uma das ocorrências particulares e concretas que nela entram —, ao invés de também em termos dasuaunidadeformale,porconseguinte,dasuauniversalidadee necessidade.

15. O espírito científico, é certo, assume, num primeiromomento, um posicionamento idêntico. Contudo, logo mergu-lha ele em busca da unidade objectiva da homogeneidade das infindasedescontínuasocorrênciasquepossamconstituiruma

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qualquersérieempírica.2 Isto é, logo mergulhaelenuminevitá-vel processoexperimental de inferência indutiva.3E, tendo-seapossadodessaunidadeporviadaobservaçãoedaexperimen-tação, logo aergue ele, conceptualmente, até ao mundo ide-al — por conseguinte, acimadoinfinitonúmerodeocorrênciasempíricasquepoderãoviraestenderasérienofuturo.4Daíemdiante,talunidadeconceptualdesempenharáparaeleafunçãodeuniversalnomológicooudeleidaNatureza,sendoque,emresultadodisso,partirádelacom rumo inverso ao que a ela o háconduzido.Significaisto,partirádeladedutivamente(e,porconseguinte,logicamente)paracadanovaocorrênciaempíricadofenómenoaquepossarespeitar,bemcomoparaconclusõescomrelaçãoaoutrassériesdefenómenos.

16. Contrariamente ao senso comum, que se caracteriza poroseuposicionamentoepistemológicoserohiper-realista,oespíritocientificoconsidera,pois,osparticularesouosenteseeventos reais (as ocorrências que constituem uma determinada sériedefenómenosoudeeventos)àluzdosseusrespectivosuniversais ou da sua respectiva unidade ideal, bem como, inver-samente,consideraosuniversais(osexemplaresideais)à luzdosseusrespectivosparticulares(osexemplosreais).

17.Orabem,surgeagoraumaquestãofundamental.Éaseguinte:Dever-se-áretirardissoaconclusãodequeoconheci-mentocientífico(osaberdoespíritocientífico)emnadadivergedoconhecimentofilosófico(osaberdoespíritofilosófico)?Res-posta:Demodoalgum!Eistoporduasrazõesdeterminantes.

18. Em primeiro lugar, porque, ao construir indutivamen-teumdeterminadouniversal,oespíritocientíficoignora(deixadefora)todasequaisquerheterogeneidadesmateriaisquenãocontradigamouinvalidemahomogeneidadeformaldeumade-terminadasérieempíricadeentesoudeeventos(porexemplo,as heterogeneidades "mais vermelha" ou "menos vermelha",

2Pense-se em tal unidade objectiva, figurativamente, em termos dovérticedeumtriânguloisóscelesinvertido(comabaseparacima),enacorres-pondentesérieempíricaemtermosdabasedeumtaltriângulo.

3Pense-senumtalprocesso,figurativamente,emtermosdecadaumdosladosdotriânguloqueanotaderodapéqueprecedeestarefere.

4Pense-senaascensão teóricaqueestaspalavras tornam implícitacomo transposição do triângulo invertido que a penúltima nota de rodapé re-fere,demodoaqueovérticequeantesseimaginaraem baixo passe a ser imaginado em cima.

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"maior"ou"menor","comperfumemaisintenso"ou"comperfu-memenosintenso",etc.,naquiloqueàclasse"Rosa"dizrespei-to). Ou seja, porque, ao construir indutivamente um determinado universal, oespírito científico tememvista tão-somentenotar e fixar idealmente as invariâncias que (recorrentemente e sem excepção)sãoatributosdeumadeterminadasérieempíricadeentes ou de eventos. O mesmo é dizer, porque, ao construir in-dutivamenteumdeterminadouniversal, ele, espírito científico,apenas tem em vista notar e fixar idealmente o ter-de-ser de umadeterminadasérieouclassedeentesoudeeventos:ane-cessidaderealouontológicadeumdeterminadoenteoueventoacontecer deste ou daquele modo, com estes ou aqueles atribu-tos, sempre que acontecer.

19.Emprimeiro lugar,pois(pararetomaro iníciodaan-terior entrada), porque, passando agora ao segundo termo da comparação, o espírito filosófico— porque o próprio espíritofilosóficosuperaoespíritocientíficonoseuponto de chegada indutiva ao universal e no seu ponto de partida dedutiva des-teparaoscorrespondentesparticularesouexemplos.Ouseja,porque,apardeseobrigaraserconhecimentocientíficonaquiloque respeita ao ter-de-ser objectivo dos entes e dos eventos em geral(conhecimentotãoqualitativamenteequantitativamenteri-gorosoquantoodoespíritocientífico),oconhecimentofilosófico(naverdade,oconhecimentocientífico-filosófico)seobrigaaserissomesmo(filosófico)noquerespeitaaodever-ser universal (mascontingente)dosenteseeventosqueohomemépassíveldeproduziroudecontrolar—acomeçarcomelemesmo,homem!

20.Oqueistosignificaéoseguinte:que,contrariamen-teaoespíritocientífico,oespíritofilosóficoolhaosparticulares(pelomenos, osparticularesqueestáaoseualcancecontro-laroumodificar)àluzdorespectivouniversalnãoapenaspelaperspectiva do ter-de-serdosprópriosparticulares(quesempredetermina o ser real destes últimos), mas também pela perspec-tiva do seu dever-ser ou da sua perfeição (no sentido de com-pletude). O mesmo é dizer, mas também pela perspectiva da excelência(estética,moraloufuncional)queaheterogeneida-de material destes ou daqueles membros de uma determinada sérieempírica(deentesoueventos)provaseralcançável (em grausdiferentes)portodososrestantesmembros.

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21.Umexemploconcreto.Ummarceneiroproficiente,ummarceneiro que se preocupe com conhecer com rigor qual é o ter-de-serqueasleisdaFísicauniversalmenteimpõemaosmó-veisqueconstróiequaissãoosmateriais,osmeioseosmé-todosqueterádeutilizarparaqueesseter-de-sernãosejaporeledescurado(paraque,porexemplo,nãoproduzaumobjectoque, nãoobstante ter a formade cadeira, não seja capazdecumprirafunçãodecadeira)—umtalmarceneirorevelar-se-á,semdúvida,imbuídodeespíritocientífico.Porém,se,apardese preocupar com isso, com o ter-de-ser que universalmente determinaapossibilidadeouimpossibilidadedeosseusmóveisviremacumprirasuafuncionalidade,nãosepreocuparcomco-nhecereconcretizaraexcelênciamaterialeformalqueaclasse"Cadeira",porexemplo,universalmenteimpõe a toda e qualquer cadeira (ainda que, agora, de modo contingente) — porém, se não se preocupar com conhecer e concretizar tal excelência,essemesmomarceneiro jamaispoderá revelar-se imbuídodeespíritofilosófico.5

22.Trata-se,éclaro,deummeroexemplo.Outromelhorseria, sem dúvida aquele que A República (Politeia)dePlatãonosoferece,porviadenosdaraverquão,nassuasrecorrentesformas, o ser histórico dapolis diverge do seu dever-ser for-mal.— Melhor e, ao mesmo tempo, mais elucidativo, uma vez que demonstra mais completamente que a diferença que seacaba de considerar (na anterior entrada 20.) se encontra de factoentreasquemaissãoresponsáveisporaciênciaexcluirdoseuforo,eafilosofianão,determinadassériesdefenóme-nos.Éque,paranãovoltarafalardemarcenariaouenveredar,comPlatão,peloscaminhosdapolítica, que ciência (no sentido restritodotermo)seporia,porexemplo,aestudareaexplicitarsimultaneamente o ser e o dever-ser(ideais)dafilosofia?Éque,inversamente,nãoéprecisamenteissoqueaFilosofiadaCiên-ciafazcomrelaçãoàprópriaciência?

5Provavelmente,apossibilidadedeummarceneiroserevelarimbuídodeespírito filosófico revelar-se-áestranha a quem esteja habituado apenas ao entendimento comum (melhor dizendo, ao desentendimento comum) de "filosofia"!Porém,averdadeéque,sejaounãomarceneiro, todoohomemqueverdadeiramentetiverfeitoseuoposicionamentoepistemológicoidealis-ta-realista—atotalidadeepistemológica"Homem"—nãopoderádeixardeserevelarimbuídodessemesmoespírito(apar,éclaro,deimbuídodoespíritocientífico).

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23.Acabámosdeconsideraraprimeiradasduasgrandesrazõesporquedemodoalgumsepoderáafirmar(emvistadasconclusõesqueaanteriorentrada16. regista)queoconheci-mentocientífico(osaberdoespíritocientífico)emnadadivergedoconhecimentofilosófico(osaberdoespíritofilosófico).Ase-gundadessasduasrazõeséaqueaseguirseexplicita.

24.Oespíritocientífico,vimo-lojá(precisamentenaan-terior entrada 16.), considera os particulares reais (os entes ou eventosqueconstituemumadeterminadasérieempírica)àluzdos seus respectivos universais ou da sua respectiva unidade ideal.Paraalémdisso,ecomotambémjáfoipostoemevidêncialámaisparatrás(sobretudonasecçãoIX.),ele(oespíritocien-tífico)nãosósesocorredosuniversaisnaqualidadedeleisdaNatureza, como também os correlaciona e sistematiza, assim se alçando da mera diversidade dos universais (das unidades ide-ais)aqueNagelchama"leisexperimentais"àsunidadesmais elevadasqueconstituemteoriasou"leisteóricas".Ouseja,as-sim se elevando a unidades mais elevadas que estabelecem relações formais, cadaumadelas, entre umcerto númerodeuniversaisoude"leisexperimentais".

25. Como se torna evidente, esse processo de ascensão conceptualoudeunificaçãocadavezmais compreensiva im-plica a prioriaIdeiadeumlimiteúltimoeinsuperável.Ouseja,aideiadetotalidade.Eaquisedepara,afinal,comasegundagrandediferençaqueestamosatentarcompreender.

26.Éque,comoseviujáváriasvezes,ohomemé,pornatureza, tanto idealidade como realidade ou sensorialidade.

27.Asuadimensãoidealimpele-oparaoinfinitoeoabso-luto,umavezqueopensamentonãoconsegueencontrarlimiteespacialoutemporalparaalémdoqualsenãovejacompelidoaprosseguir.6 Inversamente, a sua componente real ou sensorial impele-o para o finito e o relativo, uma vez que se nãopodeapreenderviadossentidosnadaquenãosejaumacoisaeoutra(finitoerelativo).Asuadimensãoidealdetermina-oapartirdomundointerior.Inversamente,asuadimensãorealearealidade

6Provadissoé,porexemplo,oseguinte:Quem,aoreduzirumátomo,empensamento,apartículascadavezmaispequenas,conseguiráchegar a umapartículaqueselheafigureindivisível?Quem,aoviajaratéaosconfinsdouniversoempensamento,conseguiráchegar a um limite para além do qual senãovejacompelidoacontinuaraviajar?

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objectivadequefazpartedeterminam-noapartirdoexterior.E,assim sendo — é isto, que importa perceber — chega ele, por força(quandosefazHomem ou homem completo),nãoàideiade totalidade sem mais,massimàIdeiadetotalidade última e absolutamente incondicionadaou(éamesmacoisa)àIdeiadeunidade da totalidade (relativamente incondicionada) da sua vida interior (a Ideia de eu ou de alma) e da totalidade (relativamente incondicionada) do mundo exterior (a Ideia de Natureza).7

28. Ora, como se torna evidente, essa Ideia de Totalidade oudeUnidadeúltimaeinsuperáveléaIdeiadeDeus:aIdeiadeoriginador indeterminado de todas e quaisquer determinações (quer as que constituem o eu,querasconstituemaNatureza):aIdeia da circunferênciaqueépressupostoformalnecessáriodetodo e qualquer ponto isoladodanossaexistênciafísicaemen-tal e de todo e qualquer pontodaexistênciafísicadaNatureza,bem como do nosso conhecimento de um e de outro — uma vez quesenãopodeconheceroantes, o agora e o depois como pontos que se sucedem uns aos outros sem, com isso, pensar a totalidade da linha ou da circunferênciadequeterãodeserpontos.

29. Que relação tem isto com o que atrás (na anteriorentrada25.)seestavaaconsiderar?Estávamosaconsiderarque o processo de ascensão conceptualoudeunificaçãocadavezmais compreensiva em que o conhecimento científico setraduz — que esse processo implica a priori a Ideia de um limite últimoeinsuperáveloudetotalidade.Poisbem,estamos,agora,emposiçãodeperceberque,sobretudonocasodasCiênciasNaturais,essaIdeiadetotalidadeequivaletão-somenteàIdeiadeNaturezaoudemundoimanente:àIdeiadocírculo objectivo cujointeriorasCiênciasNaturais(sobretudo,masnãoexclusi-vamente, estas) pretendem mapear colectivamente, de modo a sistematizaremeunificaremascoordenadas que universalmen-teodeterminamea,poressemodo,sefazeremsenhorasdoverdadeiroSistemadoMundo(parautilizaro títulodo terceirolivro, De mundi systemata, do Pricipia de Newton).

30. O adjectivo verdadeiroéaquiimportante,poisexpres-sabemque,emgeral,asciênciastendemaconceberoSistemadoMundonãocomopercepçãohumanadasleisquedetermi-nam o mundo ou como constructo parcialmente subjectivo, mas

7Aesterespeito,veja-se:ImmanuelKant.Crítica da Razão Pura (Kritik der reinen Vernunft),B390–B396.

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sim como matriz do ter-de-ser que momento a momento con-figura objectivamente a recorrência ou a re-presente-ação domundo imanente.

31.Ora,contrariamenteaoespíritocientífico,oespíritofi-losófico(melhordizendo,oespíritocientífico-filosófico)nãosedetém no limite último, mas relativamente incondicionado, da IdeiadeNatureza.Pelocontrário,nãosóseesforçapormape-ar de igual modo as coordenadas que universalmente possam determinar o círculo subjectivo em que o mundo ideal (o mundo intersubjectivo do eu) consiste, mas também se alça,aofazê-lo,atéàunidadeúltimaedetodoinsuperávelemque,doponto de vista do software mental do homem, a totalidade relativamente incondicionadadasdeterminaçõesqueconstituemaNaturezaea totalidade relativamente incondicionadasdasdeterminaçõesque constituem o euterão,porforça,deradicar.

32.Sesequiser,istosignificasobretudooseguinte:que,aoinvésdoespíritocientífico,oespíritofilosóficoarrasta para o interior do eu,einterpretaàluzdasnecessidadeeexigênciasdesteúltimo,oconhecimentocientíficodomundoobjectivo;oconhecimentocientíficodaNaturezaoudonão-eu.

33. A actividade autoconsciente do eu é, por natureza, o fundamento da identidade de todo e qualquer conhecimento,sejaesteconhecimentodopróprioeu ou conhecimento do não-eu, e, assim sendo, o não-eu,omundoexterioreobjectivo,aNatureza,confronta-a,emprimeira instância,naqualidadedenão-identidade.

34.Ora,oespíritocientíficocaracteriza-sesobretudoporignorar (ou por ocultardesimesmo)ovínculodeterminantequetodooconhecimentoestabelece,por força,entre identidadeenão-identidade.Istoé,oespíritocientíficocaracteriza-sesobre-tudoporpartirdoprincípiodequeasuaprincipaltarefaéconhe-ceraNaturezanaqualidadedeobjectooudenão-identidadequesubsistedetodoàpartedaidentidadedoeu ou do conhecedor.8

8Sobretudofaceàquiloque(napróximasecção)iremosverHeideggerpôr em evidência no seu escrito "Die Zeit des Weltbildes" ("O Tempo da Ima-gemdoMundo"),importatornarclaroaquiqueoespíritocientíficoparte(ilu-soriamente)doprincípioquevemdeserespecificado—doprincípiodequeasuaprincipaltarefaéconheceraNaturezanaqualidadedeobjectooudenão-identidadequesubsistedetodoàpartedaidentidadedoeu ou do conhecedor —mesmoquandoacontecedeterminarsubjectivamenteedeantemãoaquilo emqueomundoobjectivoterádeconsistirquarepresentação(Vorstellung), parapodersercientificamentereconhecidoeconhecidocomotal.

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35.Pelocontrário,oespíritofilosóficocaracteriza-se,mes-moquandodefendeumateoriadoconhecimentodecarizempi-rista,porseesforçarporacolher,dealgummodo,anão-identi-dade do não-eu ou da Natureza no interior da circunferência do mundo ideal ou da identidade do eu.Istoé,caracteriza-seporseesforçarporreconciliarosdoispólosantitéticosdadualidadeidentidade/não-identidade (mundo subjectivo/mundo objectivo)no seio da síntese formal emque a identidade da identidadeedanão-identidadeconsiste.—Ouseja(éamesmacoisa),oespíritofilosóficocaracteriza-seporseesforçarporconhecerosmundossubjectivoeobjectivonãoapenasdopontodevistadaalteridade de cada um deles, mas também do ponto de vista últi-moeinsuperáveldapressupostaidentidadeoriginaldeambos.

36. Como se percebe, tudo isto nos devolve a uma cir-cunstânciadequefalámoslogonoinício(nasecçãoII).Emcon-creto,àcircunstânciadetodooconhecimentohumanoexigiraconsciência da consciência de que se conhece, seja aquilo que se conhece (o objecto)(i)pensamento(produçãoouposição da mente,idealidade)ou(ii)sensação(dado objectivo, realidade).

37. Assim acontece, na verdade. Quer isto dizer, acon-tece, na verdade, que todo o conhecimento humano implica a existênciado eu que conhece o objecto e do eu que conhece o eu que conhece o objecto (do eu que se conhece e que, por conseguinte, conhece que conhece). Porém, a mirada subjec-tiva que o eu lança sobre oobjecto intensifica-se— torna-secada vez mais compreensiva — na medida em que o eu-sujeito(o eu que conhece que conhece ou o meta-eu) se distancia do eu-objecto (o eu que apenas conhece o objecto).9

38.Ora,partindodaí,poder-se-áafirmarduascoisas.39.Porumlado,queoespíritocientíficosecaracterizapor

interrogar o objectoomaispossíveldopontodevistadosujeitoqueapenasconheceopróprioobjecto ou que apenas projec-

9Sesepartirdacircunstânciadeque"consciência"significaetimologi-camente con-scientia, bem como da circunstância de con-scientiaexpressarnãoapenasaideia"comconhecimento",mastambémaideia"con-conheci-mento",conhecimentosimultâneodeváriosobjectosoudeváriosatributosdeumsóobjecto,aquiloquevemdeserditosignificaoseguinte:queaunidade,confluênciaousimultaneidadequeoprefixocon-expressa(emcon-scientia) se adensa (se torna mais saturada) na medida em que o eu-sujeito(oeu que conhece que conhece) se distancia do eu-objecto (o eu que apenas conhece); na medida em que, por via de mais se distanciar do eu-objecto, o eu-sujeitomais con-conhece este último e o objecto que este último conhece.

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taasuaidentidadesobreanão-identidadedopróprioobjecto, enquanto,pelocontrário,oespíritofilosóficosecaracterizaporinterrogar o objecto tanto desse ponto de vista como do ponto de vistadometa-eu. Ou seja, tanto do ponto de vista da identidade do eu que conhece o mundo objectivo (e que, assim sendo, se confronta com a não-identidade dessemesmomundo, que odetermina),comodopontodevistadaidentidadeinsuperáveldometa-eu:daidentidadedaidentidade(doeu que apenas conhe-ce)edanão-identidade(domundoobjectivooudonão-eu).

40.Poroutro lado,que,assimsendo,oespíritocientífi-cosecaracterizaporformularrespostasàsuainterrogaçãodoobjectoeporsedeter:numprimeiro momento,naconfirmaçãoounão-confirmação(detaisrespostas)quepossareceberpas-sivamentedopróprioobjecto; num segundo momento, na cor-relaçãoesíntesedasconfirmaçõesqueassuasinterrogaçõespossamterrecebidodopróprioobjecto, de modo a ascender até àunidade(relativamenteincondicionada)dosistemadomundoobjectivo.—Enquanto,pelocontrário,oespíritofilosóficoseca-racterizapeloseguinte:por,tendochegadoaestesegundo mo-mento, avançar para ládele;paraainterrogaçãoeinterpretaçãodo sistemadomundoobjectivo à luz dopressuposto sistemado mundo subjectivo, de modo a ascenderàunidadeúltimaeinsuperávelde todooconhecimentohumano—àunidadedosistema (do sistema) do mundo objectivo e do (sistema do) mun-do subjectivo.

41.Traz-nostudoistoadoisaspectosimportantes.42. Um primeiro aspecto é o de que, em vista daquilo que

seacabadeconstatar,cabeàfilosofiaa imprescindível tarefadesistematizarosdiversossistemasqueasdiferentesciênciasconstroem, de modo a que, ao invés de permanecerem, por assim dizer, zonasparcialmentepreenchidaseunificadas,mastambém mais ou menos isoladas, do imenso puzzle com que a consciênciahumanaseconfrontaaoconsideraraexistênciaemgeral — de modo a que, ao invés disso, tais sistemas (os diver-sossistemasqueasdiferentesciênciasconstroem)devenhamomaispossívelpartesdeumtodognoseológicoquesedetermi-nemreciprocamenteequesedeixemdeterminarpelaunidade

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formalqueasarticuleentresi,assistematizee,poressemodo,as harmonize.10

43. Um segundo aspecto é o de que, como se depreende detudoquantohásidoditoatrás,osempreincompletoprocessodeconstruçãoe reconstruçãodeumtal todognoseológicosóse verificademododecisivo,naverdade,nasépocashistóricasemqueohomementraem linhadecontanãoapenascomainevitabilidadeempíricadoseuser,nãoapenas,deigualmodo,comaexplicaçãocientíficadoseuter-de-ser e do ter-de-ser do restante mundo objectivo, mas também com o imperativo moral e estético de concretizar o seu dever-ser: deseautoconstruirunidadeinsuperávelou,denovo,identidadedasuaidentidadeidealedanão-identidaderealdomundoobjectivo.Ouseja,mastambém com o imperativo moral e estético de acolher no seu próprioseiotantooespíritocientíficocomooespíritofilosófico,de modo a que o seu conhecimento possa ser conhecimento científico-filosóficooucompletaegenuínaepisteme.

44.Ora,aconcretizaçãododever-ser do homem (a con-cretizaçãodaascensão que conduz o homem ao Homem) impli-ca, como se torna evidente, entrar em linha de conta com a sa-tisfaçãodasexigênciastantodocorpo(oudamatéria)comodamente(oudoespírito).Ouseja,implica,emúltimaanálise,que,confrontadocomasuaingénitanecessidadedeinfinitudeedeabsoluto,oprópriohomemseinterpretefilosoficamente(etam-bém positivamente, no sentido de posição ou de Setzung) como microcosmo que exigeoseguinte:que,aonívelmacrocósmico,o sistema de coordenadas que universalmente determinam o mundoobjectivoeimanentecomomundorelativoeinfinitamen-tefinito(osistemadecoordenadasqueoespíritocientíficotantoalmeja conhecer) se revele, dealgummodo, expressão feno-

10Umtaltodognoseológico,edificou-oeaparou-o, sem dúvida, a men-temedieva:—àcusta,ça va sans dire,deoedificarinteressadamentesobreofundamentoideológicodaRevelaçãoedeexcluirdele,tesoura autoritária na mão, todas as pontas soltasquenãosesubjugassemaestaúltima.AhistóriaintelectualdaModernidadeésobretudoahistóriadalongademoliçãoedospersistentesescombrosdoautocontidoedifíciognoseológicodaIdadeMédia.AprópriaModernidadeprova,pois, recusar-sede todoacompreenderque,mais do que em demolir e em assentar novo bloco em cima de novo bloco (maisdoqueemseradopedreiro),asuagenuína(emuitomaisdifícil)missão é a de planear desinteressadamente (for its own sake) a nova unidade gno-seológicadosseusnovoseincomparavelmentemaisextensosmateriais (é a missão do arquitecto).

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menal de um avessotranscendenteou,sesepreferir,deumaqualquer realidade numenal.

45. É certo que, sobretudo a partir do criticismo kantiano (que fechouohomemnomundofenomenale imanente),bemcomo já antes, a partir do triunfo e do triunfalismo cada vezmaiores da nova ciência(aciêncianewtonianaepós-newtonia-na), o impulsometafísicodohomemseapequenouaopontode(quase) desaparecer.Écertoqueaíradica,apardeumconco-mitanteedesenfreadomaterialismocientífico,ohiper-realismoepistemológicoaquehojeseassistesempraticamentedarporisso.Tambémsãocertas,todavia,duasoutrascoisas.

46.Aprimeiracoisaéque,comooDemophelesdeScho-penhauer afirma, "Ohomeméumanimal metaphysicum; isto é,temumanecessidadeesmagadoramentefortedemetafísica"("Der Mensch ist ein animal metaphysicum, d.h. hat ein überwie-gendstarkesmetaphysischesBedürfniß").11

47. A segunda coisa é que, se acontece que o dogmatis-mofilosófico(queafirmaaverdadedequeo absoluto está ao alcance do homem)serevela,defacto,insustentável,tambémacontecequeoagnosticismofilosófico(queafirmaaverdadedeque o absoluto é insusceptível de ser conhecido)nãocontradiza necessidade de se considerar a Ideia de "Deus" ou de "Abso-luto" na qualidade de Ideia regulativa (para utilizar a terminologia deKant).Ouseja,naqualidadedeIdeiaque,emboranãosendopassíveldeserpreenchidaempiricamente(aocontráriodaquiloqueacontece,porexemplo, comoconceitoempírico "Livro"),nos fornece a regra ou o paradigma formal que se nos tornanecessáriomanter em vista ao sintetizar e sistematizar o nosso conhecimento em unidades cada vez mais genéricas e compre-ensivas. O mesmo é dizer (para, de novo, usar a terminologia de Kant),naqualidadedefocus imaginarius dos raios solares dis-persos do nosso conhecimento, bem como dos relâmpagos que as nossas angústias e as nossas ânsias existenciais formamcontraasbrumasdanossafinitudeedanossaimpotência.12

48.Éque,narealidade,nãosenostornapossíveldepararcom qualquer diversidade sem imediatamente depararmos com

11ArthurSchopenhauer.Parerga und Paralipomena, vol. II, cap. XV ("Über Religion"), § 174 ("Ein Dialog").

12Veja-se: ImmanuelKant.Crítica da Razão Pura (Kritik der reinen Vernunft), B 673.

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a necessidade de pensar a sua totalidade última. É que, assim sendo,nãosenostornapossíveldepararcomadiversidadeem-píricaemqueanossaexperiênciadomundoimanenteconsistesem imediatamente depararmos com a necessidade de pensar jánãosóatotalidadeextensiva desse anverso imanente,jánãosó,domesmomodo,atotalidadeextensiva do correspondente e inevitávelverso transcendente, mas também a unidade intensi-vamente últimaeinsuperável(datotalidade)detalanverso e (da totalidade) de tal verso.Negarqueassimseja—repare-se—énegar a impossibilidade de depararmos com o anverso de uma folhadepapelsemimediatamentedepararmoscomanecessi-dade de pensar o correspondente verso e, por conseguinte, a unidadeouaidentidadeinevitáveldeambos.

49.Emcadahomemdoespíritocientíficotout court depa-ra-se,pois,comummeio-homem:comum"Estevessemmetafí-sica",paracitaroPessoade"Tabacaria".Desprezaeleoespíritofilosófico,enquantoseafanaadescobrirosistemaracionalque,do ponto de vista do seu posicionamento programaticamente naturalista(imanentista),Razãoalgumahádeterminadoàmá-quina do universo. E, enquanto isso, espera pacientemente o homemdoespíritofilosófico:—pelomomentocerto:—paralheasseverarque,naverdade,"aciência temdese tornarfilosó-fica,senãoquiserdegenerare transformar-senumarapsódiade hipótesesad hoc";13 ou para interrogar as suas respostas científicase,partindodelas,responderdenovoàssuasprópriasquestõesfilosóficas.

50. De algummodo, a filosofia começa, como é costu-me dizer-se, onde a ciência termina. "Por que leis universaisenecessáriasseregeouniverso?"—interroga-se,debruçadosobreabancadalaboratorialeàesperadevoltarasercitado,o meio-homemdoespíritocientífico tout court, convencido de quenãopoderáhavermaisinterrogaçõesdoqueasdamenteedaacademiacientíficas."Queleisimperdoantesterãodere-ger, do ponto de vista da totalidade do conhecimento (humano), as leisuniversaisenecessáriasporqueouniversose rege?"—pergunta-seohomemdoespíritocientífico-filosófico.E,bai-xandoosCéusàTerraeelevandoaTerraaosCéusnamedidadasrespostasaqueoespíritocientíficovaichegando,alça-seà

13AlfredNorthWhitehead.Op. cit., p. 21.

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interrogaçãodacausaprimeira,dascausasfinaisúltimasedanaturezaíntimadoserabsoluto.—

51."Deparamo-noscomoSer;oquefazqueoSersejaoqueé,bemcomoquenãopossasernaausênciadeNão-Ser?""Ouniversorege-seporumaordemracional; teráessaordemumafinalidadeúltima?""Oanverso que a vida é implica neces-sariamente o versoqueamorteserá;serãoambasasduasfa-cesdorostodeJanodoAbsoluto?"

52.Questõessemrespostae,porisso,inúteis?Provavel-mente.Porém,nãomais inúteisdoqueassempreprovisóriasemaiscedooumaistardeultrapassadasverdadesdoespíritocientíficotout court.Avida,afinal,nãoexigemaisdoqueroupas,pedaçosdepãoepoucomais.OHomem,porém,exigeainútilesupérfluasuperaçãodoseusempreinútilesupérfluoconheci-mento.Quemouoquêoterádeterminado?Eisaquiaquestãocientífico-filosóficaque,porseramaisinsuperávele,comisso,amaisinútilesupérflua,maisexigeserinútilesuperfluamentesuperada.14

53.Aristótelesnãopoderá,pois,terestadoenganado,aopôremevidência (comosededuzdaquiloquesehávistonaentrada26.dasecçãoVI.)queaciência(nosentidogenérico do termo), o conhecimento demonstrativo ou a episteme apodeiti-ke,alcançaasuacompletudesoboaspectodafilosofiateóricaqueeledesignaora"filosofiaprimeira"(prôtê philosophia), ora "teologia" (theologikê):achamada"Metafísica".

54.Comoessadupladesignaçãoindica,Aristótelesatri-buiàMetafísicaumaduplatarefa.Porumlado,atarefadeenu-

14Emúltimaanálise, istosignificaqueohomemnecessitadesespe-radamente de uma narrativa última; de uma narrativa metafísica que sirva de fundamento às suasnarrativas de índole filosóficaede índole científica.Oquesetornanecessárionãoé,porconseguinte,abdicardeumatalnarrativa primeira,massimgarantirqueserevelaadequada,momentoamomento,àsnarrativas destesdois tipos (filosóficase científicas). Impõe-se, pois, queoespírito filosóficoproceda com relaçãoaela (narrativa primeira) do mesmo modoqueoespíritocientíficoprocedecomrelaçãoàssuasnarrativas cientí-ficas.OespíritocientíficointerrogaaNaturezacomofimdeaelaadequarassuasteorias.Oespíritofilosóficodeveráemulá-lonisso:deveráinterrogarasnarrativasdoespíritocientíficoeassuasprópriasnarrativasfilosóficas,comofimdeadequaraelassucessivamenteahumananarrativa primeira. Isso lhe é exigidopelatotalidadeideal-realdoHomem,aqualseesboroaquerperantea narrativa desadequadadasupremaciaehegemoniadoespírito filosófico,querperantea(hojetãopersistente)narrativa desadequada da supremacia e hegemoniadoespíritocientífico.

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meraredefinirosprincípiosprimeirosquedeterminam"oSeremsimesmo,aquiloqueéequaissãoosseusatributosquandoé considerado quaSer".15Ouseja,osprincípiosprimeiros (ascategorias)quedeterminamoSernãosobesteouaqueleseuaspectoparticular(não,porexemplo,soboaspectoemqueaFilosofiaNaturaloconsidera,soboaspectodasuamutabilidadee do seu devir), mas sim em si mesmo ou quaSer.Poroutrolado,atarefadeascender da totalidade (relativamente incondi-cionada)dopróprioSeraoseupressupostodeterminante(abso-lutamente)indeterminado:DeusouoMoventeImovidodetodooser:oprincípioprimeirodetodososprincípiosprimeiros.

55.Ora, como facilmente se conclui a partir daí, a uni-versalidadedoconhecimentoteóriconãopoderá,defacto,seralcançadaaoníveldopatamaremqueaFilosofiaNatural (asactuais Ciências Naturais) nos deixa:nãopoderáseralcançada,contrariamenteàquiloqueemgeraloespíritocientíficotout court pressupõe,aoníveldauniversalidadedasleisexperimentaisedasleisteóricasquedelassedeixamdeduzir.16

15 Metafísica, VI, 1026 a.16Que,nãoobstanteaquiloqueacabadeserdito,oespíritocientífico

se revela, por vezes, consciente de que o conhecimento das leis da Natureza nos obriga a ascender amuitomaisalémdela (Natureza),demonstram-no,porexemplo,asconsequênciasqueoastrónomoinglêsMartinReesretiradeanossaexistênciahumanadependerdosseisnúmerosquedeterminamosequilíbriosdouniversosolar,osquaisbempoderiamnãoterchegadoaacon-tecer:"Existemváriasmaneirasdereagiràafinação precisa dos nossos seis números.Umareacçãoteimosamentepragmáticaconsisteemconstatarquenãopoderíamosexistirsenãoseverificasseacircunstânciadeessesnúme-rosexibiremaafinaçãoapropriadae'especial'queexibem:Manifestamente,estamosaqui—porconseguinte,nadahánessacircunstânciaquenospossasurpreender.Muitoscientistasenveredamporessavia;porém,eladeixa-me indubitavelmente insatisfeito.Causa-me grande impressão, ametáfora comqueofilósofocanadianoJohnLeslienosconfronta.Suponhaoleitorqueestáprestesaserexecutadoporumpelotão.Cinquentaatiradoresfazempontaria,mas todos falhamoalvo.Senão tivessemfalhadooalvo,o leitornão teriasobrevividoe,porconseguinte,nãoteriatidoaoportunidadedeconstataressacircunstância.Todavia,nãohaveria,semdúvida,deselimitaraconstatá-la—haveriadeficarestupefacto,e,porconseguinte,departirembuscademaisrazõesparaasuaboaventura."(MartinRees.Just Six Numbers: The Deep Forces that Shape the Universe. London,Weidenfeld&Nicolson,1999,pp.148–49.)Repare-seemquepartir"embuscademaisrazõesparaa"nossa"boaventura""estupefacto"éatitudemuitodiversadaqueassumemosnão-poucoshomensdaciênciaque,hoje-em-dia,tantosededicamaafirmarouanegaraexistênciadeDeus(doDeusdatradiçãohebraico-cristã)comfunda-mentoindutivoedemãodadacomateologianatural.

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56.Vimoslámaisatrás(nasentradas6.eseguintesdasecçãoVII.)queoconhecimentocientíficonãoéqualitativamen-tediferentedoconhecimentocomum(oudosensocomum),massim intensiva e extensivamente diferente deste. Ora, peranteisso, importa, sem dúvida, colocar agora a seguinte questão:Seráoconhecimentofilosóficoqualitativamentediferentedoco-nhecimentocientífico?

57.Arespostaaessaquestãonãoéfácil,umavezque,comosehávistohápouco(sobretudonasanterioresentradas36.–40.),asrelaçõesentreoconhecimentocientíficoeoconhe-cimentofilosóficoacabampornosremeterparaarelaçãoquesubsiste, no seio da autoconsciência, entre o eu que conhece o objecto e o eu que conhece que conhece o objecto — e que se nãotornapossívelafirmar,nãoobstanteadiferençasignificativaque os separa um do outro, que o conhecimento do segundo daqueles dois eus sejaqualitativamentediferentedoconheci-mento do primeiro.

58. Por outro lado, aquilo que acaba de ser dito revela bemquãoinapropriadaterádeseraquelamesmaquestão.Ouseja,revelabemqueformulá-lanãopoderádeixardeequivalera perguntar se o conhecimento que se obtém a partir do centé-simodegraudeumaescadaseráqualitativamentediferentesdoconhecimento que se obtém a partir do quinquagésimo.

59.Éque,percebe-se,adiferençaqueestamosacon-siderardecorre,como já foipostoemevidência,nãodeoco-nhecimentofilosóficoserdiferentedocientíficodomesmomodoque uma laranja é genericamentediferentedeumapedra,oudo mesmo modo que uma laranja é especialmentediferentedeumabanana,massimdisto:deamiradaqueoconhecimentofilosófico lança sobre oobjecto ser muito mais compreensiva doqueamiradaqueoconhecimentocientíficolança,emgeral,sobreopróprioobjecto.

60. Considere-se de novo, a este respeito, a diferençaquenãopoderádeixardesubsistirentreconhecer umátrioapartir do centésimo degrau de uma escada e conhecê-lo a partir doquinquagésimodegrau.Ou,então,entreconhecer um vale do cimo de uma primeira colina e conhecê-lo do cimo, muito mais recuado e elevado, de uma última colina. É que, na verda-de, quantas coisas novassenãodescobrirá,noseiodeumvale,ao atingir uma tal ultimacolina?Ou,melhorperguntando,quão

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outronãoterádeser,docimodeumatalcolina,omesmo vale queseháavistadodocimodeumaprimeira colina?

61. Poder-se-á argumentar, com razão, que avistar umnovo vale, de um cimo mais elevado, implica perder de vista um primeirovale:aquelequeseháavistadodeumaprimeira coli-na. Sim,poder-se-áargumentarisso.Certoé,porém,quenãopodedeixardehavergrandediferençaentreavistar umnovo valetendo-ojáavistadonaqualidadedeumprimeiro vale e, por outrolado,avistá-loapenasnestaúltimaqualidade.

62.Tudo istonão implicaqueoconhecimentofilosóficoseja superioraoconhecimentocientífico.Implica,issosim,que,nãoobstanteaestultíciadonosso temponos terhabituadoafalardeumedeoutrocomosefossemconhecimentosgenerica-mentediferentes,ambossepressupõemecompletamdomes-momodoque,naclementina(perdoe-seametáfora),alaranjaeatangerinasepressupõemecompletam.

63.Ao invésde falardeconhecimento científico e/ou de conhecimento filosófico(de"ciência"e/ou"filosofia"),dever-se-ia(voltara)falardeconhecimento tout court.Ouseja,dever-se-iafalardeconhecimentonosentidodeconhecimento (tendencial-mente) científico-filosófico.

64.Aesterespeito,considerem-seasseguintespalavrasdeGeorgeStuartFullerton:"Àsemelhançadohomemcomum,ohomemdaciênciapoderásercapazdefazerusoproficiente,ecomcertosfinsemvista,deconceitosquenãoécapazdeanalisardemodosatisfatório.Porexemplo,falaeledeespaço,detempo,decausaeefeito,desubstânciaeatributos,dematériaemente,derealidadeeirrealidade.Semdúvidaalguma,encontra-seeleemposiçãodeaumentaronossoconhecimentodascoisasqueesses termosdesignam.Porém, jamaisdeveremosesquecer-nosdequeonovoconhecimentoqueelenosforneceéconhe-cimentodamesmanaturezadaquelequejáantespossuíamos.Ele,ohomemdaciência,mede-nosespaçosetempos;nãonosdiz,contudo,oqueoespaçoeotemposão.Elerevela-nosascausasdeumaimensidãodeeventos;nãonosdiz,contudo,oquequeremossignificaraousarapalavra'causa'.[...]Poroutraspalavras:ohomemdaciênciaestende o nosso conhecimento, bemcomootornamaisrigorosooupreciso;nãoanalisa certos conceitosfundamentais,dequetodosnósfazemosuso,masosquaissomoscapazesdeexplicar,emgeral,demodobastante

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deficiente.Pelocontrário,cabeaopensamento reflexivo,não...dilatar os limites do nosso conhecimento do mundo material e do mundo mental, mas sim tornar-nos conscientes, com maior lucidez, daquilo em que esse conhecimento realmente consiste. Areflexãofilosóficarecolheeanalisapensamentoscomplexosqueosindivíduosutilizamdiariamentesemsedaremaotraba-lho de os analisar; na verdade, sem sequer se aperceberem de quesãosusceptíveisdeseranalisados."17

65. Poderá parecer que, em oposição ao autor destasnotas,Fullertonseencontraempenhadoempôremevidênciaque o conhecimento filosófico é qualitativamente diferente doconhecimentocientífico.E istosobretudoemvistade, imedia-tamenteaseguir,eleafirmar:"Decertomodo,poderemosdizerqueopensamentofilosóficonãoénatural,umavezquequemexaminaospressupostosqueservemdefundamentoatodoonossocomummododepensaromundonãomaissesituanouniverso do homem comum."18

66.Nãoobstante isso, reflicta-seacercadoseguinte:ofacto de o pensamento filosófico não ser "natural" nomesmosentido em que "o homem comum" e "o homem da ciência" e osrestantesanimaissãonaturais— implicaráesse facto,porforça,queoprópriopensamentofilosóficoseja,noHomemounohomememqueameraNaturezajádeveioCultura, qualita-tivamentediferentedopensamentocientíficoedopensamentocomum?Certamente,não.

67.AênfaseouadicçãoqueFullertonemprestaàssuapalavraspoderá,naverdade,apontaremsentidoalgocontrárioàqueleporqueestasnotasrumam;osentidomaisíntimodes-sasmesmaspalavras,essenão.

68.Éque,afinal,Fullertonnãonosestáadizermaisdoqueaquiloquesetornaevidentequandopartimosdeumametá-foraqueaquijáfoiutilizada(naentrada5.dasecçãoV).

69. Essa metáfora é a que nos diz que, tão depressaquantoochamadomundoexteriorouobjectivose transformaemobjectodopensamento,logoassumeeleocarácterdeace-tatorealquesetornainseparáveleindistinguíveldoacetato ide-al em que o pensamento o envolve.

17GeorgeStuartFullerton.An Introduction to Philosophy. s.l., Tutis Di-gitalPublishing,2008,p.23.(OsitálicossãodeFullerton.)

18Ibidem,pp.23–24.

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70.Porseulado,aquiloqueFullertonnosestáadizeré,em concreto, o que se segue.

71.Emprimeiro lugar,queo"homemcomum"experien-cia o acetato real tal como ele lhe é diversamente dado pelos sentidos e, por conseguinte, sem se perceber quer de que os conceitos que lhe aplica lhesãofornecidospeloacetato ideal, querdequetaisconceitossãopassíveisdesersistematizadose aplicados ao próprioacetato real com grande invariância e grande rigor qualitativo e quantitativo.

72.Emsegundolugar,que,pelocontrário,o"homemdaciência" se caracteriza por aplicar ao acetato real de modo siste-matizado e quantitativamente rigoroso os conceitos que o ace-tato ideallhefornece,nãoobstante,tambémele,raramenteselibertardailusão(datransparenteaparência)dequeexperienciaapenas o acetato real(nãoéeste,afinal,quelhedá as respos-tasobjectivasqueneleprocuraparasasinterrogaçõesteóricasque subjectivamenteformulaacercadele?)

73. Em terceiro e último lugar, que, contrariamente ao "homem comum" e ao "homem da ciência", o homem do pen-samento filosófico conhece que o acetato ideal se encontra naturalmente dobrado uma outra vez sobre si(sobreopróprioacetato ideal), sendo que é esse conhecimento, que lhe permite utilizarosconceitoseasideiasquetodosnósobtemosdeumtalacetato(oideal)parareflectiracercadelesmesmos(conceitose ideias) e dos conteúdos invariantes e quantitativamente rigo-rosos com que o homem da ciência os preenche por via de os aplicarcientificamenteaoacetato real.

74.Poderábemacontecerque,dopontodevistado"ho-memcomum",queéafinal,emgeral,opontodevistado"ho-mem da ciência",19opensamentofilosóficonãoseja"natural".Porém,ofactoéque,quersequeiraounão,quersegosteounão,ohomemquehádespertadoparaoHomemnãopodedei-xardesesaberacetato real (corpo) sobre o qual se dobra um acetato ideal que, por sua vez, sobre si mesmo se dobra.

19ComoFullertonafirma:"Importaagoraobservarque,nãoobstanteocorrerem grandesmudanças no conhecimento do homem comuma partirdo momento em que se torna homem de ciência, no conhecimento que ini-cialmentetemdomundoàsuavolta,oseumododeinterpretaramenteeomundo permanece, em geral, o mesmo." (Op. cit., p. 16.)

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75.Por"Homem",entende-seaqui,comojáfoipostoemevidência, a totalidade e a unidade ideal-real que a espécie"Homem"impõe(formalmenteedemodocontingente)atodoequalquerdosseusmembros,querestesosaibamounão.

76.Ora,istotraz-nosaumúltimoaspecto,quenãopodedeixardeserevelarelucidativo.

77. Falou-seatrás(naentrada22.dasecçãoVI.)deduas tradições,aaristotélicaeabaconiana,comofimdedaraverqueésobretudoapartirdoiníciodasegundadelas(noséculoXVII),quesecomeçaaassistiràreinterpretaçãodoconceitode"ciência"quevemdesembocar,duranteoséculoXIX,noefectivoextermíniodadesignação"FilosofiaNatural"e,porconseguinte,nacompletaseparaçãoentreciênciaefilosofia.

78.A partir de então, o entendimento das genuínas re-laçõesquesubsistiriamentreumaeoutra,entreaciênciaeafilosofia, tornou-se assaz problemático, com a consequênciade uns passarem a achar que nada mais poderia continuar a ligá-lasentresi,edeoutroscontinuaremadefenderoseguintepontodevista:"Afilosofiaéoramomaiselevadodetodooco-nhecimento humano, e é, em verdadeiro sentido, sabedoria. As outrasciênciasencontram-sesubordinadasàfilosofia,nosenti-dodeelaasjulgarereger,bemcomonosentidodeeladefenderosseuspostulados.Pelocontrário,afilosofiaélivrecomrelaçãoàsciências,dependendodelasapenasemvirtudedelhefacul-tarem os instrumentos de que se socorre."20

79. O que nos importa perceber antes de terminar a pre-sentesecçãosão,contudo,trêsoutrascoisas.

80.Umadelaséque,quandoseolhaparatrás,paraosfinaisdaIdadeMédia,setornaevidentequeaseparaçãoentreciênciaefilosofiapassouasermaisoumenosprevisívelapartirdomomentoemque,alguresporvoltadoséculoXIV,afilosofiaassumiuasuaindependênciacomrelaçãoàteologiaescolásti-cae,emresultadodisso,nãosópassouaser,cadavezmais,FilosofiaNaturalouestudodomundoimanente,comotambém,poressavia,viuabrir-senoseuseioumacontendainsanávelentreestaúltima(aFilosofiaNatural)eaFilosofiaPrimeiraouaMetafísica(comosetornadetodoperceptívelaodeparar,maistarde,comoferozdualismocartesiano).

20JacquesMaritain.An Introduction to Philosophy. Trad. E. I. Watkin, Lanham,Rowman&Littlefield,2005,p.81.

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81.Asegundacoisaéqueafunçãoqueafilosofiadesem-penhouaolongodosváriosséculosdemedievalidadequecons-tituematradiçãoplatónico-neoplatónica-augustiana,afunçãodecriadadateologia,écorrelato,apardofactodeentãoaFilosofiaNaturalpraticamentenãoseterdesenvolvidoparaalémdoesta-doemqueAristóteleseosseusseguidoresahaviamdeixado,dohiper-idealismoquetantocaracterizaamentemedieval.

82. A terceira coisa é que, inversamente, a separaçãoentre ciência e filosofia a que hoje se assiste é correlato dohiper-realismoaqueograndetriunfoe triunfalismodaciênciamoderna, a par da tecnologia e de outros seus derivados, nos hágradualmenteconduzido.

83. Durante a Idade Média, o homem ocidental assumiu, por assim dizer, o aspecto de mentedesmesurada:dementete-ológicaalçando-seatéaosconfinsdomundoidealesubjectivosobre um corpo minúsculo — o qual, precisamente por isso, por ser minúsculo, pouco ou nenhum interesse pelo mundo real e objectivopoderiaentãodespertarnoprópriohomemocidental,bem como, por conseguinte, pouco ou nenhum interessa pela observaçãoepelaexperimentação.

84. Durante os séculos que nos trazem de Bacon, Copér-nico,Galileu,Descartes,KeplereNewtonatéaoscomputadorese aos telemóveis (para sómencionar estas duas electrónicasflores de lótus), o homem ocidental veio, cada vez mais, a as-sumir o aspecto inverso de corpo desmesurado, sendo que é amassaimensadessecorpoaquiloqueoralevaopróprioho-mem ocidental a atrair a si gravitacionalmente todo o mundo real e objectivo, enquanto, no seu cimo, vai transportando uma minúsculamentefilosófica—que,precisamentepor isso,porser minúscula, pouco ou nenhum interesse lhe desperta pelo mundo ideal e subjectivo, o mundo do dever-ser, bem como, por conseguinte, pela causaprimeira, pelas causas finais epelosraciocínioslógico-dedutivos.

85. Ora, perante isso, impõe-se, sem dúvida, terminaresta secção perguntando: Quando virá o homem ocidental alibertar-sedaacçãoereacçãodialécticasqueohãolevadoaumeaoutrodetaisdoisextremosepistemológicos?Quando,tendojásobejamenteaprendidoaobservareaexperimentar,viráelea ser homem total, homem equanimemente da realidade e da idealidade—homem,enfim,doespíritocientífico-filosófico?

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XII. Relações entre ciência e cultura

1.Noiníciodasecçãoanterior,salientou-sequenãopode-ráfazersentidoestabelecerrelaçõesentredoisobjectos sem, pelomenos,os irdandoaconheceràmedidaemquese fazissomesmo.Ora,seentão issoseaplicavaàs relaçõesciên-cia-filosofia,tambémseaplicaagora,semdúvida,àsrelaçõesciência-cultura.

2. Assim sendo, e uma vez que, chegados aqui, o conceito de"ciência"jásenoshátornadosuficientementeclaro,importacomeçarestaúltimasecçãoenumerandoeelucidandotãosu-cintamente quanto possível os significados do termo "cultura"com que nos importa entrar em linha de conta (ao invés de os ir apresentandogradualmente,comoseháfeito,nasecçãoante-rior,comrespeitoaoconceitode"filosofia").

3.Hoje-em-dia,acontececomotermo"cultura",semdú-vida, amesmacoisa queErnestNagel afirmaacontecer comrelaçãoaostermos"ciência"e"científico".1 Isto é, acontece que, nãoobstanteotermo"cultura"seprestaraindiciarumadiversi-dadeimensadesentidos,e,logo,aserutilizadosemexpressarumqualquersentidobemdefinidoeclaro,senãotorna,detodo,impossíveldiscernireclarificarossignificadosqueconstituem,por assim dizer, o âmago da sua abrangente (na verdade, dila-tada)esferasemântica.

4. Pois bem, tais sentidos são sobretudo três: aquelepara que osAlemães reservamo termoBildung (que equiva-le ao termo grego paideiaeaotermoportuguês"formação")eos dois para que reservam o termo Kultur. Destes dois últimos sentidos, um equivale, grosso modo,aosentidoqueéexpressopelo substantivo português "civilização", enquanto o segundoseaproximadosentidoqueapalavraalemãWeltanschauung transmiteepodebem,porisso,serexpressopelosubstantivoportuguês "mundividência".2

1Veja-se:ErnestNegel.Op. cit., p. 2.2 Weltanschauung significa literalmente "apreensãodomundo" (Welt

["mundo"]+Anschauung["intuição","apreensão"]),sendoque,poressarazão,os Ingleses traduzemessemesmo termopor "Worldview".Na línguaportu-

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5. Tal como acontece com o conceito de "ciência" (na ver-dade, tal como acontece com tudo o que diz respeito ao ho-mem),oconceitode"cultura"encontra-sedirectamenteligadoàcondiçãohumanaaquechamamos"autoconsciência".

6.Demodomaisexplícito,issosignificaquetodaequal-querformadeculturaradica,porforça,nacapacidadeexclusivaqueohomemtemparapensareconhecerqueromundoexterioreobjectivo,queroseuprópriomundointerioresubjectivo.Ouseja,radicanacapacidadequeohomemtemnãoapenasparaconhecer (como acontece com os restantes animais), mas tam-bémparaconhecerqueconhece:acapacidade,porum lado,paraconheceromundoexterioreobjectivoe,simultaneamentecom isso, se conhecer como sujeito que conhece esse mesmo mundo (ou que se encontra consciente de conhecer esse mes-mo mundo); a capacidade, por outro lado, para conhecer o seu própriomundointerioresubjectivoe,simultaneamentecomisso,se conhecer como sujeito que conhece esse mesmo mundo (ou que se encontra consciente de conhecer a si mesmo).

7.Disso,resulta,demodosignificativo,queasformasdeculturaqueaquinos interessamnãopoderãodeixardeassu-mir,emprimeirainstância,ocarácterdeactividade e, ao mesmo tempo, de condição ou estado produzido por esta última. Ou seja,resultaquetaisformasdeculturanãopoderãodeixardeassumir:porumlado,(i)ocarácterdeactividade da autoconsci-ência (individual ou colectiva) que recai sobre o mundo interior, espiritualesubjectivo,ou(ii)ocarácterdeactividade da auto-consciência (individual ou colectiva) que recai sobre o mundo exterior,materialeobjectivo;poroutro lado, (iii)ocarácterdeestado do mundo interior, espiritual e subjectivo (enquanto es-tado produzido, individual ou colectivamente, pela actividade da autoconsciência)ou(iv)ocarácterdeestadodomundoexterior,

guesa,tanto"mundividência"como"cosmovisão"surgem,naturalmente,comocandidatos a assumir o sentido de Weltanschauung e de Worldview. Porém, oprimeirodosdoiselementosqueentramnacomposiçãode"cosmovisão",osubstantivo"cosmos",fazqueessetermonaturalmenteexpresseaacepção"visãodocosmos",aqualorestringesignificativamenteànoçãode"cosmolo-gia"(de"estruturafísicadouniverso")e,poressemodo,oimpededefazersuaa maior abrangência semântica que, tal como Weltanschauung e Worldview, otermo"mundividência"apresenta.(Comrespeitoàgéneseeàssucessivasinterpretações do termoWeltanschauung, veja-se: David K.Naugle.World-view: The History of a Concept.GrandRapids,Michigan,WilliamB.Eerdmans,2002.)

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material e objectivo (enquanto estado produzido, individual ou colectivamente, pela actividade da autoconsciência).

8. Na qualidade de Bildung(oude"formação"),aculturaassumeocarácterdeactividade da autoconsciência que recai sobre o mundo interior, espiritual e subjectivo, bem como, em re-sultadodisso,ocarácterdeestado do mundo interior, espiritual e subjectivo (enquanto estadoproduzidopelaprópriaactividadeda autoconsciência).

9. Na qualidade de Kultur qua"civilização",aculturaassu-meocarácterdeactividade da autoconsciência que recai sobre omundoexterior,materialeobjectivosobaformadeactividade operativo-transformadora, bem como, em resultado disso, o ca-rácterdeestado-de-transformação domundoexterior,materiale objectivo (enquanto estado-de-transformação produzido pela própriaactividadedaautoconsciência).

10. Na qualidade de Kultur qua "mundividência", a cultura assumeocarácterdeactividade da autoconsciência que recai sobreomundoexterior(materialeobjectivo)eomundointerior(espiritualesubjectivo)sobaformadeactividade cognoscitivo-interpretativa,3 bem como assume, em resultado disso (na qua-lidade de produto de tal actividade),ocarácterdeconcepção-do-mundo4 queabarca tantoomundoexteriorcomoomundointerior.Ou seja,melhor dizendo, queexpressa, no seu todo,uma determinada atitude perante cada um desses dois mundos, enquantoatitudequeefectivamentedeterminaasrelaçõesquehistórico-culturalmente entre eles se estabelecem num certomomento ou numa certa época.

11. O conceito de cultura qua Bildungencontra-sedirecta-menteligadoaostrêsgrandesposicionamentosepistemológicosqueaquijáforamreferidospormaisdoqueumavez:aquelequeépassíveldeserdesignado"idealismo-realismo",aquelequeé

3Estaqualificaçãopretendetransmitiraumsótempoossentidosqueos termos alemãesWeltbetrachtung e Welterkenntnis naturalmente expres-sam.Ambosestestermosmantêmafinidadeslógico-semânticascomotermoWeltanschauung. O primeiro deles (Weltbetrachtung) significa literalmente"consideração/contemplaçãodomundo";osegundo(Welterkenntnis), "conhe-cimento do mundo".

4Estaexpressãopretendecaptaraumsótempoossentidosdoster-mosalemãesWeltbild e Weltansicht. O primeiro destes dois termos, que signi-ficaliteralmente"imagemdomundo",expressaaideia"concepçãodomundo"ou filosofia de vida;osegundoexpressaaideia"perspectivasobreomundo".

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passível de ser designado "hiper-idealismo" e aquele que, domesmomodo,épassíveldeserdesignado"hiper-realismo".

12.Oprimeirodestestrêsposicionamentosepistemológi-cos constitui, por assim dizer, o grande ideal para que o termo "cultura"remeteemprimeirainstância:oidealdeunidadeentreo mundo subjectivo e o mundo objectivo (ou sensorial); o ide-al cuja concretizaçãoassentana satisfaçãoomaisequânimepossíveldosinteressesopostosdecadaumdetaismundos;5 o ideal,também,cujaconcretização,assimsendo,sedesvaneceou se ausenta na medida em que o homem privilegia exclusi-vamenteos interesseseasexigências formaisdoseumundoideal (porviadissodevindohiper-idealista),ounamedidaemque,pelocontrário,privilegiaexclusivamente os interesses e as exigênciasmateriais do seumundo real ou sensorial (por viadissodevindohiper-realista).

13. Na quarta carta do seu Sobre a Educação Estética do Ser Humano numa Série de Cartas,FriedrichSchillerescrevepalavrasque,emprincípio,tornammaisclaroaquiloquevemdeserreiterado.Sãoasseguintes,essaspalavras:"Cadaindivíduohumano,podedizer-se,traznoseuinterior,potencialeprescri-tivamente, um ser humano puro e ideal, sendo que a grande tarefaquelhecabelevaracabonodecursodasuaexistênciaconsisteem,aolongodetodasassuasmutações,concretizara unidade imutável daquele ser humano ideal. [...] Porém, ohomem pode entrar em contradição consigomesmo de duasmaneiras:oucomoselvagem,queéaquiloqueacontecequan-do a sua sensorialidade predomina sobre os seus princípios,oucomobárbaro,queéaquiloqueacontecequandoosseusprincípiospredominamsobreasuasensorialidade.Oselvagemdesprezaacultura[Kunst]econcedeàNaturezaoestatutode

5Omundoideal,quesecaracterizapelaabstracção,unidadeeuniver-salidadedosseusprincípios,confrontaohomem,porexemplo(eparaevocarKant),comoseguinteimperativocategórico:Age como se a máxima da tua acção devesse tornar-se, por tua vontade, lei universal da Natureza.Ouseja:Age como se as consequências da tua acção (por exemplo, matar ou roubar) tivessem de recair de modo necessário sobre ti mesmo, em lugar de tão-so-mente sobre o teu vizinho. Inversamente, o mundo real (o mundo do corpo, dossentidosedascircunstânciasconcretasemqueoprópriocorpotemdelutarparasobreviver)confrontaohomemcomoseguintemandamentocego:Age como se as consequências da tua acção (que mais cedo ou mais tarde haverão de recair sobre ti, directa ou indirectamente) tivessem de recair de modo necessário tão-somente sobre o teu vizinho.

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seusenhorincondicionado;obárbaroescarnecedaNaturezaedesonra-a,mas,maisdesprezíveldoqueoselvagem,permane-cecomfrequênciaescravodoseuescravo.Ohomemdecultura[der gebildete Mensch] fazdaNaturezasuaamiga,ehonraaliberdadedelaporviaderefrearapenasaarbitrariedadequeacaracteriza."6

14.Comvistaaqueaquiloqueseestáaconsiderarpossatornar-seaindamaisclaro,proceda-se,agora,domodoquesesegue.

15. Em primeiro lugar, pense-se na cultura qua Bildung como ideal. Ou seja, como estado que consiste, em Ideia, na completaausênciadediferençaentreaunidadeformaldo"serhumanopuroeideal"aqueSchillersereferee,poroutrolado,a unidadematerial das "mutações" empíricas por que todo oindivíduopassaaolongodasuaexistência.

16.Antesdeavançar,atente-seemdoisaspectosim-portantes.

17.Oprimeiroaspectoconsisteemdepararmo-nosaquicom a dualidade dever-ser/ser. Ou seja, consiste em a unidade doreferido"serhumanopuroeideal"nosconfrontarconceptual-mente com o dever-ser que nos cabe concretizar por via de levar onossoserexistencialacoincidiromaispossívelcomele.

18. O segundo aspecto consiste em essa mesma unidade sócomeçaraserconcretizada:porumlado,apartirdomomen-to em que aquilo que somos em idealidade devém aquilo que somosemrealidade,evice-versa(emque,porexemplo,aquilo queempensamentoanósimpomosnaqualidadededever-ser coincide com aquiloquesomosepraticamosexistencialmente);poroutrolado,apartirdomomentoemqueasdiversasfacetasdanossavida(areligiosa,afilosófica,acientífica,apolítica,aartística,aprofissional,etc.)seharmonizamumascomasoutrasoucontribuemparaaformaçãodeumtodocoerenteecoeso,aoinvésdenosdividirememformasdepensaredesentirquese contradizem e repudiam mutuamente; por outro lado ainda, e emestreitarelaçãocomaquiloqueacabadeserdito,apartirdomomentoemqueanossaconcepçãodavidaedodestinoúltimodoHomem,bemcomoanossaconcepçãodoMundoedeDeus,

6FriedrichSchiller.Über die Ästhetische Erziehung des Manschen in Einer Reihe von Briefen. In: —. Werke in drei Bänden.Ed.HerbertG.Göpfert,München,CarlHauser,1966,vol.2,pp.450,451–52.

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se revelam coerentes com o posicionamento que assumimos faceàconcepçãoinstituídaegeneralizadadetaiscoisas com queonossopresentehistóriconosconfronta(aoinvésde,porexemplo,vivermosmentalmenteaconcepçãodeMundoedeDeusquesefezcaracterísticadaIdadeMédia,e,emprofundacontradiçãocomisso,existirmoseagirmos,nomundorealouobjectivo,deacordocomaconcepçãodeMundoedeDeusquea ciência moderna determina).

19. Em segundo lugar (para retomar o percurso delineado pelaanteriorentrada14.),pense-senaculturaqua Bildung (qua educaçãoestéticadohomem)comoaactividade da autocons-ciência que, recaindo sobre o mundo interior e subjectivo, tem porgrande tarefaoumissão concretizar o estado ideal que a anterior entrada15. especifica.Ou seja, comoactividade que tem por missão produzir coerência no seio das sucessivas mu-taçõesquevãoconstituindoaexistência realdo indivíduo,demodoaqueestaspossamconcretizaromaispossível,momen-toamomento,aunidadeformaleintemporalqueéformalmenteapresentadaaopróprioindivíduopelo"serhumanopuroeideal"(pelo dever-ser) que internamente o constitui representante da espécie "Homem".

20. Em terceiro lugar, pense-se na cultura qua Bildung como estado (deeducaçãoestética)produzidooualcançado, momentoamomentodavidadoindivíduo,portalactividade. Ou seja,pense-senaculturaqua Bildung como estado que cons-titui, num certomomento da vida do indivíduo,maior oume-norafastamentodaconcretizaçãonopróprio indivíduodopo-sicionamentoepistemológico idealismo-realismo — sendo que osdoispólosopostoseextremosque talafastamentopoderáeventualmenteconsubstanciarsão,comosetemvisto,oposi-cionamentoepistemológicohiper-idealismoeasuaantítese:oposicionamentoepistemológicohiper-realismo.

21.Agora,importaperceberqueaquiloqueSchillermaistinhaemmenteaofalardo"selvagem",do"bárbaro"edo"ho-mem de cultura" (Bildung) era, de algum modo, esses mesmos trêsposicionamentosepistemológicos.

22. Enquanto selvagem ou hiper-realista (realista emexcesso), o indivíduo permanece, na verdade, "em contradi-çãoconsigomesmo"porumadasduasviasemque talpodeacontecer.Eistoumavezque,aosatisfazerunilateralmenteos

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interesses da sua sensorialidade ou da sua mera animalidade (osinteressesqueaNaturezalhehádadoapartilharcomtodososanimaisnão-humanos),contradizos interessesopostosdasua idealidade;dasuaentidadeespecíficadeanimalhumanoou da sua humanidade.Então,acontece,porexemplo,queasmúltiplasformasqueasuaapetênciasensorialpelosprazeresdacomida intransigentementeassumeentramemcontradiçãocomaunidadeformaldoseu(incoerentemente)sustido"princí-pio" racional ou ideal (do seuhumanoprincípio)deque"nãosódepãoviveohomem".

23. Enquanto bárbaroouhiper-idealista(idealistaemex-cesso),oindivíduopermanece,deigualmodo,"emcontradiçãoconsigo mesmo", mas agora pela via oposta. E isto uma vez que,aosatisfazerunilateralmenteosinteressesdasuaidealida-deouracionalidade(osinteressesdasuaentidadeespecíficadeanimal humano ou da sua humanidade), contradiz os interesses opostos da sua sensorialidade; os interesses que a Natureza lhe hádadoapartilharcomtodososanimaisnão-humanos.Então,acontece,porexemplo,queaunidade formaldoseu intransi-gentementesustido"princípio"racionalouideal(doseu humano princípio)deque"nãosódepãoviveohomem"entraemcon-tradiçãocomasmúltiplasformasqueasuaapetênciasensorialpelos prazeres da comida (incoerentemente) assume.

24. Enquanto homem de culturaouidealista-realista(ide-alistaerealistaemproporçõesequânimes),oindivíduoperma-nece,pelocontrário,emunidadeecoerênciaconsigomesmo.Eistoumavezque,aosatisfazerequanimementeosinteressesda sua idealidade ou racionalidade e os interesses opostos da suasensorialidade,harmonizaeunificaentresi,porassimdi-zer, a sua humanidadeeasuaanimalidade.Então,acontece,por exemplo, que a unidade formal doseu sustido "princípio"racional ou ideal (do seuhumanoprincípio)deque"nãosódepão vive o homem" omove amoderar, vez a vez, autónomaeespontaneamente(semconstriçãoalheiaoudoexterior),asmúltiplasformasqueasuaapetênciasensorialpelosprazeresda comida tende a assumir.

25. Acaba o leitor de constatar (com grande surpresa, provavelmente)quaissãoashumanascircunstâncias a que o termo "cultura" tem referênciaemprimeira instância.Ouseja,quandoéutilizadoparaexpressaraquelequeé(desdeostem-

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posantigosdaGréciaClássica)oseuprimeiroegrandesentido:o sentido de paideia, de Bildungoude"formação".Assimsendo,impõe-seagoradaraveraopróprioleitorquaissãoasnãome-nos humanas circunstâncias para que esse mesmo termo reme-te quando é utilizado no sentido de Kultur qua"civilização".

26. Aoviraranossaatençãoparaessasegundaacep-çãodotermo,passamosaconsideraracultura,deacordocomaquiloqueatrásfoidito(naanteriorentrada7.),naqualidadedeactividadedaautoconsciênciaquerecaisobreomundoexterior,material e objectivo, bem como também, por conseguinte, como estado produzido por tal actividade.

27. Ora bem, quando assume o aspecto de uma tal acti-vidade,aculturadevémacçãocontinuadademoldar o ser (real e dado)domundoexterior (materialeobjectivo)aodever-ser (ideal) que o homem sucessivamente põe (setzt)elheimpõenaqualidadedeconjuntoformaldefinsqueoentendimento(Vers-tand)earazão(Vernunft) lhe apresentam quafinsdecujacon-cretizaçãodependemasuasobrevivência,oseubem-estar,asua dignidade (axia, Würde)e,comisso,aevoluçãoque,passoapasso,opoderálevaratransitardacondiçãodedado natural ou de homem meramente em potência (de selvagem)àcondi-çãodeHomememactualidade.Omesmoédizer,àcondiçãodehomem de cultura (no sentido de Bildung)oudeanimalquejáháconcretizadoemsiparcialmenteahumanidadeempotênciaou em semente comqueaNaturezaoháagraciado,aoditar-lhecomo missão última (Bestimmung)oesforçocontínuoenuncade todo conseguido para a concretizar plenamente ou na sua perfeição.

28.Éessa,afinal,aacepçãodecultura—aacepçãodecultura (Kultur) quacivilização"—queseocultapordetrásdasseguintespalavras,queoescritoralemãoJohanWolfgangvonGoetheregistounosextolivro("ConfissõesdeumaAlmaBela")do seu Wilhelm Meister: "Omundoestende-seànossa frentecomoumapedreiraàfrentedeumconstrutor,eninguémmere-ceserconsideradoconstrutorsenãoforcapazdetransformaressamatéria bruta emalgo que corresponda à imagem idealquepreexistenasuamente,comamaioreconomia,finalidadeeprecisão.Tudoaquiloqueseencontraforadenós,eatémesmotudo aquilo que nos constitui, nada mais é do que matéria ou do querealidadeobjectiva.Porém,dentrodenós,nonossomundo

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interioresubjectivo,existeacapacidadecriativaparalheconce-derformaideal,sendoqueoímpetoqueanimaessacapacidadejamaisnosdeixabaixarasmãosaté,deummodooudeoutro,termosconcretizadoestaouaquelaformaidealforadenósouemnósmesmos."7

29. Como estas palavras tornam bastante evidente, a acti-vidade (da autoconsciência) em que a cultura consiste quando é vistacomoproduçãodecivilizaçãointentaoperarnomundoex-terior(materialeobjectivo)fins(transformações e construções) semelhantesàquelesqueoperanomundointerior(espiritualesubjectivo) quando, sem cessar de ser actividade (da autocons-ciência),assumeocarácterdeculturaqua Bildung. Ora, assim sendo,bastaráagoradizerque,quandoéentendidacomoesta-do(decivilização)domundoexterior(materialeobjectivo),emlugar de como a actividade que produz um tal estado, a cultura quacivilizaçãoassumeocarácterdeprodutooudeefeitopro-duzidopelaacçãocontinuada,ehistoricamentedeterminada,demoldar o ser real e dadodoprópriomundoexterior(materialeobjec-tivo) ao dever-seridealqueohomemsucessivamentelheimpõe.

30. Passemos agora a tentar caracterizar melhor aquilo em que a cultura consiste quando é entendida no outro sentido de Kultur, no sentido de Weltanschauung ou de "mundividência", e, sob esse aspecto, na qualidade de estadooudeconcepção-do-mundo—aoinvésdenaqualidadedaactividade(cognosci-tivo-interpretativa)queproduztalestadoouconcepção.

31. Em primeiro lugar, importa pôr em evidência que, como asexpressão"mundividência"(Weltanschauung)e"concepção-do-mundo"ouimagem do mundo (Weltbild) tornam claro, a cul-tura quaentendimento,interpretação,imagemouretrato intelec-tualdomundonãopodeconsistirnoconhecimentodoprópriomundo sob o aspecto, por exemplo, da totalidade material efinitamenteinfinitaqueosolhos da mente têm em vista quando nosreferimosàNaturezaouaoMundoNatural.

32.Naverdade, issoaconteceporduasrazões:porumlado, porque (ça va sans dire)atotalidadematerialefinitamenteinfinitaparaqueessasduasdesignações("Natureza"e"MundoNatural") ideacionalmente nos remetem jamais poderia ser pas-síveldeserapreendidaporumqualquerindivíduo(domesmo

7JohannWolfgangvonGoethe.Werke.EdWilhelmVoßkamp&Wal-traudWiethöther,FrankfurtamMain,Insel,1998,vol.4,p.451.

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modoque,paravoltaraestametáfora,umdospontosdeumalinha infinita jamais poderia com-apreender a totalidade dosrestantespontos);poroutro lado,porque,afinal,osubstantivo"mundo"nos reporta,nasexpressões "mundividência"e "con-cepção-do-mundo",paramundosdenaturezadiversa,aoinvésde para um só mundo.Ouseja,porque,emtaisexpressões,osubstantivo"mundo"temreferênciaelípticaaumatotalidadeoua um conjunto que inclui tanto a totalidade do mundo objectivo (quer enquanto mundo natural, quer enquanto mundo criado pelo homem) como a totalidade do mundo subjectivo (enquanto mundoqueé,elemesmo,instauraçãoin abstracto e interpreta-çãoin concreto de entidades ideacionais como Deus, Natureza, Homem, História, sentido último da vida, religião, tipo de organi-zação política, ciência, cultura etc.)

33. Com respeito ao que vem de ser dito, importa trazer aquipalavrasdeImmanuelKante,emseguida,deMartinHei-degger.

34.AspalavrasdeKant,queconstituemopassodaCrí-tica da Faculdade de Julgar em que a palavra Weltanschauung surge pela primeira vez,8 referem-se apenas à nossa capaci-dadeparapensara totalidadedomundonaturalesensível (atotalidade relativamente incondicionada em que a Ideia de Na-tureza consiste).9Nãoobstanteisso,dão-nosbemavera minore ad maius que a totalidade mais abrangente e inclusiva que toda a mundividênciaformalmentepermitepensarnãopodedeixardeserresultadodeuma"avaliaçãopuraeintelectualdemagnitude".

35. Taispalavras,queaquiadquiremrelaçãocomoladoformaldasmundividências,sãoasseguintes:"...oinfinitoéab-solutamente(nãoapenascomparativamente)grande....ameracapacidadetão-somenteparaopensarcomoum todo revela a existência deuma faculdademental que transcendequalquerpadrãodemedidasensível.[...]Eistodadoqueapenasatravésdeumatalfaculdadeedasuaideiadeumnúmeno—oqual,nãoobstantenãopermitiremsiqualquerintuição,vemaservir

8Comosentidoestritamenteepistemológicode"intuição[Anschauung] domundo[Welt]"sensível;aoinvésdecomosentidoderivadode"visãodomundo" (mundividência). Como as palavras a que a presente nota respeita tornam claro, o termo WeltanschauungfoicunhadoporKant(quasedecertezainadvertidamente,porrazõesdeordemsintáctica).

9Veja-se:ImmanuelKant.Kritik der reinen Vernunft (Crítica da Razão Pura),B390–B396.

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desubstratoà intuiçãodomundo[Weltanschauung] qua mero fenómeno—podeo infinitodomundosensívelsercompleta-mente compreendido sobumconceitonaavaliaçãopuraeinte-lectual de magnitude, muito embora jamais possa ser completa-mentepensadonaavaliaçãomatemáticapor via de conceitos numéricos."10

36.Porseu turno,aspalavrasdeHeideggerque foramreferidasatrás(naanteriorentrada33.)têmrelaçãodirectacomo conteúdo, por assim dizer, para que o substantivo "mundo" (Welt) remeteno termo"concepção-do-mundo"ou imagem do mundo (Weltbild).Sãoelasasseguintes: "Quando reflectimosacercadaidademoderna,estamosalevantarquestõescomre-laçãoàimagemdomundo[Weltbild]moderna.[...]Queéumaimagem domundo?Obviamente, uma concepção domundo.Porém,quesignificaaqui 'mundo'? [...] 'Mundo' serveaquidedesignaçãoatudoquantoexiste,consideradonasuatotalida-de[der Seiende im Ganzen].Essadesignaçãonãoserestringeaocosmos,àNatureza.AHistóriatambémpertenceaomundo.E,contudo,atémesmoaNaturezaeaHistória,consideradascomo entidades que se interpenetram e que ao mesmo tempo transcendemumaàoutra,nãoesgotamdetodo'omundo'.Estadesignação abrange também o fundamento último domundo[Weltgrund], seja láqual foromodocomosepossapensararelaçãoentreeleeoprópriomundo."11

37.Numoutroescrito,Heideggerdefine"mundividência"(Weltanschauung)como"umaforma...conscientedeapreendere interpretar o universo dos seres". A estas palavras, acrescenta ele:"...aquiloqueestetermosignificaénãoapenasumacon-cepçãodasinter-relaçõesdosentesnaturais,mastambémumainterpretaçãodosentidoefimúltimodaexistênciahumanae,porconseguinte,daHistória.Umamundividênciacompreendesempre uma visão da vida. Umamundividência desponta deumareflexãoholísticaacercadomundoedaexistênciahuma-na,sendoquesurge...demodoexplícitoeconsciente,aonível

10ImmanuelKant.Kritik der Urteilskraft (I, § 26). In: —. Werke in Zwölf Bänden.Ed.WilhelmWeischedel,FrankfurtamMain,Suhrkamp,1968,vol.10,p.150(ositálicossãodeKant).

11 Martin Heidegger. "Die Zeit des Weltbildes" ("O Tempo da Imagem doMundo")1938. In: —. Gesamtausgabe.FrankfurtamMain,VittorioKlos-termann, vol. 5 (Holzwege), ed. Friedrich-Wilhelm vonHerrmann, 1977, pp.88–89.

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desteoudaqueleindivíduo,ousedeixaapropriar,naqualidadedemundividênciainstituídaeprevalecente."12

38.Heideggerdáaver,deseguida,quecertosaspectosparticulares e circunscritos de uma mundividência, aqueles que sãodirectamentedeterminadospelaraça,classesocialeesta-dodeculturadosindivíduosoudeumgruposocial,constituemaquilo a que chama a "mundividência cultural", a qual, do seu ponto de vista, deve ser distinguida da "mundividência natural" que sempre a sustenta. O mesmo é dizer, a qual deve ser distin-guida do modo de conceber o mundo natural que caracteriza um determinadomomentohistórico.13

39.Naspresentesnotas,eemvirtudesobretudodenãoseentraremlinhadecontaaquicomasdeterminaçõessociocul-turaisqueHeideggeraponta,considera-se,porém,oseguinte:por um lado, que a "mundividência natural" constitui parte inte-grantedocírculomuitomaisabrangentedeumamundividênciatout court;poroutrolado,queaprópria"mundividêncianatural"ocorreali(nointeriordocírculodeumamundividênciatout court) sobretudonaqualidadedecosmovisãoouderetrato intelectual daestruturafísicadouniverso;poroutroladoainda,que,paraalém de constituir, também ela, cultura (Kultur), uma cosmovi-sãodeterminadirectamenteasrestantesmiradas culturais que juntamente com ela preenchemaesferadeumamundividência(deumaconcepção-do-mundooudeumaimagem do mundo).14

12 Martin Heidegger. The Basic Problems of Phenomenology (Die Grundprobleme der Phänomenologie).Trad.AlbertHofstadter,Bloomington,IndianaUniversityPress,1982[1954],pp.5–6.

13Cf.Ibidem, p. 6.14ComoHeidegger faz ver (cf. loc. cit.), uma concepção-do-mundo

ouumamundividência revela-se,asmaisdasvezes,determinada tantoporsuperstiçãoepré-conceitocomoporconhecimentocientífico.Ouseja,emter-mos gerais, tanto pelo obscurantismo que um determinado presente herda do passado como pelo esclarecimentoqueoseparadoprópriopassado.Equeassimé,parececonfirmá-loo factodeamundividênciaqueorase fazprevalecente em praticamente todo o Ocidente agregar no seu interior, a par davisãopuramentenaturalistadocosmosqueaciênciamodernatemvindoaconstruir,umasériedepersistentesresquíciosdosobrenaturalismofilosóficoe teológico que há fundamentado a cosmologia e a soteriologiamedievas.Nopassoaqueapresentenotarespeita,entra-seemlinhadeconta,porém,apenascomas relaçõescoetâneasouactualizadas que sempre se estabe-lecem, no interior de uma mundividência, entre a mirada cosmológicaeumasérie de miradasdeoutraíndole.Edaíaafirmação"determinadirectamenteas restantes miradas culturais que juntamente com ela preenchemaesferadeuma mundividência".

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40. Chegados aqui, importa salientar quatro aspectos.41.Umprimeiroaspecto (queclarificaaquiloqueacaba

de ser dito) é o de que, uma vez que a sphaera notionis de um conceitosedeixavisualizarmelhorsoboaspectográficodeumcírculo, sepodebem imaginar uma mundividência em termos devárioscírculosespacialmenteetemporalmente concêntricos —umdelescorrespondendo,porexemplo,aumadeterminadacosmovisãoou imagemdaestrutura físicadouniverso;outro,aumacoexistentevisãodaNatureza (Naturanschauung), nos seusmúltiplosaspectos;outro,aumacoexistentevisãoouinter-pretaçãodoHomem(Menschanschauung)edasuarelaçãocomasociedade,aNaturezaeouniverso;outro,aumacoexistentevisãodosentidoedofimúltimodavida(Lebensanschauung); outro,ainda,aumacoexistentevisãoouinterpretaçãodosdeu-ses ou de Deus (Gottanschauung), etc.

42. Um segundo aspecto consiste em que, muito prova-velmente, nunca se depara com uma qualquer mundividência nasuapureza,massim:(i)oucomagradualtransiçãodeumaanteriormundividênciaparaoutra(aqualétransiçãoqueatingeestádiosdiferentesnointeriordecadaumdosdiversoscírculos que vêm de ser enumerados); (ii) ou com uma mundividência que,nãoobstantejáseterfeitoavançada e matura, permane-cecontaminadaporresquíciosmaisoumenospersistentesdeuma anterior mundividência (como acontece na nossa Moderna mundividência,comrelaçãosobretudoaoseuapegoàmedievaGottanschauung e à medieva soteriologia católico-cristã); (iii)ou,porfim,comagradualtransiçãodeumamundividênciaqueseconsideraseradopresenteparaaquelaquesepressupõeestaratomar-lheolugar(comoprovavelmenteacontece,tam-bém,comrelaçãoànossaModernamundividência,aqual,naverdade, parece estar a dar lugar, pelo menos em alguns aspec-tossignificativos,àmundividênciaPós-Moderna).15

43.Umterceiroaspectoreformula,dealgummodo,opri-meiro.Consisteelenoseguinte:porumlado,emque,emvistadaquiloquevemdeserdito,melhorserá,talvez,visualizar uma mundividênciaemtermosdasobreposiçãoparcialdedoiscírcu-los,cadaumdelescontendonoseuinterioroscírculosconcên-

15Aesterespeito,veja-se,porexemplo:RomanoGuardini.O Fim da Idade Moderna: Em Procura de uma Orientação (Das Ende der Neuzeit: Ein Versuch zu Orientierung).Trad.M.S.Lourenço,Lisboa,Edições70,2000.

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tricosqueatrásseespecificou;poroutrolado,emque,noster-mosdestasegundarepresentaçãográfica,sedeveráconsideraras zonas mais ou menos sobrepostas como zonas de transição, nãoobstantetambémelasentrarem,juntamentecomaszonasnão-sobrepostasdetodoocírculomaior(maisexterior)queseassumir ser a mundividência do presente,naconstituiçãodoes-pírito do tempo (Zeitgeist) desta última.

44. Um quarto e último aspecto consiste nisto: por umlado,emque,sesepreferirdefinirumamundividênciaemter-mosmeramenteverbaiseabstractos,sepoderádizerque,en-quanto estadoouconcepção-do-mundo,umamundividênciaéo produto (mais ou menos colectivo e perdurante) da actividade psíquicadohomem,consideradaestacomoactividadecriadora de realidade ideacional e, por conseguinte, como actividade ins-tauradora ou negadora de verdade e/ou de utilidade; por outro lado, que, assim sendo, se poderá, de igualmodo, dizer queumamundividênciaconsistesobretudoeminstauração/posição(Setzung)ounegação,demodomaisoumenosgeneralizado,daverdadee/ouutilidadedesteoudaquelepossívelmodelodeorganizaçãosocial,desteoudaquelepossívelmodelodeEstadoedeGoverno,desteoudaqueleconjuntodepreceitoséticosedecomportamentos,desteoudaqueleconjuntodeexpressõesestéticas e deste ou daquele conjunto de narrativasde índolemítico-religiosa,científica,filosóficae/ouideológica.

45.Acabámosdeconsiderarcomalgumpormenorastrêsprincipais realidadesaqueotermo"cultura"temreferênciaemprimeira instância:Bildung, Kultur qua civilizaçãoeKultur qua mundividência.

46. Importa, pois, pôr em evidência, agora, duas circuns-tâncias importantes.

47. Uma circunstância é a de todo o estado de civiliza-ção e toda a mundividência (sobretudo enquantoMenschan-schauung e Gottanschauung) reflectirem, de ummodo ou deoutro, o estado de Bildung (o grau de unidade do homem con-sigo mesmo e, por conseguinte, o grau em que o homem se revelaconcretizaçãoempírico-históricadoseudever-ser ou do posicionamento epistemológico idealismo-realismo) que num

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determinadomomentohistóricosefaz(colectivamente)predo-minante e dominante.16

48.Asegundacircunstânciaéadeasrelaçõesentreci-ênciaeculturaseverificaremsobretudoaquatroníveis:(i)aonívelemqueapresençaouausênciamaisoumenosgenera-lizada de cultura qua Bildung (qua concretizaçãoaproximada,colectivamente, do posicionamento epistemológico idealismo-realismo)sepoderevelar factordeterminantedaconcepçãoeprática de "ciência" que se fazem vigentes num determinadomomentohistórico-cultural; (ii)aonívelemque, inversamente,a concepção e a prática de "ciência" que se fazem vigentesnumdeterminadomomentohistórico-culturalsepodemrevelarfactor determinante da presença ou ausênciamais oumenosgeneralizada, num tal momento, de cultura qua Bildung; (iii) ao nívelemqueaciênciaentra,agoraemparticularnaqualidadede corpus de conhecimentos acerca do cosmos ou de imagem do universo, na constituiçãodesta oudaquelamundividência;(iv)aonívelemqueaciênciaserevela(sobretudoqua corpus de conhecimentos acerca da Natureza ou do mundo objectivo) ferramentaaoserviçodaprodução ou do incremento de civili-zação— ferramentaquefacultaaohomem,numdeterminado

16O escopo destas notas não torna possível justificar devidamenteestaafirmação.Atente-se,porém,comrespeitoaela,emquetodaequalquerconcepção,criaçãoouacção(humana)seencontradeterminadaàpartida,porforça, porumdos trêsgrandesposicionamentosepistemológicosperanteomundoeavidaoupelaestruturapsíquicaqueohomemépassíveldeassumir.Seignorarmosasériedeposiçõessucessivasquesepodepensarexistirentreelesnaqualidadedetransiçõescapazesdelevarcadaumdelesadarlugargradualmenteaumdosoutrosdois,essestrêsposicionamentosepistemológi-coscaracterizam,respectivamente,ohomem,acivilizaçãoeamundividênciadoMundoAntigooudachamadaAntiguidadeClássica,ohomem,acivilizaçãoeamundividênciadaIdadeMédiaeohomem,acivilizaçãoeamundividênciadaModernidade.ÉcertoqueacivilizaçãodachamadaAntiguidadeClássica,porexemplo,foioquefoidevidoa,então,ohomemseencontrarnumaidade da humanidademuitoanterioràquelaemqueactualmentenosencontramos.Nãomenoscertoétambém,porém,que,emtermosgerais,elafoiacivilizaçãoquefoidevidoaoposicionamentoepistemológicoquetendencialmentesefezpredominantenaprópriaAntiguidadeClássica tersidoaquelequeaqui temsido designado idealismo-realismo — o qual se caracteriza por consistir num maioroumenorequilíbrioentreidealidadeerealidadee,porconseguinte,porconduzirohomemajulgaroserexistencialeparticulardosentesempíricosporreferênciaaodever-ser essencial e universal que idealmente lhe corres-ponde.

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momentohistórico,ummaioremaisacuradodomíniodomundoobjectivo em geral e, em particular, da matéria.17

49.Nãose tornapossívelexplicitaraquicompormenoromodocomoapresençaouausênciamaisoumenosgenera-lizada de cultura qua Bildungpodedeterminaraconcepçãoea práticade"ciência"quesefazemvigentesnumdeterminadomomentohistórico-cultural,evice-versa.Todavia,importatornarclaro que isso acontece sobretudo em resultado de o posiciona-mentoepistemológicoquecaracterizaumcertomomentohistó-rico constituir, por assim dizer, uma perspectiva mentalespecífi-ca,aqual,comotal,nãopoderádeixardedeterminara priori o modocomoohomemdessemesmomomentohistóricoconcebeeinterrogaasrealidadedediversaíndolequeocircundam,bemcomo,porconseguinte,asuaprópriaconcepçãode"ciência".

50. No seu ensaio "O Tempo da Imagem do Mundo" ("Die Zeit des Weltbildes"), Heidegger caracteriza a ciência moderna, erelaciona-acomaciênciadaGréciaClássicaedaIdadeMédia,demodoquenospodeserútilcomrelaçãoaesseaspecto.

51. Os argumentos de Heidegger são essencialmentetrês.Trata-se,porumlado,doargumentodequeaimagem do

17 Como se torna evidente, a ciência stricto sensuassumeocarácterde uma tal ferramenta sobretudoporduasvias:pelaviadaschamadasCi-ências Aplicadas (a Medicina, as Engenharias, etc.) e pela via daquele seu derivado que nos habituámosa designar "tecnologia".Com respeito a estasegundavia,pense-se,porexemplo,noseguinte:emqueanossaactualci-vilizaçãoseria,semdúvida,muitodiferente,senãotivesseocorridonelaain-vençãodatelevisão;emque,atéhárelativamentepoucotempo,osaparelhosdetelevisãomaisnãoforam,porassimdizer,doquemáquinasdereproduzirimagens através de disparossucessivosdeelectrões;emque,assimsendo,a invençãodatelevisãonãoteriasidopossívelnaausênciada(ciênciaquedápelonome)FísicaAtómica.Comrelaçãoàprimeiravia(adaschamadasCiênciasAplicadas), considerem-se as seguintes palavras deT. H. Huxley:"Desejofrequentesvezesqueestaexpressão,'ciênciaaplicada',jamaistives-sesidoinventada.Équeelasugereaexistênciadedoistiposdeconhecimentocientífico:umdelescomaplicaçãopráticadirectaepassíveldeseradquiridoindependentemente do outro; o segundo, que é designado 'ciência pura', sem qualquerutilidadeprática.Averdade,porém,équenadapoderiasermaisfala-ciosodoqueestadivisão.Aquiloaquesechama'ciênciaaplicada'maisnãoédoqueaaplicaçãodaciênciapuraatiposespecíficosdeproblemas.Consisteelaemdeduçõesdosprincípiosgeraisqueconstituemaciênciapura,osquaissãoestabelecidospelarazãoeexperimentalmente.Ninguémserácapazdelevartaisdeduçõesacabocorrectamenteantesdeterapreendidocomfirmezaaquelesprincípios;e,porsuavez,estesúltimossópoderãoserapreendidosatravésdeexperiênciaindividualdosraciocíniosedosexperimentosquelhesservemdefundamento." (T.H.Huxley."ScienceandCulture"(1880). In: —. Collected Essays. Bristol, Thoemes Press, 2001, vol. 3, p. 155.)

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mundo (Weltbild) da Modernidade se caracteriza por conside-raromundodaexistêncianaqualidadedemerarepresentação(Vorstellung), bem como, em resultado disso, por determinar antecipadamente aquilo em que o própriomundo da existên-ciaterádeconsistir,parapoderserconfiguradoporelamesma(imagem do mundodaModernidade)oudevirrepresentaçãode-terminada pelas suas expectativas a priori.18Trata-se,poroutrolado, do argumento de que, assim sendo, a imagem do mundo da Modernidade encontra o seu fundamento epistemológicoúltimonosubjectivismoextremoqueDescarteshá inauguradoviasobretudodoseuprincípiodequeopensamento(ocogito) evidenciaaverdadedaexistênciadoeu (o sum).19Trata-se,poroutroladoainda,doargumentodequeaciênciamodernanãosóserevelaumadasmaissignificativasexpressõesdetalextre-mosubjectivismo,mastambémassumeocarácterderequisitoabsolutamentenecessáriodasua (com relaçãoa "subjectivis-mo")instanciação(instantiation) e continuidade, dado o imenso poderparaconfigurarereconfiguraromundodaexistênciaqueproporciona ao homem moderno.20

52.Naorigemdessesargumentos,encontra-se,parafa-laremtermosdiferentesdosdeHeidegger,oraciocíniodequeaconcepçãomodernadomundodoSer como representação(Vorstellung)radica,bemcomootipoespecíficodeinterrogaçãoedeinvestigaçãodetalmundocomquesedeparaaoconsideraraciênciamoderna,nohiper-idealismoque,apósterdetermina-do,numprimeiromomento,oposicionamentoprogramáticodohomemmodernofaceàrealidadeexistencial,veioaredundar,porreacçãodialéctica,nohiper-realismoquehojecaracterizaavida e a cultura modernas.

53. É que, a partir do momento em que o eu se assume fundamentoidealdetodoomundoexistenciale,poressavia,o subjectiviza, não pode ele, na verdade, evitar objectivar-seou reificar-se namedida emque for estendendoo seu domí-

18ComoHeideggerafirma: "ANaturezaeaHistória transformam-seemobjectosdeumrepresentarqueexplica.[...]Apenasaquiloquedevémob-jecto por esse modo é — vale como ou é considerado ser. Deparamos primei-ramentecomaciência-como-investigaçãoquandonosconfrontamoscomaexistênciadoSeraserprocuradaeinterrogadanumatalobjectivação.(MartinHeidegger. "Die Zeit des Weltbildes". Loc. cit.,p.87.)

19Veja-se,adiante,anotaderodapé27destasecção.20Veja-se,adiante,aentrada68.destasecção.

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nio sobre tal mundo ou, é a mesma coisa, em que, par a par comoavançodaciência,forexpandindoasuarepresentação(Vorstellung)dele:asuaimagem do mundo. O poeta inglês P. B. Shelleynãopoderia,pois,deixardeestarcerto,aoafirmarose-guinte:"...osnossoscálculoshãoexcedidoanossacapacidadepara conceber; havemos comido mais do que podemos digerir. Ocultivodasciênciasquealargaramoslimitesdodomíniodohomemsobreomundoexteriorveio...acircunscrever,propor-cionalmente,os limitesdomundo interior,eoprópriohomem,tendofeitodoselementosseusescravos,permanece,elemes-mo, escravo."21

54.Heidegger põeemevidência queamatematicidadee o resultante quantitativismo da ciência moderna determinam deantemãoquetudoquantopossaviraserconhecido(repre-sentado, no sentido de vorgestellt) cientificamente tenha deserpassíveldeserconhecidomatemáticaequantitativamente.Comoeleafirma:"...algoéestipuladodeantemãocomojásen-doconhecido.Umatalestipulaçãoprende-secomnadamenosdoqueoplaneamentoouaprojecçãodaquiloquedeentãoemdiantetemdedevirnaturezaadentrodaesferadoconhecimentodaNaturezaqueseprocuraalcançar".22

55.Ora,comrelaçãoaestaspalavras, importasalientarqueumatalpré-determinaçãoaoníveldoter-de-ser do mundo objectivo (aoníveldamatematicidadequeoraé requeridaaoobjecto paraquepossaser interrogadoeconhecidocientifica-mente)pressupõe,semdúvida,umaanteriorpré-determinação,agora de carácter formal: precisamente, a pré-determinaçãoformalquedecorredoposicionamentoepistemológico,dohiper-realismo,que,naprática,caracterizaamentemoderna,equea leva a interpretar como única e verdadeira ciência o estudo quantitativo do mundo real e objectivo — ao invés de o estudo qualitativo do mundo ideal e subjectivo (como acontecia na Ida-deMédia)ou,aumsótempo,domundorealeobjectivoedomundo ideal e subjectivo (como acontecia tendencialmente na AntiguidadeClássica).

21P.B.Shelley. The Defence of Poetry. In:H.F.B.Brett-Smith,ed.Peacock's FourAgesofPoetry, Shelley'sDefenceofPoetry, Browning's Essay on Shelley.Oxford,Blackwell,1972,p.52.

22 Martin Heidegger. "Die Zeit des Weltbildes". Loc. cit.,p.78.

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56.Heideggernãofalanostermosemqueaquiseestáafalar,e,porconseguinte,nãoutilizaexplicitamenteoconceitode"posicionamentoepistemológico".Noentanto,évisivelmen-teadiferençaquesubsisteentreaposturaepistemológicadamente grega e a da mente moderna, que ele mantém em vista aoafirmaroseguinte:"Emqueconsisteaessênciadaciênciamoderna?QueconcepçãodoSer[des Seinden] e da verdade constituiofundamentodetalessência?[...]Quandoautilizamoshoje-em-dia, a palavra 'ciência' significa algo essencialmentediferentedadoctrina e da scientia da Idade Média, bem como, também, da epistemegrega.Seaciênciagreganuncafoiexac-ta, isso aconteceu precisamente porque, de acordo com a sua essência,nãopodiaserexactaenãonecessitavadeserexacta.Porconseguinte,nãofazqualquersentidopressuporqueaci-ênciamodernasejamaisexactadoqueadaAntiguidade.Nemtão-poucosepodedizerqueadoutrinagalilianadoscorposemquedalivreéverdadeira,aopassoqueaafirmaçãodequeoscorposlevestêmtendênciaasubir,aafirmaçãodeAristóteles,éfalsa.Éistoassimdevidoaaconcepçãogregadaessênciadoscorposedelugar,bemcomodasrelaçõesentreumaeou-tra coisa,assentarnuma interpretaçãodiferentedosseres,e,por conseguinte, determinar um modo de ver e de interrogar os eventosnaturaisque,tambémele,édiferente.NinguémseporiaadefenderqueapoesiadeShakespearefossemaisavançadadoqueadeÉsquilo.Poisbem,éaindamaisimpossívelafirmarqueoentendimentomodernodaexistênciaémaiscorrectodoqueodosGregos."23

57.Adiferençaquesubsisteentreaciênciamodernaeaciênciagreganãoé,pois,umadiferençadegrau,massimumadiferença qualitativa. Na origem de tal diferença, encontra-seuma outra — anterior e mais abrangente.Éelaadiferençaqueresulta de a mente grega se ter caracterizado por uma "inter-pretação...dosseres"epor"ummododeveredeinterrogaroseventos naturais" assaz dissemelhantes dos da mente moderna —sendo, de novo, que o fundamento desta segunda grandediferença,destadiferençacomrelaçãoàquiloque,deantemão,se pretende encontrar, interrogar e interpretar no mundo da existência,reside,porsuavez,emoestado de cultura (Bildung)

23 Ibidem,pp.76–77.

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queosGregosdaAntiguidadeconfiguraramtersidoassazdis-semelhantedaquelequeohomemdaModernidadeconfigura.

58. Poroutraspalavras:—sendo,denovo,queofunda-mentodestasegundagrandediferençareside,porsuavez,emosGregos daAntiguidade teremolhado omundo da existên-ciacomaequanimidadeepistemológicaemqueaperspectivaidealista-realista consiste,eemohomemdaModernidadesecaracterizar por subterraneamente olhar esse mesmo mundo (o da existência) com a parcialidade epistemológica exacerbada(comohiper-idealismo)queocultamente o leva a decidir "por si...aquiloque,emfunçãodelemesmo,deveráserpassíveldeser conhecido"24 qua realidade objectiva — a qual é parcialidade epistemológicaa priori que, como não poderia deixar de ser,redunda a posteriori,porreacçãodialéctica,noseuoposto:nohiper-realismoenoobjectivismocomque,esquecida de que se arrogaoestatutodefundamentosubjectivodetodaaobjectivi-dade (e, por conseguinte, esquecida da sua interioridade e da suaidealidade),amentemodernasedeixaabsorver pelo mundo exteriorematerial,comoqual julgadefrontar-senaqualidadede dado objectivo.25

59. De algum modo, as relações que subsistem entrecultura qua Bildungeciênciapodemserclarificadasumpoucomaisporviadeafirmaroquesesegue.

60.Que,paraaAntiguidadeClássica,"ciência"erasinó-nimo de episteme — do "estar" (steme) que, por via de se impor "sobre" (epi)tudoaquiloquepretendenegaraquiloque"está",constitui o objectodosaberfilosóficoinegáveleindubitável—devido a o estado de cultura (Bildung) ou a equanimidade epis-temológica(oidealismo-realismo)queohomemclássicoconfi-guravaoterconduzidoarelacionar-seespontaneamentecomomundorealeexteriornaqualidadedemundocujaunidadeesis-tematicidadeobjectivassópoderiamserconhecidas,emtermosqualitativos e a um só tempo, por duas vias epistemológicas:pelaviaobjectivadaintuição(Anschauung)sensorialouempíri-ca,dadooprópriomundorealeexteriorsubsistiràpartedetodae qualquer subjectividade e idealidade, e pela via subjectiva do

24 Ibidem, p. 107.25ComoHeideggerfazver:"Essencialé,aqui,ainter-relaçãoquene-

cessariamenteseverificaentresubjectivismoeobjectivismo...omodocomoum e outro se condicionam reciprocamente". (Ibidem,p.88.)

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intelectooudaidealidade,dadonãopoderhaverinteligibilidadeindependentemente dela, e, por conseguinte, qualquer conheci-mentoinegáveleindubitável(oucientífico).

61.Que,paraa IdadeMédia, "ciência"erasinónimodedoctrina e de scientia, de conhecimento teológico-filosófico,devido a o estado de incultura (no sentido de ausência mais ou menos generalizada de Bildung) ou a parcialidade epistemo-lógica (o hiper-idealismo) queo homemmedieval configuravae a mundividência que se lhe encontrava associada (a mundi-vidênciacatólico-cristã)oconduziremaserelacionarpredomi-nantementecomomundorealeexteriordoseguintemodo:naqualidade de mundo cuja unidade e sistematicidade objectivas sópoderiamserconhecidaspelaviasubjectivadointelectooudaidealidade,devidoa,nãoobstantesubsistiràpartedetodaequalquer subjectividade ou idealidade, ele mesmo, mundo real e exterior,sercriaçãodivinae,porisso,existênciapassíveldesetornarinteligívelemtermosqualitativosapenasteologicamenteouàluzdaRevelação(aoinvésdeemtermosquantitativoseexperimentalmente).

62. Que, para a Modernidade em geral, "ciência" é prati-camente sinónimode experimentalismo, investigação emate-matismo devido a o estado de incultura (no sentido de ausência mais ou menos generalizada de Bildung) ou a parcialidade epis-temológicaqueohomemmodernoconfigura(ohiper-realismoe o objectivismo que decorrem, por reacção dialéctica, de ohomem moderno ter encontrado na sua idealidade e subjectivi-dadeamedidaformaldetodosospadrõesdemedidacomqueestabelecearealidadeeaverdadedetudoquantoémensurá-vel)26 oconduzirema relacionar-sepredominantementecomomundorealeexteriordoseguintemodo:naqualidadedemundocujaconstituiçãoeregularidadenecessárias,cujoter-de-ser, se revelampassíveisdeserconhecidasemprimeirainstânciapelaviaobjectivadaintuição(Anschauung)sensorialouempíricaeemtermosmatemáticosouquantitativos.Omesmoédizer,naqualidadedemundoque, em resultadodisso, háque investi-

26 Estas palavras constituem paráfrase das seguintes palavras deHeidegger: "Ohomeminstaura-seasimesmopadrãode todasasmedidasquedeterminarão,ecomasquaissequantificará,aquiloquehaverádeserpassíveldeserconsideradocerto.Valedizer,consideradoverdadeiroou,éamesmacoisa,consideradorealidade."(Cf. op. cit., p. 110).

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gar, interrogar, interpretar e valorar (estimar) tão-somente emfunçãodosatributosnecessáriosequantificáveisdoseuser ou dasuaactualidade—aoinvésdetambémemfunçãodosatri-butoscontingentesenão-quantificáveisdoseudever-ser ou da suapotencialidade (comoacontecianaAntiguidadeClássica),ouaindadoseuestatutoúnicoeinsuperáveldecriaçãodivina(como acontecia na Idade Média).

63.Tudoquantovemdeserexpostodizrespeitoaosdi-versosmodosporqueapresençaouausênciamaisoumenosgeneralizada de cultura qua Bildung pode determinar directa-menteaconcepçãoeapráticade"ciência"quesefazemvigen-tesnumdeterminadomomentohistórico-cultural,bemcomo,porconseguinte, o tipo de saberes em que (qua corpus de conhe-cimentos)aprópriaciênciaconsistenumtalmomento. Naquilo queconcerneàsdeterminaçõesque,demodoinverso,aciênciapodefazerrecairdirectamente sobre a cultura (Bildung), as quais nãodevemser confundidascomas relações indirectas que a própriaciênciaemgeralmantémcomacultura(Bildung) por via decontribuirdeformasignificativa(comoseiráconstatarapartirda entrada 69.) para a mundividência ou a imagem do mundo (Weltbild) deste ou daqueloutromomento histórico— naquiloqueconcerneataisdeterminaçõesdirectas,bastaráaquidaraver o que se segue.

64. Em primeiro lugar, que, muito provavelmente, se de-paracomaciênciaadeterminarapresençaouausênciadecul-tura qua Bildungdemodomaissignificativoapenasapartirdomomentoemque,tendo-seseparadosobretudodafilosofiaedateologia,aprópriaciênciaadquiriuoestatutodeconhecimentoímpareprivilegiado:apartir,porconseguinte,daModernidade.

65.Emsegundolugar,que,nãoobstantesetornarneces-sáriodistinguir,emteoria,entreasdeterminaçõesqueaculturaqua Bildungfazrecairsobreaciênciaeasque,inversamente,aciênciafazrecairsobreaculturaqua Bildung, se trata, na reali-dade,dedeterminaçõesqueseocasionamreciprocamente.Ouseja,que,mantêmumascomrelaçãoàsoutras,demodomaisoumenosacentuado,aposiçãotantodecausacomodeefeito,aoinvésdeaposiçãoestritamenteunívocaque,nomundoma-terial,acausamantémcomrelaçãoaorespectivoefeito.

66. Em terceiro lugar, que (como se depreende daquilo queacabadeserdito)asdeterminaçõesqueaciênciafazrecair

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sobre a cultura qua Bildung(asdeterminaçõesqueviadaciênciaocasionamapresençaouausênciadeculturaqua Bildung em maioroumenorgrau)assumemcarácteridênticoàsdetermina-çõesqueestaúltima(aculturaqua Bildung)fazrecairsobreaprópriaciência(melhordizendo,sobreaconcepçãode"ciência"e a actividade científica que se possam fazer predominantesnumcertomomentohistórico).Ouseja,quetaisdeterminações(asqueviadaciênciaocasionamapresençaouausênciadecultura qua Bildungemmaioroumenorgrau)sedeixamdetec-tarsobretudosoboaspectode intensificaçãoedisseminaçãocada vez mais pronunciadas (ao longo dos séculos, no mundo mentaldasociedadeemgeral,egeraçãoaseguirageração)doposicionamentoepistemológicoqueaconteçadeterminara prioriaconcepçãode"ciência"eaactividadecientíficaqueserevelemcaracterísticasdeumcertomomentohistórico—bemcomosoboaspectodeintensificaçãoedisseminaçãocadavezmaispronunciadasdosefeitosqueumtalposicionamentoepis-temológicopossaproduzira posteriori.

67. Em quarto e último lugar (e para reiterar aquilo que hápoucofoidito),que,muitoprovavelmente,asdeterminaçõesqueaciênciafazrecairsobreaculturaqua Bildung assumem proporçõesmais significativas e notórias noOcidente apenasa partir da Modernidade. Ou seja, a partir do momento em que se depara com a verdadeira ciência praticamente restringida ao estatutodeconhecimentoindutivo-quantitativo-experimental.Omesmoédizer(emfacedaparcialidadeepistemológicaqueissoacarretaporforçaconsigo):apartirdomomentoemquesede-paracomaciência(comaconcepçãoeapráticade"ciência")comoefeitosubterrâneodohiper-idealismoedosubjectivismoquehãosidodisseminadosnoOcidenteapartirdeDecartes27 e, poroutrolado,comofactorinstigadoreintensificadordohiper-

27ComoHeideggerafirma:"Deparamospelaprimeiravezcomaciên-cia-como-pesquisaquandoeapenasquandoaverdadehásidotransformadana certeza que a representação configura.Aquilo em que a realidade [das Seiende]consisteédefinidopelaprimeiravezcomoaobjectivaçãoqueare-presentaçãoopera,eaverdadeédefinidapelaprimeiravezcomoacertezaquearepresentaçãoconfigura,nametafísicadeDescartes.[...]Noseutodo,ametafísicamoderna,incluindoNietzsche,mantém-senaesferadainterpre-taçãodaquiloemquearealidadeconsiste,edainterpretaçãodaverdade,queDescartesháinaugurado."(MartinHeidegger."DieZeitdesWeltbildes".Loc. cit.,p.87.)

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realismoedoquantitativismoquedecorrem,porreacçãodialéc-tica,detalhiper-idealismo.

68. É que, na verdade (e para agora adaptar palavras de Heidegger), é a partir da Modernidade, que se depara com ohomemdoOcidentearealizar-senomundoobjectivoquaseexclusivamenteporviadesubjugaresteúltimoaoseu"poderilimitado para calcular, planear e moldar todas as coisas". É que, assim sendo, é também a partir da Modernidade, que se depara com"Aciência-como-pesquisa":comaciêncianaqualidadede"componenteabsolutamentenecessáriadessemododeoeu se realizar no mundo"; na qualidade de actividade que proporciona ao eu dominar cada vez mais mundo por via de cada vez mais introjectar realidade objectivanaesferadasuaidealidadeesub-jectividade — com o resultado de ela mesma, ciência, se revelar "umadasviasporqueaModernidadedesfilaembuscadaactu-alizaçãodasuaessênciacomumavelocidadevertiginosaqueédesconhecida dos que participam na corrida."28

69.Passemosdeseguidaaconsiderarasrelaçõesquese estabelecem entre a ciência e a cultura (Kultur) qua mundivi-dência (Weltanschauung), bem como, agora por esta via indirec-ta, com a cultura qua Bildung.

70.Asrelaçõesqueaciênciamantémestritamentecoma cultura (Kultur) qua mundividência resultam em primeiro lugar da circunstância de um dos diversos elementos que entram na constituição de umamundividência, o elemento que coincidecomacosmovisãoou imagemdaestrutura físicadouniversoquesefazvigentenumdeterminadomomentohistórico,ser,pornatureza, constructodaciênciaquedesdesemprefoidesignada"Astronomia"—a qual, naquilo que respeita à concepção daorigem, da evolução e da finalidade última do próprio univer-so,sempremanteveafinidadesestreitascomaCosmologiaeaCosmogonia (quer no passado, em que ambas, a Cosmologia e a Cosmogonia, se mantiveram ligadas ao Mito e, posteriormen-te,àMetafísica,quernopresente,emqueambasassumememparticular o aspecto da ciência que é designada "Cosmologia Física").

71.Acosmovisãoouvisãodaestruturafísicadouniversoconstitui, na verdade, um dos principais e mais decisivos ele-

28MartinHeidegger."DieZeitdesWeltbildes".Loc. cit., p. 94.

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mentos da Kultur quamundividência.E isto por duas razões.Porumlado,porquequeéemgrandeparteporrelaçãoaela,cosmovisão,quesetornapossívelaferiraactualidade (e ade-quação) ou a preteridade (e a desadequação) dos restanteselementos ou das restantes imagens do mundo que constituem uma mundividência. Por outro lado, porque, em resultado disso, étambémporrelaçãoaela,cosmovisão,quesetornapossívelaferirsesedeparaounãocomcoerênciaeunidadehistorica-mente sincrónicasentreosvárioselementosdediversaordem(entreasváriasimagens dosváriosaspectosdo mundo) que em geralsubsistemnointeriordaesferanocionaldeumadetermi-nada mundividência.

72.Comvistaaelucidaroqueacabadesedito,passe-sea falarem termosconcretos. Istoé,passe-sea fazerverqueéemgrandeparteporrelaçãoàcosmovisãoouà imagemdaestrutura física do universo, que se torna possível:—Por umlado,aferir,nointeriordamundividênciamedieva,epartindoalida imagem aristotélico-ptolomaica do universo, a actualidade (eaadequação)dasinterpretaçõescatólico-cristãsdeHomem(Menschanschauung), de Vida (Lebensanschauung), de Deus (Gottanschauung) e de Salvação (soteriologia), bem como aexistênciade (total ouquase total) coerênciaeunidadeentretodos esses elementos.29 Por outro lado, aferir, no interior damundividência Moderna30, e partindo ali tanto da imagem coper-niciano-keplerianadouniversocomodadependência, por parte desta,dafísicanewtoniana,apreteridade(eadesadequação)dos persistentes resquícios daquelas mesmas interpretaçõescatólico-cristãs,bemcomo,assimsendo,a inexistência (total)decoerênciaedeunidadeentre(i)eles(resquícios),(ii)apró-priaimagemcoperniciano-keplerianadouniversoe(iii)asnovas interpretaçõesdeHomem,deVida,deDeusedeSalvaçãoque

29Comoésabido,talcoerênciaeunidadeforam,aliás,ograndedesíg-nioqueTomásdeAquinoteveemvistaalcançaraoadequarentresiafísica,ametafísicaeaastronomiaaristotélicas(queentraram no Ocidente latino, a partirdoséculoXII,pelamãodosÁrabes)e,poroutrolado,aantigatradiçãocristãplatónico-neoplatónica-agostiniana,que,desdehaviamuito,seencar-regaradehomogeneizareinstituirasdiversasinterpretaçõesqueacabamdeserreferidas.

30Naverdade,nasobreposição indevida da mundividência Moderna comaantigaeultrapassadamundividênciamedieva(vejam-se,atrás,asen-tradas41–43destasecção).

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essa mesma imagem do universo (a copeniciano-kepleriana)tem vindo a impor desde mais ou menos o século XVII.

73.Traz-nosesteaspecto,odapresençaouausênciadecoerênciaedeunidadeentreoselementosdeíndolediferenteque constituem uma mundividência, a outros dois aspectos im-portantes.Umdestestemaverprecisamentecomasrelaçõesque a ciência estabelece com a cultura qua Bildung pela via in-directa da cultura (Kultur) qua mundividência (Weltanschauung); o outro aspecto tem a ver com as consequências de cariz cultu-ralqueainstauraçãodeumanovacosmovisãoouimagemdaestrutura físicadouniverso, por parteda ciência eno interiordeumaantigaoutradicionalmundividência,acarreta,porforça,consigo.

74.Comosehávisto(nasanterioresentradas19.–20.),a cultura qua Bildung, paideiaou formaçãoconsiste,aumsótempo, numa actividade e num estado. Sob ambos estes as-pectos, deparamos com ela, como se torna evidente, apenas no indivíduoqueconscientemente(melhordizendo,queautocons-cientemente) se quer,eseesforçapordevir,homemdeculturaou homem cultivado. O grande e único telos de um tal querer e doesforçoqueoacompanhaé,vimo-lojá,aconcretizaçãoouactualizaçãonoindivíduododever-ser—daexcelência,virtude(aretê) ou perfeição (Vollkommenheit) em potência — da espé-cie "Homem", sendo que, enquanto actividade, a cultura qua Bil-dungconsistenacontínuaconstrução(noeporpartedoindiví-duo) da unidade (entre idealidade ou pensamento e realidade ou sensorialidade) sem a qual esse mesmo dever-ser(formal)nãopoderádevirser(vidaqueéindistinçãoentreformaematéria).

75. Trata-se, como se percebe, de unidade-connosco-mesmos e, como tal, de unidade que, ao invés de poder ser construídaoualcançadade uma vez por todas,apenasépassí-vel de ir sendo concretizada ao longo de toda uma vida, encon-trando-seaquiarazãoporque,apardesempreseractividade, a cultura qua Bildung sempre é, também, estado produzido:es-tadodemaioroumenoraproximação,precisamente,àcompletaesempreinalcançávelunidade-connosco-mesmosaqueSchil-ler chama (como se viu) "ser humano puro e ideal".

76. Ora bem, em que consiste, de novo, ser unidade-connosco-mesmos?Consiste,comosetornaevidente,emnãovivermosemcontradiçãoconnoscomesmos.Ouseja,consiste

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emexistirmoseagirmosnomundorealeobjectivodeacordoeem unidade sobretudo com a mundividência (a Kultur qua Wel-tbild ou imagem do mundo)queautoconscientementefazemosnossa em pensamento ou no nosso mundo ideal e subjectivo — aoinvés,porexemplo(eparafalaremtermosespecíficos),devivermos e agirmos no mundo real e objectivo de acordo com a mundividência actual que a ciência stricto sensu ora determina aonosso tempo (àModernidade),evivermosnomundo ideale subjectivo de acordo com a mundividência oposta e pretérita que a teologia-scientia católico-cristã há determinado à IdadeMédia.

77.Aquiloqueacabadeserditosignificaduascoisas.78. Uma delas é, como se torna evidente, que jamais se

poderádevirgenuínacultura(Bildung),aproximaçãoaumesta-dodeequanimidadeepistemológicaentreidealidadeerealidadeou(aproximação)aumapercepçãoidealista-realistadomundo,se,porexemplo,existirmoseagirmosnaesferareal(eobjecti-va) com a miradahiper-realistaquedeterminaamundividênciadaModernidade(equeaciênciamodernatendeafomentarnamente moderna), e, por outro lado, subsistirmosnaesferaideal(e subjectiva) com a mirada hiper-idealista quehádetermina-doamundividênciada IdadeMédia (equea teologia-scientia católico-cristãháfomentadonamentemedieva).

79. A segunda coisa é que, do mesmo modo, jamais po-deremos devir verdadeira cultura (Bildung)senãoassumirmosindividualeautoconscientementeumaposiçãofilosóficafaceàcultura (Kultur), faceàmundividência, quea ciênciamodernaora determina àmente ocidental (western mind), ao invés de apenas a consideramos colectivamente nossadeformamaisoumenosinconscientee,porconseguinte,demodopassivo,não-examinadoeindefinidoounebuloso.

80.Omesmoédizer,senãonossituarmos filosoficamen-te,comrelaçãoàcosmologia(àimagemdaestruturafísicadouniverso) que a ciência moderna depositanaesferadamundi-vidência (ou da Kultur)queorasefazvigente,deumadasduasseguintesmaneiras:(i)oumantendoperanteela(acosmologiamoderna), em nome da humana integridade e totalidade (All-gemeinheit) epistemológicasemqueo idealismo-realismona-turalmenteconsiste,umaatitudedesuspensãode juízo,bemcomotambém,porconseguinte,perantequalquerinterpretação

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de divindade (Gottanschauung), de sentido último da vida (Le-bensanschauung) e de salvação-redenção (soteriologia) quesubjectiva-idealmentepossamosconstruir; (ii)ouassentindoàsua verdade objectiva, e, de novo em nome da humana integri-dadeetotalidadeepistemológicasemqueoidealismo-realismonaturalmente consiste, construindo subjectiva-idealmente umaGottanschauung, uma Lebensanschauung e uma soteriologia quecomelasejamcoerentesoucompatíveis—eque,porcon-seguinte,nãoentrememlinhadecontacomas(pretéritas) con-cepçõesquemaishãocaracterizadoamundividênciamedieva(asconcepçõesdeDeusqua criador do universo, de Natureza e de Homem quacriaçõesdivinas,deimortalidadepessoaldaalmaedejustiçacósmica).

81. De modo a tornar mais claro tudo quanto acaba de serdito,importatrazeraqui,agora,palavrasdeOrtegaYGas-set e, depois, de Bertrand Russell — as primeiras (as palavras deOrtegaYGasset), comvistaa corroboraras relaçõesquese há detectado entre a culturaqua Bildung e, via da cultura (Kultur) qua mundividência, a ciência stricto sensu; as segundas (aspalavrasdeBertrandRussell),comvistaatornarperceptí-vel quais são as consequências que decorrem, no interior daactual mundividência, da imagem do universo que a astronomia e a cosmologia (que estas duas ciências) presentemente nos apresentam.

82. Noseuescrito"MissãodaUniversidade"("Misiondela Universidad"), Gasset põe em evidência, como se há feitoaqui,quaissãoasprincipaisrelaçõesquenaturalmentesees-tabelecementreciênciaecultura.Contudo,aofazê-lo,identifica"cultura" apenas com a Kultur qua mundividência, com o resul-tadodenãotornarexplícitoqueasrelaçõesqueobservaentreesta última (a Kultur qua mundividência) e a ciência implicam também o conceito de "cultura qua Bildung".

83.Acertaalturadaqueleseuescrito,Gassetrevelaen-tender o conceito de "ciência" apenas no sentido de "actividade", ao invés de também no sentido de "corpus de conhecimentos". Dizele:"Noseusentidopróprioegenuíno,ciênciaétão-somenteinvestigação:colocar-seproblemas,trabalharparaosresolverechegaraumasolução.Apartirdomomentoemqueseháche-gadoaestaúltima,tudooquesepossafazercomelajánãoé

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ciência. Assim sendo, não constitui ciência aprender ou ensinar uma ciência, bem com usar ou aplicar uma qualquer ciência."31

84.Deacordocomisso,Gassettendeasepararaciên-cia propriamente dita da cultura, ao invés de considerar, como se tem feitoaqui, que,enquantocorpus de conhecimentos, a própriaciênciaconstituicultura(Kultur)oupartefundamentaldeuma mundividência. Que assim acontece, na verdade, testemu-nham-no,porexemplo,asseguintespalavras(asquais,noen-tanto,entramemcontradiçãoconsigomesmas,aoafirmartantoque"aculturanãoéaciência"comoque"Há pedaços inteiros da ciência que não são cultura"):"Nanossaépoca,oconteúdoda cultura vem, na sua maior parte, da ciência, sendo que esta afirmaçãoésuficientepara tornarclaroqueaculturanãoéaciência. A circunstância de hoje se acreditar na ciência mais do queemqualqueroutracoisanãoé,emsi,umfactocientífico,massimaexpressãodeumafévital—e,porconseguinte,ex-pressãodeumaconvicçãoqueécaracterísticadanossacul-tura.Quinhentos anos atrás, acreditava-se nosConcílios, e oconteúdo da cultura emanava em boa medida destes. A cultura, portanto, fazcomaciênciaomesmoquefaziacomareligião[profesión];extraidelaquantosejavitalmentenecessárioparainterpretaranossaexistência.Há pedaços inteiros da ciência que não são cultura, mas sim apenas pura técnica científica. Pelo contrário, a cultura necessita— por força, queira-se ounão—estarnapossedeuma ideiacompletadomundoedohomem..."32

85.Acontradiçãoquesesinalizouparenteticamente(naentrada imediatamenteanterior)é,naverdade,significativa.Eistoumavezque,nãoobstanteaquiloqueacabámosdeler,Or-tegaserefereàFísica,emoutrospassos,emtermosqueclara-mentepressupõemoentendimento(queaquitemsidoseguido)de que, enquanto corpus de conhecimentos, a ciência constitui cultura (Kultur)oupartefundamentaldeumamundividência.

86.Acertaaltura,eporexemplo,Gassetafirma:"Afísicaeoseumodomental sãoumadasgrandes rodas íntimasdaalma humana contemporânea. Nela, desembocam quatro sécu-

31JoséOrtegayGasset.MisiondelaUniversidad y outros Ensayos sobre Educacion y Pedagogia.Madrid,Alianza,2010,pp.54–55.(OitálicoédeGasset.)

32 Ibidem,p.65.(OitálicoédeGasset.)

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losdeactividadeintelectiva,easuadoutrinaentrelaça-secomtodas as demais coisas essenciais do homem actual — com a sua ideia de Deus e da sociedade, da matéria e de tudo quan-to nãoématéria."Deparamosaqui comumentendimentode"Física" que, sem dúvida alguma, aponta no sentido de essaciência constituir, enquanto corpus de conhecimentos, parte significativadanossaactualmundividênciae,porconseguinte,da nossa Kultur.Comoseissonãobastasse,deparamosaindacomGassetadistinguiraFísicaquaactividadeeprofissãoda—atente-sebem—"físicadaCultura".Aconteceissonoseguintepasso:Na'FaculdadedeCultura,nãosehaverádeexplicaraFísica sob o aspecto que esta adquire para quem vá ser uminvestigadorfísico-matemáticoavidainteira.AfísicadaCulturaconsiste na rigorosasínteseideológicadaimagemedasopera-çõesdocosmosmaterial,deacordocomoqueasfazemserainvestigaçãofísicafeitaatéaopresente."33

87.Naquiloquerespeitaàcultura,Gassettornabastanteevidenteque,doseupontodevista (parcial),elacoincideex-clusivamente com o sistema de ideias que possa constituir a mundividência ou a imagem do mundo (Weltbild) — a Kultur — deumdeterminadomomentohistórico.Afirmaele,porexemplo:"Cultura é o sistema vitaldeideiasdecadatempo".Ou,então:"...ideiasclarasefirmesacercadoUniverso,convicçõespositi-vascomrelaçãoaoqueascoisaseomundosão.Oconjunto,o sistema, de tais ideias é a cultura no sentido verdadeiro do termo".34

88.Ora,partindodasconcepçõesde"ciência"ede"cultu-ra"queseacabadeconsiderar,Ortegachegaaumaconclusãoessencial, que corrobora tudo quanto aqui tem sido dito acerca dasrelaçõesciência-cultura.Éelaaconclusãodequenãosetornapossívelserculturaqua Bildung(ouculto,nodizerdeGas-set) sem se conhecer a mundividência — sem se estar na posse da imagem do mundo (Weltbild) ou da Kultur — do nosso tempo (paraaformaçãodaqualaciênciacontribui,comosehávisto,deformadecisiva).

89. Como testemunho daquilo que vem de ser dito, temos, porexemplo,asseguintespalavras:"...osenhorquedizsermé-dicooumagistradoougeneraloufilósofooubispo—significa

33 Ibidem,p.38,pp.67–68.34 Ibidem, pp. 36, 35.

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isto,queafirmapertenceràclassedirigentedasociedade—,seignoraoqueéhojeocosmosfísicoparaohomemeuropeu,éumperfeitobárbaro,pormuitoquesaibadesuasleis,desuasmezinhasoudeseussantospadres."Ou,então,estas:"Quemnãopossuiraideiafísica(nãoaciênciafísicaemsimesma,ape-nasaideiavitaldomundoqueelahácriado),aideiahistóricaea ideiabiológica,esseplanofilosófico,nãoseráumhomemculto.[...]Nãoháremédio:parasepoderandarcomacertonaselvadavida,háqueserculto,háqueconhecerasuatopogra-fia,assuasrotasou'métodos';ouseja,háqueterumaideiadoespaçoedotempoemquesevive,umaculturaactual."35

90.Agora,tudoistoparececonfirmaraideia,quetãoque-rida é do nosso hiper-realista e confuso tempo, de que, paraser cultura e "andar com acerto na selva da vida", basta, pura e simplesmente, conhecer, saber ou ter aprendido tudo acerca da mundividência ou da Kultur do nosso moderno presente. E, naverdade,ofactodeGassetexcluiraculturaqua Bildung do forodacultura(comosehávisto)nãopodedeixarderedobraraaparência de que assim seja.

91. Acontece, porém, que uma coisa é conhecermos, sa-bermos ou termos aprendido tudo acerca da mundividência ou da Kulturdonossomodernopresente;outra,muitodiferente(masmesmomuitodiferente),devirmosculturaqua Bildung, paideia ouformaçãodiaadia,momentoamomento,porviadecontinu-amentevivermos,emacçõeseempensamento,emcoerênciae unidade com uma tal mundividência ou Kultur (ou com a po-siçãointeriorqueautoconscientementehavemostomadofaceaela)—como,afinal,opróprioGassetacabaportornarevidente,aofazerafirmaçõesqueinequivocamentepressupõem(porquenele assentam) o conceito de "cultura qua Bildung".36

92. Ouçamo-lo, com a ideia emmente de que a cultu-ra qua Bildung consiste essencialmente na actividade de nos elevarmos da nossa condição de homem à condição de Ho-mem,derepresentanteemcarneeossoeespíritodaespécie

35 Ibidem,pp.38–39,39–40.36Adiferençadeterminantequesubsisteentreaculturaqua Bildung e

o mero conhecimento da mundividência ou da Kulturdonossopresentehistóri-coé,afinal,amesmaquesubsisteentrecomidaqueseháingeridoedigerido,queporessaviasehátransformadoemcorpoeespírito,ecomidaqueseco-nheceecujaexterioridadeseécapazdedescreveraopormenorsemjamaisa ter ingerido e digerido.

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"Homem":—"...hásempreumsistema de ideias vivas que re-presentaonívelsuperiordotempo,umsistemaqueédetodoactual.Essesistemaéacultura.[...]Compermanecerabaixodonívelvitaldoseutempo,ohomemconverte-se—relativamente—numinfra-homem."37

93.Porfim,atentemosnestassuasoutraspalavras(semdeixardenotarquepõemtodaaênfasena"vida",emlugardenomero"saber"ou"conhecer"):—"Aculturaéumacomponenteimprescindíveldetodaavida,éumadimensãoconstitutivadaexistênciahumana,comoasmãossãoumatributodohomem.Porvezes,ohomemnão temmãos;mas,então, tampoucoéhomem,anãosercomohomemsemmãos.Domesmomodo,sóquenumsentidomuitomaisradical,podedizer-sequeumavidasemculturaéumavidamanca,fracassadaefalsa.Oho-memquenãoviveàalturadoseutempoviveabaixodaquelaqueseriaasuavidaautêntica;ouseja, falsificaouvigarizaasuaprópriavida,desvive-a.[...]Daíaimportânciahistóricade...se lhe ensinar a cultura do tempo actual na sua plenitude, de se lhe revelar de modo claro e preciso o gigantesco mundo que se avistadonossopresente,noseiodoqualterádeequacionarasuavida,paraqueestapossatornar-seautêntica."38

94. E, afinal, qual é, em traços largos, "o gigantescomundo que se avista do nosso presente"? Que consequências terríveisacarretaele,pelamãodaactualciência,paraamundi-vidência ou Weltanschauungdonossomomentohistórico?Comrelaçãoa isso,consideremosaspalavrasdeBertrandRussellqueforamreferidasatrás(naanteriorentrada81).

95. No seu escrito "A FreeMan'sWorship" ("AReligio-sidadedeumHomemLivre"),39Russell justapõe,comvincadaironia, a mundividência moderna e a mundividência medieval, a qualvianaestruturafísicadouniverso(queherdaradeAristóte-lesedePtolomeu),literalmente,opalcoqueotodo-poderosoebondosodeusdatradiçãocatólico-cristã(Javé)criara,paraquenele pudesse ter lugar (deacordo coma concepçãode "His-tória" deS.Agostinho) o grande dramauniversal da queda eredençãodohomem.

37JoséOrtegayGasset.Op. cit.,pp.64–65.38Ibidem,pp.66–67.39BertrandRussell."AFreeMan'sWorship".In: —. The Basic Writings

of Bertrand Russell.Ed.RobertE.EgnereLesterE.Denonnn,London,Rou-tledge,2009,pp.38–44.

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96.Russell começapor pôr nabocadeMefistófeles (odiabo do Doutor Fausto de Christopher Marlowe e do Fausto de Goethe)palavrasquetransmitemoaborrecimentodeJavécomo merecido louvor que, no céu, os anjos lhe dispensavam ad ae-ternum:—"Nãoseriamaisdivertidoobterlouvorimerecido,seradoradoporseresqueEletorturasse?"Sorrindointeriormente,Javé,concluiquesim,eeisque,então,decideque"ograndedramadeveriacomeçar".

97.Segue-seumadescriçãodamultimilenarformaçãoeevoluçãodouniverso,apartirdegasesenuvensácidas,queemtudoserevelafielàcosmogoniaaqueaciênciamodernanosháhabituado.Segue-setambémaformaçãodosplanetase,naTerra,oaparecimentodohomem,oqual, àmedidaemque o grande drama se vai desenrolando, decide de si para si oseguinte:queháumafinalidadeescondidanouniversoenavida;que tal finalidadeébenéfica,ao invésdemaléfica;que,assimsendo,Deushádecididoqueaharmoniahaveriadedes-pontardocaosedacrueldadedaNaturezaporviadoesforçohumano;queteria,porforça,dehaverumesquemadesalvaçãoque pusesse a Vida Eterna ao seu alcance; que um tal esquema teria de consistir em ele, homem, apaziguar a ira de Deus com opecadoporviadeOadorarcomtodasassuas forçasederenunciar completamente aos prazeres da vida terrena.

98.Eeisque,constatandoqueohomemsehátornadoperfeitoemOamar,Olouvareemrenunciaraosprazeresterre-nosemSeunome,Deussorri—para,deseguida,fazerqueumoutroSolembatacontraoSoldomundodohomem,comacon-sequênciadeouniversovoltaràsuainicialcondiçãoinformedeamontoadodegasesedenuvensácidas."'Bestial!'murmurouEle.'Foiumexcelentedrama;ireipô-lodenovoempalco.'"

99.Pronuncia-nosRussell,então,aspalavrasquesese-guem."Éeste,emtraçoslargos,masaindamaissemfinalidadeesentido,omundoqueaCiêncianosdáaconceber.Numtalmundo,seemalgumlugar,terãoosnossosideaisdeencontrarde ora em diante a sua morada e o seu lar. Que o homem é resultadodecausasquesehãomantido inconscientesdofimquehãoproduzido;queasuaorigem,asuaevolução,assuasesperançasereceios,assuaspaixõeseassuascrenças,sãooresultadodeconjunçõesacidentaisdeátomos;queavidadeumindivíduonãopoderáserestendidaparaalémdasepulturapor

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qualquerfogosidade,qualquerheroísmo,qualquerpensamentoousentimentoassazintenso;quetodooimensoesforçodeto-dasaépocas,todaadevoção,todaainspiração,todooesplen-dorsolardahumanacriatividade, têmpordestinoextinguir-secom a vasta morte do sistema solar;40 e que o imponente templo dosfeitosedasconquistasdohomemhaverá,inevitavelmente,de ser soterrado por completo na poeira de um universo em ru-ínas—quetudoistoépraticamentecerto,senãomesmonão-passíveldeserdiscutidoepostoemdúvida,atesta-oofactodenãopoderserrejeitadoporqualquerpensamentofilosóficoquenutraaesperançadeser levadoemconta.Éexclusivamentesobreosolodestasverdades,sobreofundamentofirmedeumdesesperoquenãovacileenãoceda,queahabitaçãodoespíri-topoderádeoraemdianteserconstruídacomsegurança."

100. Eis aqui, na verdade, o retrato do universo, e, com ele e por via dele, o retrato de Deus, do homem, da vida, da arte,dareligiãoedaciência,queaciênciamodernastricto sen-su nos dá a contemplar no interior da esfera, cada vezmaisvasta e cada vez mais apertadaeasfixiante,danossamodernamundividência. O mesmo é dizer, da nossa moderna imagem do mundo (Weltbild) ou da nossa moderna Kultur.

101. E eis também que, em vista disso, três circunstâncias serevelamcertas,senãomesmonão-passíveisdeserdiscuti-das e postas em dúvida.

102. Uma delas é a circunstância de a nossa moderna mundividênciaserdiametralmenteopostaàqueaantecedeu(amedieva), como demonstra até mesmo uma leitura apressada, porexemplo,deA Divina Comédia, de Dante Alighieri.

103. Outra, é a circunstância de, assim sendo (e como se hávistonaanteriorentrada78.),jamaissepoderdevirculturaqua Bildung enquanto se persistir em viver com o corpo e a men-te no admirável mundo novo(noterríveluniversofísico)queaciência ora nos descreve e com a alma no maravilhoso universo físico (noberçodoMeninoJesus)quea teologiaeascientia medievaishãoinfantilmente desenhado.

40Comosetornaevidente,RusselltemaquiemmenteofimdaenergiaqueoSolcontéme,porconseguinte,a inevitávelmortedopróprioSol—aqualpareceirocorrerdaquiacercadecinquentamilhõesdeanosehásidoprimeiramenteanunciadapelasegundadasleisdaconservaçãodaenergia,queofísicoalemãoHermanHelmholtzformulouem1847.

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104.Aterceiracircunstânciaéesta:ade,quersequeiraquernão,"ahabitaçãodoespírito"sópoderviraser"construídacomsegurança" "deoraemdiante"porviadeespírito (ideali-dade)ecorpo(realidade)secom-afirmaremequanimementeecom"desesperoquenãovacileenãoceda":porviadeBildung, paideia,educaçãoestética:porvia,enfim,de,nãoobstantesa-berquetodososseusesforçosseencontramdestinadosaser"soterradoporcompletonapoeiradeumuniversoemruínas",ohomemserevelarcapazde,qualTitãouÜbermensch,existire agir com virtude (aretê) e perfeição (Vollkommenheit) desin-teressadamente (esteticamente): sem ter por paga quaisquer promessas de quaisquer deuses. Ou seja, tendo por recompen-sa,redençãoousalvaçãotão-somenteaconcretizaçãodoseudever-sernoaqui-e-agora;tão-somenteatotalidade(Allgemei-nheit) e integridade epistemológicas que a espécie "Homem"formalmentelhedetermina!

105.Falou-se, lámaispara trás(naentrada73.dapre-sentesecção),dasconsequênciasdecarizculturalqueainstau-raçãodeumanovacosmovisãoouimagemdaestruturafísicado universo, por parte da ciência e no interior de uma antiga outradicionalmundividência,acarreta,porforça,consigo.Poisbem, aquilo que acaba de ser posto em evidência (na entrada imediatamente anterior a esta) configura, enquanto corolárioinevitáveldoretratodouniversoedohomemqueRusselltraça,asupremaconsequênciadecarizculturaldanovacosmovisãoqueachamadaRevoluçãoCopernicianaháinstauradonoseioda antiga e ainda tradicional mundividência medieval. Ou seja, configuraasupremaconsequênciadecarizculturaldarevolu-çãoque,tendocomeçado,pelamãoCopérnico,comaafirma-çãodoheliocentrismoedoconsequenteplanetarismodaTerra,veioaredundarnaconsolidaçãodaNovaCiênciaenoapareci-mentodonovoSistemadoMundodosPrincípios Matemáticos deNewton,bemcomo,poressavia,nacompletadestruiçãodaprópriamundividênciamedievaloudaprópriaKultur do mundo católico-cristão.

106.Aesterespeito,considerem-seasseguintespalavrasdeThomasKuhn:"Aconstruçãodomundocorpuscularemecâ-nicodeNewtoncompletaarevoluçãoconceptualqueCopérnicohavia iniciado cento e cinquenta anos antes. No seio desse novo universo,asquestõesqueainovaçãoastronómicadeCopérnico

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havialevantadoencontraram,porfim,resposta,eaastronomiacoperniciana tornou-sepela primeira vezplausível em termosfísicosecosmológicos.[...]OuniversodeNewtonnãosereve-lou, porém, tão-somenteumaestrutura capazdeacomodarejustificaroplanetarismoqueCopérnicoconcederaàTerra.Demodomuitomais importante, revelou-se ele uma forma novade conceber a Natureza, o homem e Deus, uma nova perspec-tivacientíficaecosmológica...Aquiloqueouniversoaristotélicohaviafeitocomrelaçãoàastronomiageocêntricapassouaserfeitopelouniversonewtonianocomrelação,agora,àastronomiacoperniciana.Cadaumdessesuniversosconfiguraumamundi-vidência que liga a astronomia a outras ciências e que também arelacionacomopensamentonão-científico...AconcepçãodaTerra comoplaneta constituiu o primeiro corte eficaz comumelemento constitutivo da mundividência antiga. Embora se de-pare,naorigemdessaconcepção,apenascoma intençãodelevarpordianteumareformaastronómica,veioelaaterconse-quênciasdestrutivasquesópoderiamsercolmatadasnumnovohorizonte intelectual."41

107.Kuhnfala-nos,nestepasso,damundividênciaantigae da mundividência moderna. A primeira delas, que se estende daGréciaClássicaaofinaldaIdadeMédianaquiloqueconcer-neàsuaimagemcosmológica,alberganoseuseioouniversoaristotélico; a segunda, que se estende mais ou menos do sé-culo XVIII até aos nossos dias, alberga na sua sphaera notionis ouniversonewtoniano:ouniverso,emgrandeparte,quevimosRusselldescreveremtraçoslargos.

108.Istonãosignifica,porém,queouniversonewtonianose tenha mantido completo, intacto e coerente ao longo dos sé-culos.Naverdade,ecomoKuhnnosdáaver:"Talcomoacon-teceu com o Aristotelismo anteriormente a ele, o Newtonianismo acabouporsuscitarquestões—destavez,nointeriordaFísica— e técnicas de investigação que não poderiam ser reconci-liadascomamundividênciaqueasfezsurgir.Nodecursodosúltimos cento e cinquenta anos, temos vivido no seio da revolu-çãoconceptualaqueissodeuorigem,aqual,denovo,estáamodificar,namentedocientista(emboraaindanãonadoleigo)

41ThomasS.Kuhn.The Copernican Revolution: Planetary Astronomy in the Development of Western Thought. Cambridge, Mass., Harvard Universi-tyPress,2003,pp.261,26364.

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oentendimentodeespaço,dematéria,deforçaedaestruturado universo."42

109.EntreasquestõesetécnicasdeinvestigaçãoaqueKuhnaquiserefere,encontram-seasqueserelacionamdirec-tamentecomofactodeasleisnewtonianasdagravitaçãonãose terem revelado aplicáveis a fenómenos não-gravitacionaiscomo a electricidade, bem como ao facto deNewton não terconseguido encontrar explicação para a pressuposta circuns-tância(misteriosa)deaforçadagravidadeactuarsobretodososcorposdouniversoàdistância.Ouseja,semsertransmitidade um ponto para outro por um qualquer medium que preen-chessetodooespaço.

110. Emoposição ao próprioNewton (1643–1727), e jáantesdele,Descartes(1596–1650)eLeibniz(1646–1716)ha-viamdefendidoque,ao invésdeseencontrarpreenchidoporagregados de átomos ou de corpúsculos separados uns dosoutros pelo vazio, o universo era constituído por um imensocontinuum de corpúsculos em permanente contacto uns com os outros (Descartes) ou por um imenso continuum de corpúsculos ligadosunsaosoutrosporumaforçarepulsiva(Leibniz).Efoi,afinal,porviaderecuperarecomplementarestasideias,queoinglêsMichaelFaraday(1791–1867)veioadarinícioàprimeiragrandeconcepçãodouniversoqueomundo-máquinanewtonia-no teve de acomodar no seu interior.43

111.Aoafirmarque"temosvividonoseio"deumanova"re-voluçãoconceptual""nodecursodosúltimoscentoecinquentaanos",Kuhnestaria,porém,apensarsobretudonumaoutraeprovavelmentemuitomaisconsequentemundividência:aquelaque,semdeixardepassarpeloscontributosdeEinstein,setemvindo a insinuar no horizonte conceptual do Ocidente a partir em particular da bancadadaFísicaQuântica.

112. Ao terminar o seu sugestivo relato das grandes mun-dividênciascientíficasqueoOcidentetemvindoaconheceraolongodosmilénios,RichardDeWittabordaaimportantequestãodesaberatéquepontoa concepçãonewtonianadouniversoserácapazdecontinuaramanter-sede péfaceaoscontributos

42 Ibidem, p. 265.43Aesterespeito,veja-se:WilliamBerkson.Fields of Forces: The De-

velopment of a World View from Faraday to Einstein.London,RoutledgeandKeganPaul,1974.

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deEinsteineàsdesconcertantesdescobertaseimplicaçõesdaFísicaQuântica.

113.Comrelaçãoaoprimeirodestesdoisaspectos(oqueseprendecomos contributosdeEinstein), afirmaele: "Àpri-meira vista, as implicações da teoria da relatividade parecemserbastantesubstanciais.Asimplicaçõesdarelatividade—porexemplo,queoespaçoeo tempopodemserdiferentesparaobservadoresdiferentes—contradizemas fortes noçõesquemantemoscomrelaçãoànaturezadoespaçoedotempo.[...]Estas noções— de que o espaço e o tempo são absolutos— encontram-se explicitamente formuladas nos Principia de Newton.[...]Dentrodosistemanewtoniano,taisnoçõespodemsersubstituídas [pelasdeEinstein]semqueagrandemaioriadaspeçasdopuzzlenewtonianosejaalterada....asubstituiçãodacrença [newtoniana]noespaçoeno tempoabsolutospelacrença[einsteiniana]noespaçoenotemporelativosnãorequerquesesubstituatambémamecanicidadegeral[dosistemadeNewton]....Algosemelhanteacontececomimplicaçõescomoasdacurvaturadoespaçoecoma...explicaçãodagravidadequea relatividade apresenta. É surpreendente descobrir que o es-paço-tempopodeserinfluenciadoecurvadopelapresençadematéria.[...]Porém,tambémestasimplicações...nãorequeremqueserejeiteaspeçasnuclearesdopuzzle newtoniano."44

114.Comrelaçãoaosegundoaspecto(oqueseprendecomasdescobertaseimplicaçõesdaFísicaQuântica),DeWittdizoseguinte:"Emcontrastecomasdateoriadarelatividade,as implicaçõesdasnovasdescobertasqueenvolvema teoriaquântica...parecemrequerermudançassubstanciaisnagene-ralidade da imagem newtoniana do universo. De novo, na con-cepçãonewtonianadouniverso,oprópriouniversoéentendidocomo uma série de eventos que se sucedem uns aos outros mecanicamente.[...]Objectoseeventosinfluenciamoutrosob-jectos e eventos... e as interacções [que assim ocorrem] sãointeracçõeslocalizadas,queseproduzemapenasentreobjec-toseeventosquedealgummodoestãoligadosunsaosoutros.Parece, porém, que este aspecto fulcral da visão newtonianadouniversonão irá podermanter-se, emvista dadescobertadenovosfactosquânticos....Podemosnãoentendercomoisso

44 Richard DeWitt. Worldviews: An Introduction to the History and Philo-sophy of Science.Oxford,Wiley–Blackwell,2010,pp.343–44.

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épossível,masvivemosnumuniversoquepermitequeinfluên-ciasinstantâneasenão-localizadasocorramentreeventos,atémesmo entre eventos separados uns dos outros por distâncias substanciais e entre os quais nãopodeaparentemente haverqualquertipodeligaçãooucomunicação.Ninguémsabecomo o universo pode ser assim; apenas que o universo é assim."45

115. Unspoucosparágrafosadiante,DeWittcomenta:"Seestoucertocomrelaçãoaisto,entãoestamosaviverumperío-doqueéemmuitosaspectossemelhanteaodoiníciodoséculoXVI. Naquela altura, novas descobertas, tais como as que pas-saramporGalileuepelo telescópio,acabaramporconduziraum modo radicalmente novo de conceber o tipo de universo em quevivemos.Hoje,eparasermodesto,adescobertade...influ-ências[entreeventosentreosquaisnãopodeaparentementehaver qualquer tipo de ligação ou comunicação] obriga-nos aabrirmãodavisãonewtonianadequeouniversooperaemter-mos totalmente mecânicos. E suspeito de que estamos em pre-sençaapenasdapontadoiceberg;dequeessadescobertanosirálevar,àsemelhançadaquiloqueaconteceunoséculoXVI,aumaconcepçãoradicalmentediferentedotipodeuniversoemque vivemos."46

116.Échegadaaalturaderumarparaarectafinaldestaúltimasecçãoconsiderandoaprimeiragrandequerela entre cul-turaeciência,evice-versa,comquesedeparaemresultadode,aochegarmosaoséculoXIX,seencontraraciênciamodernajáno seu estado adulto e a rivalizar, nas mentes dos homens e no seiodasinstituições,comaantigatradiçãodosstudia humani-tatis,que,naRenascença,haviainstaurado,porassimdizer,oprimeiro grande corte com a mente medieval.

117.Trata-sedaquerelaentreograndedefensorpúblicode Charles Darwin, da nova causadaevoluçãodasespéciesedaciênciaemgeral,ThomasHenryHuxley(182595),eopoetaeensaístaMatthewArnold(1822–88),osquaisforammencio-nadosatrás(emnotaderodapéàentrada52.dasecçãoVI.),naalturaemquesefezbrevereferênciaàstrêsgrandesquerelas a que o aparecimento da ciência stricto sensu tem vindo a dar azoaolongodosséculos:aquerelaReligião-Ciência,aquerela

45 Ibidem, p. 345.46 Ibidem, p. 346.

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Humanidades-Ciênciaeaquerela entre Ciência e aqueles que a acusam de constituir Cientismo.

118.Comosedisseentão,aquerela que ora nos propo-mos considerar tal como nos é dada a ver por dois dos seus maisdistintosadversárioschegouaténósnaformadedoises-critosoitocentistas:"ScienceandCulture"(deT.H.Huxley)e"Li-teratureandScience"(deMatthewArnold)—sendoque,comose irá ver daqui emdiante, estesmesmos dois libelos já nosdãoaconstatarqueaoraantigaguerra entre cultura e ciência seacende,asmaisdasvezes,pelamãodeumentendimentodo conceito de "cultura" que, sendo parcial, revela, ele mesmo, quãooproblema fundamental do homem da Modernidade tem vindo a ser a sua incapacidade para devir totalidade e unidade consigomesmo:paradevirculturaqua Bildung ou, é a mesma coisa, para cultivar e valorar na mesma medida o conhecimento e domíniodomundoexterior(materialeobjectivo)eoconheci-mento e domínio do mundo interior (espiritual e subjectivo).

119.AsepararHuxleydeArnold,encontra-se,narealida-de, sobretudo a circunstância de o primeiro tender a considerar o conceito de "cultura" mais no sentido de "mundividência" ou de Kultur,edeosegundojuntaraessaênfaseparcialumaforteconsciênciadasrelaçõesquesempresubsistem,porforça,en-tre a cultura qua "mundividência" e a cultura qua Bildung.47

120. No entanto, se isso acontece, também acontece, sem dúvida, que, ao falar das relações entre ciência e cultu-ra, Huxley, o cientista, se encontramotivado sobretudo pelasmodernas vantagens e mais-valias do conhecimento do mundo exterioreobjectivo,aopassoqueArnoldmanifestamentesere-velamotivadopormanterintocadaaunidadeentreexterioridadee interioridade a que estas suas palavras (escritas cerca de ca-torzeanosantes),sereferem:"Oidealdeumaeducaçãogeraleliberalconsisteemalçar-nosaumconhecimentodenósmes-mosedomundo.Somoschamadosafazeresseconhecimentonossoporaptidõesespeciais,quenascemconnosco....Deentretais aptidões especiais, umas são aptidões para conhecer oshomens,paraoestudodashumanidades;outras,sãoaptidões

47Como não poderia, aliás, deixar de se verificar, uma vez que talconsciência é um dos principais motores de toda a obra em prosa de Arnold, nãoobstanteassumirrelevânciaparticularnoseuensaioCulture and Anarchy, quefoipublicadopelaprimeiravezemformadelivroem1869.

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paraconheceromundo,paraoestudodanatureza.Ocírculodoconhecimentoenglobaambosostipos,sendoquetodosnósdeveríamoster,emalgumamedida,noçãodetodoocírculodoconhecimento.Arejeiçãodashumanidadesporpartedosrealis-tasearejeiçãodoestudodanaturezaporpartedoshumanistasconsistem, qualquer uma delas, em ignorância."48

121. Ora, se olharmos para ela em termos históricos, aignorânciaaqueArnoldsereferetemresultado,porumlado,odoshumanistas,deumapegounilateralàquiloqueo"tododocírculodoconhecimento"permaneceuatéaoaparecimentodaciência stricto sensu (até mais ou menos ao século XVII), e, por outrolado,odos"realistas",deumapegonãomenosunilateralapenasàexpansãoqueametade objectivadetalcírculo(aque-laqueoutroraconstituioâmbitodaFilosofiaNatural)temvindoa conhecer desde o referido aparecimento.Ou seja, desde oaparecimento e a cada vez maior hegemonia (no que concerne àvidadohomemdoOcidente)daciênciastricto sensu; desde, melhordizendo,opredomíniodoobjectivismoedoquantitati-vismo que caracterizam os métodos e os valores da moderna mentalidade científica.

122. A este respeito, tem interesse trazer aqui palavras de NormanCampbell, asquais põememevidência, entreoutrascoisas,quãoahegemoniaqueacabadeser referida redundaempreocupaçãoquaseexclusivacomoconhecimentodomun-do objectivo.

123.Emprimeirolugar,importam-nosestasobservações:"Ofactodeadesignação'filosofianatural'setertornadoquaseobsoleta,"escreveCampbell, "enquantoadesignação 'ciêncianatural'sobrevive,fica-seadever,emparte,àserrânciasinex-plicáveis da língua, as quais determinam, aparentemente aoacaso,qualdedoissinónimoshaverádeseextinguir.Porém,aquelemesmofactotambémseficaadeverparcialmenteaosantigos ramos do conhecimento de que os cientistas quiserem desvincular-se terem sido designados mais 'filosofia' do que'ciência'. De novo, o adjectivo 'natural' acabou por ser omitido, ficando-seapenascom'ciência',devidoemparteaointuitodeabreviar, ... e devido em parte a os cientistas em nada se terem

48MatthewArnold.Schools and Universities on the Continent(1868).In: —. Complete Prose Works.Ed.R.H.Super,AnnArbor,TheUniversityofMichigan Press, vol. 4, 1990, p. 300.

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revelado adversos a ouvir o seu campo de estudos designado 'ciência' sem mais, uma vez que 'ciência' simplesmente traduz o termo latino para 'conhecimento' e que a sua vaidade natural-mentesesentialisonjeadapelaimplicaçãodequetudoquantonãosejaciêncianãoconstituiconhecimento."49

124.Emsegundolugar,importam-nososseguintesescla-recimentos:"Adistinçãoentrefilosofianaturalefilosofiamoralsugeredeimediatoqueestesegundotipodefilosofiasepreo-cupaespecificamentecomohomemetudoquantolhedizres-peito, enquanto o primeiro tipo se preocupa com tudo quanto se mantémalheioeexterioraohomem.'Natureza'significapratica-menteapartedomundoqueohomemvêcomoexterioraelemesmo.Deacordocomisso,surge,então,ainterpretação[it is suggested]dequeaciênciadeveriaserdefinidacomooramodoconhecimentoteóricoquesepreocupacomaspropriedadesdomundoexterior danatureza.A suaactividade consiste emdescobrircomrigorquaissãoessaspropriedades,bemcomoeminterpretá-lasetorná-lasinteligíveisaohomem...Poroutrolado,aciêncianãosepreocupará,segundoessainterpretação,com nada que seja caracteristicamente humano".50

125. Ora, a parcialidade epistemológica de que resulta,pelo lado dos actuais "realistas", a "ignorância" a que Arnold se referemantém-se,hoje,maisvivaemaisinvictadoquenunca,precisamente devido à circunstância assaz empobrecedora eprejudicial de a interpretação de "ciência" queCampbell aquicaracteriza ser aquela que cada vez mais determina e domina as nossas vidas conjuntamente com o pressuposto de que "tudo quantonãosejaciêncianãoconstituiconhecimento"—sendoqueéemconsequênciadisso,semdúvida,que,hoje,maisnãosomos, para recorrer aT. S. Eliot, do que "homens ocos" ousemvidainterior:"Nóssomososhomensocos|Nóssomososhomens de palha atulhados | Uns pelos outros amparados | A partedacabeça,umelmocheiodepalha.Quefazer?|Nossassecasvozessão |Quandoemcorosegredamos |Silenciosas

49 Norman Campbell. What is Science?London,Methuen,1921,p.9.50 Ibidem, p. 11.

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e vazias de sentido | Como o vento na erva ressequida | Como patas de ratos sobre vidros partidos | Na secura da nossa cave, da nossa cela".51

126.O textodeHuxley, "ScienceandCulture", consistenodiscursoqueopróprioHuxleyproferiu,emBirmingham,porocasiãodainauguração,nodia1deOutubrode1880,daesco-lapolitécnicaqueumenriquecidohomemdenegóciosdaquelacidade,SirJosiahMason,alimandaraestabeleceraexpensassuas.Porém,tambémconsiste,apardissoedeformadesvela-da, num ataque bem educado ao seu amigo Matthew Arnold, o grandepaladino,naInglaterravitoriana,darecuperaçãoereva-lidaçãodoconceitohelénico-clássicode"cultura".Omesmoédizer, do conceito de cultura qua paideia ou Bildung.

127.Huxleypraticamenteabreoseuescritoidentificando-secomo"soldadoveterano"do"exército"quesetinhavindoajuntar"àvoltadoestandartedaCiênciaFísica"desde"cercadetrintaecincoanos"atrás,passandodeimediatoareferir-seaosmembrosdeumtalexércitocomo"osdefensoresdaeducaçãocientífica"eaidentificarosseusgrandesinimigos,os"estudio-sosdaantiguidadeclássica"(classical scholars), em termos que inequivocamente apontam o dedo a Arnold. Isto é, apodando essesmesmosestudiososde"Levitasnapossedaarcadacul-tura"ede"monopolizadoresdaeducaçãoliberal".52

128.Deseguida,Huxleyassevera-nosqueogrande in-tuitodeSirJosiahMason,omecenasdanovaescolapolitéc-nicadeBirmingham, foraproverosseus jovensconterrâneosde"conhecimentocientíficogenuíno,extensoeprático"("sound, extensive, and practical scientific knowledge"). E, partindo da premissadeque"adifusãodeumacompletaeducaçãocientífi-

51T.S.Eliot. "TheHollowMen". In: —. Complete Poems and Plays. London,FaberandFaber,1982,p.83.("Wearethehollowmen|Wearethestuffedmen|Leaningtogether|Headpiecefilledwithstraw.Alas!|Ourdriedvoices,when|Wewhispertogether|Arequietandmeaningless|Aswindindrygrass|Orrat'sfeetoverbrokenglass|Inourdrycellar".)

52T.H.Huxley."ScienceandCulture".Op. cit,pp.136–37.Dadaasuapreocupaçãoemsintetizarasduasgrandestradiçõesdo

mundoocidental,ahelénico-clássicaeahebraicaoubíblica, bem como em fazerqueaculturapreenchesse o vazio que a ciência estava a criar na vida do sentimentoreligioso,ArnoldfoidiversasvezesidentificadocomosprofetasdoAntigoTestamento.Adesignação"Levita",quetemreferênciaàtribodeLevi,atribodeIsraelqueMoisésencarregaradeguardaraArcadaAliança(veja-se,porexemplo,Deuteronómio31:9),nãopoderia,pois,deixardetrazeràmentedosouvintes,deimediato,apessoadeArnold—oprofetadacultura.

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caserevelacondiçãoabsolutamentenecessáriadoprogressoindustrial",manifestaasuaconvicçãodequeumtalintuitonãopoderiadeixardesetraduzirnuma"dádivainestimável"atodosquantos, naquela cidade, pretendessem enveredar por uma das váriasprofissõesligadasàindústria.53

129. Passamos, depois, a tomar conhecimento das três grandes condições que, não obstante a sua desinteressadamagnanimidade,SirJosiahMasonhavia impostoaoshomensque escolhera para gerir os destinos da nova escola politécnica. Aprimeiradetaiscondiçõesconsisteemanovaescolanãoseimiscuirna"políticapartidária";asegunda,embaniroensinodateologia das suas salas de aula; a terceira... A terceira consiste emaquelamesmaescolanãoenvidarquaisqueresforçosparaquenelaseviesseaministrar"instruçãoeeducaçãomeramenteliterárias"("mere literary instruction and education")54

130.Ora,éemfavordestaterceiraimposição,queHuxleypretende continuar o seu discurso, uma vez que é sobre ela que antevêrecairodesacordodos"opositoresdaeducaçãocientí-fica",daquelesquedefendemque"oestudodaciênciafísicaéincapazdeconferircultura".55

131. Vamos, pois, encontrá-lo a declarar-se seguro deduasgrandesconvicções.Aprimeiraconvicçãoéadeque"nemadisciplinanemasmatériasdaeducaçãoclássicaserevelamdeimportânciadirectaparaoestudantedaciênciafísica,apon-todejustificarquesepercatempopreciosocomumaoucomaoutra".Asegundaconvicçãoéadeque"umaeducaçãoexclusi-vamentecientíficaserevela,pelomenos,tãocapazdepropor-cionarculturaquantoumaeducaçãoexclusivamenteliterária."56

132.Ora,ésemdúvidaaquiquemaissedeparacomHux-leyprisioneirodaanimosidadeedoargumentopars pro toto que

53 Ibidem,pp.138–39.54 Ibidem,pp.139–40.55 Ibidem, p. 140.Comosetornaclaro,aposiçãodos"opositoresdaeducaçãocientífica",

dosdefensoresdacultura,eraadequeestaúltimasópoderiaseralcançadavia de "instruçãoe educação... literárias".Comvista a percebermos comamaiorbrevidadepossívelquaiseramasrazõesqueseencontravamnaorigemdessepontodevista,atentemosnasseguintespalavras:"ParaosIngleses,afilologiahermenêuticanãopoderiauniraciênciaeasletras;pelocontrário,aidentificaçãodaculturacomasletrasdecorriadeumareacçãoàtecnologiadaindustrialização." (BillReadings.The University in Ruins. Cambridge, Mass., HarvardUniversityPress,1999,p.74.)

56 Ibidem, p. 141.

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caracterizamtantoosdefensoresde"umaeducaçãoexclusiva-mentecientífica"comoosdefensoresde"instruçãoeeducaçãomeramente literárias". Ou seja, prisioneiro de uma das duasformasdeparcialidadequevimosArnoldidentificarcomo"igno-rância".Eisto,paraserbreve,porduasrazõesessenciais.Umadessasrazõeséade,comosetemvisto,Huxleysistematica-mente identificar "ciência"comaFísicaou,noseudizer,coma "ciência física".Aoutra razãoéade,enquantociênciaqueestudaapenasomundoexterior,materialeobjectivo,aFísicaser,naverdade,tãoincapazdeconduzirsequeraumacorrectacompreensãoteóricadoconceitode"cultura"(daunidadeeto-talidade de que o conceito de "cultura" é sinónimo) quanto, por sisó,aliteratura(modernaouantiga)algumavezserácapazdeconduziraumacompreensãodetalhadaecabaldaKultur (da cultura qua imagem do mundo ou mundividência) que a ciência modernatemvindoadeterminardesdeoseuinício.

133.Senhor do ímpetoqueohá conduzidoaessa suadeclaração de fé,Huxleyapontaarmas,então,àqueleque,semdúvida,mais tiveranamira jámesmoantesdeescreverumasópalavradoseudiscurso:MatthewArnold:"onossoprincipalapóstolodacultura".Eeisque, semdemodoalgumo tornarexplícito,eporquelheinteressa,lênumdosensaiosdeArnold("TheFunctionofCriticismatthePresentTime")—comtodoorigor científico!—aquiloqueopróprioArnoldhaviaescritoemoutrosdoisensaios("Joubert"e"TheStudyofPoetry")57

134.HuxleycomeçacitandoaindaumoutroescritodeAr-nold:Culture and Anarchy,de1869."OsenhorArnold,"dizele,"assevera-nosqueosignificadode'cultura'resideem'conhecero que de melhor tem sido pensado e dito no mundo'."58

57"TheFunctionofCriticismatthePresentTime"("AFunçãodaCríticano Tempo Actual") havia sido publicado pela primeira vez, juntamente com "Joubert",em1865,novolumeEssays in Criticism."TheStudyofPoetry"("OestudodaPoesia")haviasidopublicado(naformadeintroduçãoàcolectâneaThe English Poets,daautoriadeT.H.Ward)emMaiode1880,e,porconse-guinte,apenascincomesesantesdeHuxleyleroseudiscurso(emOutubrodo mesmo ano).

58Estaspalavrassurgemno"Prefácio"aCulture and Anarchy:"Oob-jectivo do presente ensaio é, de todo, recomendar a cultura na qualidade da grandeajudadequenecessitamosparasairdasnossasactuaisdificuldades;aculturaconsistindonaprocuradanossacompletaperfeiçãoporviadecon-seguirmosconhecer,comrelaçãoa todososassuntosquemaisnosdizem

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135. Imediatamenteaseguir,afirmaelequeaculturaé,naspalavrasdeArnold,"ainterpretaçãocríticadavidaqueali-teratura contém" (the criticism of life contained in literature), bem comoqueumatalinterpretaçãocríticaolhaaEuropadomodoqueopróprioArnolddefiniraem"TheFunctionofCriticismatthePresentTime".AspalavrasexactasdeHuxley,queconsistemquaseexclusivamentena reproduçãodeumpassodoescritodeArnoldqueacabadeserreferido("TheFunctionofCriticismatthePresentTime"),sãoasseguintes:"Aquelainterpretaçãocrítica[That criticism] olha 'a Europa como constituindo, em ter-mosintelectuaiseespirituais,umagrandeconfederação,vincu-ladaaumaacçãoconjuntaetrabalhandoparaumfimcomum;umaconfederaçãocujosmembrospartilham,naqualidadedeinstrumento que lhes é comum, o conhecimento da antiguidade grega, romana e oriental, bem como o conhecimento que cada umdelespossuidosrestantesmembros.Nãoentrandoemcon-tacomvantagensespeciais,locaisetemporárias,anaçãomo-dernaquemaiscompletamenteconcretizaresseprogramaseráaquelaquemaisprogrediránaesferaintelectualeespiritual.Equesignificaistosenãoafirmarquetambémnós,todosnós,en-quantoindivíduos,haveremosdeprogredirnamedidaemquemais completamente concretizarmos um tal programa?'"59

136.Comrelaçãoaestasafirmações,verificam-seduascircunstâncias.

137.Emprimeirolugar,verifica-sequeaexpressão"inter-pretaçãocríticadavida"(criticism of life) surge em estreita rela-çãocomaliteraturaem"Joubert"e"TheStudyofPoetry",60 mas

respeito,oquedemelhortemsidopensadoeditonomundo[the best which has been thought and said in the world]." Veja-se:MatthewArnold.Culture and Anarchy. In: —. Complete Prose Works.Ed.R.H.Super,AnnArbor,TheUniversityofMichiganPress,vol.5,1969,p.233.

59T.H.Huxley."ScienceandCulture".Op. cit.,pp.142–43.60Em"TheStudyofPoetry",porexemplo,Arnold tornabemclaroo

quetememmenteaofalardapoesiacomo"interpretaçãocríticadavida"(cri-ticism of life).Ouseja, como interpretaçãocrítica tantodomundo interioresubjectivo (do qual, na verdade, nos chega testemunho sobretudo por via da poesia) como do relatocientíficodomundoexterioreobjectivo.Arnoldafirmaalique,"Cadavezmais,ahumanidadehaverádedescobrirquetemosdenosvirar para a poesia, para que nos interprete a vida, nos traga consolo e nos sustenha."Afirma,também,que,"Semapoesia,anossaciênciahaverádeserevelarincompleta".Eistodadoque,"napoesia,adistinçãoentre[aquiloqueé]excelentee[aquiloqueé]inferior,...entre[aquiloqueé]verdadeiroe[aqui-lo queé] falsoouapenasmeio-verdadeiro, adquire importância primordial."

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nãonoensaioqueHuxleycita("TheFunctionofCriticismatthePresentTime"),ondeArnoldareduzàforma"interpretaçãocrí-tica" (criticism)eexplicitamentedefineestaúltima—enquanto"interpretaçãocrítica"(criticism) que "olha a Europa..."61 — como "umesforçodesinteressadoparaaprenderepropagaroquedemelhor é conhecido e pensado no mundo".62

138.Emsegundolugar,verifica-seque,emtotaloposiçãoàquiloqueHuxleyquerfazer-nosquerer,Arnoldjamaispoderiareduziraculturaà"interpretaçãocríticadavidaquealiteraturacontém" (the criticism of life contained in literature). E isto uma vezque(paradarsóesteexemplo)ele,Arnold,afirmadeformainequívoca(comoHuxleybemsaberia)queograndeobjectivodaculturaé "levar-nosadescobrir aquiloemqueaperfeição[humana]consiste""atravésde todasasvozesdaexperiênciahumana que se têm pronunciado acerca desse assunto — a da arte,adaciência,adapoesia,adafilosofia,adahistóriaeadareligião—,comvistaadarmaioramplitudeecertezaàsconclu-sõesaqueelamesma,cultura,nosconduz".63

139. No ponto de "Ciência e Cultura" em que nos encon-tramos,deparamos,pois,comHuxleyaacabardeprepararardi-losamenteofundamentoemquesesustémaoatribuiraArnold,infundadamente,asegundadasduasproposiçõesqueaseguirretiradaspalavrasde"TheFunctionofCriticism"queovimoscitar.Aprimeiradetaisproposições(i)afirma"queumainterpre-taçãocríticadavida[a criticism of life] é a essência da cultura"; asegunda(ii)afirma,repare-se,"quealiteraturacontémasma-tériasqueserevelamsuficientesparaaconstruçãodeumatalinterpretaçãocrítica[of such a criticism]."

140. Como seria de esperar, Huxley declara que todosdeverãoassentiràprimeiradessasduasproposições. Importareproduziraquiosargumentoscomquefundamentaessasua

Assimsendo,raciocinaArnold,"Napoesia,enquantointerpretaçãocríticadavida[criticism of life],...oespíritodanossaraçahaverádeencontrar...oseuconsolo e o seu esteio." (Matthew Arnold. Complete Prose Works, vol. 9, pp. 161–63passim.)

61Asreticênciasremetemparaacitaçãode"TheFunctionofCriticismat thePresentTime") que, naanterior entrada135., aspalavrasdeHuxleycontêm.

62MatthewArnold."TheFunctionofCriticismatthePresentTime".In: — Complete Prose Works,vol.3,p.283.

63Cf.:MatthewArnold.Culture and Anarchy. In: —. Complete Prose Works,vol.5,p.93.Oitálico,em"todas", é de Arnold.

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posição.Sãoosseguintes:"...aculturacertamenteconsisteemalgoassazdiferentedeaprendizagemouperíciatécnica.Acul-turaimplicaapossedeumideal,bemcomoohábitodeaferircriticamenteovalordascoisas,porcomparaçãocomumpadrãoteórico.Aculturaperfeitadeveriacolocar-nosnapossedeumacompleta teoria da vida, baseada num conhecimento claro tanto das possibilidades como dos limites desta última."64

141.Eisaqui,afinal,asrazõesporque,comotambémjáseriadeesperar,Huxleymanifestaoseuprofundodesacordocomasegundadasduasproposiçõesqueacabamdeserreferi-das(naanteriorentrada139).Éque,comoelenosdáavercomtodaarazão(massememnada,naverdade,seoporaArnold!),um tal conhecimento (um "conhecimento claro tanto das possibi-lidadescomodoslimites"davida)jamaispoderáserproporcio-nado"tão-somentepelaliteratura".Ouçamo-loaesterespeito:65

"Depois de termos aprendido tudo quanto a antiguidade grega, romana e oriental pensou e disse, bem como tudo quanto as lite-raturasmodernastêmparanosdizer,nãosetornaevidentequehavemosobtidoumfundamentosuficientementeabrangenteeprofundoparaainterpretaçãocríticadavida,naqualaculturaconsiste.Narealidade,issonãosetornadetodoevidenteparaqualquerpessoaqueseencontre familiarizadacomoescopodaciênciafísica.Considerandoapenasoprogresso'naesferaintelectualeespiritual',vejo-medetodoincapazdeadmitirquenaçõesouindivíduosvenhamaavançarcasoosinstrumentosque partilhem uns com os outros nada tenham a retirar das pro-visõesdaciênciafísica.Diriaqueaspossibilidadesdeumexér-cito desprovido de armas de precisão... sair vitorioso de umacampanhanoRenosãomaioresdoqueaspossibilidadesdeumhomemserbemsucedidona interpretaçãocríticadavida,caso se encontre desprovido de conhecimento de tudo quanto a ciênciafísicatemfeitonoúltimoséculo."66

142.Estesargumentossão,naverdade,argumentosdegrandepeso.Ograndeproblemacomquenosconfrontamnão

64T.H.Huxley."ScienceandCulture".Op. cit., p. 143.65Importanãoesquecerqueaspalavrasqueseseguemremetemdi-

rectamenteparaasqueconstamnacitaçãode"TheFunctionofCriticismatthePresentTime"(deArnold)queHuxleycitanopassoqueaanteriorentrada135. reproduz.

66T.H.Huxley."ScienceandCulture".Op. cit.,pp.143–144.

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seprende, porém, com isso; prende-se, isso sim, comseremargumentosquejamaispoderãoserjudiciosamenteapresenta-dos contra quem, como acontecia com Arnold, jamais poderia discordardeles,devidoaencontrar-seconscientedequetodaa"culturaperfeita"assentaefloresce,porforça,namaiorpossívelequanimidade e unidade entre o conhecimento do mundo interior eoconhecimentodomundoexteriorquesepossaalcançar.

143.Todaagenuínaculturarequer,porforça,talequani-midade e unidade, uma vez que, na ausência destas, jamais se poderáestarnapossedo"ideal"queHuxleyrefere(naspalavrasqueconstamdaanteriorentrada140.)edohábitoquetalposseincentiva:"ohábitodeaferircriticamenteovalordascoisas,porcomparaçãocomumpadrãoteórico".

144.Deparamos,pois,aolongodoescritodeHuxley,so-bretudocomumainjustificadaincoerência.Resideestaem,con-comitantementecomreconhecer"queumainterpretaçãocríticadavida[a criticism of life] é a essência da cultura", ele tender a cingirtalinterpretaçãocrítica,eporconseguinte"todaanossateoria da vida", aos aspectos que directamente se prendem com ainterpretaçãodomundoobjectivoporpartedaciênciaou,éamesmacoisa, comacomponentecosmológicaecientífica da cultura, qua tão-somente Kultur ou mundividência. Como ele mesmoafirma:"...háumaspectodoactualestadodomundoci-vilizadoqueoseparamaisdaRenascençadoqueaRenascen-çaseencontravaseparadadaIdadeMédia.Essacaracterísticadistintiva do nosso tempo reside no grande e cada vez maior papel que nele desempenha o conhecimento do mundo natural. Acontecenãoapenasqueesseconhecimentomoldaanossavidadiaadia,nãoapenasqueaprosperidadedemilhõesdeho-mensdependedele,mastambémque,desdehámuito,todaanossateoriadavidatemvindoaserinfluenciada,conscienteouinconscientemente,pelasconcepçõesgeraisdouniversoqueaciênciafísicanostemimposto."67

145.Serásemprecertoque"umainterpretaçãocríticadavidaquemereçao títulodecultura"nãopoderáprescindirdainterpretaçãodomundoobjectivoqueaciêncianostemvindoaproporcionar—melhordizendo,que"aciênciafísicanostemimposto"68 — desde mais ou menos o século XVII. Porém, como

67 Ibidem, p. 149.68Ibidem, p. 151.

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sepoderáalgumavezchegarsequeràconsciênciadequeaculturaconsiste,emprimeirainstância,eminterpretaçãocríticadavidaàluzdodever-ser do homem e da sociedade — como se poderáalgumavezchegarsequeraumatalconsciência,senosencontrarmos na posse da imagem do mundo objectivo, da ima-gemquea"ciênciafísica""nostemimposto",semtermosideiadasrelaçõesqueforçosamentesubsistementreelaeavidain-terior ou o mundo da idealidade e da subjectividade? O mesmo é dizer, sem nos termos concedido acesso, por via sobretudo daliteraturaedafilosofia(enquantodiscursos privilegiados do mundo interior),à imagem do mundo subjectivo que nos cabe actualizarpordeterminaçãosimultaneamentedodever-ser da nossaespécie(daequanimidadeeunidadeidealidade-realida-de) e do nosso estar (Dasein)nomundoespecíficoqueaFísicanosdáaconhecercientificamente.

146.OintentodeHuxleyémanifestamenteodepôremevidênciaque"apretensão,porpartedosnossoshumanistasmodernos,depossuiromonopóliodaculturaedeserherdei-roexclusivamentedoespíritodaAntiguidadedevediminuir,senãomesmoserabandonada".Porém,enãoobstantesublinhar,com grande equanimidade, a necessidade de "uma cultura mais abrangentedoqueaquelaqueaciênciasóporsioferece",bemcomonãoobstanteasuaconvicçãodeque"acultura intelec-tual"nãopoderárevelar-secompletanaausênciade"genuínaeducação literária", ele tende a incorrer persistentemente emduas falhas. Uma delas consiste em englobar Arnold no grupo dos "humanistas modernos", entendidos estes como homens queadvogam"aeducaçãoclássica",aliteraturagregaeroma-nadaAntiguidade, comoúnicaviaparaaaquisiçãodecultu-ra.69 A outra falhaconsisteemdeixartransparecerqueentendea cultura sobretudo como um saber, e, por conseguinte, como algoque,precisamente,épassíveldeseradquiridoapartirdoexterior(apartirdoslivrosdeciênciaedapráticadeactividadesoudeprofissõesdeforocientífico,bemcomoapartirdelivrosdeliteraturaantigaemoderna),aoinvésdecomoaconstruçãodia-a-dia,apartirdetaismateriais, de uma vivida atitude interior peranteomundoexterioreinterior:perantenósmesmos,ouni-verso,ahumanidadeeaexistênciaemgeral,bemcomoperante

69 Ibidem, pp. 152, 156, 153.

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a Kultur ou a imagem do mundo do nosso tempo. Ou seja, ao invés de como contínuo exercício de formaçãodoindivíduoporpartedopróprio indivíduo—queé,afinal,aquiloemqueela,cultura (Bildung), mais consiste.

147. Que o entendimento de "cultura" como saber era aquelequemaispovoavaamentedeHuxleynomomentoemque escrevia e proferia o seu discurso, demonstram-no bemduascircunstâncias.Umaéacircunstânciadeacharqueexis-temviasdiferentesparaaaquisição de cultura (como acontece, porexemplo,comrelaçãoàaquisiçãodemusculaturaoudeumordenado),bemcomoqueacorrecçãodaviaporqueseoptaédeterminadapelaprofissãoquesepretendeseguir.Aoutraéacircunstânciademanifestarimpaciênciacomosaberestérilaqueachamada"culturaclássica"acabaporsereduzirasmaisdas vezes, ao mesmo tempo em que elogiosamente apoda a práticadaciênciade"sériaocupação"eacolocadeparaparcom"asocupaçõesdavida".

148.Prestemosatençãoàspalavrasquenosdãoaco-nhecer essasduas circunstâncias: "As capacidades inatasdahumanidades variam tanto quanto as oportunidades com que elassedeparam.E,nãoobstanteaculturaseruma[one], a via porqueumindivíduomelhorapodealcançarrevela-sebastantediferentedaquelaquepossasermaisvantajosaparaoutro.[...]Assim sendo, penso que, se dispuser de bastante tempo para aprenderesepretenderenveredarpelavidanormal [ordinary life],ouporumacarreiraliterária,umjovemInglêsqueprocureculturanãopoderáfazermelhorescolhadoqueadeseguirocurso que usualmente se espera que siga, suplementando as deficiências deste último através dos seus próprios esforços.Porém, no caso daqueles que tencionam ter a ciência por séria ocupação,ouquetencionamvirafazerdamedicinaasuapro-fissão,ouquesevêemforçadosaabraçardesdelogoasocupa-çõesdavida;porém,emtodosessescasos,optarpelaeduca-çãoclássicaé,naminhaopinião,umerro.Eisaquiarazãoporqueme comprazo comver 'educaçãoe instruçãomeramenteliterárias'excluídasdocurrículodaescoladeSirJosiahMason,uma vez que a sua inclusão haveriamuito provavelmente de

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conduziràintroduçãodascostumeirasamostrasdoLatimedoGrego."70

149.ArespostadeArnoldaodiscursodeHuxley,"Litera-tureandScience"("LiteraturaeCiência"),apareceupelaprimei-ra vez na imprensa inglesa cerca de vinte e dois meses depois, emAgostode1882.71

150.Comootítulo"LiteraturaeCiência"indica,Arnoldre-vela-sedispostoabatalharnãoapenasnosentidodefazerverque jamais havia restringido as ferramentasdaculturaàlitera-tura,mastambémnosentidodedefenderaprimaziadapróprialiteraturanaesferadaeducação.Comoelemesmoafirma:"Ireiaveriguarseopresentemovimentoemfavordesedestronarasletrasdoseuantigopredomínionaeducaçãoedesetransferiropredomínionaeducaçãoparaasciênciasnaturais—seessesúbitoeflorescentemovimentodeveráprevalecer,eseéprová-vel que realmente venha a acabar por prevalecer."72

151. Na verdade, Arnold não responde à acusação de Huxley(àacusaçãodeele,Arnold,encontrarexclusivamentenaliteratura, e enquanto materiais específicos da cultura, "o quede melhor tem sido pensado e dito no mundo") lembrando, por exemplo,quehaviareafirmadonoescritoqueopróprioHuxleycita("TheFunctionofCriticismatthePresentTime")oseguinte:que"Afunçãodacapacidadedeinterpretaçãocrítica[the criti-cal power] consiste... em 'ver o objecto, em todos os ramos do conhecimento,teologia,filosofia,história,arte,ciência,talcomoele na realidade é em si.'"73

152.Não.Aoinvésdisso,Arnoldrespondeatalacusação pondoemevidênciaqueháutilizadooconceitode"literatura"emsentidoquediferedeterminantementedaquelequeHuxley

70 Ibidem, pp. 153.71Arnoldescreveuotexto"LiteratureandScience"comofimdeoler,

naformadeconferênciaenodia14deJunhode1882,naCasadoSenado(SenateHouse)dauniversidadedeCambridge.Essemesmotextofoipublica-dopelaprimeiravezdoismesesdepois(emAgosto),noperiódicoinglêsThe Nineteenth Century (vol.XII,n.66,pp.216–30).Subsequentemente,Arnoldmodificou-ode formasignificativa,comvistaoutilizar,denovona formadeconferência,noseutourpelaAméricade1883.Éessasegundaversão,queseencontraincluídanaediçãocompletadasObrasemProsadeArnold(Com-plete Prose Works,vol.10,pp.53–73).

72MatthewArnold. "LiteratureandScience".Complete Prose Works, vol. 10, p. 55.

73MatthewArnold. "The Function of Criticism at the Present Time".Complete Prose Works, vol. 3, p. 261.

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lheatribui: "OProfessorHuxleycomentaque...euafirmoquea literatura contém os materiais que bastam para... nos levar a conheceranósmesmoseaomundo.[...]AquiloqueoProfessorHuxleyafirmaacarretaconsigodemodoimplícitojustamenteacensuraque tantasvezesé feitaaoestudodasbelles lettres, comosãoconhecidas:que,emborarequintado,éumestudosu-perficialeinconsequente,umestudoqueconduzapenasaumconhecimentoparcialdoGrego,doLatimedeoutrosaspectosornamentais, e que, assim sendo, pouca utilidade poderá terparaquempretendaalcançara verdadedascoisase serumhomemprático. [...]Eeisqueaquelesqueprotestamcontraopredomíniodasletrasnaeducaçãosemprerevelamatendênciapara entender as belles lettrescomosinónimodeumhumanis-mosuperficialecomooopostodeciênciaoudeconhecimentoverdadeiro."74

153.Partindodaqui,Arnoldclarificaasuaposiçãodetrêsmaneiras.

154. Em primeiro lugar, pondo em evidência que o estu-do da antiguidade grega e romana, o estudo que desde a Re-nascençatemrecebidoonome"Humanidades",é,tambémele,científico,umavezque"todooconhecimentoqueésistematiza-doequeremontaàssuasfontesprimeiraseoriginaisécientífi-co",eumavez,também,que,porconseguinte,todoo"genuínohumanismoécientífico".

155. Em segundo lugar, pondo em evidência que entende por"literatura"nãobelles lettres, mas sim "tudo o que haja sido escrito com letrasouque seencontre impressoem formadelivro", "todo o conhecimento que chegue até nós através doslivros". Ou seja, pondo em evidência que, de acordo com o seu entendimento de "literatura", "Os Elementos de Euclides e os PrincipiadeNewtonsão,porconseguinte,literatura."

156. Em terceiro lugar, pondo em evidência que, desse seuúltimoargumento,decorreoseguinte:que,aoafirmarquea literatura contém "o que de melhor tem sido pensado e dito no mundo"equeissoconstituimatériasuficienteparaseadquirirculturaouparaconhecermos"anósmesmoseomundo",nãopretendedizerqueaprópriaculturasedáaalcançarapenasvia do estudo da literatura qua belles lettres, seja ela a literatura

74MatthewArnold. "LiteratureandScience".Complete Prose Works, vol. 10, p. 57.

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daantiguidadegreco-romanaoudasváriasnaçõesmodernas.Comoelemesmoafirma: "porconhecimentodaRomaantiga,nãoquerosignificarconhecimentoapenasdemaioroumenorparte das belles lettres latinas... por conhecimento daGréciaantiga, entendo o conhecimento desta última na qualidade de berçodaartegrega,bemcomonaqualidadedefundadoradanossamatemática,danossafísica,danossaastronomiaedanossabiologia... e nãoapenaso conhecimento de certos po-emas, escritos históricos, tratados e discursos gregos... Porconhecimentodasnaçõesmodernas,entendooconhecimentonãoapenasdassuasbelles lettres, mas também daquilo que Copérnico,Galileu,NewtoneDarwinhãoproduzido."75

157.Arnold conclui estes seus argumentos afirmando oseguinte: "A censura de consistir numhumanismo superficial,num colorido desbotado de belles lettres,podebemaplicar-se,com roda a adequação, a algumas outrasmatérias,mas nãoàmatériaespecíficaquerecomendoquandoproponhoqueseconheçaoquedemelhor temsidopensadoeditonomundo.Naquele 'melhor', incluo, sem sombra de dúvida, aquilo que tem sido pensado e dito pelos grandes observadores e estudiosos danatureza.Nãohá,pois,narealidade,qualquerdiferendoen-tremimeoProfessorHuxleynaquiloquetocaater-seounãodeconsiderar o conhecimento dos grandes resultados do moderno estudocientíficodanaturezapartedacultura."76

158.OgrandediferendoqueseparaArnolddeHuxleyé,na verdade, outro. Consiste ele em, na qualidade de represen-tantedos"amigosdaciênciafísica",Huxleydefender,eArnoldrejeitar,queosmétodoseosprocessoscientíficosemque"omoderno estudo... da natureza" assenta venham a substituir as letras,ashumanidades,naesferadaeducaçãoemgeral.PorpalavrasdopróprioArnold:"Concordamosemqueosgrandesresultadosdainvestigaçãocientíficadanaturezatêmdeserco-nhecidos.[...]Porém,osreformadoresexigemmaisdoqueisso.Propõemqueotreinonocampodasciênciasnaturaisdevenhaoelementoprincipaldaeducação."77

159.Ora,sãojustamenteosargumentosqueArnoldcon-trapõeaumtalensejo,quenosdãoaverquãoasuaconcepção

75 Ibidem,pp.57–59passim.76 Ibidem,pp.59–60.77 Ibidem, pp. 60, 61.

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de"cultura"seaproximadadaGréciaantiga,porviada influ-ênciamodernasobretudodeKantedeSchiller,e,comisso,sedemarcada(concepçãode"cultura")deHuxley.Ouseja,quão,nasuamente,aconcepçãodeculturaqua paideia e Bildung se fazpresenteemprimeirolugar,aoinvés,comotendencialmenteacontececomHuxley,daconcepçãodeculturacomocosmolo-gia ou imagem do mundo (Weltbild):comopartedeterminanteda Kultur qua mundividência, ou Weltanschauung, que é direc-tamente determinada pela ciência.

160.Naverdade,etalcomoSchiller,Arnoldpartedana-tureza universal e imutável do homem para o conceito de "cul-tura qua Bildung", ao invés de chegar ao homem partindo da concepçãode "culturaqua cosmologia"ou,comohoje-em-diatantoacontece,daconcepçãode"cultura" quaestar-no-mundo(Dasein) e quamododevidacomunitariamenteespecíficos.Ouseja, Arnold chega ao conceito de "cultura" (Bildung) partindo dasdeterminaçõesnão-humanas(divinas?)queuniversalmentedefinemahumanidade do animal "homem", ao invés de partir do conceito de "cultura" (Kultur)comodeterminaçãohistóricaporparte do homem e regredir até este último — entendido, precisa-mente, como determinador ou autor.

161. Em resultado daquilo que acaba de ser dito, Arnold começaporafirmaroseguinte:"Presentemente,parece-mequetodosquantossãoafavordesedaraoconhecimentonatural,comoochamam,olugardedestaquenaeducaçãodamaioriada humanidade, que esses se esquecem de entrar em linha de contacomumfactorimportante:aconstituiçãodanaturezahu-mana."

162.Deseguida,Arnolddáaverque"ascapacidades[po-wers]queconstituemedistinguemavidahumana"são"acapa-cidadeparaagireticamente[the power of conduct], a capacidade intelectualparaconhecer[the power of intellect and knowledge], acapacidadeparaapreenderabeleza[the power of beauty] e a capacidade para viver em sociedade com modos[the power of social life and manners]".78E,partindodaqui,põeemevidênciaqueessas "váriascapacidades...nãoseencontram isoladas";que "existe, na generalidade da humanidade, uma tendênciaconstante para as relacionar umas com as outras de formas

78 Ibidem,pp.61–62.

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diversas."Ouseja,põeemevidênciaque,deummodooudeoutro,subsisteemtodosnós,maisoumenosvincadamente,anecessidadedecultura:anecessidadehumanadecorrelacio-narcomcoerênciaoudeunificarasdiferentespercepçõesdosdiferentesaspectosdomundoquefazemosnossasporviadasnossadiferentescapacidadesdeapreensão.

163. Ora, como se antevê, o grande trunfo que Arnold tem em mente e se prepara para pôr sobre a mesaconsistenisto:em tornar claro que, uma tal necessidade ingénita de cultura ou deunidade-connosco-mesmos,nãoapodemsatisfazer,porsisós,osconhecimentosfactuaisqueasciênciasnosproporcio-nam,umavezquenosmantêmnaesferaeapenasnaesferada"capacidadeintelectualparaconhecer",aocontráriodaquiloqueseverificacomaliteratura,queé,pornatureza,produçãosintéticaeque,porconseguinte,serevelacapazdesatisfazeraquela mesma necessidade.

164.Comoésabido,Arnoldencontra-seentreosmaisiró-nicos de todos os escritores ingleses, sendo que, em resultado disso,setornanecessário,aoseguirosseusargumentos,per-ceberaquiloquequerdizeraoparecerdizerocontráriodisso.Porexemplo,perceberque,quandoafirmaqueahumanidadeem geral sente necessidade de correlacionar os conhecimentos que adquire com "a capacidade para agir eticamente" e "a capa-cidadeparaapreenderabeleza",issosignifica,secunda facie, o oposto daquilo que significaprima facie. Ou seja, significa,secunda facie, que,quandoseconfrontacomnovosconheci-mentosquedesmentemaverdadedaquelesqueahãolevadoa"agir eticamente" e a valorizar "a beleza", a humanidade em ge-raltenderáacorrelacionaressenovosconhecimentoscomumanovaconcepçãodeagiréticoedebeleza,comaconsequênciade passar a agir de modo pouco éticoeainterpretarafealdadecomo beleza!

165.Issonãodeitaporterra,importapercebê-lo,aconsta-taçãodequeahumanidadesecaracterizaporumanecessidadeinatadeunidadeoudecultura:—talnecessidadeestánela,hu-manidade,domesmomodoqueestáanecessidadedecomidaoudesatisfaçãodoimpulsoparaaprocriação:—porém,ahu-manidadesemprehaverádeconfundirinculturacomcultura,senãohouverquemaensineadistinguirumacoisadaoutra,domesmomodoquesemprehaverádeconfundirmácomboaali-

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mentação,senãohouvernutricionistaqueaensineadistinguiruma da outra!

166.Feitasestasressalvas,sigamosArnold.167.Asciênciasnaturais,dá-noseleaver,vãooferecendo

àhumanidadeumasériedeconhecimentosnaturais!quesere-velam imensamente curiosos e interessantes, entre os quais se conta,porexemplo,oconhecimentodeque,quandoumavelaarde,aceraseconverteemácidocarbónicoeágua.Emresulta-dodisso,"umpedaçodeconhecimentonaturaljunta-seaoutro,eoutrosjuntam-seaeste,eporfimchegamosaproposiçõestãointeressantescomoafamosaproposição,porpartedoSenhorDarwin,deque'onossoantepassadofoiumquadrúpedepelu-do e apetrechado com uma cauda e orelhas pontiagudas, bem comoprovavelmentearbóreonosseushábitos'."

168. Porém, permanecemos, ao seguir com interesse as proposiçõesdas ciênciasnaturais, tão-somente "naesferadointelecto e do conhecimento". E, continuaArnold, "haver-se-ádeveraerguer-senageneralidadedoshomens...apósestesteremdevidamente digeridoa proposiçãodequeo seuante-passado foi 'um quadrúpede peludo e apetrechado com umacaudaeorelhaspontiagudas,bemcomoprovavelmentearbó-reonosseushábitos',haver-se-ádeveraerguer-seumdesejoinvencívelderelacionaressaproposiçãocomoonossosentidode comportamento ético, bem como com o nosso sentido de beleza.Todavia, isso, os homens de ciência não o irão fazerparanós,eatédificilmenteassentirãoemo fazer.Dar-nos-ãoelesoutrospedaçosdeconhecimento,outrosfactos,acercadeoutros animais e dos seus antepassados, ou acerca das plantas, ou acerca das pedras, ou acerca das estrelas; e pode bem ser queacabempornoslevaratéàquelasmagníficas'concepçõesgeraisdouniversoqueoprogressodaciênciafísicanostemim-posto',comodizoProfessorHuxley.Contudo,continuarãoelesadar-nosapenasconhecimento;conhecimentoquenãochegaaté nós relacionado com o nosso sentido de comportamentoético,comonossosentidodebeleza,e,porconseguinte,não-insufladopelaemoçãoqueacarretariaconsigosechegasseaténósrelacionadocomisso".79

169.Partindodaqui,Arnolddádoisgrandespassosfinais.

79 Ibidem,pp.64–65.

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170.Oprimeiropasso,quenãosetornapossívelseguiraqui,consistenoseguinte:empôremevidência,sobretudoatra-vésdecitações,que,emoposiçãoaosconhecimentosfactuaisqueasciênciasfazemchegaraténós,asinterpretaçõescríticasdavidaquealiteraturanosoferecesatisfazem,viadasuanatu-rezainterpretativaesintética,bemcomoviadaemoçãopoéticaque adicionam a tais conhecimentos, a humana necessidade de correlação,unidadeoucultura.

171. O segundo passo consiste em pôr em evidência que, quanto mais os conhecimentos produzidos pelas ciências natu-raiscontinuaremadestruiroaltoestatutocósmicoeasgran-desexpectativasqueamundividênciamedievahaviagarantidoaohomem,maisdifícilsetornarácorrelacionaressesmesmosconhecimentos (os conhecimentos produzidos pelas ciências naturais) com o nosso sentido de comportamento ético e de be-leza, com a consequência de a humana necessidade de cultura aumentar e, com ela, a nossa necessidade das letras e das hu-manidades em geral.

172. A certa altura do seu discurso, e com um acutilante conhecimentodahistóriaedacultura(Kultur) ocidentais que ca-recedese fazeracompanhardeumentendimentohistoricistadessasduascoisas,Huxleyhavia traçado,plenodecertezas,umretratodainterpretaçãocríticadavidaquecaracterizaa in-fânciamedievadamodernamentecientífica:"Entreumaeoutra[ateologiaeafilosofia],osnossosantepassadosviam-seape-trechadoscomumainterpretaçãocríticadavida[criticism of life] cerradaecompleta.Diziam-lhesomodocomoomundohaviacomeçadoeomodocomohaveriadeacabar;aprendiamquetodoomundomaterialmaisnãoeradoqueumamanchaindig-nae insignificanteno formosorostodomundoespiritual,bemcomoqueanaturezaera,paratodososfinseefeitos,orecreiododiabo;aprendiamqueaTerraéocentrodouniversovisívele que o homem é a estrela polar de todas as coisas terrenas; maisemparticular,era-lhes inculcadoqueocursodanature-zanãoapresentavaumaordemfixa,quepodiasereeracons-tantementealteradopelaacçãode inúmerosseresespirituais,bonsemaus,deacordocomoefeitoquenelesproduziamaspreceseacçõesdoshomens.Nasuatotalidadeesubstância,umataldoutrinaproduziaaconvicçãodequeaúnicacoisaquerealmente se revelava digna de ser conhecida neste mundo era

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o modo de assegurar, num mundo melhor, aquele lugar que a Igrejagarantiasobacondiçãodecertascondiçõesseremsatis-feitas.Osnossosantepassadostinhaumavividacrençanumatalteoriadavida,eagiamemfunçãodelanassuasincursõesnocampodaeducação,bemcomoemtodasasrestantesáreas.[...]Queoestudodanaturezadevesseterconsequênciasparaa vida humana — para além daquelas que se prendiam com a satisfaçãodasnecessidadesdodia-a-dia—,era coisa quejamaispassavapelacabeçadoshomensquerecebiamumataleducação."80

173.Como foi referido,aposiçãoadulta e altaneira que Huxleymanifestamente assume ao pronunciar estas palavrascomrespeitoàinfânciadamentemedievaafasta-odetododeum entendimento historicista da história e da cultura (Kultur). Istoé,afasta-odoposicionamentoalgoarnoldianoqueDeWittassume no seguinte passo de Worldviews: "Considere-se... acrença [aristotélica] dos nossos antepassados [medievais] nafactualidade do movimento perfeitamente circular e uniforme[dosplanetas],comvistaacompará-lacomanossa[newtonia-na]crençanoespaçoenotempoabsolutos.[...]Quandoouvemfalarpelaprimeiravezda factualidadedomovimentoperfeita-mentecirculareuniforme[dosplanetas],asmaisdaspessoasreagemassumindomaisoumenosaseguinteposição:'Porqueraio haveria alguém de alguma vez acreditar nisso?'Pense-seagora, porém, nos nossos descendentes. Algures no futuro,haverãoelesdeolhar para trás, paraasnossa crenças, composiçãoidêntica.Osnossosnetosebisnetoshaverãodeolharparatrás,paranós,edeseinterrogar[convencidosdaverdadeeinsteinianadarelatividadedoespaçoedotempo]porquera-zãohaveríamosnósdealgumavezteracreditadoemalgotãoestranhoquanto a ideia [newtoniana] de o espaçoe o temposerem iguais para toda a gente."81

174.Ora,faceàspalavrasdeHuxleyqueaanteriorentra-da172.reproduz,nãoserácasodeestranhardepararmoscomArnoldaresponderaopróprioHuxley—adefenderaprimaziadaliteratura,noquerespeitaàsferramentas da cultura (Bildung) eporrelaçãocomaciência,comohistoricismoeaausênciadeengagement (de qualquer natureza) que caracterizam toda a ge-

80T.H.Huxley."ScienceandCulture".Op. cit.,pp.146–47.81RichardDeWitt.Op. cit.,pp.344–45.

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nuínaposturaculta — pondo em evidência que, quanto maior se tornar a moderna maior-idade científica,maishaveráanaturalmenoridade intelectual da maior parte da humanidade de sentir a necessidade de cultura (Bildung) e, por conseguinte, das le-tras e das humanidades.

175.Arespostaqueacabadeserreferida,sintetizam-nabemasseguintespalavrasdeArnold:"Asuniversidadesmedie-vaissurgiramdevidoàcircunstânciadeopressupostoconheci-mentoqueasEscrituraseaIgrejafacultavamtocarocoraçãodoshomensprofundamente,porviadeserelacionarper se com oseudesejodecomportamentoéticoedebelezadeformasim-plesefácilmaspoderosa.Seumtalpressupostoconhecimentodominava e subordinava todo e qualquer outro tipo de conheci-mento,issoaconteciaprecisamentedevidoàforçainsuperáveldaatracçãoqueexerciasobreosafectosdoshomens,porviade se coadunar profundamente coma noção de conduta e anoçãodebelezadestesúltimos.Porém,constata-seagora,diz-nosoProfessorHuxley,queaciênciafísicanosháimpostocon-cepçõesdouniversoqueserevelamfataisàsnoçõesecrençasdosnossosantepassados.Conceda-se-lheque, na realidade,asnovasconcepçõessãofataisàsnoçõesecrençasdosnos-sosantepassados,quehaverãodesetornar forçosamentedoconhecimento geral em toda a parte, bem como que, por esse modo, toda a gente acabará por perceber a sua fatalidade eas consequências desta última. A necessidade das letras e das humanidades [humane letters]... a necessidade de estas esta-beleceremrelaçãoentreasnovasconcepçõese,poroutrolado,o nosso sentido instintivo de comportamento ético e o nosso sentidoinstintivodebeleza,tornar-se-áaindamaisnotória.Sea Idade Média podia prescindir das letras e das humanidades, do mesmo modo que podia prescindir do estudo da natureza, issoaconteciadevidoàcapacidadedoseupressupostoconhe-cimentoparasuscitaresatisfazerassuasemoçõescomgrandeforça.Conceda-sequeessepressupostoconhecimentosedis-sipa:acapacidadequelheadvémdetersidomoldadodemodoasuscitaresatisfazerasemoçõesdissipar-se-á,semdúvida,juntamentecomele.Todavia,asprópriasemoçõeshaverãodepermanecer, e, com elas, a consequente necessidade de serem satisfeitas.Ora,seseverificaporexperiênciaqueasletraseashumanidadespossuemumacapacidadeinegávelparasatisfa-

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zerasemoções,aimportânciaqueasletraseashumanidadestêmcomrespeitoàeducaçãodosindivíduosrevelar-se-ámaior,aoinvésdemenor,naproporçãoemqueaciênciamodernaforbemsucedidaempôrfimàquiloaquechama 'opensamentomedieval'."82

176. Nestes nossos tempos, em que (de modo que Arnold nãopoderiaprever)a tecnologiaemgeraleaelectrónicaemparticular hão adquirido capacidade para adormecer as emo-ções(queopressupostoconhecimentodaIdadeMédiasuscita-vaesatisfazia)muitomaiordoqueacapacidadequealiteraturaeashumanidadesalgumavezpoderãoterparaassatisfazer—nestes nossos tempos, os argumentos que vimos de constatar poderãoparecerestranhos.Torna-se,porissonecessáriotornarclaras duas circunstâncias.

177.Aprimeiracircunstânciaéesta:adeArnoldnãoad-vogar a permanência da teoria de vida medieva, em detrimento dateoriadevidaqueacosmologiacientíficatemvindoadeter-minar ao longo dos últimos três séculos, mas sim a necessidade de a cultura (Bildung)preencher,comoauxílioda literaturaedashumanidade,ovaziocriadonasvidasdoshomenspelaex-tinção,porpartedaciênciamoderna,daacçãoformativaqueadoutrinacatólico-cristãexercia.

178.AsegundacircunstânciaéadeaênfasequeArnoldcolocananecessidadede satisfazer asemoçõesdecorrer doseu correcto entendimento de que a cultura (Bildung) passa es-sencialmente pela componente ética do homem, uma vez que consistepornatureza, comosehávisto,naconcretizaçãododever-ser da espécie "Homem" (e, por conseguinte, na concre-tizaçãodosprincípioséticosquea razãoprática formalmentedetermina). Ou seja, a segunda circunstância é a de uma tal ênfasedecorrerdaconsciência,porpartedeArnold,dequeaconcretização da cultura (Bildung)encontraumfortealiadonacargaemotivaqueareligiãoeapoesiaadicionam aos preceitos moraisquea razãoprática formalmentedeterminaa todososhomens.Comoelemesmoafirma, emLiterature and Dogma:"Areligiãoé,quandosesegueasintençõesdopensamentoeda linguagem dos homens que se encontram na origem do uso dessapalavra,areligiãoééticaelevada,enlumecida,iluminada

82MatthewArnold. "LiteratureandScience".Complete Prose Works, vol.10,pp.66–67

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pelo sentimento, sendo que a passagem da moralidade para a religião ocorre quandoo sentimento é aplicado àmoralidade.Eis,pois,queoverdadeirosentidode'religião'nãoésimples-mente moralidade, mas sim moralidade tocada pela emoção. [...]Conduta[comportamentoético]épalavradoforodavidadodia-a-dia,moralidadeépalavradoforodaexposiçãofilosófica,rectidão é palavra do foro da religião."83 — Dever-ser, poder-se-iaacrescentar,épalavradoforodaculturaqua Bildung (do ponto de vista da qual ser é agir e agir é ser)!

179.Huxley,vimo-lo,considera,acertadamente,que"umainterpretaçãocríticadavida[a criticism of life] constitui a essên-cia da cultura". Porém, quando se segue os seus argumentos comatenção, facilmente sepercebeque identifica como "cul-tura"nãotantoumatalinterpretaçãocrítica,aqualsempreteráde ser sintética, mas mais o conhecimento, via da ciência mo-derna, da cosmologia ou da imagem do universoqueahaveráde determinar em primeira instância. Ora, assim sendo, também se percebe facilmente o seguinte: que, na verdade, ele entraem linha de conta, tendencialmente, apenas com a componente científicadacultura,entendidaestaqua Kultur ou mundividência, aoinvésdeconcederigualimportânciaànecessáriaesemprepresente componente filosófico-literária da própria cultura.Ouseja,aoinvés,afinal,deconcederigualimportânciaà"essênciadacultura":84"àinterpretaçãocríticadavida"queacomponentefilosófico-literáriadaculturaora teráde levaracaboentrandoem linha de conta com a cosmologia ou a imagem do universo que a ciência moderna lhe determina — sem consistir ela mes-ma,esempoderconsistir,em"interpretaçãocríticadavida".

180.Emvistadisso,nãoserá,certamente,deestranhardepararmoscomArnoldaafirmar,jápertodofimdoseuescrito,oseguinte: "Evitemosde facto... todosnós, tantoquantopos-sível, qualquer comparaçãodiscriminatóriaentreoméritodasletrasehumanidades,enquantoinstrumentosdeeducação,eoméritodasciênciasnaturais.Todavia,quando[alguém]...insis-tirnacomparação,...responda-se-lhedizendoqueoestudioso

83MatthewArnold.Literature and Dogma. Complete Prose Works, vol. 6, p. 176.

84ImportamanteremmentequeestaexpressãoédopróprioHuxley;quedeparámoscomeleadefender"queumainterpretaçãocríticadavida[a criticism of life]éaessênciadacultura"(veja-se,atrás,aentrada139).

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tão-somentedasletrasedashumanidadesconhecerátambém,pelomenos,asgrandesconcepçõesgeraisqueamodernaciên-ciafísicatrazaténós—umavezque,comooProfessorHuxleyafirma,aciênciaasimpõeatodosnós—,masqueoestudiosotão-somentedasciênciasnaturaisnadaconhecerá,deacordocomanossaprópriahipótese,dasletrasedashumanidades."85

181.Somoschegadosaofimdestaúltimasecçãoe,comela, das presentes notas. Quem a tenha seguido até aqui pode-ráserdaopiniãodequeaatençãoquedispensaaoconfrontoentreArnold eHuxley, com respeito às relações entre culturaeciênciaeculturaeliteratura,ahátornadoinjustificadamentemais extensa do que deveria ser.A verdade, porém, é que aanálisequeaquitermina,noquedizrespeitoa"LiteraturaeCul-tura"e"LiteraturaeCiência",permitiucomplementaresolidificaraspresentesnotasporduasvias imprescindíveis:pelaviadetrazeràcolaçãováriosdosaspectos importantescomquesedeparaaoestudartaisrelações,asquesubsistementreculturae ciência e cultura e literatura, e, em resultado disso, pela via de elucidarmaiscabalmenteaquelaquecontinuaaser,afinal,umadasquestõesquemaisseprendecoma identidadehistórico-cultural e os destinos últimos da Modernidade.86

85MatthewArnold. "LiteratureandScience".Complete Prose Works, vol. 10, p. 69.

86Comoo testemunha,porexemplo,acircunstânciadeoconfrontoentreHuxleyeArnoldse ter,dealgummodo, replicadonoconfronto,muitomaisrecente,entreC.P.Snow(oautordeThe Two Cultures,de1959)eF.R.Leavis(oautordeTwo Cultures? The Significance of C. P. Snow, de 1962).

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