norma-padrão e variação linguística nos “consultórios” gramaticais

22
IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 29, p. 119-140, 2º. Sem. 2015 | 119 NORMA-PADRÃO E VARIAÇÃO LINGUÍSTICA NOS “CONSULTÓRIOS” GRAMATICAIS DOS SÉCULOS XX E XXI Claudia Moura da ROCHA 1 RESUMO Não é prática recente os falantes buscarem respostas para suas dúvidas sobre a língua nos chamados “consultórios” gramaticais (que podem ser colunas de jornais e, atualmente, sites da internet). Os responsáveis por tais colunas ou sites, pela aceitação que recebem, são investidos de autoridade para responder às questões apresentadas, tirando as dúvidas dos leitores sobre a própria língua. Não obstante essas colunas possuam seus méritos, pois colocaram novamente a língua portuguesa em destaque nos meios de comunicação de massa (seus autores prestam consultoria a canais de televisão, apresentam programas televisivos sobre a língua portuguesa, mantêm colunas em sites na internet), algumas ressalvas podem ser feitas a elas. Uma delas é a inobservância da variação linguística e das contribuições de estudos linguísticos. O presente artigo busca comparar alguns autores do início do século XX (Mário Barreto e Heráclito Graça) com outros que se destacaram na transição dos séculos XX e XXI (Sérgio Nogueira Duarte e Pasquale Cipro Neto) por se dedicarem a tirar dúvidas dos falantes sobre a norma-padrão da língua portuguesa. Nosso intento é verificar se houve mudanças significativas no tratamento do conteúdo linguístico por parte deste último grupo de autores (transição dos séculos XX e XXI), em virtude do desenvolvimento de estudos científicos no campo da Linguística (como a Sociolinguística, por exemplo). Nosso referencial teórico são os estudos de Faraco (2002; 2008) sobre a norma-padrão. PALAVRAS-CHAVE: Norma-padrão. Variação linguística. Consultórios gramaticais. RESUMEN No es práctica reciente los hablantes buscaren respuestas para sus dudas acerca de la lengua en los llamados “consultorios” gramaticales (que pueden ser columnas de periódicos y, actualmente, sitios de la internet) para esclarecer sus dificultades. Los responsables por esas columnas o sitios, por la aceptación recibida, son considerados autoridades para responder a las cuestiones presentadas, esclareciendo las dudas de los lectores acerca de la propia lengua. Aunque esas columnas posean sus méritos, en vista de que colocaron nuevamente la lengua portuguesa en posición destacada en los medios de comunicación de masa (sus autores dan consultoría a canales de televisión, presentan programas televisivos sobre la lengua, mantienen columnas en sitios de la internet), algunas restricciones pueden ser hechas con respecto a ellas. Una de ellas es la inobservancia de la variación lingüística y de las contribuciones de los estudios lingüísticos. El presente artículo intenta comparar algunos de los autores del inicio del siglo XX (Mário Barreto y Heráclito Graça) con otros que se destacaron en la transición de los siglos XX y XXI (Sérgio Nogueira Duarte y Pasquale Cipro Neto) por se dedicaren a esclarecer dudas de los hablantes acerca de la lengua portuguesa estándar. Nuestro intento es verificar se hubo cambios significativos en el tratamiento del contenido lingüístico por parte de esto último grupo de autores (transición de los siglos XX y XXI), en virtud del desarrollo de estudios científicos en el campo de la Lingüística (como la Sociolingüística, por ejemplo). Nuestro referencial teórico son los estudios de Faraco (2002; 2008) acerca de la lengua estándar. PALABRAS CLAVE: Lengua estándar. Variación lingüística. Consultorios gramaticales. 1 Doutora em Língua Portuguesa (UERJ). Professora Adjunta do Depto. de Língua Portuguesa da UERJ. Professora da Pós-graduação Lato Sensu em Língua Portuguesa da Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro. Professora do Ensino Fundamental da rede municipal do Rio de Janeiro.

Upload: duongquynh

Post on 08-Jan-2017

238 views

Category:

Documents


3 download

TRANSCRIPT

Page 1: Norma-padrão e variação linguística nos “consultórios” gramaticais

IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 29, p. 119-140, 2º. Sem. 2015 | 119

NORMA-PADRÃO E VARIAÇÃO LINGUÍSTICA NOS “CONSULTÓRIOS” GRAMATICAIS DOS SÉCULOS XX E XXI

Claudia Moura da ROCHA1

RESUMO Não é prática recente os falantes buscarem respostas para suas dúvidas sobre a língua nos chamados “consultórios” gramaticais (que podem ser colunas de jornais e, atualmente, sites da internet). Os responsáveis por tais colunas ou sites, pela aceitação que recebem, são investidos de autoridade para responder às questões apresentadas, tirando as dúvidas dos leitores sobre a própria língua. Não obstante essas colunas possuam seus méritos, pois colocaram novamente a língua portuguesa em destaque nos meios de comunicação de massa (seus autores prestam consultoria a canais de televisão, apresentam programas televisivos sobre a língua portuguesa, mantêm colunas em sites na internet), algumas ressalvas podem ser feitas a elas. Uma delas é a inobservância da variação linguística e das contribuições de estudos linguísticos. O presente artigo busca comparar alguns autores do início do século XX (Mário Barreto e Heráclito Graça) com outros que se destacaram na transição dos séculos XX e XXI (Sérgio Nogueira Duarte e Pasquale Cipro Neto) por se dedicarem a tirar dúvidas dos falantes sobre a norma-padrão da língua portuguesa. Nosso intento é verificar se houve mudanças significativas no tratamento do conteúdo linguístico por parte deste último grupo de autores (transição dos séculos XX e XXI), em virtude do desenvolvimento de estudos científicos no campo da Linguística (como a Sociolinguística, por exemplo). Nosso referencial teórico são os estudos de Faraco (2002; 2008) sobre a norma-padrão. PALAVRAS-CHAVE: Norma-padrão. Variação linguística. Consultórios gramaticais.

RESUMEN No es práctica reciente los hablantes buscaren respuestas para sus dudas acerca de la lengua en los llamados “consultorios” gramaticales (que pueden ser columnas de periódicos y, actualmente, sitios de la internet) para esclarecer sus dificultades. Los responsables por esas columnas o sitios, por la aceptación recibida, son considerados autoridades para responder a las cuestiones presentadas, esclareciendo las dudas de los lectores acerca de la propia lengua. Aunque esas columnas posean sus méritos, en vista de que colocaron nuevamente la lengua portuguesa en posición destacada en los medios de comunicación de masa (sus autores dan consultoría a canales de televisión, presentan programas televisivos sobre la lengua, mantienen columnas en sitios de la internet), algunas restricciones pueden ser hechas con respecto a ellas. Una de ellas es la inobservancia de la variación lingüística y de las contribuciones de los estudios lingüísticos. El presente artículo intenta comparar algunos de los autores del inicio del siglo XX (Mário Barreto y Heráclito Graça) con otros que se destacaron en la transición de los siglos XX y XXI (Sérgio Nogueira Duarte y Pasquale Cipro Neto) por se dedicaren a esclarecer dudas de los hablantes acerca de la lengua portuguesa estándar. Nuestro intento es verificar se hubo cambios significativos en el tratamiento del contenido lingüístico por parte de esto último grupo de autores (transición de los siglos XX y XXI), en virtud del desarrollo de estudios científicos en el campo de la Lingüística (como la Sociolingüística, por ejemplo). Nuestro referencial teórico son los estudios de Faraco (2002; 2008) acerca de la lengua estándar. PALABRAS CLAVE: Lengua estándar. Variación lingüística. Consultorios gramaticales.

1 Doutora em Língua Portuguesa (UERJ). Professora Adjunta do Depto. de Língua Portuguesa da UERJ. Professora da Pós-graduação

Lato Sensu em Língua Portuguesa da Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro. Professora do Ensino Fundamental da rede municipal do Rio de Janeiro.

Page 2: Norma-padrão e variação linguística nos “consultórios” gramaticais

Norma-padrão e variação linguística nos “consultórios” gramaticais dos séculos XX e XXI

IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 29, p. 119-140, 2º. Sem. 2015 | 120

INTRODUÇÃO

Quando se trata de língua, a grande maioria de seus usuários, apesar de utilizá-la em suas diferentes

variedades, não costuma enxergá-la em sua diversidade. Quando falam de língua, muitas vezes os falantes estão

se referindo a uma dessas variedades: a norma-padrão. Preferimos o termo norma-padrão devido às implicações

que a expressão norma culta gera (poder-se-ia pensar numa oposição com norma inculta, por exemplo;

dificilmente o falante associa a palavra culta à ideia de cultura escrita — cf. FARACO: 2002, p. 39-40).

Faraco afirma que o processo de padronização (que visa à unificação e à estabilização linguística)

gerou essa associação entre o padrão e a língua:

[...] o processo de padronização teve, historicamente, um curioso efeito — o de aproximar, no imaginário das comunidades linguísticas, o padrão e a língua. Desse modo, é o padrão que passa a constituir a referência com a qual os falantes (ou, pelo menos, aqueles grupos sociais que operam mais diretamente com ele) dão sentido à realidade linguística. Atribui-se à língua, por esse viés, um caráter homogêneo, o que redunda em tratar a variação e a mudança linguísticas como desvios, como erros, como não língua. É-lhes, no fundo, incompreensível aquilo que se depreende dos estudos científicos sistemáticos dos últimos duzentos anos: uma língua só existe como um conjunto de variedades (que se entrecruzam continuamente) e a mudança é um processo inexorável (que alcança todas as variedades em múltiplas direções). (FARACO: 2002, p. 44)

O que ocorre é que, quando os falantes apresentam uma dúvida sobre seu próprio idioma, esperam

uma resposta única, geralmente relacionada a esta modalidade padrão. O falante espera por definições do que

é “certo” ou “errado”, jamais o “talvez”. Por exemplo, quando um usuário da língua pergunta se uma construção

sintática como “Ele assiste o jogo” está correta, a resposta esperada é “Não”, pois o verbo assistir, transitivo

indireto, exige um complemento preposicionado. No entanto, em decorrência dos avanços nos estudos

linguísticos, principalmente na área da Sociolinguística, por exemplo, sabemos que tal construção é aceita e

empregada em determinadas variedades linguísticas.

Contudo, o falante anseia por respostas objetivas e diretas sobre seu idioma (o “certo” ou o “errado”),

ignorando, como dissemos, algumas contribuições que os estudos linguísticos têm oferecido. Esse

desconhecimento não é culpa dos falantes, mas ocorre porque muitas pesquisas têm se restringido ao universo

acadêmico.

Também é preciso lembrar que o desconhecimento de tais avanços nos estudos linguísticos leva uma

boa parcela da população a pensar que não sabe falar a própria língua, pois sua maneira de se expressar, muitas

vezes, é diferente da modalidade padrão. Na verdade, como considera a língua um fenômeno homogêneo,

Page 3: Norma-padrão e variação linguística nos “consultórios” gramaticais

Claudia Moura da Rocha

IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 29, p. 119-140, 2º. Sem. 2015 | 121

uno, sem nuances ou variações, acredita que seu desempenho verbal se afasta muito desse modelo abstrato de

língua (modalidade padrão). O falante não considera que a língua pode ser empregada de formas diferentes

(variedades linguísticas), nem que deve se adequar a cada situação nova, empregando a modalidade linguística

mais adequada a ela (não se fala com o pai da mesma forma que se fala com um futuro empregador).

Outro fato que muitas vezes é desconsiderado é a variação que a língua sofre com o decorrer do

tempo. A língua não é, como já vimos anteriormente, uma entidade imutável ou invariável, mas, para boa

parcela da população, essas possibilidades de mudança (no tempo e no espaço) também passam despercebidas

ou são consideradas como índice de decadência ou degeneração linguística (cf. FARACO: 2002, p. 49). Ao

contrário, segundo Cunha (1994, p. 29), “a estagnação [...] é a morte do idioma. A história de uma língua é

justamente a história de suas inovações”.

1. “CONSULTÓRIOS” GRAMATICAIS DOS SÉCULOS XX E XXI

Há muito que os falantes buscam respostas para suas dúvidas sobre a língua nos chamados

“consultórios” gramaticais (que podem ser colunas de jornais e, atualmente, sites da internet) para sanar suas

dificuldades. Os responsáveis por tais colunas ou sites, pela aceitação que recebem, são investidos de

autoridade para responder às questões apresentadas, tirando as dúvidas dos leitores sobre a própria língua.

Também poderíamos chamá-los de “comentadores gramaticais” (cf. FARACO: 2008, p. 49-50).

Segundo Faraco (2002, p. 52), possivelmente o criador dessas colunas foi o gramático português

Cândido de Figueiredo, que, no fim do século XIX e começo do século XX, tratava de questões linguísticas em

jornais tanto de Lisboa como do Rio de Janeiro.

Cândido de Figueiredo era ferrenho defensor do vernaculismo e do purismo linguístico, reforçando a

dicotomia certo X errado:

Em sua coluna, se dedicava ele, no melhor espírito inquisitorial, a caçar “erros” de língua em toda parte e a condenar furiosamente os falantes por sua suposta ignorância linguística e pelo descuido e descaso das questões vernáculas. (FARACO: 2002, p. 52)

E, indo ao encontro das expectativas de seus leitores, suas respostas sempre apontam o “certo” e o

“errado”, não havendo espaço para variações decorrentes do tempo, do espaço ou da situação. Portanto, de

acordo com essa visão, depreende-se que a língua é um fenômeno homogêneo e imutável.

Esses profissionais costumam ser bem aceitos pela população, pois esclarecem, do alto de sua

autoridade, as perguntas sem deixar margem para dúvidas (uma construção é “certa” ou é “errada”, não

Page 4: Norma-padrão e variação linguística nos “consultórios” gramaticais

Norma-padrão e variação linguística nos “consultórios” gramaticais dos séculos XX e XXI

IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 29, p. 119-140, 2º. Sem. 2015 | 122

havendo meio termo). Respondem de forma objetiva, não gerando mais dúvidas na mente do falante, que não

tem tempo ou interesse em discussões linguísticas.

Essas colunas possuem seus méritos, pois colocaram novamente a língua portuguesa em destaque nos

meios de comunicação de massa (seus autores prestam consultoria a canais de televisão, apresentam programas

televisivos sobre a língua portuguesa, mantêm colunas em sites na internet), mas algumas ressalvas podem ser

feitas a elas. Uma delas é a inobservância da variação linguística e das contribuições de estudos linguísticos.

Segundo Faraco (2002, p. 53-54),

Sem muita exceção, esses conselheiros gramaticais deixam transparecer um espantoso desconhecimento da história da língua e da realidade linguística nacional; operam sem distinguir devidamente a fala culta do padrão; e, pior, tentam impor um absurdo modelo único, anacrônico e artificial de língua com base no padrão estipulado nos compêndios gramaticais excessivamente conservadores. Sustentam-se no danoso equívoco de que o padrão é uma camisa de força que não conhece variação, nem mudança no tempo. Mantém-se incólume, portanto, seu vício de origem, isto é, o velho substrato inquisitorial e dogmático. Apesar disso, há, neste novo ciclo das colunas gramaticais, algumas diferenças apreciáveis em relação ao passado.

2. CORPUS ANALISADO

O presente artigo busca comparar alguns autores do início do século XX com outros que se destacaram

nas últimas décadas do mesmo século e no início do XXI, por se dedicarem a tirar dúvidas dos falantes sobre a

norma-padrão da língua portuguesa. Nosso intento é verificar se houve mudanças significativas no tratamento

do conteúdo linguístico por parte deste último grupo de autores (transição dos séculos XX e XXI), em virtude do

desenvolvimento de estudos científicos no campo da Linguística (como a Sociolinguística, por exemplo).

Os autores dos dois grupos (tanto do início do século XX, como do período de transição) foram

escolhidos por responderem a dúvidas dos leitores, em colunas de jornais ou em publicações destinadas a

esclarecer dificuldades sobre a língua. Analisaremos os autores Mário Barreto e Heráclito Graça (início do

século XX) e Sérgio Nogueira Duarte e Pasquale Cipro Neto (período de transição entre os séculos XX e XXI).

Buscamos analisar a postura dos autores diante do mesmo fato linguístico. Pretendemos também

verificar a noção de norma-padrão que está subjacente a esse posicionamento.

Comecemos por Mário Barreto que, assim como Heráclito Graça, se insere, segundo a divisão dos

estudos filológicos brasileiros proposta por Sílvio Elia, na primeira geração da segunda fase do período científico,

a de “combate à base normativa de direção vernaculista” (cf. FÁVERO e MOLINA: 2006, p. 48). Ou, ainda

segundo Leodegário A. de Azevedo Filho, os dois autores participam da primeira geração do período filológico

Page 5: Norma-padrão e variação linguística nos “consultórios” gramaticais

Claudia Moura da Rocha

IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 29, p. 119-140, 2º. Sem. 2015 | 123

e linguístico (séc. XX). Fávero e Molina (2006, p. 50) asseveram que “[...] a tônica desse momento é a pesquisa

dos fatos da língua no texto de bons autores, sem qualquer preocupação logiscista [...]”.

Analisaremos a abordagem dada pelos autores a três tópicos da língua: a regência do verbo preferir, a

concordância da palavra meio e da expressão um dos que.

2.1. Preferir

Em seu livro Novíssimos estudos da língua portuguesa (1980a), Mário Barreto esclarece alguns fatos

de língua portuguesa que podem causar dúvidas aos falantes. Um desses tópicos é o emprego do verbo preferir,

que, ao contrário do emprego mais comum (preferir uma coisa do que a outra), pede a construção “prefiro uma

coisa a outra”. O autor começa sua explanação com um exemplo de Rebelo da Silva. No exemplo, Rebelo da

Silva emprega a construção preferir... do que:

O duque de Bragança e o prior do Crato, dir-se-ia, e não sem motivo, que no fundo do coração preferiam beijar a mão ao rei católico do que unidos e unânimes, calando as rivalidades, arrancarem a espada em favor do reino, cuja coroa disputavam. (Tomo II, p. 367) [BARRETO: 1980a, p. 72]

Segue-se a explicação de Mário Barreto, que afirma: “O verbo preferir, como é sabido, constrói-se

com a” (BARRETO: 1980a, p. 72), citando vários exemplos (inclusive do próprio Rebelo da Silva).

Passa a apresentar uma possível explicação para a construção preferir ... do que:

Preferir, construído com que ou do que, só se explica, enquanto a mim, por uma falsa analogia, por influência de outra locução: querer antes. [...] sucede que, por contágio da expressão equivalente querer antes que se constrói com que, também se empregue este vocábulo com o verbo preferir, como fez o douto historiador Rebelo da Silva. (BARRETO: 1980a, p. 73)

Nota-se que há uma tentativa de explicar como a construção sintática se forma (por contaminação

com querer antes), mas, mesmo assim, seguem-se juízos de valor negativos acerca de tal construção: “na

locução viciosa prefiro morrer do que viver”; “A construção pura é: Prefiro morrer a viver [...]”; “Também

Camilo se confundiu empregando o que com o verbo preferir, porque preferir é sinônimo de querer antes”

(BARRETO: 1980a, p. 73).

Outra locução analisada é preferir antes, em que também aponta a influência de querer antes (“Preferir

antes é locução supérflua, pleonasmo escusadíssimo, porque o antes já está implicitamente no preferir: a ideia

de preferência repete-se em antes; pleonasmo, por conseguinte.”) [BARRETO: 1980a, p. 74].

O autor termina sua explanação citando a resposta de Cândido de Figueiredo sobre o assunto:

Page 6: Norma-padrão e variação linguística nos “consultórios” gramaticais

Norma-padrão e variação linguística nos “consultórios” gramaticais dos séculos XX e XXI

IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 29, p. 119-140, 2º. Sem. 2015 | 124

[...] à pergunta de se era vernácula a seguinte construção: — “O abutre prefere alimentar-se de carne morta, antes que de presa viva”, respondeu o sr. Cândido de Figueiredo: “Não, senhor. Em português poderia dizer-se: O abutre prefere alimentar-se disto a alimentar-se daquilo. Ou: — O abutre prefere a carne morta à presa viva. Ou: — O abutre antes quer carne morta do que presa viva. (BARRETO: 1980a, p. 74)

Mário Barreto abona suas explicações com exemplos próprios ou de escritores como Rebelo da Silva,

M. Bernardes, Arnaldo Gama, Bocage, Camilo C. Branco, seja para exemplificar o bom uso de preferir, seja

para exemplificar os equívocos.

Faraco esclarece que o recurso aos clássicos era comum entre os gramáticos, mas que só eram

valorizados quando estavam de acordo com o que estes pregavam. Fora isso, também sofriam condenação:

Interessante observar que, naqueles momentos de acirrada polêmica, ficou claro que, para os cultores do códice normativo, a autoridade dos clássicos só valia efetivamente quando seus usos sustentavam as regras inventadas pelos gramáticos. De outro modo, estes não tinham pejo algum em lhes imputar erro — o que mostra bem a complexidade cultural e política da questão do padrão. (FARACO: 2002, p. 53)

Segundo Mattoso Câmara Jr., Mário Barreto, apesar da influência neogramática, emprega abonações

dos clássicos:

Intimamente associado à escola filológica do português europeu, criou um conceito de duas faces, por assim dizer. De um lado, quer uma coerência do presente com as linhas do desenvolvimento histórico da língua, que aquela escola depreendia em termos neogramáticos. De outro lado, numa contradição implícita, vê nos monumentos clássicos um modelo perene. (UCHÔA: 2004, p. 233-234)

Dessa maneira, parece ignorar, ao recorrer aos clássicos eternizados nos

exemplos, a variação por que a língua passa e que ele mesmo reconhecia como legítima.

Passemos a dois autores do final do século XX e início do XXI. Um desses autores,

que respondia pela coluna de dúvidas gramaticais Língua Viva, do Jornal do Brasil, é

Sérgio Nogueira Duarte. Ao abordar a regência do verbo preferir, ele a explica em quatro

linhas, transcritas a seguir:

48. PREFERIR TDI (alguma coisa a outra) – “Prefiro cinema a teatro.” “O carioca prefere ir à praia a trabalhar.” OBSERVAÇÃO: É inaceitável o uso de “do que”: “Prefiro ir à praia do que trabalhar.” (DUARTE: 1998c, p. 24)

Page 7: Norma-padrão e variação linguística nos “consultórios” gramaticais

Claudia Moura da Rocha

IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 29, p. 119-140, 2º. Sem. 2015 | 125

O autor, que não se preocupa em explicar uma possível origem da construção “preferir ... do que”, é

categórico na proibição (“É inaceitável o uso de ‘do que’”), demonstrando, nesse trecho, desconsiderar a

existência das variedades sociolinguísticas.

Emprega dois exemplos próprios para dar sua explicação, não se utilizando de exemplos retirados de

obras de escritores conhecidos. O autor se preocupa em indicar a transitividade verbal — “TDI (alguma coisa a

outra)” —, mas não desenvolve uma discussão sobre o assunto, que é abordado de maneira muito simplista.

Percebe-se que, nesse trecho, para este autor, a língua parece ser um fenômeno rígido e imutável, sem

variedades, que se confunde com a norma-padrão, podendo ser tomada como um sinônimo dela.

Notam-se, assim como percebido em Mário Barreto, juízos de valor pejorativos em relação às outras

construções com o verbo preferir, o que pode ser exemplificado por seu comentário na introdução da obra.

Nesse trecho, reconhece a variedade popular, que, no entanto, é desaprovada:

Observe que não há regras. A regência de uma palavra é um caso particular. Cada palavra pede o seu complemento e “rege” a sua preposição. Ninguém precisa “decorar” que “quem faz referência faz referência ‘a’ alguma coisa” ou “que tem necessidade ‘de’ alguma coisa”. Na verdade, nós aprendemos regência “de ouvido”. O fato de falar, ouvir, ler e escrever em língua portuguesa é o que nos leva a saber qual preposição devemos usar. E aqui está o “perigo”. Nosso ouvido nem sempre está “bem-educado”. Existe uma regência na linguagem popular que deve ser evitada em textos formais, em situações que exijam uma linguagem mais cuidada, mais clássica. O uso do verbo PREFERIR é um “belo” exemplo disso. É frequente ouvirmos: “Prefiro muito mais ir na praia do que trabalhar”. Temos aqui um festival de asneiras. A primeira é a mania de “preferir mais”. Você já viu alguém “preferir menos”? Isso significa que “preferir mais” é uma redundância. E “preferir muito mais” é “uma asneira muito maior”. [...] Finalmente, o terceiro erro: a regência do verbo PREFERIR. Quem prefere sempre prefere alguma coisa “a” outra coisa. É um verbo transitivo direto e indireto. Devemos observar que o objeto indireto deve vir com a preposição “a”. O uso de “do que” é característico da regência popular, e devemos evitar em textos formais que exijam uma regência clássica. Em textos nos quais se exija uma linguagem mais cuidada, devemos usar: “Prefiro ir à praia a trabalhar”. (DUARTE: 1998c, p. 8-9)

Pasquale Cipro Neto, o autor da coluna gramatical Ao pé da letra (publicada pelo jornal O Globo),

também comenta a regência do verbo preferir. Ele classifica o verbo de “problemático”. Vejamos o porquê:

Page 8: Norma-padrão e variação linguística nos “consultórios” gramaticais

Norma-padrão e variação linguística nos “consultórios” gramaticais dos séculos XX e XXI

IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 29, p. 119-140, 2º. Sem. 2015 | 126

E o verbo “preferir”, já tratado no texto 5, fascículo 2? É outro problemático. No Brasil, há muito tempo a regência “real” é “preferir uma coisa do que outra”, ou “preferir mais (ou “muito mais”) uma coisa do que outra”. (CIPRO NETO: 2002, p. 155)

Cipro Neto continua sua explicação, citando o fato de o dicionário Houaiss mencionar o uso brasileiro

e apresentar alguns exemplos literários clássicos (tanto de autores brasileiros quanto de portugueses) em que se

verifica essa construção. No entanto, segundo ele, na mesma obra é afirmado que tal construção não é aceita

na língua culta. O autor prossegue tratando da abordagem que outra obra de referência para a língua portuguesa

dá ao tema. Segundo ele, o dicionário Aurélio “nem toca no assunto. Registra apenas o que se considera correto

em linguagem formal (“preferir uma coisa a outra”).” (CIPRO NETO: 2002, p. 155)

A seguir, assim como Mário Barreto, explica a etimologia do verbo e a possível influência que gostar

mais ... do que tem sobre a regência “real”, a que realmente é empregada pela maioria dos falantes. Contudo,

segundo o autor, “isso explica, mas não abona” (CIPRO NETO: 2002, p. 155).

Cita ainda Celso P. Luft:

O linguista Celso Luft, considerado progressista, depois de dar a regência padrão (“preferir uma coisa a outra”), dá exemplos de abonações literárias da sintaxe oral “preferi-lo (do) que” e afirma que o linguista Antenor Nascentes, que rastreia essa sintaxe nos clássicos (Bernardes, Garrett, Camilo) e em outras línguas (grego, latim, alemão), conclui “que não há erro nenhum nas expressões ‘preferir antes’ e ‘preferir do que’. (CIPRO NETO: 2002, p. 155)

Entretanto, segundo Cipro Neto, Luft não defende a legitimidade de construção tão comum entre os

brasileiros, cabendo a construção “preferir algo ... a” no emprego da linguagem culta formal (CIPRO NETO:

2002, p. 155).

O referido autor termina sua explicação enfatizando o prestígio da norma-padrão:

Pois é, roda, roda, roda, mas... Em textos formais e, sobretudo, em provas de português que resolvam sua vida, seu futuro profissional, sua carreira, não hesite: use a regência padrão. (CIPRO NETO: 2002, p. 155)

Como se percebe, Pasquale Cipro Neto não utiliza citações literárias, mas recorre a abonações de

gramáticos conhecidos, como Celso Pedro Luft, e de obras de referência, como os dicionários Houaiss e Aurélio,

a fim de dar credibilidade a seu ponto de vista (a defesa da norma-padrão).

Apesar de apresentar uma abordagem mais ampla e de reconhecer a variação linguística (reconhece

a regência “real” e a padrão, modelar), o autor, ao final da explicação, revela sua posição: valorização da

norma-padrão em relação às outras (o falante deve, em situações formais, empregar a regência padrão).

Page 9: Norma-padrão e variação linguística nos “consultórios” gramaticais

Claudia Moura da Rocha

IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 29, p. 119-140, 2º. Sem. 2015 | 127

Ao contrário de Nogueira Duarte, que é sucinto e objetivo, sem apelar para citações de autores

literários ou abonações de gramáticos e dicionaristas, Cipro Neto emprega parte desse aparato (abonações de

gramáticos e dicionários) para conferir legitimidade à sua explicação. Enquanto o primeiro é categórico, o

segundo, apesar de reconhecer a existência da variação linguística (fato que o primeiro não ignora

completamente por reconhecer a “linguagem popular”, apesar de não valorizá-la, parecendo considerar a

língua uma realidade una e homogênea), não a legitima, pois enfatiza o prestígio social da regência padrão,

como se a regência “real” não existisse. Apesar de ser o uso “real”, o autor não o reconhece como passível de

ser prestigiado em algumas situações linguísticas.

Nogueira Duarte assume uma postura, de certa maneira, menos flexível (ou é “certo” ou é “errado”),

dogmática, que não é explicitamente seguida por Cipro Neto. Este, a princípio, conversa com o leitor e recorre

à existência de outros pontos de vista para, no final, assumir um discurso dogmático.

2.2. Meio

Em Novos estudos da língua portuguesa (1980b), Mário Barreto aborda o emprego do vocábulo meio,

ora como advérbio, ora como adjetivo. Explica que há, sem prejuízo de sentido, uma equivalência entre meio

e meia em função adverbial:

São expressões que, sem alteração de sentido, se podem empregar umas pelas outras as seguintes: Ela está cansada, fraca e meio doente, ou meia doente; a pomba voava muito alto, ou voava muito alta; queria vender caro a sua vida, ou vender cara a sua vida, etc. A forma adjetiva (meia por meio, alta por alto, cara por caro), tem exatamente o mesmo valor do advérbio, sem embargo da concordância. (BARRETO: 1980b, p. 263)

O autor reconhece que adjetivos em função adverbial (a de modificar adjetivos e qualificar verbos)

devem permanecer invariáveis; no entanto, justifica que outro tipo de concordância pode ser feito por atração

sintática:

Sabido é que vários adjetivos se prestam ao uso adverbial, modificando adjetivos e qualificando verbos: devem neste caso ficar invariáveis, e sujeitá-los a uma concordância que só lhes compete quando adjetivos, explica-se pelo fenômeno de atração sintática [...]. (BARRETO: 1980b, p. 263)

Cita Camões como exemplo desse emprego:

Verdadeiramente assim é, e assim o exige com os adjetivos adverbiados o rigorismo gramatical; mas graves escritores, — prosistas e poetas como Luís de Camões, o qual disse uns caem meios mortos (Lus., III, oitava 50; item oit. 113), fazem concordar o adjetivo que se adverbializa, ficando assim a palavra adjetivo pela forma, porém advérbio pelo sentido. (BARRETO: 1980b, p. 264)

Page 10: Norma-padrão e variação linguística nos “consultórios” gramaticais

Norma-padrão e variação linguística nos “consultórios” gramaticais dos séculos XX e XXI

IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 29, p. 119-140, 2º. Sem. 2015 | 128

Como se percebe, Mário Barreto entende que a forma é de adjetivo (sujeito à sua concordância), mas

a função é de advérbio (“advérbio pelo sentido”).

A seguir, o autor cita, como exemplos de outros adjetivos empregados adverbialmente (havendo a

concordância atrativa ou não), autores como Frei Heitor Pinto, Almeida Garrett, Dom Amador Arráiz, Camilo

Castelo Branco, Rebelo da Silva, Manuel Bernardes, entre outros (BARRETO: 1980b, p. 264-266).

Mário Barreto reconhece essa variação como um fenômeno diacrônico:

MEIO, usado com força de advérbio, encontra-se já variável, já invariável, em muitos exemplos, em todos os tempos da língua: porta meio aberta, e porta meia aberta, olhos meio fechados, e olhos meios fechados. (BARRETO: 1980b, p. 266)

A seguir, transcreve exemplos do castelhano, em que ocorrem os dois tipos de concordância, e de

escritores consagrados da língua portuguesa. Estas citações também abonam os dois empregos: o uso invariável

de meio; meio sendo empregado como palavra variável (“variável, posto que adverbialmente empregado”; cf.

BARRETO: 1980b, p. 267).

É interessante o que Mário Barreto afirma a seguir:

Se não bastam os exemplos que aí ficam, e os leitores querem mais porque nada persuade tanto como exemplos e autoridades, ajuntem aos trechos supracitados os que o sr. Heráclito Graça, filólogo distinto e mui versado nos clássicos, reuniu no seu erudito livro intitulado Fatos da linguagem, no intuito de provar, contra o parecer de Silva Túlio e de Cândido de Figueiredo, dois advogados infatigáveis da vernaculidade, que é lícito usar de meio como adjetivo ou vocábulo adverbial: criança meio nua, uma velha meio cega e surda, os vínculos meio lassos, ou casas meias construídas, a casa está meia feita, estátuas meias carunchosas, etc., mudando a palavra meio de forma, mas não mudando de função: é um advérbio. (BARRETO: 1980b, p. 268)

E ainda:

Tão vernácula é uma maneira de dizer como a outra, e de ambas há exemplos, como vimos, nos autores de boa nota. Além disso, o emprego adjetivo de meio, meia, meios, meias, em frases como as mencionadas, em vez do emprego adverbial de meio, tem a seu favor o voto de filólogos eminentes, como Heráclito Graça, Rui Barbosa e José Leite de Vasconcelos. (BARRETO: 1980b, p. 268)

O autor reconhece a importância de seus pares e a legitimidade decorrente de exemplos, abonações

de autores conhecidos e a opinião de autoridades da língua, por isso cita Heráclito Graça, Rui Barbosa, entre

outros.

E, reiterando o que anteriormente dissera, atribui à atração sintática a justificativa de tal concordância:

Page 11: Norma-padrão e variação linguística nos “consultórios” gramaticais

Claudia Moura da Rocha

IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 29, p. 119-140, 2º. Sem. 2015 | 129

Os adjetivos tomados como advérbios são invariáveis, conservando a terminação masculina. Esta é, sem dúvida, a regra; mas a concordância que em tais casos fazem insignes poetas ou prosistas, tem sua razão de ser no fenômeno sintático que se chama atração. Por atração sintática foi o sr. dr. Leite de Vasconcelos o primeiro em explicar as construções do tipo “gente meia disposta”, casas meias queimadas, termos meios velados”, por alguns indigitadas sem razão como incorretas e vitandas. A atração, em sintaxe, consiste em fazer concordar palavras invariáveis (ou que como tais deviam ser empregadas) com as variáveis, dando-lhes flexão de número e gênero. Assim define a coisa o sr. dr. A. A. Cortesão nos seus preciosos Subsídios para um dicionário completo da ling. portug. Consulte-se também a excelente gramática do mesmo autor (sétima ediç., Coimbra, p. 49, n. 1). (BARRETO: 1980b, p. 269)

Embasado por um cientificismo nascente nos estudos linguísticos, Mário Barreto afirma:

Uma e a mesma palavra — a linguística o prova, e também a simples e elementar observação dos fatos correntes da linguagem — pode ser, segundo os casos, nome, ou adjetivo, ou particípio, preposição, ou conjunção, ou advérbio. Desta variedade de papéis que representa uma idêntica palavra, acabamos de ver um exemplo nos adjetivos que soem converter-se em advérbios. Bem se pudera dizer que não há espécies de palavras. O que há são funções, modos de emprego, e tão somente isso. (BARRETO: 1980b, p. 270)

Além da Linguística, a observação dos “fatos correntes da linguagem” lhe permitia defender tal tipo de

concordância. Em outras palavras, não sustentava suas opiniões apenas em sua autoridade de gramático, mas

também na ciência e no uso efetivo da língua.

Percebemos que a oscilação entre meio, meios, meia, meias era bastante comum naquela época, como

continua a ocorrer atualmente. Também é interessante destacar como algumas dúvidas dos falantes em relação

à própria língua continuam as mesmas, como podemos comprovar a seguir.

Nogueira Duarte, no volume dedicado à concordância nominal, também trata, de forma bastante

resumida, do emprego de meio ou meia:

25. MEIO ou MEIA? Como numeral (= metade), deve concordar: “Tomou MEIO litro de vodca.” “Tomou MEIA garrafa de vodca.” “Tomou uma garrafa e MEIA.” “Leu um capítulo e MEIO.” “São duas e MEIA da tarde.” “É meio-dia e MEIA.”

Page 12: Norma-padrão e variação linguística nos “consultórios” gramaticais

Norma-padrão e variação linguística nos “consultórios” gramaticais dos séculos XX e XXI

IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 29, p. 119-140, 2º. Sem. 2015 | 130

OBSERVAÇÃO: Como advérbio (= mais ou menos), é invariável: “A aluna ficou MEIO nervosa.” “A diretoria está MEIO insatisfeita.” “Os clientes andam MEIO aborrecidos.” (DUARTE: 1998a, p. 26)

Notamos que não dá explicações detalhadas, nem recorre a citações de gramáticos ou estudiosos da

língua. É bem verdade que, neste caso, o autor não se pronuncia sobre possíveis erros, portanto, não pode

condená-los (como anteriormente fizera no item referente ao verbo preferir). Emprega novamente exemplos

próprios, sem citar excertos literários ou retirados de jornais e revistas. Sua postura é dogmática, indicando

categoricamente quando o vocábulo deve ser variável ou invariável.

O autor parece ignorar a existência de fatos linguísticos que concorrem entre si (a oscilação entre duas

formas da língua); encara a língua como um fenômeno homogêneo, desconsiderando, portanto, a variação

linguística.

É interessante comparar a sua postura ao analisar os fatos da língua e a escolha do nome de sua coluna

gramatical (Língua Viva). Há uma contradição entre sua forma de analisar e explicar os fatos linguísticos e o

nome escolhido para sua coluna, uma vez que notamos que o autor não considera a língua, pelo tratamento

dispensado a ela, uma entidade viva, que está em constante processo de alteração: em virtude do tempo, do

espaço ou da situação comunicativa.

Pasquale Cipro Neto, em Ao pé da letra (2001), coletânea de textos publicados em sua coluna do

jornal O Globo, aborda o tema de forma mais abrangente do que Nogueira. Vejamos como introduz o assunto:

ELA ESTÁ “MEIO NERVOSA”? OU SERÁ “MEIA NERVOSA”? Você já disse ou já ouviu alguém dizer que uma mulher está “muita cansada”? Ou “muita nervosa”? “Não mexa com ela; ela está muita tensa.” Já disse isso? Já ouviu isso? Certamente, não. Mas “Ela está meia nervosa” você já ouviu. Será que também já não disse? (CIPRO NETO: 2001, p. 59)

Ao contrário de Nogueira Duarte, Cipro Neto se dirige ao leitor e procura com ele interagir, falando

da linguagem do dia a dia:

Na língua do dia a dia, nem sempre os mecanismos impostos pela gramática normativa “pegam”. E esse é o caso da concordância da palavra “meio”: a gramática diz uma coisa, mas o povo faz outra. É bom lembrar que palavra que modifica adjetivo não varia, ou seja, não sofre alteração. Quando se diz “mulher bonita”, “mulher” é substantivo, “bonita” é adjetivo. (CIPRO NETO: 2001, p. 59)

Page 13: Norma-padrão e variação linguística nos “consultórios” gramaticais

Claudia Moura da Rocha

IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 29, p. 119-140, 2º. Sem. 2015 | 131

Quando afirma que “a gramática diz uma coisa, mas o povo faz outra”, apesar de demonstrar

conhecimento das variedades linguísticas, deixa transparecer certo preconceito, um juízo de valor pejorativo,

em relação a essa escolha. O autor, por exemplo, não esclarece o que entende por povo (seria toda a população

ou apenas as camadas mais populares da sociedade?). Além disso, coloca esse mesmo “povo” em oposição à

gramática (na verdade, se refere à norma-padrão), que acaba sendo personificada. Segundo Faraco, essa

personificação da norma-padrão pode ser decorrente da “falta de um conhecimento filológico e linguístico mais

substancial” (FARACO: 2002, p. 54). E afirma que tal prática se presta apenas a mascarar questões mais

pertinentes, evitadas pelos colunistas:

Elevar a norma-padrão a agente é escamotear os processos históricos, políticos e culturais envolvidos no funcionamento social da língua. Por isso, tornar a norma-padrão um ente com existência própria é extremamente favorável aos colunistas: permite a esses autores eludir todo um conjunto de questões da maior relevância para a elucidação dos problemas não triviais que enfrentamos no Brasil com o padrão, desde a compreensão crítica de sua história e as características e sentidos de sua ocorrência social até a crucial questão de quem é responsável por sua descrição e codificação e como se deve proceder para tanto. (FARACO: 2002, p. 54)

Cipro Neto segue com sua explicação:

NOTOU QUE NÃO SE MODIFICA A PALAVRA “MUITO”? Não se modifica justamente porque está vinculada a um adjetivo. Então, se a mulher é “muito nervosa”, só pode ser ou estar “meio nervosa”, “meio cansada”, “meio tensa”, “meio chateada”, “meio preocupada”, “meio esquisita”, “meio confusa”. Na língua do dia a dia, essa concordância não “pegou”. O povo gosta mesmo é de dizer “meia nervosa”, “meia chateada”. E até em escritores clássicos, como Machado e Herculano, há casos semelhantes. Modernamente, de acordo com a gramática normativa, por todas as razões já expostas, não se recomenda o uso de “meia nervosa”. (CIPRO NETO: 2001, p. 59)

Cipro Neto afirma que a “concordância não ‘pegou’” e que “o povo gosta mesmo é de dizer ‘meia

nervosa’”. Dá a entender que a regra gramatical é como uma das leis brasileiras que não são obedecidas, que

não “pegam”. Dessa forma, alça a regra gramatical à condição de lei, como algo que não pode ser questionado,

mas deve ser obedecido. E o povo brasileiro, transgressor, não a segue por que razão? Isso não explica; não

sugere hipóteses, como a de uma possível atração sintática ou a da analogia, apenas afirmando, sem argumentos

plausíveis, que o povo gosta de dizer...

Page 14: Norma-padrão e variação linguística nos “consultórios” gramaticais

Norma-padrão e variação linguística nos “consultórios” gramaticais dos séculos XX e XXI

IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 29, p. 119-140, 2º. Sem. 2015 | 132

Cita os clássicos, como Machado e Alexandre Herculano, para dizer que tais construções são

encontradas em suas obras, mas isso não o faz legitimar tais construções em determinadas variedades da língua.

Por fim, atribui à gramática normativa a responsabilidade por tal construção não ser recomendada.

Chamamos novamente a atenção para o nome da coluna gramatical (Ao Pé da Letra). A expressão ao

pé da letra significa literalmente, em sentido estrito, à risca, rigorosamente. Podemos perceber que essa

explicação, assim como as outras dadas por Cipro Neto, se atém literalmente, rigorosamente, ao que a gramática

normativa prescreve, ou seja, o falante deve segui-la à risca, como o próprio nome da coluna pode sugerir,

fazendo-nos lembrar do rigor gramatical ou do purismo linguístico.

Analisando sua explicação sobre o emprego de meio ou meia, constatamos que o autor nem sempre

consegue cumprir o que se propõe a fazer na apresentação da coletânea:

Desde 97, tenho um encontro dominical com os leitores de O Globo, em que discuto questões como essa. Tento ir além do limite do “é assim”, “é assado”. Sempre que possível, mostro o porquê dos fatos linguísticos. (CIPRO NETO: 2001, p. 5)

Não queremos desmerecer esses autores que escrevem colunas gramaticais para jornais. Eles

desempenham um papel importante: o de colocar a língua em evidência e de permitir aos leitores que

exponham suas dúvidas; no entanto, não podemos deixar de constatar as contradições e as limitações

encontradas em suas análises dos fatos da língua.

É preciso fazer uma observação sobre a forma como os três autores concebem a concordância de meio

empregado como advérbio. Para Mário Barreto, o fato de funcionar como advérbio não impedia que houvesse

dois tipos de concordância — “MEIO, usado com força de advérbio, encontra-se já variável, já invariável”

(BARRETO: 1980b, p. 266); “meio (variável, posto que adverbialmente empregado)” (BARRETO: 1980b, p. 267).

Percebemos uma mudança de visão em relação aos autores contemporâneos. Estes consideram que meio

funciona como um advérbio, portanto, só pode ser invariável (como todos os advérbios devem ser).

2.3. Um dos que

Tomemos agora a explicação de Heráclito Graça, em seu Fatos da linguagem (2005), para outra dúvida

dos falantes: como fazer a concordância com a expressão “foi um dos que”.

O autor inicia sua explanação apresentando a opinião de Cândido de Figueiredo sobre o assunto. Este

foi autor da coluna “O que se não deve dizer”, publicada no Jornal do Comércio, no início do século XX (cf.

FARACO: 2008, p. 114), ficando conhecido por sua posição vernaculista, em defesa do conservadorismo

linguístico.

Page 15: Norma-padrão e variação linguística nos “consultórios” gramaticais

Claudia Moura da Rocha

IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 29, p. 119-140, 2º. Sem. 2015 | 133

“Fulano foi um dos homens que mais lutou.” Consultado se isto é bom português, respondeu o sr. Cândido de Figueiredo, Lições práticas, I.º v, p.63-64: “Além de mau português, é um disparate gramatical, porque há ali duas orações, a principal; Fulano foi um dos homens; e outra relativa: que mais lutou. Ora, o sujeito desta é o relativo que, e este que refere-se a homens, que está no plural. Logo, só podemos dizer: Fulano foi um dos homens que mais lutaram. E, neste ponto, não há pretexto para a mínima divergência.” (GRAÇA: 2005, p. 283)

A seguir, Heráclito Graça, de forma irônica, salienta que Cândido de Figueiredo se esquecera de suas

próprias lições:

Folgo de confessar que muito me tem esclarecido, em numerosos pontos da linguagem portuguesa, as Lições do sr. Cândido de Figueiredo; mantenho, por isso, gravados na memória certos ditames de s. exa., que hei invocado mais de uma vez nestes artigos, v. g.: antes da gramática existia a linguagem; observando os gramáticos a prática dos bons escritores, dela deduzem regras, exatas quase sempre, mas sempre incompletas. À luz destes salutares princípios que, de quando em quando, não sei por que fatalidade s. exa. olvida, vejo-me forçado a discrepar do seu parecer acerca das frases referidas, não ocultando que alguns gramáticos, por incompleta observação dos fatos, uma das causas mais frequentes de nossos erros, o sufragam, e advertindo que outros o combatem, pela razão de que, ficando no singular o verbo da oração subordinada, não é ofendida a gramática, e perfeitamente se analisam as duas proposições. (GRAÇA: 2005, p. 283-284)

Em outras palavras, Heráclito Graça lembra que Cândido de Figueiredo se esquecera de um fato

primordial: a língua, sendo anterior à existência da gramática, não poderia ser colocada em segundo plano.

Portanto, a gramática existe para espelhar (no sentido de explicitar) os fatos da língua (segundo os padrões da

época, dever-se-ia observar os bons escritores para se fixarem as regras), e não é a língua que deve espelhar o

que a gramática dita. Note-se também que os bons escritores é que devem ser observados, não havendo menção

à linguagem dos outros usuários da língua (a sociedade em geral). Talvez isso ocorresse porque, naquele

período, considerava-se como língua-padrão apenas a da produção literária, desconsiderando a de outras

categorias de texto (não há referência a exemplos retirados de jornais da época, por exemplo). De certa forma,

seguia-se a tradição greco-latina de recorrer a excertos literários para exemplificar o bom uso da língua.

O autor assevera que Cândido de Figueiredo, ao condenar tais estruturas sintáticas, estava ignorando

os fatos da língua, ou seja, o seu efetivo uso. Entretanto, é preciso novamente ressaltar que, para Heráclito

Graça, o uso era o dos bons escritores e não o dos falantes em geral.

De qualquer forma, nota-se uma postura prescritiva e normativista por parte de Heráclito Graça:

Page 16: Norma-padrão e variação linguística nos “consultórios” gramaticais

Norma-padrão e variação linguística nos “consultórios” gramaticais dos séculos XX e XXI

IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 29, p. 119-140, 2º. Sem. 2015 | 134

E porque são os últimos quem está com os fatos da linguagem, conforme a prática dos bons escritores, da qual devem os gramáticos deduzir as respectivas regras para que se considerem certas e possam ser seguidas, passo a mostrar, com Fernão Lopes, Azurara, Barros, Jorge Ferreira [...]. (GRAÇA: 2005, p. 284)

Os gramáticos observam os autores e propõem regras para os demais usuários da língua seguirem.

Graça cita uma lista de autores, muitos também lembrados por Mário Barreto, para abonar sua tese (a

concordância da expressão foi um dos que pode ser feita tanto com o verbo no singular como no plural):

[...] regra geral, tanto é certo e conforme à gramática, em frases semelhantes, empregar no plural como no singular o verbo da oração subordinada, e também é manifesto que ficando o verbo no singular, tendo por antecedente o sujeito, o objeto ou predicado da oração principal, se dá mais vivacidade ao superlativo, quando este figura no período. (GRAÇA: 2005, p. 284)

Considera que a concordância com o verbo no plural é bastante comum, sendo desnecessário listar

exemplos. Prefere citar os exemplos do verbo no singular, o que seria, segundo ele, imprescindível:

Do verbo, plural, na oração subordinada, não há necessidade de exemplos, sendo o caso muito comum. Do verbo, no singular, na mesma proposição, que é o que impugna o sr. Cândido de Figueiredo, sim. Ei-los: [...] [GRAÇA: 2005, p. 284]

Arrola mais de trinta exemplos dos autores anteriormente citados por ele para abonar a tese de que o

verbo pode ser empregado no singular. Esses autores pertencem a diferentes séculos, o que demonstra que

Heráclito Graça procurava legitimar suas ideias com o auxílio de escritores conhecidos ou considerados

clássicos. Não há, no entanto, nenhuma referência ao uso de tal construção por parte dos falantes daquela

época, ignorando a realidade sincrônica.

Heráclito Graça considera ainda que as gramáticas de língua portuguesa são muito falhas em relação

à sintaxe do pronome relativo que, por isso precisa recorrer às de outras línguas. Passa a citar alguns gramáticos

franceses (GRAÇA: 2005, p. 287). Cita esses autores porque compartilham da mesma opinião que a sua: a

concordância pode ser feita tanto com o singular quanto com o plural, podendo ocasionar uma mudança de

sentido (GRAÇA: 2005, p. 288).

Finalizando sua explicação, H. Graça volta a se dirigir a Cândido de Figueiredo (na verdade, esse texto

é uma tentativa do primeiro de rebater o pensamento do último):

Vê, pois, o sr. Cândido de Figueiredo que os exemplos que transcrevi, iguais aos que s. exa. increpa como disparates gramaticais, erros de palmatória e desconchavos de grande marca, se acham dentro das regras estabelecidas pelos mais eminentes gramáticos, são perfeitamente analisáveis, e estão na sintaxe portuguesa pela autoridade inconcussa de seus melhores mestres, quais os referidos, numerosos e abalizados

Page 17: Norma-padrão e variação linguística nos “consultórios” gramaticais

Claudia Moura da Rocha

IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 29, p. 119-140, 2º. Sem. 2015 | 135

clássicos, e escritores, de quem os tomei em desagravo da verdade. (GRAÇA: 2005, p. 289)

Para Heráclito Graça, os bons escritores (os “clássicos”) e os gramáticos (“eminentes”) eram os

guardiões da língua, servindo para legitimar os dois usos, ao contrário do que pregava Cândido de Figueiredo.

Vejamos agora o que Nogueira Duarte pensa a respeito:

15. Um dos que “Ele é um dos que VIAJOU ou VIAJARAM?” Embora alguns gramáticos considerem a concordância facultativa, nós devemos usar o verbo no PLURAL, para concordar com a palavra que antecede o pronome relativo QUE: “Ele é um DOS que VIAJARAM.” O raciocínio é o seguinte: “Dentre aqueles que viajaram, ele é um.” Um outro motivo que nos leva a preferir o verbo no PLURAL é a concordância nominal. Todos diriam que “ele é um dos artistas mais BRILHANTES” (= que mais BRILHAM). Ninguém usaria o adjetivo BRILHANTE no singular. Portanto, depois de UM DOS... QUE, faça a concordância com o verbo no PLURAL: “Ela foi uma DAS MULHERES que SOCORRERAM as vítimas da enchente.” [...] [DUARTE: 1998b, p. 24-25]

O autor, como vimos anteriormente, continua a prescrever regras (“nós devemos usar...”; “portanto

[...] faça a concordância com o verbo...”) [DUARTE: 1998b, p. 25]. Nogueira Duarte até reconhece que há

opiniões divergentes (“Embora alguns gramáticos considerem a concordância facultativa...”), mas não esclarece

quem afirma isso, nem considera essas opiniões legítimas. Emprega exemplos próprios, sem recorrer a frases de

escritores consagrados ou a exemplos retirados de jornais e revistas.

A seguir, lista algumas observações, dentre elas:

OBSERVAÇÃO I: É interessante lembrar que, caso haja ideia de “exclusividade”, o verbo ficará no SINGULAR: “Senhora é um dos romances de José de Alencar que CAIU no último vestibular.” (Nesse caso, devemos entender que Senhora é o único romance de José de Alencar que CAIU na prova do vestibular). (DUARTE: 1998b, p. 26)

O autor abre uma exceção ao tratar da possibilidade de se indicar “exclusividade”. Essa alternativa,

que considera a mudança de sentido, já era percebida por Heráclito Graça, que aceitava igualmente as duas

construções. Como Nogueira Duarte coloca a construção no singular nas observações, podemos deduzir que

ele a considera uma exceção e não parte da regra.

Page 18: Norma-padrão e variação linguística nos “consultórios” gramaticais

Norma-padrão e variação linguística nos “consultórios” gramaticais dos séculos XX e XXI

IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 29, p. 119-140, 2º. Sem. 2015 | 136

Pasquale Cipro Neto, em “Concordâncias duras de engolir” (CIPRO NETO: 2002, p. 61-64), também

trata de tal concordância. O autor começa sua explicação reiterando a dificuldade (para a maioria dos falantes)

de fazer a concordância com a expressão um dos que:

O caso da concordância com a expressão “um dos que” é um dos que fazem muita gente balançar. Quando se diz “A moça é uma das alunas mais brilhantes”, não se hesita em afirmar que a concordância do adjetivo “brilhantes” é mais do que correta. Afinal, das alunas mais brilhantes da sala, ela é uma. Note que não se diz que ela é a aluna mais brilhante da sala, e sim que é uma das mais brilhantes. Percebeu? Uma das mais brilhantes. Repito: brilhantes, no plural. O que significa “brilhante”? Basta consultar um dicionário para constatar que “brilhante” é “o que brilha”. “Ladrilho brilhante” equivale a “ladrilho que brilha”. E “ladrilhos brilhantes”? “Ladrilhos que brilham”, é claro. Então, se a moça é uma das mais brilhantes, parece mais do que lógico que se diga que “A moça é uma das que mais brilham”. Das que mais brilham, ela é uma. (CIPRO NETO: 2002, p. 61-62)

Como vemos, o autor demonstra preferência por uma das possibilidades de concordância (o emprego

do verbo no plural). E justifica essa opção, citando a lógica da estrutura da frase:

Isso é o que diz a lógica da estrutura da frase. É também o que pregam muitos gramáticos, alegando que, pelos motivos que já expus, o verbo só pode mesmo ir para o plural. (CIPRO NETO: 2002, p. 62)

Faz referência a “muitos gramáticos” (sem citar quais) para legitimar sua tese. Entretanto, segundo

Cipro Neto, há muitos autores que “desrespeitam” essa regra:

No entanto não faltam na literatura bons autores que tenham desrespeitado essa interpretação lógica do fato linguístico, optando pelo verbo no singular, em frases como “Ela é uma das mulheres que mais me encanta”. O que justifica essa concordância é a ideia de que, com o verbo no singular, enfatiza-se o verdadeiro agente do processo. Tradução: com o verbo no singular, a intenção do falante, efetivamente, é enfatizar quem encanta (e muito). Ela, no caso. (CIPRO NETO: 2002, p. 62)

Para Cipro Neto, mesmo “bons autores” não escapam de “desrespeitar” a lógica da língua. Aborda

também, no quadro intitulado Efeitos de sentido, a mudança semântica decorrente da opção pela concordância

no singular (dar ênfase a um termo). Mas continua restringindo tal concordância ao âmbito literário, como se

só nessa área fosse permitida:

O que fazer então? Se você um dia escrever literatura, poderá muito bem valer-se desses recursos estilísticos e optar por processos típicos dessa linguagem, em que nem sempre a lógica gramatical da estrutura da frase prevalece. Se assim não fosse, Guimarães Rosa não existiria. (CIPRO NETO: 2002, p. 62)

Page 19: Norma-padrão e variação linguística nos “consultórios” gramaticais

Claudia Moura da Rocha

IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 29, p. 119-140, 2º. Sem. 2015 | 137

Faz uma concessão para, a seguir, recriminar tal uso, legitimando sua visão por meio de um clássico

da literatura e de um famoso compositor:

Mas nem todos os mestres da literatura trabalham assim. Machado de Assis preferiu a concordância lógica em “A baronesa era uma das pessoas que mais desconfiavam de nós”, exemplo citado por Cegalla em uma de suas gramáticas. Muitas pessoas desconfiavam de nós. A baronesa era apenas uma delas. A poesia emoldurada pela música popular também tem exemplos de opção pela concordância lógica. Vejamos um trechinho da letra de “Folhetim”, canção composta por Chico Buarque e gravada por Gal Costa e Fafá de Belém, entre outras de nossas cantoras. (CIPRO NETO: 2002, p. 62)

Continua dirigindo sua atenção aos textos jornalísticos, científicos ou técnicos, nos quais, segundo o

autor, não faria sentido dizer, por exemplo, “A China é um dos países que produz esse material” (CIPRO NETO:

2002, p. 63). No entanto, reconhece que

na língua do dia a dia, entretanto, a tendência mais do que dominante é pelo verbo no singular. Mesmo na imprensa são comuns construções como “É uma das empresas que mais cresce no mercado”. (CIPRO NETO: 2002, p. 63)

De sua posição normativa, aconselha:

Nesse tipo de texto, o verbo no singular não parece ser a melhor opção. Não se quer dizer que a empresa é a que mais cresce, e sim que, das que mais crescem, a empresa é uma. Altere-se a frase, pois, para “É uma das empresas que mais crescem no mercado”. (CIPRO NETO: 2002, p. 63)

Mais adiante prescreve:

No uso comum, entretanto, prevalecem as construções “Foi um dos que pediu”, “Foi uma das que negou”, “É um dos que pede”, “A empresa é uma das que explora” etc. Em linguagem escrita formal, é melhor ficar com o verbo no plural. (CIPRO NETO: 2002, p. 63)

Ao resumir a questão, no final do capítulo, assume uma posição mais ponderada (“deve-se preferir”,

“parece mais adequado”).

Resumindo: Com a expressão “um dos que” e assemelhadas — “uma das que”, “um daqueles que”, “uma daquelas que” —, deve-se preferir o verbo no plural. Essa é a concordância lógica, embora o emprego do verbo no singular seja comum na linguagem coloquial e esteja presente em textos literários. Em textos técnicos, jurídicos, científicos, jornalísticos, parece mais adequado o plural, como se vê em “Ela é uma das pessoas que mais me ajudaram”, “Esse menino é um dos que mais estudam”, “Não sou daqueles que falam, mas não fazem” etc. (CIPRO NETO: 2002, p. 64)

Page 20: Norma-padrão e variação linguística nos “consultórios” gramaticais

Norma-padrão e variação linguística nos “consultórios” gramaticais dos séculos XX e XXI

IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 29, p. 119-140, 2º. Sem. 2015 | 138

Assim como Heráclito Graça, Cipro Neto reconhece a dupla possibilidade de concordância, mas, ao

contrário dele, e seguindo os moldes de Nogueira Duarte, relega a concordância com o verbo no singular à

condição de exceção à regra, feita para produzir um efeito de sentido (que deveria se limitar à literatura apenas).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise dos textos de Mário Barreto, Heráclito Graça, Sérgio Nogueira Duarte e Pasquale Cipro Neto

nos permite tecer algumas considerações a respeito da abordagem que os “consultórios” gramaticais dos séculos

XX e XXI davam à norma-padrão e à variação linguística.

Podemos concluir que a necessidade de sanar dúvidas a respeito da própria língua é uma demanda

antiga, pois já podemos encontrar alguns autores que se predispunham a responder a tais dúvidas dos falantes

no final do século XIX e início do século XX, como Cândido de Figueiredo, por exemplo.

Tais autores, tanto do início do século quanto do período de transição (séculos XX e XXI), são

investidos, por parte de seus leitores, de autoridade para explicar a língua, para esclarecer o que é “certo” e o

que é “errado”. Alguns recorrem a clássicos da literatura, outros a abonações de gramáticos e dicionários, para

legitimar essa autoridade. Há aqueles que, no entanto, não recorrem a tais citações, empregando exemplos

próprios. Notamos que entre os autores contemporâneos praticamente inexiste o recurso a exemplos literários

clássicos, como outrora acontecia com os autores do início do século XX. Estes, por sua vez, recorriam aos

clássicos seja para contestar, seja para legitimar suas teses.

Como dissemos anteriormente, não podemos deixar de ressaltar alguns benefícios trazidos pela

existência das colunas gramaticais contemporâneas (colocar a língua em evidência, principalmente nos meios

de comunicação, tornando-a acessível a algumas parcelas da população; permitir aos usuários da língua a

oportunidade de esclarecerem suas dúvidas). Contudo, não podemos deixar de notar-lhes as limitações, como

a inobservância da variação linguística e o fato de não adotarem as contribuições trazidas pelos estudos

linguísticos.

Percebemos que os autores do início do século apresentam uma postura mais “flexível”, pois não é

raro reconhecerem a existência da oscilação entre duas construções linguísticas. De certa forma, reconhecem

a variação linguística. Alguns até a legitimam. Entre os autores contemporâneos, há aqueles que reconhecem a

variação, mas não a legitimam, enquanto outros parecem ignorá-la. Isso demonstra que os autores modernos

tendem a ser mais rígidos em relação às mudanças linguísticas, aparentando considerar a língua um fenômeno

homogêneo e imutável. Percebe-se, em alguns autores, um rigor gramatical, um purismo linguístico, que nos

faz lembrar de Cândido de Figueiredo, defensor ferrenho do vernaculismo.

Page 21: Norma-padrão e variação linguística nos “consultórios” gramaticais

Claudia Moura da Rocha

IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 29, p. 119-140, 2º. Sem. 2015 | 139

Em relação aos autores do início do século (Mário Barreto e Heráclito Graça), pudemos perceber que

valorizavam a observação dos usos da língua, porém, tais usos eram os encontrados nos escritores clássicos,

não se referindo ao uso praticado pelos falantes da época. Comportavam-se como “guardiões” da língua, mas

nem sempre adotavam postura tão dogmática quanto alguns autores contemporâneos.

Por outro lado, os autores dos séculos XX e XXI parecem menos flexíveis às mudanças linguísticas. A

língua, segundo se observa em seus textos, pode ser explicada de duas formas: para uns (entre eles, Nogueira

Duarte), ela se mostra homogênea, una, invariável, imutável (o que contradiz o nome da coluna gramatical

desse autor), chegando a se confundir com o conceito de norma-padrão; Nogueira Duarte adota uma postura

dogmática e normativa (é “certo” ou é “errado”). Para outros (entre os quais, Cipro Neto), apesar de

reconhecerem as variedades linguísticas, apenas a norma-padrão é digna de prestígio e valor. A propósito,

ocorre também a personificação da norma-padrão, que ganha vida e existência própria. Apesar de reconhecer

a variação linguística, Cipro Neto adota também um discurso normativo.

O tratamento dado à língua por esses autores é aceito pelos falantes, pois estes têm dificuldades de

dissociar a noção de língua do conceito de padrão linguístico. Muitos acreditam que não sabem falar a própria

língua, por não dominarem a norma-padrão, quando, na verdade, não dominam uma de suas variedades (de

maior prestígio, é bem verdade). Os próprios usuários da língua tendem a considerá-la um fenômeno

homogêneo e imutável, enxergando nas variações a presença da degeneração linguística.

Portanto, podemos concluir que, passadas algumas décadas, os estudos linguísticos parecem ter

influenciado muito pouco a forma como os autores contemporâneos analisam os fatos linguísticos em suas

colunas. Continuam a legislar sobre o que é “certo” ou “errado”, não produzindo conhecimento sobre a língua,

nem incorporando as contribuições dos estudos linguísticos.

REFERÊNCIAS

BARRETO, Mário. Novíssimos estudos da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Presença, 1980a.

______. Novos estudos da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Presença, 1980b.

CIPRO NETO, Pasquale. Ao pé da letra. Rio de Janeiro: EP&A, 2001.

______. Nossa língua em letra e música. São Paulo: EP&A, 2002.

CUNHA, Celso. Língua portuguesa e realidade brasileira. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1994.

DUARTE, Sérgio Nogueira. Língua Viva. Concordância nominal e plural. Rio de Janeiro: Jornal do Brasil, 1998a. (Coleção Língua Viva, 3).

______. Língua Viva. Concordância verbal. Rio de Janeiro: Jornal do Brasil, 1998b. (Coleção Língua Viva, 2).

Page 22: Norma-padrão e variação linguística nos “consultórios” gramaticais

Norma-padrão e variação linguística nos “consultórios” gramaticais dos séculos XX e XXI

IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 29, p. 119-140, 2º. Sem. 2015 | 140

______. Língua Viva. Regência. Rio de Janeiro: Jornal do Brasil, 1998c. (Coleção Língua Viva, 5).

FARACO, Carlos Alberto. Norma culta brasileira: desatando alguns nós. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.

______. Norma-padrão brasileira. Desembaraçando alguns nós. In: BAGNO, Marcos (Org.). Linguística da norma. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 37-61.

FÁVERO, Leonor L.; MOLINA, Márcia A. G. As concepções linguísticas no Século XIX: a gramática no Brasil. Rio de Janeiro: Lucerna, 2006.

GRAÇA, Heráclito. Fatos da linguagem. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2005.

UCHÔA, Carlos Eduardo Falcão (Org.). Dispersos de J. Mattoso Câmara Jr. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004.

Data de submissão: mar./2016.

Data de aprovação: abr./2016.