norberto bobbio - teoria das formas de governo

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Norberto Bobbio - Teoria Das Formas de Governo. Filosofia do direito

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Norberto Bobbio

A teoria das formas de governo

Traduo Srgio Bath

10a Edio

EDITORA

UnB

SumrioPrefcio para a edio brasileira Nota para a edio brasileira Prefcio - Celso Lajer Agradecimentos Nota Introduo Captulo I Uma Discusso Clebre Captulo II Plato Captulo III Aristteles Captulo IV Polbio Apndice Captulo V Intervalo Captulo VI Maquiavel Captulo VII Bodin Captulo VIII Hobbes Captulo IX Vico Captulo X Montesquieu Captulo XI Intervalo: o Despotismo Captulo XII Hegel Apndice (Michelangelo Bovero) A Monarquia Constitucional: Captulo XIII Marx Captulo XIV Intervalo: a Ditadura3 7 13 29 31 33 39 45 55 65 75 77 83 95 107 117 127 139 145

e Montesquieu

163 173

Prefcio para a edio brasileiraEste livro no propriamente um livro. uma srie de aulas de filosofia poltica ministradas na Faculdade de Cincias Polticas da Universidade de Turim no ano letivo de 1975/76. Aps ter ensinado filosofia do direito durante muitos anos, em 1972 decidi passaro ensino da filosofia poltica, cadeira criada h poucos anos pela reforma das Faculdades de Cincias Polticas. O fato de eu ter deixado a matria que ensinara por mais de trinta anos, quando j havia quase chegado ao final da carreira (que se encerrou em 1979), requer uma rpida explicao. Em 1972, meu velho amigo, Alessandro Passerin D'Entryes, que poucos anos antes havia inaugurado a primeira ctedra de filosofia poltica, entrara em gozo de licena, e convidou-me para suced-lo. No hesitei nem um pouco e aceitei: ambos tnhamos sido alunos, ele alguns anos antes de mim, do mesmo mestre, Gioele Solari, que, com a histria das doutrinas polticas, iniciara na Itlia um ciclo de estudos conduzidos mediante rigoroso mtodo histrico e com forte inspirao filosfica. A maior parte dos escritos de Solari foram reunidos em dois volumes sob a responsabilidade de outro de seus alunos, Luigi Firpo: La Filosofia Poltica, 1974). Ao aceitar o convite, contribuiria para dar continuidade a uma tradio que no merecia ser interrompida. Devo acrescentar que estvamos em meados de 68, ano dos protestos juvenis, que foram particularmente mais inflamados na Itlia. A Universidade italiana (embora no apenas a italiana) mostrara-se politizada- e mal politizada - sobretudo nas Faculdades de Cincias Humanas. Politizada no sentido de que a revolta dos estudantes (porque se tratou realmente de uma revolta) ocorrera sob o lema "Tudo Poltica" ou, inversamente, mas com o mesmo efeito, "A Poltica Tudo". Mal politizada no sentido de que a revolta contra o poder acadmico, que tambm podia ter suas razes, muitas vezes transformou-se em revolta contra a seriedade dos estudos, contra a pesquisa levada a efeito com rigor, contra a cultura do passado em nome da atualidade, na exaltao dovol. I: Da Campanella a Rousseau, e vol. II: Da Kant a Comte (Bari, Laterza,

A Teoria das Formas de Governo mais desenfreado tendenciosismo, da leviandade, da improvisao; na substituio do discurso fundamentado e documentado pelo palavreado oco. Parecia chegado o momento de fazer entender aos estudantes to inflamados quanto despreparados que a poltica era uma outra coisa e que, com certeza, era importante transformar o mundo, mas, para transform-lo para melhor e no para pior, era necessrio antes de tudo compreend-lo. Para compreend-lo, era preciso estudar, relacionar os problemas do presente aos do passado, definir os conceitos fundamentais para evitar as superficialidades e as confuses, dar-se conta de que a histria, com seus problemas no resolvidos, no recomea a cada gerao; em suma, fazer da poltica um objeto de anlise racional e no apenas uma ocasio de desabafos passionais, de projetos fantasiosos, de controvrsias desprovidas de finalidade e infecundas. Para iniciar o meu primeiro curso de filosofia poltica no outono de 1972, escolhi como tema a relao entre sociedade civil e Estado de Hobbes a Marx e coloquei como subttulo "A Lio dos Clssicos". A lio dos clssicos pode ser dividida de vrios modos, ou desenvolvendo sinteticamente sua histria em forma de manual, desde os gregos at os nossos dias, escolhendo um autor, uma escola ou um perodo a serem tratados em forma de monografia. Ambos os mtodos so geralmente seguidos, pelo menos nas universidades italianas, nos cursos de histria das doutrinas polticas. Para um curso de filosofia poltica, que deveria ter sido mais terico do que histrico, decidi tomar um terceiro caminho: escolher como objeto do curso um dos temas fundamentais, que chamei de "temas recorrentes", da teoria poltica, e segui-lo de um autor a outro para captar-lhe o desenvolvimento interno atravs das afinidades e das diferenas, das persistncias e das inovaes. Naturalmente, em uma escolha desse tipo est implcita uma idia central (no quero dizer que era propriamente uma teoria que tivesse necessidade de um outro aparato de documentos e de argumentos): a idia da continuidade histrica alm das modificaes, das rupturas, das convulses e tambm do que de incio parece catastrfico. Mas existe tambm, embora como subclasse, a idia da extraordinria originalidade e fecundidade das categorias elaboradas pelos gregos, em particular por Aristteles, a cuja Poltica deve o Ocidente um sistema conceituai que resistiu ao tempo e chegou at ns praticamente intacto. Era uma idia que devia ser posta prova: parece-me que nenhum tema se adaptaria mais a esta prova do que a forma de governo, no mnimo por duas razes: no h obra poltica clssica que no trate desse tema e no h autor clssico, que, tratando dele, no faa, direta ou indiretamente, referncia aos autores gregos (de resto, os termos ainda hoje usados - monarquia, oligarquia, aristocracia, democracia, autocracia, tirania - so de origem grega, do mesmo modo que os termos construdos artificialmente, como tecnocracia e hierocracia). Alguns anos mais tarde, no ltimo ano de magistrio (1978/79), escolhi como tema do curso um outro dos temas recorrentes, o da passagem de uma forma de governo a outra, e tambm neste caso o ponto de partida obrigatrio foi a Poltica de Aristteles, em particular o famoso Livro V, dedicado s mudanas.

Prefcio para a edio brasileira 5 O fato de o curso terminar com Marx no significa que o tema se tenha exaurido na segunda metade do sculo passado. Trata-se de um trmino puramente ocasional e imposto pelas circunstncias. Tanto o tema no se exauriu, que foi amplamente desenvolvido, na trilha da tradio, por duas das maiores obras de teoria poltica do sculo passado, Vorlesungen ber Politik, de Heinrich von Treitschke (1897-1898) e os Elementi di scienza poltica, de Gaetano Mosca (1895), que retoma, entre outras coisas, a teoria tradicional do governo misto com uma referncia explcita a Aristteles e a Polbio. A escolha dos autores, esta sim, talvez seja arbitrria. No quero dizer que no existam outros autores que tambm merecessem entrar no nobile castello*: faltam os autores medievais, desde John of Salisbury e So Toms, e, entre os modernos, falta, por exemplo, Giovanni Althusius. Mas tenho motivos para acreditar que todos aqueles por mim considerados como co-autores mereceriam entrar naquele castelo. Sou grato Editora da Universidade de Braslia por ter tido a idia de publicar este meu livro no Brasil em uma lngua bem mais difundida que o italiano, dando-me assim a satisfao de, pela primeira vez, poder ler um livro meu escrito em portugus, lngua que nunca estudei, mas na qual muitas vezes me exercitei para ler as obras do meu colega e amigo, o Professor Miguel Reale. Quando escrevi estas pginas para os meus alunos de Turim, no poderia jamais imaginar que a minha voz chegaria to longe. Agradeo com particular afeto ao tradutor, ao Professor Nelson Saldanha, ao Professor Celso Lfer, por me haver apresentado de forma to insigne, embora com alguns elogios excessivos, demonstrando sobre a minha obra um conhecimento que me impressionou e me deixou assombrado. Setembro de 1981.Norberto Bobbio

Dante, Divina Comdia, Canto IV, verso 106.

Nota para a edio brasileiraSendo esta a primeira traduo do livro de Norberto Bobbio surgida no Brasil, cabe certamente realar o alto significado do fato. E real-lo com algumas palavras, destinadas no propriamente a "apresentar" aos leitores brasileiros a obra ou a figura do eminente professor italiano, vastamente divulgado como pensador e crtico, mas a situar alguns traos e aspectos fundamentais de sua obra em geral, como tambm do presente livro, em especial. Comecemos pelos dados pessoais. Nascido em Turim em 1909, ensinou em Siena (1938-1940) e em Pdua (1940-1948), na peregrinao que freqentemente se nota na vida docente europia. A partir de 1948, professor em Turim. Seus escritos iniciais, que revelam um interesse forte e ntido pela filosofia alem, alis pela filosofia em geral, constituem, no dizer de um estudioso de sua obra1, uma fase preparatria, que ter ido at 1945. A partir de 1945, o pensamento de Bobbio se definir, sob a forma de trabalhos cada vez mais seguros, em torno de alguns temas centrais, ligados teoria do direito (e da cincia jurdica) e teoria poltica (e das ideologias). O desenvolvimento da obra de Bobbio se manifestou atravs de uma quase ininterrupta seqncia de ensaios e livros, abrangendo questes de filosofia jurdica, lgica e teoria da linguagem, bem como problemas de histria do pensamento poltico - campo, alis, que cultivou desde cedo com admirvel penetrao. Nos livros sobre teoria do direito (dos quais se destacam o sobre a teoria da norma, o sobre a teoria do ordenamento e o sobre a teoria da cincia jurdica), a reflexo de Bobbio se notabiliza pelo consciencioso hbito do rigor de expresso, que se distingue daquele verbalismo fcil vez por outra encontrado em autores latinos, mas que por outro lado no se transforma num culto excessivo, numa mania. A este rigor de expresso, que evidentemente corresponde a um rigor de pensamento, se liga uma visceral tendncia ao racionalismo. Este racionalismo se acha patente em alguns de seus ensaios crticos mais interessantes, inclusive naquele sobre o existencialismo2 e nos estudos sobre o problema do direito natural 3.

A Teoria das Formas de Governo Destaquemos ento o desdobramento de seus interesses temticos, que abrangem a teoria poltica e a teoria jurdica. Como tantos outros grandes pensadores do direito (um Del Vecchio, um Pound, um Kelsen) e da poltica (um Laski, um Burdeau, uma Hannah Arendt), Bobbio sempre cultivou os chamados temas abrangentes. Mas, ao contrrio de Kelsen -cujo formalismo alis o influenciou em larga medida como rigorismo, alm de deixar marcas especficas na teoria da norma e do ordenamento -, Bobbio jamais levou a plenas conseqncias a idia de uma separao impermevel e intransponvel entre o estudo do direito e o das demais cincias sociais. Enquanto Kelsen, autor de estudos eruditos e profundos sobre histria de idias, adotou uma drstica ascese separatista, reservando ao jurista uma seca misso de anlise normativa e "intra-sistemtica" do direito positivo, Bobbio sempre deixou que em seus estudos jurdicos penetrasse (embora discretamente e na medida) a luz da perspectiva poltica, da teoria das ideologias, e tambm o ponto de vista histrico4. A lucidez de Bobbio se evidencia, por exemplo, nas suas palavras a respeito da opo entre jusnaturalismo e juspositivismo: para ele, precipitado afirmar que o positivismo sempre algo reacionrio, ou afirmar que ele essencialmente "progressista", porquanto posies jusnaturalistas tm sido assumidas por liberais e por conservadores, e posies positivistas tm sido tambm estadeadas por uns e por outros. Confessando, com notvel honestidade, no ter nunca conseguido decidir-se entre uma e outra alternativa, preferiu Bobbio analisar o carter relativo e insuficiente de ambas as posies5. A mesma lucidez, que sempre um correlato de equilbrio sem ser acomodao, se reflete nas posies polticas de Bobbio, alis, nas tericas, assim como nas prticas. Seu pensamento poltico se acha fundado sobre lcidas consideraes filosficas, geralmente nutridas pelo racionalismo acima mencionado, e geralmente conduzidas com flexibilidade e sem radicalismo. No caso, lembraria seus interessantes estudos sobre a igualdade e outros problemas fundamentais6. Lembraria tambm sua constante e atuante presena no prprio debate poltico italiano, onde se tem revelado um socialista convicto, com srio conhecimento da obra de Marx, mas sem ser absolutamente um marxista stricto sensu, sem dogmatismo, sem unilateralismos, sem maniquesmos7. Todos estes aspectos do pensamento de Bobbio devem ser tidos em conta ao considerarmos os caracteres do presente livro. Anote-se e registre-se, desde logo, que no se trata- a meu ver, ao menos- de um dos livros mais profundos do autor. Ele no tem, por exemplo, a erudio compacta dos estudos includos em De Hobbes a Marx, nem tem a complexidade analtica encontrada em certos ensaios de Bobbio. Tratase, em realidade, de um livro didtico, oriundo (como tantos outros livros seus) de um curso proferido durante o ano acadmico de 1975-1976. Suas explanaes se aplicam sobre determinados autores e determinadas obras, um tanto ao modo do mtodo utilizado por Jean-Jacques Chevallier em seu valioso e conhecido livro sobre As grandes obras polticas de Maquiavel a nossos dias. Este mtodo, excelente como forma de fixar a ateno do estudante sobre determinados "momentos" da evoluo de

Nota para a edio brasileira 9 um tema, tem seu reverso, dificultando a anlise de questes "laterais", que so laterais em relao aos "grandes nomes" escolhidos, mas no o seriam se o enfoque utilizado fosse outro. Um dos mritos maiores da exposio de Bobbio, neste livro, consiste justamente na impressionante clareza, que se alia a uma magistral e escrupulosa exatido no indicar as "passagens" fundamentais das obras comentadas. Na realidade, alguns dos grandes desdobramentos tericos do problema das "formas de governo" esto justamente em planos doutrinrios onde se conjugam a perspectiva filosfico-social, a poltica e a jurdica. O tema "governo" tem sido considerado de modos os mais diversos, mas na verdade o seu entendimento pleno tem de abranger estas trs perspectivas. s vezes, alis, a divergncia entre dois autores se acentua ou se agrava pelo fato de um utilizar preferentemente uma delas, enquanto o outro se coloca noutra. Todo mundo sabe que, dos trs principais fundamentadores do absolutismo moderno, Maquiavel foi sobretudo poltico, Bodin predominantemente jurista e Hobbes basicamente filsofo. Isto para no falar no teologismo j ento meio anacrnico de Filmer, alvo especfico de Locke. Colocando-se no ngulo de um curso de histria do pensamento poltico, Bobbio selecionou os autores que lhe pareceram mais decisivos e marcantes para a trajetria (ou as trajetrias) do problema. Selecionou-os sob critrio notadamente poltico, sem se preocupar grandemente com o contributo que ao problema tenham trazido juristas e filsofos. Isto, evidentemente, na medida em que possvel sustentar uma distino perfeita entre as trs perspectivas mencionadas acima, porquanto as formulaes polticas se acham sempre montadas sobre supostos filosficos - ao menos implcitos - e se acham vinculadas a categorias jurdicas. O problema das formas de governo precisamente um problema em que a interligao entre matria poltica e matria jurdica se apresenta ostensivamente (v a palavra "matria" aqui em seu sentido mais clssico, e passando-se ao largo da idia restringente e sibilina de que o direito sempre "forma"). Por isso mesmo ele tem sido colocado e recolocado com impressionante intensidade, desde os publicistas do fim do sculo passado. Assim, tivemos o tema revisado porjellineck e Vittore Orlando; e depois por Giese, por Kelsen, por Heller, por Schmitt. Certamente que nestes autores o prisma jurdico foi at certo ponto preferencial; mas o pensamento poltico no pode deixar de prestar ateno, por exemplo, ao esquema de Carl Schmitt, referente ao Estado legislativo ou parlamentar e ao Estado administrativo e ditatorial; ou ao de Friedrich Giese, que distingue as Verfassungsformen (formas constitucionais) e as Regierungsformen, que seriam propriamente formas de governo8. Assim como no pode deixar de ter em vista o surgimento da prpria distino, ditajurdica mas em geral politicamente situada, entre formas de governo e formas de Estado. O mesmo se diga com referncia distino entre formas de governo e "regimes", sempre discutida embora corrente. A combinao (no confuso) entre problemtica "poltica" e problemtica "jurdica", hoje presente em alguns dos mais sugestivos

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A Teoria das Formas de Governo

pensadores do direito ou da poltica, tem sido realmente o caminho mais frtil para o aprofundamento das reflexes, em ambos os campos. Na Itlia, este tem sido o caminho do prprio Bobbio, como tem sido o de Luigi Bagolini e como foi, em dias passados, o de Piero Calamandrei; na Alemanha, vem sendo o caminho de Niklas Luhmann, entre outros. No Brasil, foi o de Pontes de Miranda como vem sendo o de Miguel Reale (to diferentes entre si, embora), o de Afonso Arinos, de Paulo Bonavides e de Trcio Ferraz Jnior, para citar apenas estes9. Na introduo do livro, Bobbio coloca o problema dos "dois aspectos" sob os quais tem sido feita a histria do problema das formas de governo. Ele os denomina aspecto descritivo e aspecto prescritivo. Do mesmo modo distingue, correlatamente, dois "usos" na exposio daquele problema: o uso sistemtico e o uso axiolgico, aos quais, adiante, acrescenta a aluso ao "uso histrico". Este corresponderia, diz, utilizao do problema das formas de governo para a construo de uma imagem filosfica da histria. Estas lineares tipologias, propostas de resto sem maiores pretenses, mas antes como estratgia expositiva, so efetivamente mantidas por Bobbio nas explanaes que enchem os diversos captulos do livro. Infelizmente, porm, o carter didtico destas explanaes - bem como o fato de que o captulo final se demarca em torno das experincias dos anos trinta e quarenta no permitiu que o autor aprofundasse e desdobrasse a meditao sobre os caracteres "axiolgicos" e os sistemticos de certas recentes manifestaes doutrinrias referentes a formas de governo. Creio pessoalmente que as grandes reformulaes do problema tm ocorrido nos momentos de transformao maior das estruturas e da experincia institucional dos povos, tal como as grandes reformulaes do tema "classificao das cincias" sempre ocorreram em correlao com revolues cientficas fundamentais. A partir de Revoluo Francesa, por exemplo, o triadismo clssico, de origem sobretudo aristotlica, passou a ser superado pelos dualismos (Maquiavel havia proposto um dualismo, com as frases iniciais de O Prncipe, mas sua formulao no obteve maior continuidade): da que no sculo XX a diferena entre autocracia e democracia, presente em Kelsen, em Heller e outros, se tornasse mais representativa e mais convincente do que o antigo trptico "democracia-aristocracia-monarquia", porque o avano da mentalidade democrtica tornara obsoleta a separao entre monarquia e aristocracia10. Mas hoje a objetividade tipolgica que se achava nsita nos dualismos (que ainda continham alguns elementos do relativismo liberal) se acha ameaada por alguns maniquesmos emergentes: uma forma de governo para estes uma opo radical conjugada a uma deciso escatolgica e uma concepo dogmtica das coisas. O livro de Bobbio, iniciado com a clssica e fictcia, mas sempre exemplar, teorizao de Herdoto, na qual o triadismo se prope pela primeira vez, e terminado com algumas reflexes sobre a ditadura -infelizmente um tanto breves -, tenta ser uma eficiente sntese da evoluo do tema. E consegue s-lo, como indicao precisa e preciosa de pontos

Nota para a edio brasileira 11 fundamentais, e como autorizada base para que se volte sempre e sempre reflexo sobre o tema, to essencial, to decisivo nas cogitaes dos homens sobre seus modos de ser e de conviver. Nelson Saldanha Recife, fevereiro de 1980

Notas1. ASTRIO DE CAMPOS, SDB, O pensamentojurdico de Norberto Bobbio, ed. Saraiva-Editora da USP, So Paulo, 1966, captulo I, p. 5. 2. NORBERTO BOBBIO, El existencialismo, ensayo de interpretacin, .Trad. L. Terracini, ed.

FCE. Mxico, 1958 (o original italiano foi de 1944). A mesma critica filosofia existencial, por sinal algo rgida, se encontra no pargrafo 27 da Introduzione alia Filosofia dei Diritto (ed. Clappichelli, Turim, 1948). 3 Por exemplo. "Quelques arguments contre le droit naturel", em Le Droit NatureL, obra coletiva, PUF, Paris, 1959; "II modello giusnaturalistico", em Revista Intemazionale di Fascfia dei Dirilto, outubro-dezembro 1973, p. 603 e segs. 4. O artigo sobre o modelo jusnaturalstico, citado na nota anterior, se acha todo montado sobre esquema histrico. Tambm na Teoria deWordinamenio giuridico (Giappichelli, Turim, 1960) o item 2 do captulo II se volta para a formao histrica do ordenamento. Vejam-se tam bm os estudos sobre o jusnaturalismo em H obbes e em Locke, em Da Hobbes a Marx, Ed. Morano, Npoles, 1965. 5. El problema dei positivismo jurdico, trad. E. Garzn Valds, ed. Eudeba, Buenos Aires, 1965. Cf. s pp. 9 e 10 da "Introduo". 6. Cf. por exemplo "Eguaglianza ed equalitarismo" em Riv. Intemazionale di Filosofia dei Dintto, julho-setembro 1976, p. 321 e segs. Na Introduzione alia Filosofia dei Diritto (op. cit.), o captulo II, referente justia, se acha todo enlaado a uma idiasoca/ de justia, concluindo o livro com um pargrafo sobre a conexo entre justia e ideologia poltica. "- Cf por exemplo sua parte na mesa-redonda sobre "Poder e Participao", ocorrida em Veneza em 1969 e editada na Riv. Int. de FiL dei Diritto, janeiro-maro de 1970, p. 23 e segs. E tambm seu debate com Umberto Cerroni e outros sobre o marxismo e o Estado, editado nos Quadernt de Mondoperaio (O Marxismo e o Estado, trad. F. L. Boccarelo e R. Levie, ed. Graal, Rio de Janeiro, 1979). 8. CARL SCHMITT, Legalidad y Legitimidad, trad. Jos Daz Garcia, ed. Aguillar, Madrid 1971, passim e principalmente p. 106 e segs. - Para GIESE, que para as "formas constitucionais" se vale do triadismo clssico, as "formas de governo" abrangeriam o absolutismo e o constitucionalismo. Seu esquema complicado e discutvel mas sem dvida interessante e muito representativo para o segundo ps-guerra e os esforos doutrinrios alemes de ento (AUgemeines Staatsrecht, ed. J.C.B. Mohr, Tbingen, 1948, 8 e 9). 9. Tomaria a liberdade de incluir nesta linha meas trabalhos, inclusive a tese/4 Formas de Governo e o Ponto de Vista Histrico (Recife, Imprensa Industrial, 1958; 2? edio RBEP, Belo Horizonte, 1960). Tambm vale mencionar, dentro da bibliografia brasileira, pela ampli tude da anlise, o livro deJOS ALFREDO DE OLIVEIRA BARACHO, Regimes Polticos, ed. Resenha Universitria, S. Paulo, 1977. 10. NELSON SALDANHA, As Formas de Governo e o Ponto de Vista Histrico, cit., principal

mente captulos V e VI. A referncia s ditaduras do sculo XX se acha sobretudo no captulo VII, inclusive nas notas.

PrefcioNorberto Bobbio nasceu em Turim (Itlia) em 1909. Estudou Direito e Filosofia, tendo sido aluno e discpulo de Gioele Solari (1872-1952), o eminente historiador de filosofia jurdica e poltica. Foi professor nas Universidades de Siena (1938-1940) e Pdua (1940-1948), at assumir, em 1948, a ctedra de filosofia do direito na Universidade de Turim, da qual acaba de aposentar-se. primeira obra publicada na ntegra no Brasil. Da a convenincia de oferecer ao leitor brasileiro algumas indicaes a respeito de como esta obra se insere no pensamento de Bobbio - um homem, conforme apontou com justa pertinncia Guido Fass, atento aos mais vivos e novos problemas de nosso tempo, que vem examinando, por fora de um temperamento racional, com um rigor intelectual e uma limpidez expositiva verdadeiramente admirveis1.A Teoria das Formas de Governo na Histria do Pensamento Poltico sua

dado por Bobbio na Universidade de Turim, no ano acadmico de 1975/76. Creio, por isso mesmo, que as primeiras indicaes sobre esta obra podem ser encontradas no programa de trabalho que Bobbio traou para si enquanto professor de filosofia do direito. Num ensaio de 1962, posteriormente inserido em Giusnaturalismo e Positivismo Giuridico, Bobbio aponta que os seus cursos universitrios obedeciam a trs ordens de indagaes, que constituiriam as trs partes em funo das quais organizaria um tratado de filosofia do direito. A primeira parte a Teoria do Direito. Para Bobbio, o problema fundamental da teoria do direito a determinao do conceito de direito e a diferenciao do fenmeno jurdico de outros fenmenos, como a moral e o costume. Em matria de teoria do direito, Bobbio reala o "normativismo", vendo o direito como um conjunto de normas a serem

A Teoria das Formas de Governo na Histria do Pensamento Poltico foi o curso

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A Teoria das Formas de Governo estudadas sistematicamente por meio do conceito de ordenamento jurdico. O estudo do ordenamento jurdico compreenderia: (i) a "composio" do ordenamento, ou seja, o conceito de normas e os seus vrios tipos; (ii) a "formao" do ordenamento,-ou seja, a teoria das fontes do direito; (iii) a "unidade" do ordenamento, ou seja, o problema da hierarquia das normas; (iv) a "inteireza" do ordenamento, ou seja, o problema das lacunas e de sua integrao; (v) a "coerncia" do ordenamento enquanto sistema, ou seja, o problema das antinomias e da sua eliminao; e (vi) finalmente, as relaes espaciais, materiais e temporais derivadas do interrelacionamento entre ordenamentos que ensejam o problema do "reenvio" 2. Nesta reflexo ontolgica sobre o direito, a nfase dada por Bobbio norma aproxima-o de algumas correntes do positivismo jurdico e de autores como Kelsen, Hart e Ross, aos quais se iguala em rigor analtico. So testemunhos do seu esforo nesta linha o curso de 1958 sobre a teoria da norma jurdica e o de 1960 sobre teoria do ordenamento jurdico, bem como uma srie imensa de artigos e trabalhos em parte recolhidos nos livros Studiper una Teoria Generale dei Diritto (1970) e Dalla Struttura alia Funzione - Nuovi Studi di Teoria dei Diritto (1977)3.

Bobbio salienta que existem trs pontos de vista a partir dos quais se pode avaliar uma norma: o da justia, o da validade e o da eficcia. por isso que, para ele, a experincia jurdica, na sua inteireza, deve levar em conta as idias de justia a realizar, as normas que as exprimem e a ao e reao dos homens em relao a estas idias e a estas normas4. A opo de Bobbio pelo normativismo em matria de teoria do direito no significa, portanto, uma viso reducionista da experincia jurdica. Ele no identifica a lei com a justia, nem desconsidera a reao dos homens enquanto destinatrios das normas. O

normat ivismo, para Bobbio , signific a apenas que, tanto por uma exignc ia de rigor, quanto em funo de uma avalia o da prxis do direito, o mundo do direito um mundo em que a experi ncia se d "sub specie legis" e no qual a distin o entre fatos juridica mente relevan tes e irreleva ntes encontr a na norma um dos pressu postos do trabalh o quotidi ano dos operad ores do direito. Em outras palavra s, o

normativismo no exaure a filosofia do direito e, precisamente porque, para Bobbio, a lei positiva no justa pelo simples fato de ser lei e resultar de uma conveno que deve ser cumprida ("pacta sunt servanda"), que a sua teoria do direito exige uma teoria da justia que no seja apenas formal5. Da a razo de uma segunda ordem de indagaes, ou segunda parte, que orienta e informa a sua proposta pedaggica: a teoria da justia. Bobbio v a "teoria dajustia" como uma rea pouco estudada e que requer no apenas uma reflexo analtica do tipo daquela feita por Kelsen e Perelman6, mas tambm um estudo que passe igualmente pela histria do direito. Esse estudo teria como critrio condutor o conceito de "justia" entendido como um conjunto de valores, bens e interesses para cuja proteo e incremento os homens se valem do direito enquanto tcnica de convivncia. Para Bobbio o ponto de partida desta investigao

Prefcio

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a x i o l g i c o e s o c i o l g i c o , i n c l u s i v e e t n o g r f i c o , e p o r i s s o q u e , a o c o

n t r r i o d o s j u s n a t u r a l i s t a s , a n a t u r e z a d o h o m e m o s e u p o n t o d e c h e g a d a

e n o d e p a r t i d a . N e s t e s e n t i d o , B o b b i o u m h i s t o r i c i s t a q u e c o m b i n a a d e o n t

o l o g i a ( o q u e o d i r e i t o d e v e s e r ) c o m a s o c i o l o g i a j u r d i c a ( a e v o l u o d o

d i r e i t o n a s o c i e d a d e e a s r e l a e s e n t r e o d i r e i t o e a s o c i e d a d e )7

.

f a l t a d

e m e l h o r t e r m o , B o b b i o d e n o m i n a a t e r c e i r a p a r t e d e " t e o r i a d a c i n c i a j u r d i c

a " , n e l a i n s e r i n d o o p r o b l e m a m e t o d o l g i c o e o e s t u d o d o s m o d e l o s u t i l i z a

d o s n a p e r c e p o d a e x p e r i n c i a j u r d i c a . N a s u a i n d a g a o e p i s t e m o l g i c a ,

q u e t a m b m h i s t r i c a , i n d i c a e l e c o m o o m o d e l o d o s j u s n a t u r a l i s t a s e r a o

m a t e m t i c o ; c o m o o d a e s c o l a h i s t r i c a e r a a h i s t o r i o g r a f i a ; c o m o J h e r i n g

a s s u m e o m o d e l o d e h i s t r i a n a t u r a l ; c o m o , c o m o p o s i t i v i s m o l g i c o n o c

a m p o j u r d i c o , a c i n c i a d o d i r e i t o f o i e n c a r a d a d o n g u l o d a t e o r i a d a l i n

g u a g e m ; e a s s i m p o r d i a n t e . C o n c l u i q u e , d i a n t e d a v a r i e d a d e d e m o d e l o s e d a d i f

i c u l d a d e d e a j u s t l o s e x p e r i n c i a j u r d i c a c o n c r e t a , o m a i s p e r t i n e n t e i

n v e r t e r a r o t a e c o m e a r p o r u m a a n l i s e d o s t i p o s d e a r g u m e n t o s q u e o s j u r i s t a s u

s a m n o s e u t r a b a l h o q u o t i d i a n o . E s t a p r e o c u p a o c o m a " l o g i c a l e g a l i s "

* o q u e a p r o x i m a B o b b i o , n e s t a s u a r e f l e x o e p i s t e m o l g i c a e m e t o d o l g i c a , n

o s d a l g i c a j u r d i c a m o d e r n a m a s , t a m b m , d e P e r e l m a n e d a n o v a r e t r i c a ; d e V

i e h w e g e d a t p i c a ; d e R e c a s e n s S i c h e s e d a l g i c a d o r a z o v e l; d o A s c a r e ll i d o s e s t

u d o s s o b r e a o r i g e m d a d o g m ti c a j u r d i c a e s o b r e a i n t e r p r e t a o e , e n t r e n s , d

e T r c i o S a m p a i o F e r r a z J r. e d a p r a g m ti c a 9 . B o b b i o , n o s e u j m e n c i o n a d o e n s a i o d e

1 9 6 2 , t a m b m f a z r e f e r n c i a h i s t r i a d a f il o s o f i a d o d i r e it o , q u e e l e v c o m o a l

g o ti l e a p a i x o n a n t e n o c o n t e x t o d e s e u p r o g r a m a d e t r a b a l h o , a p o n t a n d o q u e n o c

o n c e b e u m a b o a t e o r i a d o d i r e it o s e m o c o n h e c i m e n t o , p o r e x e m p l o , d e G r c i o , H o b

b e s , K a n t o u H e g e l; u m a b o a t e o r i a d a j u s ti a s e m o L i v r o V d a t i c a a N i c m a c o ,

d e A r i s t t e l e s , e u m a b o a t e o r i a d a c i n c i a j u r d i c a s e m L e i b n i z o u J h e r i n g . N

o a p r e c i a e l e , n o e n t a n t o , a s h i s t r i a s d e f il o s o f i a d o d i r e it o e n q u a n t o e l e n c o s e

x p o s it i v o s s u m r i o s d e d o u t r i n a s h e t e r o g n e a s . P a r a B o b b i o , i g u a l m e n t e , e n q u

a n t o d i s c p u l o d e S o l a ri , o m e l h o r m o d o d e f a z e r h i s t ri a d a fi l o s o fi a d o d ir e it o r e f a

z e r a s d o u tr i n a s d o p a s s a d o , t e m a p o r t e m a , p r o b l e m a p o r p r o b l e m a , s e m e s q u e c e r,

n o tr a t o d o s a s s u n t o s e a r g u m e n t o s , o s p r e c e d e n t e s h i s t ri c o s i . E x e m p l o s d e s t a

s u a m a n e ir a d e f a z e r h i s t ri a d a fi l o s o fi a e h i s t ri a d a fi l o s o fi a d o d ir e it o p o d e m s e r a p r

e c i a d o s n o s e u c u r s o , p u b li c a d o e m 1 9 5 7 e r e v i s t o e m 1 9 6 9 , s o b r e d ir e it o e E s t a d o n

o p e n s a m e n t o d e K a n t; n o s e u c u r s o , p u b li c a d o e m 1 9 6 3 , s o b r e L o c k e e o d ir e it o n a t u r a

l; n a c o l e t n e a d e e n s a i o s r e u n i d o s n o li v r o D a H o b b e s a M a r x ( 1 9 6 4 ) e t a m b m q u e o

q u e i n t e r e s s a a p o n t a rn o c u rs o s o b r e A T e o r i a d a s F o r m a s d e G o v e r n o n a H i s t r i a d

o P e n s a m e n t o P o l i c o u .

P o r t a n t o , a p r i m e i r a i n d i c a o a r e s p e i t o d e s t e l i v r o , q

u e o r a s e p u b l i c a e m p o r t u g u s , a d e q u e s e i n s e r e , c o e r e n t e m e n t e , n u m p r o g r a

m a d e t r a b a l h o p e d a g g i c o e n u m a d e t e r m i n a d a m a n e i r a d e f a z e r a h i s t r i a d a f i l o

s o f i a e s c l a r e c e r e p e r m e a r a s i n d a g a e s a p a r t i r d a s q u a i s B o b b i o o r g a n i z a o c a

m p o d a f i l o s o f i a d o d i r e i t o .

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A Teoria das Formas de Governo IIA Teoria das Formas de Governo na Histria do Pensamento Poltico, como o prprio ttulo indica, um

mergulho na filosofia poltica. Da a pergunta: qual , para Bobbio, a relao entre filosofia poltica e filosofia do direito, e como que esta relao, uma vez explicitada, se ajusta sua proposta pedaggica? A resposta a esta indagao permite oferecer uma segunda ordem de indicaes a respeito da insero desta obra no percurso intelectual de Norberto Bobbio. Como se sabe, o termo filosofia do direito recente, tendo-se difundido na Europa nos ltimos 150 anos. Uma das muitas acepes do termo, diz Bobbio, a que engloba propostas sistemticas de reforma da sociedade presente, com base em pressupostos, explcitos ou implcitos, tendo como objetivo realizar certos fins axiolgicos, tais como: liberdade, ordem, justia, bem-estar, etc. Nesta acepo, a filosofia do direito confina com a filosofia poltica. Para a difuso desta acepo cabe dizer que muito contribuiu a estreita relao que se verificou entre a noo de direito e a de Estado, ocorrida na Europa com o aparecimento do Estado moderno12. Tal relao, que provm da utilizao do direito como instrumento de governo e da conseqente estatizao das fontes de criao normativa, aparece, por exemplo, na histria da filosofia explicitada em Hobbes, autor que Bobbio estudou com grande interesse e acuidade, tendo preparado e prefaciado a edio italiana de De Civel3. A convergncia entre filosofia poltica e filosofia do direito exige, para ser bem compreendida, uma discusso sobre o interrelacionamento entre o direito e o poder. Em estudo recente, Bobbio aponta a relevncia das grandes dicotomias no percurso do conhecimento, mencionando entre outras: comunidades X sociedade, solidariedade orgnica X solidariedade mecnica, estado de natureza X estado de sociedade civil.

No campo do direito, diz Bobbio, a grande dicoto mia a que resulta da distin o entre direito privado e direito pblico 14 . com base nesta distin o que se pode aferir de que maneir a os juristas lidam com o fenme no do poder. Para os juristas e jusfils ofos, que encara m o direito a partir do direito privado , o direito aparece kantian amente como um conjunt o de relaes intersub jetivas que se distingu em da classe

geral das relaes intersubjetivas pelo vnculo obrigatrio que une os dois sujeitos. Nesta perspectiva, a fora vista como um "meio" de realizar o direito atravs do mecanismo da sano organizada15. Entretanto, para os juristas e jusfilsofos que encaram o direito a partir do direito pblico, como o caso de Santi-Romano, Kelsen, Bobbio e, entre ns, de Miguel Reale o que salta aos olhos a existncia do Estado como instituio16. Nesta perspectiva, que a de quem encara a existncia da pirmide escalonada de normas a partir do seu vrtice, o direito aparece como um conjunto de normas que estabelecem competncias e que permitem o exerccio do poder, inclusive o poder de criar novas normas jurdicas17. Bobbio, no entanto, no analisa a pirmide escalonada de normas "ex parte principis", isto , na perspectiva daqueles a quem as normas conferem poderes. Para esses, como ele aponta em A Teoria das Formas de Governo na

Prefcio 17 Histria do Pensamento Poltico, o tema recorrente o da "discrdia", e a preocupao constante a de evitar a desagregao da unidade do poder18. por isso, por exemplo, que na filosofia poltica de Hobbes o direito concebido como instrumento para instaurar uma rigorosa gramtica de obedincia19. No este, no entanto, o ngulo de Bobbio, que encara as normas de organizao do Estado, isto , aquelas que tornam possvel a cooperao de indivduos e grupos, cada um perseguindo no mbito do Estado o seu papel especfico, para um fim Ex parte populi, o que interessa a Bobbio ressaltar so as tendncias institucionalizao do poder no mundo contemporneo, fenmeno que Miguel Reale vem denominando "jurisfao" do poder 21. Nesta perspectiva, Bobbio aponta que uma das maneiras de distinguir a transformao do Estado absolutista e arbitrrio num Estado de direito a extenso do mecanismo de sano, da base para o vrtice da pirmide jurdica, isto , dos cidados para os governantes. Este processo, que assinala a passagem da irresponsabilidade para a responsabilidade jurdica de cargos, rgos e funes e a substituio da fora arbitrria por poderes juridicamente controlados e disciplinados, uma das conquistas da tcnica do Estado de Direito e da reflexo liberal22. Bobbio encara positivamente esta tendncia legalizao do poder, pois, para ele, a legalidade "qualidade do exerccio do poder", que interessa antes aos governados do que aos governantes, uma vez que impede a tyrannia quoad exercitium23. por isso que ele examina a fora como contedo da norma jurdica, identificando o problema da legalidade "ex parte populi" na determinao e verificao atravs do direito de: (i) "quando" e em que condies o poder coativo da coletividade pode e deve ser exercido; (ii) como, ou seja, que pessoas podem e devem exercit-lo; (iii) "como", ou seja, quais os procedimentos que devem reger o exerccio do poder por determinadas pessoas e em determinadas circunstncias; e (iv) finalmente, "quanto" de fora devem e podem dispor aqueles que, observando certos procedimentos, esto incumbidos de exercer, em determinadas circunstncias, em nome da coletividade, o poder coativo24. Bobbio, no entanto, no um normativista puro, moda de Kelsen, que v o direito to-somente como um instrumento especfico, sem funo especfica, isto , apenas como uma forma de controle social, que se vale abstratamente da coero organizada. Bobbio registra e reconhece a historicidade do papel do direito e as funes de controle e estmulo que exerce numa dada sociedade, reconhecendo, ao mesmo tempo, o impacto destas funes na elaborao histrica da teoria do direito. neste sentido que, ao estudar a teoria de Kelsen sobre a estrutura interna do sistema jurdico, Bobbio aponta que ela resulta de uma reflexo sobre a complexa natureza da organizao do moderno Estado constitucional, traduzindo, no plano do direito, a reflexo sociolgica de Max Weber a respeito do processo de racionalizao formal do poder estatal25. O normativismo de Bobbio , basicamente, uma exigncia de rigor, indispensvel no momento da pesquisa. Ele considera compatvel estacomum20, ex parte populi.

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A Teoria das Formas de Governo exigncia de rigor com uma concepo democrtica de Estado, posto que vislumbra, numa das dimenses do positivismo jurdico, uma tica de liberdade, de paz e de certeza. Creio no distorcer o seu pensamento ao afirmar que, num segundo momento, conceitualmente distinto no seu percurso - que o da crtica das leis26 - o rigor de seu normativismo est a servio da causa da liberdade. A este tema consagrou ele, na dcada de 1950, importantes ensaios, entre os quais me permito lembrar Democrazia e Dittatura e Delia Nesses ensaios, ele chamou a ateno tanto para a liberdade moderna enquanto noimpedimento e no-interferncia do todo poltico-social em relao ao indivduo, quanto para a liberdade antiga enquanto autonomia na aceitao da norma elaborada por meio da participao do cidado na vida pblica. Nestas duas dimenses de liberdade, Bobbio enxerga estados desejveis do homem que, no entanto, s surgem quando se cuida institucionalmente do problema do exerccio do poder. O problema do exerccio do poder, continua Bobbio nestes ensaios da dcada de 50, encontrou, historicamente, contribuies importantes na tcnica jurdica e na agenda de preocupaes do Estado liberal que no podem ser desconsideradas em qualquer proposta significativa de reforma da sociedade27. Entretanto, em virtude de sua percepo sociolgica das funes do direito numa dada sociedade, a causa da liberdade e da reforma da sociedade exigiram de Bobbio que fosse alm do tema tcnico da validade da norma e da legalidade do poder, confrontando-se igualmente tanto com o problema da justificao do poder e do ttulo para o seu exerccio, quanto com a justia das normas. Para Bobbio, poder e norma so as duas faces da mesma moeda, existindo um evidenteLiberta dei Moderni Comparata a quella dei Posteri.

paraleli smo entre os dois requisit os funda mentai s da norma jurdic a justia e validad e - e os dois requisit os do poder -legiti midade e legalid ade28. Est e paraleli smo conclus ivo apontad o por Bobbio permite chegar a uma segund a ordem de indica es a respeito de como o livro que ora se publica em portugu s se insere no seu percurs o intelect ual. Como norma e poder, no mundo modern o, so as duas faces da

mesma moeda, existe uma convergncia substantiva entre filosofia poltica e filosofia do direito. A teoria do direito, com a qual se ocupa Bobbio, enquanto teoria do ordenamento, requer uma teoria do Estado. Ambas exigem uma teoria da justia e da legitimidade, pois no existe uma ciso, mas um continuum entre forma e substncia, uma vez que a legalidade remete validade, a validade legitimidade e a legitimidade justia, assim como, inversamente, a justia fundamenta a legitimidade, a legitimidade fundamenta a validade e a validade fundamenta a legalidade na interseo que se estabelece entre a linha do poder e a norma29. IIIA Teoria das Formas de Governo na Histria do Pensamento Poltico , como j foi apontado, o curso

dado por Norberto Bobbio no ano acadmico de 1975/76. Data tambm de 1976 o seu livro Quale Socialismo?, que rene

Prefcio 19 trabalhos redigidos entre 1973 e 1976. Quale Socialismo? um excelente exemplo daquilo que Bobbio denomina crtica tico-poltica, que ele vem conduzindo na forma de incisivas e bem formuladas perguntas em relao a certos temas para os quais no tem respostas definitivas30. Da a convenincia de mais uma indagao para arrematar estas indicaes a respeito de seu percurso intelectual. Esta ltima indagao cifra-se, em sntese, no seguinte: qual a relao entre filosofia jurdico-poltica, tal como a concebe Norberto Bobbio, e a sua crtica tico-poltica, exemplificada em Quale Socialismo? Quale Socialismo? um livro denso e qualquer resumo de seu contedo corre o risco de no fazer justia inteireza de seus argumentos. Com esta ressalva, arriscaria, no entanto, dizer que a tese central de Bobbio neste livro a de que no se evita, a partir de uma verdadeira tica socialista, o problema de "como" se governa realando apenas a dimenso de "quem" governa (de poucos burgueses para as massas operrias). Como tanto o Estado, quanto o poder poltico continuam a perdurar nos regimes comunistas com a estatizao dos meios de produo, uma iluso pensar que a ditadura do proletariado um fenmeno efmero. A mudana de hegemonia, afirma Bobbio, no suficiente para mudar a estrutura do poder e do direito, e o proletariado , na melhor das hipteses, um sujeito histrico. Por essa razo, a "ditadura do proletariado" no uma instituio apta a resolver o problema do bom governo, que no se esgota com a mera mudana dos detentores do poder. Por isso, as metas de uma democracia socialista- entendida como uma democracia no-formal, mas substancial; no apenas poltica, mas tambm econmica; no s dos proprietrios, mas de todos os produtores; no apenas representativa, mas tambm direta; no s parlamentar, mas de conselhos - exige a discusso e a proposta quanto a instituies poltico-jurdicas. com base nesta colocao que Bobbio insiste na atualidade de uma das perguntas clssicas de filosofia poltica- "como se governa?" - "bem ou mal?". Bobbio afirma que, por mais pertinente que seja a pergunta sobre "quem governa?" "poucos ou muitos?" -eaoportunidade de se discutir a afirmao de Marx e Engels, baseada no realismo poltico, de que, quem governa, governa em funo dos interesses da classe dominante, igualmente urgente cuidar do problema institucional e das formas de governo em qualquer proposta significativa de reforma da sociedade31. Bobbio lembra que o socialismo, enquanto aspirao de justia, um movimento que visa acabar no apenas com a mais-valia econmica, mas tambm assegurar a emancipao do homem de suas servides. Essa liberao, para ser traduzida em liberdade, exige autonomia. No campo do direito, o conceito de autonomia utilizado no sentido prprio de norma ou complexo de normas em relao s quais os criadores e os destinatrios das normas se identificam. o caso da esfera da autonomia privada- um contrato, por exemplo, bilateral ou plurilateral, em relao ao qual os que pem as regras e os que as devem seguir so as mesmas pessoas. o caso de um tratado no direito das gentes e tambm o caso, no campo do direito pblico, do ideal a que tende o Estado moderno que se deseja democrtico, e que se diferencia de um Estado autocrtico

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A Teoria das Formas de Governo

precisamente pela menor prevalncia da norma heternoma. Neste sentido, como dizia Rousseau no Contrato Social, a liberdade enquanto autonomia consiste na obedincia lei que cada um se prescreveu 32. Falta, para a prevalncia da autonomia e da democracia, uma teoria do Estado socialista. As indicaes de Marx, de Lenin ou de Gramsci so insuficientes neste sentido, uma vez que a nfase maior da reflexo marxista sobre o poder gira em torno de como adquiri-lo - da a teoria do partido - e no de "como exerc-lo" 33. Torna-se evidente, luz de alguns destes temas suscitados por Bobbio em Quale Socialismo?, a razo de seu interesse pelo estudo das formas de governo. De fato, ao refazer as doutrinas do passado, tema por tema, problema por problema, sem esquecer, no trato dos assuntos e argumentos, os precedentes histricos, Bobbio procurou elementos sobre "como se pode bem exercer o poder" valendo-se desses elementos na suacrtica tico-poltica. A Teoria das Formas de Governo na Histria do Pensamento

Poltico , portanto, no plano da filosofia poltica, tambm uma preparao para a crtica tico-poltica de Quale Socialismo?, que parte no s da avaliao de que os abusos de poder, numa sociedade socialista, sono de que a ditadura do proletariado no o melhor invlucro do socialismo34. por essa razo que, ao estudar as formas de governo enquanto modos de organizao da vida coletiva, Bobbio, no seu curso, aponta no apenas a relevncia do uso descritivo e sistemtico das formas de governo como, tambm, o seu uso prescritivo e axiolgico. por essa razo, igualmente, que, ao resgatar a importncia da discusso sobre as formas boas e ms de governo, Bobbio aponta, na discusso sobre o governo misto - que remonta a Aristteles e Polbio e transita por Maquiavel, Bodin, Montesquieu, Mably e Hegel - a existncia de um tema recorrente na histria do pensamento poltico, que deriva da exigncia de um controle do poder35 como condio da liberdade. Este controle, de acordo com Bobbio, pode apoiar-se no direito enquanto tcnica de convivncia, apta a encaminhar, no mundo contemporneo, a tutela de valores que se destinam a conduzir a reforma da sociedade. Bobbio tambm chama a ateno, no seu curso, para o fato de que, na Idade Mdia, pouco se elaborou a teoria das formas de governo, aventando a hiptese de que, nessa poca, como se pode ler em Isidoro de Sevilha (550-636), o Estado era visto como um mal necessrio derivado da queda do homem. Da o smbolo da espada e a salvao no pela plis, mas sim pela Igreja. Todas as formas de governo so ms porque necessariamente despticas, no existindo Estados bons ou maus. A dicotomia medieval era a relao Igreja e Estado, encontrando esta concepo negativa de Estado um paralelo moderno em Marx. De fato, para os escritores catlicos medievais, o momento positivo da vida na Terra era a Igreja e no o Estado - como na tradio clssica assim como, para Marx, o momento positivo no o Estado, mas a futura sociedade sem classes e, portanto, sem Estado36. Numa concepo negativa de Estado, a distino entre formas de

altrettanto possibili che in una societ capitalistica mas, sobretudo, da assertiva

Prefcio 21

governo perde substncia. Ora, como para Marx o Estado no surge, como em Hobbes, para pr termo guerra de todos contra todos mas sim para perpetu-la atravs da manuteno da diviso do trabalho, que perpetua a desigualdade, o Estado e o direito sempre representam o despotismo de uma classe em relao a outras. por isso que, para Marx, o despotismo se encarna no Estado, pois ele tem do Estado uma concepo tcnica e realista, graas qual ele o analisa como um instrumento de domnio37, proveniente da diviso da sociedade em classes. Na tradio marxista, a obra mais completa sobre o Estado, lembra Bobbio no seu curso, a de Engels, que, no entanto, cuida mais da formao histrica do Estado do que a da organizao do poder poltico38. por essa razo que a tradio marxista insuficiente para a elaborao de uma doutrina socialista do Estado. A superavaliao das poucas indicaes prospectivas sobre a vida coletiva, dadas por Marx na sua anlise da Comuna de Paris, registra Bobbio em Quale Socialismo?, uma prova da exigidade da documentao sobre o tema do Estado na tradio do pensamento socialista, sobretudo quando comparada com a rica tradio do pensamento liberal. Um Estado sobrecarregado de funes, que geram inclusive uma multiplicidade de entidades dispersas que escapam aos controles clssicos, como se verifica na prxis do Estado contemporneo, e que tende a perdurar, seja qual for o regime econmico, conclui Bobbio na sua crtica tico-poltica, no pode ser democratizado apenas atravs de frmulas de confraternizao do tipo das preconizadas por Marx e retomadas por Lenin em O Estado e a Revoluo39. Da a convenincia, para uma crtica tico-poltica baseada nestas perspectivas, de se retomar, no plano da filosofia poltica e jurdica, o tema da tirania e do despotismo. Bobbio, no seu curso, menciona, entre os tratados medievais sobre o tema, o De regimine civitatis, de Bartolo (1314-1357), no qual este introduz a distino entre o tyrannus expart exercitii, isto , aquele que tirano porque exerce abusivamente o poder, e o tyrannus ex defectu tituli, isto , aquele que tirano porque conquistou o poder sem ter direito. Esta distino teve sucesso e o prprio Bobbio dela se valeu para distinguir e diferenciar legalidade de legitimidade40. Bobbio tambm discute o Tractatus de tyranno, escrito no final do sculo XV por Colucio Salutati, em que este retoma a distino de Bartolo e indica, como caracterstica do principatus despoticus, aquela em que o rei governa no interesse prprio, adicionando a esta postura aristotlica a nota: como se os seus sditos fossem escravos41 e no homens livres. Entretanto, mais do que a discusso sobre o tema da tirania e do despotismo nos diversos autores que Bobbio examina, creio que importa mencionar, para os propsitos deste ensaio, os captulos XI e XIV do curso intitulados, respectiva e significativamente, Intermezzo sul dispotismo e Intermezzo sulla dittatura. Em ambos, Bobbio refaz as doutrinas do passado para poder encaminhar a crtica tico-poltica do presente, com os olhos voltados para o futuro. No intermezzo sobre o despotismo, Bobbio aponta as continuidades e

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A Teoria das Formas de Governo

as descontinuidades entre Montesquieu e a tradio que o precede. O elemento de continuidade, em relao categoria do despotismo, reside na delimitao histrica e geogrfica desta forma de governo, que a tradio ocidental sempre localizou fora da Europa - na sia ou no Oriente. O elemento de descontinuidade a originalidade de Montesquieu ao considerar o despotismo no como uma monarquia degenerada, maneira de Aristteles, Maquiavel e Bodin, mas sim como uma forma autnoma de governo, explicvel por uma srie de variveis entre as quais se incluem o clima, o terreno, a extenso do territrio, a religio e a ndole dos habitantes. At o sculo XVII, seja como monarquia degenerada, seja como categoria autnoma, o despotismo sempre foi encarado como uma forma negativa de governo. Entretanto, nesta poca que pela primeira vez na histria do pensamento poltico surge, com os fisiocratas, uma avaliao positiva do despotismo. a clebre tese do "despotismo esclarecido", propugnada por Franois Quesnay (1694-1774); Pierre-Samuel Dupont de Nemour (1739-1817) e Paul-Pierre Mercier de la Rivire (1720-1793). Em sntese, para esses autores as leis positivas devem ser leis declaratrias da ordem natural, aplicadas por um prncipe ilustrado, pois apenas o governo de uma s pessoa pode se deixar guiar pela evidncia racional 42, que segundo essa corrente capaz de esclarecer e nortear a vida da comunidade poltica. Se o despotismo at o sculo XVII sempre foi visto como uma forma degenerada de governo, o mesmo no se pode dizer da ditadura, que na sua origem romana, como lembra Bobbio no "intermezzo" final de seu curso, era uma magistratura constitucional extraordinria, que nada tinha a ver com o despotismo, pois a excepcionalidade dos poderes do ditador, proveniente de um estado de necessidade e no da histria ou da geografia, tinha como contrapeso uma durao limitada. Classicamente, o poder do ditador era apenas o executivo. Ele podia suspender as leis, mas no modific-las. Esta a acepo de ditadura tal como aparece, por exemplo, nas reflexes e anlises de Maquiavel, Bodin e Rousseau* 3. Este conceito de ditadura se altera com a Revoluo Francesa, quando se instaurou, como dir Carl Schmitt, uma ditadura soberana e constituinte. Esta, na lio de Saint-Just e Robespierre, baseia-se na concomitncia da virtude e do terror, posto que o terror, sem a virtude, funesto, e a virtude sem o terror impotente. A ditadurajacobina, ao insistir no terror, aproxima, pela primeira vez, o despotismo, caracterizado, como dizia Montesquieu, pela igualdade diante do medo, da ditadura. A ditadura jacobina assinala tambm o desaparecimento da monocraticidade do poder, pois este no mais, como na tradio clssica, a magistratura de uma s pessoa, mas a ditadura de um grupo revolucionrio - no caso da Frana-, a Comisso de Salvao Pblica. Esta dissociao entre o conceito de ditadura e o conceito de poder monocrtico indica, consoante Bobbio, a passagem do uso clssico do conceito ao uso marxista, engelsiano e leninista, que introduziu e divulgou a expresso "ditadura da burguesia" e "ditadura do proletariado", com isso entendendo o domnio exclusivo de uma s classe social44.

Prefcio 23 No preciso lembrar que o medo e o terror que se associaram ao conceito de ditadura jacobina deram a esta forma de governo uma conotao negativa, que se verifica hoje em dia no uso quotidiano da palavra. Por outro lado, a dimenso de virtude imprime ao termo a sua conotao positiva clssica. Esta conotao positiva tem, como aponta Bobbio, um nexo com o despotismo esclarecido na medida em que, na sua vertente marxista-leninista, uma forma de governo conduzida por uma vanguarda aparentemente iluminada por propsitos de virtude. Se existe um nexo com a tirania- e estas so as palavras finais de Bobbio no seu curso- este um juzo que ele submete, hegelianamente, ao tribunal da histria45. Se Bobbio, no seu curso, suspende o juzo, at mesmo por uma exigncia de rigor explcita na sua proposta pedaggica, no isto o que ele faz na sua crtica tico-poltica quando, em Quale Socialismo?, no hesita em dizer que, se ditadura domnio discricionrio e se esta no se reveste de uma natureza excepcional e provisria, o termo apropriado despotismo, com todas as cargas negativas que esta forma de governo carrega na tradio da filosofia poltica46. Da a insistncia de Bobbio, enquanto liberal e socialista, na democracia enquanto forma de governo. Diria, neste sentido, que a tradio do pensamento liberal - Locke, Kant, Benjamin Constante, Tocqueville - e as tcnicas do Estado de direito que inspiraram o normativismo convergem, na reflexo de Bobbio, no sentido de evidenciar que o exerccio do poder, no bom governo, requer instituies disciplinadas pelo princpio da legalidade. Por outro lado, a tradio socialista de Bobbio o impele a insistir no aprofundamento e na extenso, ex parte populi, da legalidade, atravs da recuperao das instncias democrticas da sociedade por meio de regras que permitam a participao de maior nmero de cidados nas deliberaes que lhes interessam, seja nos diversos nveis (municipal, regional, nacional), seja nos diversos loci (escola, trabalho, etc). Em sntese, para Bobbio o problema do desenvolvimento da democracia no mundo contemporneo no apenas quem vota, mas onde se vota e se delibera coletivamente, pois no controle democrtico do poder econmico que, segundo ele, se vencer ou se perder a batalha pela democracia socialista. Esta postura em prol da democracia, que mais revolucionria do que a socializao dos meios de produo, posto que subverte a concepo tradicional de poder, Bobbio a justifica com argumentos histricos, ticos, polticos e utilitrios47. Bobbio aponta que hoje se atribui democracia um valor positivo, que contrasta com significativas correntes da tradio clssica. Historicamente, este valor positivo resulta do desenvolvimento, a partir do sculo passado, no contexto institucional do Estado liberal, do movimento operrio, da extenso do sufrgio e da entrada em cena dos partidos de massa que, num processo de ao conjunta, evidenciaram as necessidades de reforma da sociedade. Eticamente, Bobbio explica por que o mtodo democrtico tende a ativar a autonomia da norma aceita e, portanto, diminuir a heteronomia da norma imposta. Politicamente, evoca ele a sabedoria institucional da

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democracia, que enseja um controle dos governantes atravs da ao dos governados, com isto institucionalizando um dos poucos remdios vlidos contra o abuso de poder. E, finalmente, a partir de uma tica utilitria, Bobbio reafirma a sua convico de que os melhores intrpretes do interesse coletivo so os prprios interessados48. Bobbio no ignora as dificuldades da democracia, porm insiste nos seus mritos, seja porque examina os problemas do Estado ex parte populi, vendo portanto como problema de fundo das formas de governo o da liberdade49, seja porque, coerentemente com esta perspectiva, reala que as normas podem ser criadas de dois modos: autonomamente pelos seus prprios destinatrios, ou heteronomamente por pessoas diversas dos destinatrios. Ex parte populi, evidente a razo pela qual Bobbio prefere a democracia enquanto processo de nomognese jurdica, posto que se trata de uma forma de governo que privilegia uma concepo ascendente de poder graas qual a comunidade poltica elabora as leis atravs de uma organizao apropriada da vida coletiva. De fato, como diz Bobbio, democrtico o sistema de poder no qual as decises que interessam a todos - e que por isso mesmo so coletivas - so tomadas por todos os membros que integram uma coletividade50. Isto, no entanto, no ocorre espontaneamente, sem uma organizao apropriada que, por sua vez, requer regras de procedimentos. Da o papel do direito enquanto tcnica de convivncia indispensvel para a reforma da sociedade. Estes procedimentos que, enquanto legalidade, conferem qualidade ao exerccio do poder, so indispensveis, dada a relevncia da relao entre meios e fins e o nexo estreito que existe entre procedimentos e resultados. O resultado da tortura, lembra Bobbio, pode ser a obteno da verdade, entretanto trata-se de procedimento que desqualifica os resultados. Os meios, portanto, condicionam os fins, e os fins, conclui Bobbio, s justificam os meios quando os meios no corrompem e desfiguram os fins almejados51. neste sentido que se pode dizer que o rigor tcnico do normativismo de Bobbio est a servio da causa da liberdade na sua defesa de um socialismo democrtico. De fato, uma das notas importantes que o rigor tcnico de Bobbio evidencia, no estudo dos ordenamentos jurdicos do Estado contemporneo, o fato de os ordenamentos obedecerem, hoje em dia, a um princpio dinmico, ou seja, as normas que os compem mudam constantemente para enfrentar os desafios da conjuntura. por essa razo que ele d nfase distino tcnica entre normas primrias e normas secundrias. As normas primrias so as que prescrevem, proscrevem, estimulam ou desestimulam comportamentos para a sociedade. Como elas esto em contnua transformao, torna-se cada vez mais relevante - ao contrrio do que ocorre num Direito tradicional e sedimentado estudar os procedimentos por meio dos quais estas normas so criadas e aplicadas. Da a relevncia do estudo das normas secundrias, isto , das normas sobre normas, que so basicamente aquelas que tratam, ou da produo das normas primrias, ou do modo como as normas primrias so aplicadas. , portanto, atravs das normas secundrias que se pode, numa compreenso moderna da legalidade,

Prefcio 25 cuidar da qualidade dos procedimentos e do nexo positivo entre meios e fins52. Por outro lado, afirma Bobbio, o modo como o poder conquistado no irrelevante para a forma pela qual ele ser exercido53, estabelecendo ele, desta maneira, o nexo entre a legalidade enquanto qualidade dos procedimentos e a legitimidade enquanto ttulo para o exerdcio do poder. J Polbio -o grande terico do governo misto, que Bobbio analisa com muita finura no captulo IV do seu curso - afirmava que o incio no apenas a metade do todo, como reza o provrbio grego, mas alcana e vincula o trmino 54. Na expressiva afirmao de Guglielmo Ferrero, a legitimidade uma ponte de natureza jurdica que se insere entre o poder e o medo para tornar as sociedades mais humanas55; se assim , no h de ser pelo terror, ainda que imbudo de virtude, mas sim pelo consenso do agir conjunto, que se implantar na viso de Bobbio, uma democracia socialista. Esta postura de Bobbio, na sua crtica tico-poltica, quanto ao tema da legitimidade e da legalidade, resulta, creio eu, da firmeza de suas convices liberais e da generosidade de sua militncia socialista. Raymond Aron tem razo quando afirma que os liberais da linhagem de Tocqueville, entre os quais se inclui Bobbio, participam sem receio da empresa prometeica do futuro, esforando-se para agir segundo as lies, por mais incertas que sejam, da experincia histrica, preferindo conformar-se com as verdades parciais que recolhem do que valer-se de falsas vises totais56. J os socialistas democrticos, como Bobbio, de extensos conhecimentos de filosofia, no fazem parte daqueles que dizem: " preciso tudo destruir para, a seguir, recomear da estaca zero". Como afirma outra grande figura contempornea da esquerda democrtica, Pierre Mendes-France, na concluso de seu livro La Vrit guidait leur.Pas:"On ne repartpas de zero ou alors on impose des cruauts et des convulsions que nous avons le devoir d 'pargner aux plusfaibles etaux nouvelles gnrations. Et onperds du temps. Je suis irnpatient" 57.

Penso que, na defesa da causa da liberdade, a verdade guiou os passos de Bobbio - para concluir com o ttulo do livro de Mendes-France - no caminho que percorreu e que transita, conforme procurei mapear nestas notas, pela filosofia do direito, pela filosofia poltica e pela crtica ticopoltca das leis. Um caminho em que o rigor da anlise do filsofo no impede o juzo do militante e a tcnica do jurista no paralisa os esforos do cidado para realizar os valores da justia.

Celso Lafer So Paulo,

maio de 1980

Notas1.Cf. ASTRIO CAMPOS, O Pensamento Jurdico de Norberto Bobbio, S. Paulo: Saraiva, 1966, cap. I; GUIDO FASS, Storia delia Filosofia delDiritto, vol. III: Ottocento e Novecento, Bolonha: II. Mulino, 1970, pp. 410-412. 2. NORBERTO BOBBIO, Giusnaturalismo e Positivismo Giuridico, (2? ed.), Milo: Ed. di

NotaEste curso tem como tema as teorias das formas de governo. Em anos anteriores tive j a oportunidade de afirmar que se h uma razo que justifique um curso de filosofia da poltica, distinto dos cursos sobre a histria das doutrinas polticas e da cincia poltica, a necessidade de estudar e analisar os chamados "temas recorrentes", quer dizer, os temas que tm sido propostos e discutidos pela maioria dos escritores polticos, em especial pelos que elaboraram ou esboaram teorias gerais ou parciais da poltica. O estudo desses temas recorrentes tem dupla importncia: de um lado, serve para identificar algumas categorias gerais (a comear pela prpria categoria do "poltico") que permitem a anlise e a fixao dos vrios aspectos do fenmeno poltico, sua comparao, a construo de sistemas conceituais mais ou menos coerentes e compreensivos; serve tambm para determinar afinidades e diferenas entre teorias polticas diversas, de pocas distintas. Um desses temas recorrentes a tipologia das formas de governo. Quase todos os escritores polticos propuseram e defenderam uma certa tipologia das formas de governo. desnecessrio acentuar aqui a importncia dessas tipologias, seja porque por meio delas alguns conceitos gerais foram elaborados e examinados repetidamente (os de oligarquia, democracia, despotismo, governo misto, etc), seja porque constituem um dos aspectos em que uma teoria pode ser melhor caracterizada e confrontada com outras teorias. Se considerarmos a sociedade poltica (numa definio provisria) a forma mais intensa e vinculante de organizao da vida coletiva, a primeira constatao de qualquer observador da vida social a de que h vrios modos de determinar essa organizao, conforme o lugar e a poca. a seguinte a pergunta que a temtica das formas de governo vai responder: "Quantos so esses modos e quais so eles?" O objetivo deste curso justamente examinar algumas respostas a essa pergunta, de significao especial, comeando com a filosofia grega e

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chegando ao limiar da Idade Contempornea. Em cada perodo examinaremos apenas alguns autores, que reputo exemplares. Ser desnecessrio explicar ainda uma vez que nosso objetivo no ser histrico, porm conceituai. Por outro lado, como no me consta que se tenha jamais feito tentativa semelhante do ponto de vista histrico - isto , da histria das idias - o material aqui reunido poder constituir um instrumento de trabalho til tambm para os historiadores.

IntroduoAntes de dar incio exposio e ao comentrio de algumas das teorias mais conhecidas sobre as formas de governo, cabe tecer certas consideraes genricas sobre o tema. A primeira delas a de que, de modo geral, todas as teorias sobre as formas de governo apresentam dois aspectos: um descritivo, o outro prescritivo. Na sua funo descritiva, o estudo das formas de governo leva a uma tipologia- classificao dos vrios tipos de constituio poltica que se apresentam considerao do observador de fato, isto , na experincia histrica. Mais precisamente, na experincia histrica conhecida e analisada pelo observador. Nesse caso, o escritor poltico se comporta como um botnico que, depois de observar e estudar com ateno um determinado nmero de plantas, divide-as de acordo com suas peculiaridades, ou as rene segundo suas afinidades, chegando assim a classificlas com uma certa ordem. As primeiras grandes classificaes das formas de governo, como as de Plato e Aristteles, pertencem a essa categoria: baseiam-se em dados extrados da observao histrica, espelhando a variedade dos modos com que se vinham organizando as cidades helnicas, a partir da Idade de Homero. No entanto, no h tipologia que tenha exclusivamente uma funo descritiva. Ao contrrio do botnico, que s se interessa pela descrio, evitando escolher entre as vrias espcies descritas, o escritor poltico no se limita a um exerccio descritivo: ele postula, geralmente, um outro problema - o de indicar, de acordo com critrio que difere naturalmente de autor para autor, quais das formas descritas so boas, quais delas so ms; quais as melhores e as piores; por fim, qual a melhor de todas, e a pior. Em suma, no se limita a descrever, isto , a expressar um julgamento de fato; sem o perceber exatamente, exerce tambm uma outra funo a de exprimir um ou mais julgamentos de valor, orientando a escolha por parte dos outros. Em outras palavras, prescrevendo. Como se sabe, a propriedade de qualquerjuzo de valor na base da qual achamos que alguma coisa (uma ao, um objeto, um indivduo,

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formao social) boa ou m a de exprimir uma preferncia, com a finalidade de modificar o comportamento alheio no sentido por ns desejado. Posso dizer tambm a mesma coisa da seguinte forma: uma tipologia pode ser empregada de dois modos diferentes, "sistemtico" ou "axiolgico". O primeiro aquele na base do qual a tipologia usada para ordenar os dados colhidos; o segundo, aquele em que a mesma tipologia serve para determinar uma ordem de preferncia entre tipos ou classes dispostos sistematicamente, com o propsito de suscitar nos outros uma atitude de aprovao ou desaprovao e, por conseguinte, de orientar sua escolha. Seria o caso de perguntar como o escritor poltico (de modo geral, o cientista social) pode ter comportamento diferente do botnico (de modo geral, do cientista da natureza). O problema muito complexo, mas pode ter uma resposta bastante simples: a postura assumida pelo cientista social e pelo cientista da natureza, diante do objeto da sua investigao, influenciada pelo fato de que o primeiro cr poder interferir diretamente nas transformaes da sociedade, enquanto o segundo no pretende influir sobre as transformaes da natureza. O emprego axiolgico de qualquer conceito est ligado estreitamente idia de que uma mudana na estrutura da realidade, qual o conceito em questo se refere, no s desejvel mas possvel; um julgamento de valor pressupe que as coisas a que atribuo importncia podem vir a ser diferentes do que so. Um julgamento factual s tem a pretenso de dar a conhecer um certo estado de coisas; mas um julgamento de valor pretende modificar o estado de coisas existente. Pode-se dizer o mesmo de outro modo: enquanto uma teoria sobre um aspecto qualquer da natureza apenas uma teoria, a teoria relativa a um aspecto da realidade histrica e social quase sempre tambm uma ideologia- isto , um conjunto mais ou menos sistemtico de avaliaes, que deveriam induzir o ouvinte a preferir uma determinada situao a outra. Em suma, para concluir - extraindo as conseqncias extremas do afastamento entre o cientista natural e o cientista social, e exibindo-o em toda a sua evidncia -, ningum se espanta quando um pesquisador social (que, de acordo com o ideal cientfico do naturalista, deveria s "descrever, explicar" e eventualmente "rever") nos oferece um projeto de reforma da sociedade; mas todos veriam com compreensvel desconfiana o fsico que apresentasse um projeto de reforma da natureza. Creio que ser til dizer algo mais sobre o emprego axiolgico. Diante da variedade de formas de governo, h trs posies possveis: a) todas as formas existentes so boas; b) todas so ms; c) algumas so boas, outras so ms. De um modo muito geral, pode-se dizer que a primeira posio implica uma filosofia relativista e historicista segundo a qual todas as formas de governo so apropriadas situao histrica concreta que as produziram (e no poderiam produzir uma outra, diferente): na concluso de La Scienza Nuova, Vico fala a respeito de uma "eterna repblica natural, excelente em cada uma das suas espcies". Em Plato, encontramos um exemplo clssico da segunda posio, segundo a

Introduo

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qual todas as formas de governo reais so ms, pois representam uma corrupo da nica forma boa, que ideal. A terceira posio a mais freqente; como foi formulada numa obra que marcou poca na histria da filosofia poltica - a Poltica de Aristteles -, podemos cham-la de "aritotlica". necessrio acrescentar, contudo, que de modo geral uma axiologia no se limita a distinguir o que bom (no sentido absoluto) do que mau (no mesmo sentido); geralmente estabelece uma ordem, hierarquia - ou melhor, uma ordem hierarquizada - entre as coisas que so objeto de avaliao, por meio do julgamento comparativo. O mesmo acontece com o uso axiolgico das tipologias das formas de governo, de modo que as formas boas no so todas boas do mesmo modo, havendo algumas melhores do que outras; e entre as formas ms h algumas piores. Por meio de um julgamento do valor comparativo, o xito de uma axiologia das formas de governo termina sendo sua ordenao de modo hierarquizado, permitindo passar do melhor ao pior atravs do menos bom e do menos mau, numa escala de preferncias. Parece suprfluo notar que a possibilidade de estabelecer tal escala de preferncias leva a uma grande variedade de tipologias, sobretudo quando os objetos a ordenar so numerosos; de fato, duas tipologias que concordam na avaliao de certas formas como boas, e de outras como ms, podem distinguir-se pela caracterizao das melhores formas, dentre as boas, e das piores, dentre as ms. Alm de um julgamento de valor comparativo, uma axiologia pode compreender tambm juzos absolutos de valor. Isso significa que uma tipologia das formas de governo pode levar a uma tomada de posio que, indique qual a melhor forma, e qual a pior. freqente o caso de escritores polticos que formularam uma teoria da melhor forma de repblica, ou do melhor Estado. Podemos distinguir pelo menos trs maneiras diferentes com quej se elaboraram modelos do melhor Estado: 1) "Por meio da idealizao de uma forma histrica". o que aconteceu, por exemplo, como veremos mais adiante, com relao a Atenas e sobretudo Esparta, na Antigidade (mas no s na Antigidade), com a Repblica Romana- considerada por alguns dos mais importantes escritores polticos como um modelo de Estado, o segredo de cujo poder e glria se procurava descobrir -, com a Repblica de Veneza, no Renascimento, com a monarquia inglesa, na Idade Moderna. Poderamos acrescentar que o primeiro Estado socialista, a Unio Sovitica, tem exercido a mesma funo, sendo considerado como um Estado-guia pelos partidos comunistas dos Estados ainda no transformados pela revoluo. 2) "Combinando numa sntese ideal os vrios elementos positivos de todas as formas boas, de modo a eliminar seus efeitos, conservando-lhes as qualidades." o ideal do chamado Estado misto, de que encontraremos muitos exemplos nas lies que seguem, e cuja melhor formulao terica remonta ao historiador Polbio. 3) Por fim, "a construo da melhor repblica pode ser uma pura elaborao intelectual, completamente abstrata, em relao realidade histrica", como pode ser confiada imaginao, viso potica, que se

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compraz em planejar Estados ideais que nunca existiram e nunca existiro. Trata-se do pensamento utpico, que aparece em todas as pocas, especialmente durante as grandes crises sociais, elaborado por criadores apaixonados e inspirados. Enquanto as duas formas precedentes do melhor Estado so uma idealizao da realidade, a utopia d um salto para fora da histria, projetando-se em lugar e poca imaginrios. Estas observaes introdutrias no estariam completas se no mencionssemos o fato de que, ao lado do uso sistemtico e axiolgico da tipologia das formas de governo, estas podem ter- e tm tido efetivamente um outro emprego, que chamaramos "histrico": aquele que encontramos em alguns autores, interessados em esboar uma filosofia da histria propriamente dita, isto - para diz-lo de modo mais simples -com o propsito de desenhar as linhas do desenvolvimento histrico. Um desenvolvimento cujo traado, de uma forma de governo para outra, naturalmente varia conforme o autor. Isso tem o seguinte resultado: as vrias formas de governo no so apenas modos diversos de organizar a vida poltica de um grupo social, mas tambm fases ou modos diversos e sucessivos, geralmente concatenados, um descendendo do outro, pelo seu desenvolvimento interno, dentro do processo histrico. Como teremos oportunidade de ver, na Antigidade clssica as teorias das formas de governo se resumem muitas vezes, ainda que de forma mais ou menos mecnica, numa concepo cclica da histria; isto , numa concepo da histria segundo a qual determinada forma de governo se dissolve para transformar-se em outra, provocando assim uma srie de fases de desenvolvimento ou de decadncia que representam o curso fatal dos acontecimentos humanos. Hegel nos d um exemplo notvel do emprego histrico de uma teoria das formas de governo ou, melhor dito, da transformao do uso sistemtico no uso histrico da mesma tipologia, ao assumir a clebre diviso trplice das formas de governo, enunciada por Montesquieu (monarquia, repblica, despotismo), fazendo dela os trs momentos fundamentais do progresso histrico. Considera o despotismo como a forma de governo tpica do mundo oriental; a repblica do mundo romano; a monarquia, do mundo moderno. Vale a pena lembrar que, de modo geral, no emprego histrico de uma tipologia no irrelevante a distino entre a forma boa e a m, porque esta ltima, degenerao da primeira, permite a passagem para uma nova forma boa, a qual, por sua vez, ao se corromper, cria condies para uma passagem ulterior. Assim, quando a monarquia- que a forma boa - se transforma em tirania - forma m -, nasce como reao a aristocracia, que tambm uma forma boa; esta, decaindo, transforma-se em oligarquia, que vai gerar a democracia, e assim por diante. Em substncia, a forma m constitui uma etapa obrigatria da transformao de uma fase em outra, tendo portanto uma funo positiva (embora seja essencialmente negativa), no em si mesma, porm quando considerada como um momento da totalidade. Poder-se-ia dizer tambm que quando uma tipologia empregada historicamente, isto , para traar as linhas de uma filosofia da histria, readquire uma funo meramente descritiva, perdendo todo carter prescritivo. Quando aquilo que axiologicamente

Introduo 37 negativo se transforma em algo historicamente necessrio, o julgamento dos latos predomina sobre o julgamento de valor. Mas este um ponto ao qual farei aqui apenas uma referncia.

Captulo I UMADISCUSSO CLEBREUma histria das tipologias das formas de governo, como esta, pode ter incio na discusso referida por Herdoto, na sua Histria (Livro III, 80-82), entre trs persas-Otanes, Megabises e Dario-sobre a melhor forma de governo a adotar no seu pas depois da morte de Cambises. O episdio, puramente imaginrio, teria ocorrido na segunda metade do sculo VI antes de Cristo, mas o narrador, Herdoto, escreve no sculo seguinte. De qualquer forma, o que h de notvel o grau de desenvolvimento que j tinha atingido o pensamento dos gregos sobre a poltica ura sculo antes da grande sistematizao terica de Plato e Aristteles (no sculo IV). A passagem verdadeiramente exemplar porque, como veremos, cada uma das trs personagens defende uma das trs formas de governo que poderamos denominar de "clssicas" - no s porque foram transmitidas pelos autores clssicos mas tambm porque se tornaram categorias da reflexo poltica de todos os tempos (razo por que so clssicas mas igualmente modernas). Essas trs formas so: o governo de muitos, de poucos e de um s, ou seja, "democracia", "aristocracia" e "monarquia", embora naquela passagem no encontremos ainda todos os termos com que essas trs modalidades de governo foram consignadas tradio que permanece viva at nossos dias. Dado o carter exemplar do trecho, e sua brevidade, convm reproduzi-lo integralmente: "Cinco dias depois de os nimos se haverem acalmado, aqueles que se rebelaram contra os magos examinaram a situao; as palavras que disseram ento pareceriam incrveis a alguns gregos, mas foram realmente pronunciadas. Otanes props entregar o poder ao povo persa, argumentando assim: 'Minha opinio que nenhum de ns deve ser feito monarca, o que seria penoso e injusto. Vimos at que ponto chegou a prepotncia de Cambises, e sofremos depois a dos magos. De que forma poderia no ser irregular o governo monrquico se o monarca pode fazer o que quiser, se no

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responsvel perante nenhuma instncia? Conferindo tal poder, a monarquia afasta do seu caminho normal at mesmo o melhor dos homens. A posse de grandes riquezas gera nele a prepotncia, e a inveja desde o princpio parte da sua natureza. Com esses dois defeitos, alimentar todas as malvadezas: cometer de fato os atos mais reprovveis, em alguns casos devido prepotncia, em outros inveja. Poderia parecer razovel que o monarca e tirano fosse um homem despido de inveja, j que possui tudo. Na verdade, porm, do modo como trata os sditos demonstra bem o contrrio: tem inveja dos poucos bons que permanecem, compraz-se com os piores, est sempre atento s calnias. O que h de mais vergonhoso que, se algum lhe faz homenagens com medida, cr no ter sido bastante venerado; se algum o venera em excesso, se enraivece por ter sido adulado. Direi agora, porm, o que mais grave: o monarca subverte a autoridade dos pais, viola as mulheres, mata os cidados ao sabor dos seus caprichos. O governo do povo, porm, merece o mais belo dos nomes, 'isonomia'; no faz nada do que caracteriza o comportamento do monarca. Os cargos pblicos so distribudos pela sorte; os magistrados precisam prestar contas do exerccio do poder; todas as decises esto sujeitas ao voto popular. Proponho, portanto, rejeitarmos a monarquia, elevando o povo ao poder o grande nmero faz com que tudo seja possvel'. Esse foi o parecer de Otanes. Megabises, contudo, aconselhou a confiana no governo oligrquico: 'Subscrevo o que disse Otanes em defesa da abolio da monarquia; quanto atribuio do poder ao povo, contudo, seu conselho no o mais sbio. A massa inepta obtusa e prepotente; nisto nada se lhe compara. De nenhuma forma se deve tolerar que, para escapar da prepotncia de um tirano, se caa sob a da plebe desatinada. Tudo o que faz, o tirano faz conscientemente; mas o povo no tem sequer a possibilidade de saber o que faz. Como poderia sab-lo, se nunca aprendeu nada de bom e de til, se no conhece nada disso, mas arrasta indistintamente tudo o que encontra no seu caminho? Que os que querem mal aos persas adotem o partido democrtico; quanto a ns, entregaramos o poder a um grupo de homens escolhidos dentre os melhores - e estaramos entre eles. natural que as melhores decises sejam tomadas pelos que so melhores'. Foi esse o parecer de Megabises. Em terceiro lugar, Dario manifestou sua opinio: 'O que disse Megabises a respeito do governo popular me parece justo, mas no o que disse sobre a oligarquia. Entre as trs formas de governo, todas elas consideradas no seu estado perfeito, isto , entre a melhor democracia, a melhor oligarquia e a melhor monarquia, afirmo que a monarquia superior a todas. Nada poderia parecer melhor do que um s homem- o melhor de todos; com seu discernimento, governaria o povo de modo irrepreensvel; como ningum mais, saberia manter seus objetivos polticos a salvo dos adversrios. Numa oligarquia, fcil que nasam graves conflitos pessoais entre os que praticam a virtude pelo bem pblico: todos querem ser o chefe, e fazer prevalecer sua opinio, chegando por isso a odiar-se; de onde

Uma Discusso Clebre

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s u r g e m a s f a c e s , e d e l a s o s d e l i t o s . O s d e l i t o s l e v a m m o n a r q u i a , o q u e p

rova que esta a melhor forma de governo. Por outro lado, quando o povo que governa, impossvel no haver corrupo na esfera dos negcios pblicos, a qual no provoca inimizades, mas sim slidas alianas entre os malfeitores: os que agem contra o bem comum fazem-no conspirando entre si. o que acontece, at que algum assume a defesa do povo e pe fim s suas tramas, tomandolhes o lugar na admirao popular; admirado mais do que eles, torna-se monarca. Por isso tambm a monarquia a melhor forma de governo. Em suma, para diz-lo em poucas palavras: de onde nos veio a liberdade? Quem a deu? O povo, uma oligarquia, ou um monarca? Sustento que, liberados por obra de um s homem, devemos manter o regime monrquico e, alm disso, conservar nossas boas instituies ptrias: no h nada melhor' ". A passagem to clara que quase desnecessrio coment-la. A observao mais interessante que

p o d e m o s f a z e r a d e q u e c a d a u m d o s t r s i n t e r l o c u t o r e s f a z u m a a v a li a o p o s it i v

a de uma das trs constituies e anuncia um julgamento negativo das outras duas. Defensor do governo do povo (que ainda no chamado de "democracia"; esse termo tem de modo geral, nos grandes pensadores polticos, uma acepo negativa, de mau governo), Otanes condena a monarquia. Defensor da aristocracia, Megabises condena o governo de um s e o governo do povo. Por fim, Dario que defende a monarquia, condena tanto o governo do povo como o governo de uns poucos (usando o termo destinado a descrever ordinariamente a forma negativa do governo de poucos a oligarquia). Como j foi observado, o fato de que cada constituio apresentada como boa por quem a defende e como m pelos defensores dos dois outros tipos tem o efeito de deixar bem clara, no debate, a classificao completa, que ser enunciada por sucessivos pensadores, para quem elas no sero apenas trs, porm seis j que s trs boas correspondem

t r s o u t r a s , m s . A d i f e r e n a e n t r e a a p r e s e n t a o d e s s a s c o n s ti t u i e s n o d e b

ate de Herdoto e nas classificaes seguintes (como a de Aristteles) est em que no debate, que um discurso do tipo prescritivo (vide a Introduo), a cada constituio proposta como boa correspondem duas outras, vistas corno ms; em Aristteles, cuja linguagem simplesmente descritiva, a cada constituio boa corresponde a mesma na sua forma m. A diferena ficar clara nos dois esquemas seguintes:Herdoto

monarquia Otanes Megabises Dario-

+

A Teoria das Formas de GovernoAristteles

Monarquia Aristocracia Democracia

+++-

Convm esclarecer, aqui, que a classificao sxtupla (com trs constituies boas e trs ms) deriva do cruzamento de dois critrios, um dos quais responde pergunta "Quem governa?", o outro pergunta "Como governa?" (isto , "como" governam aquele ou aqueles indicados pela resposta primeira pergunta). Como se pode ver no esquema seguinte (no qual empregamos a terminologia de Polbio): Como?bem mal

Quem?

um

monarquia aristocracia democracia

tirania oligarquia oclocracia

poucos muitos

Ser interessante considerar tambm brevemente os argumentos com que os trs interlocutores exaltam uma constituio e criticam as outras duas; alguns desses argumentos manifestam de forma surpreendente esses "temas recorrentes", aos quais me referi no incio deste curso. O contraste entre a monarquia considerada no seu aspecto negativo (isto , tirania) e o governo do povo, conforme representado por Otanes, o que existe entre ura governo irresponsvel e portanto naturalmente arbitrrio ("o monarca pode fazer o que quiser... no responsvel perante nenhuma instncia") e o governo baseado na igualdade perante a lei ("... o mais belo dos nomes, "isonomia"...") e no controle pelo povo ("todas as decises esto sujeitas ao voto popular") - portanto, nem irresponsvel nem arbitrrio. Ao tirano se atribuem alguns vcios, como a "prepotncia", a "inveja", a "irascibilidade", que constituem exemplos j bastante evidentes de uma fenomenologia da tirania que vem at nossos dias, com diversas variaes. Mais ainda: enquanto a tirania caracterizada por atributos psicolgicos, o governo do povo descrito sobretudo por meio de uma instituio - a distribuio dos cargos pblicos mediante sorteio, o que pressupe a igualdade absoluta dos cidados; fica clara assim, desde o incio - como se v, e se ver melhor ainda mais adiante - a relao existente entre os conceitos de "igualdade" e de "governo popular". Com efeito, o sorteio s no um procedimento arbitrrio se se baseia na premissa da igualdade dos cidados - isto , de que todos valem o mesmo

Uma Discusso Clebre 43 e que, portanto, qualquer que seja a indicao da sorte, o resultado tem o mesmo valor. No que diz respeito s consideraes de Megabises, vale observar que o governo popular tambm caracterizado por atributos psicolgicos (o desatino). O mais interessante que das duas formas de governo rejeitadas, uma (o governo popular) considerada pior do que a outra (o governo monrquico); essa comparao nos d um exemplo claro da gradao das constituies, boas ou ms, de que falei na Introduo (no h apenas governos bons e maus, mas governos melhores e piores do que outros). O que falta na anlise de Megabises uma caracterizao especfica do governo proposto como melhor, diferentemente do que tnhamos observado no discurso de Otanes, onde o governo do povo caracterizado por uma instituio peculiar - o sorteio. A propsito do governo de poucos, seu defensor se limita a dizer, numa petio de princpio, que "as melhores decises (so) tomadas pelos que so melhores". Na exposio de Dario aparece pela primeira vez a condenao do governo de poucos; Otanes criticara o governo tirnico mas no o oligrquico, e Megabises havia considerado o governo de poucos como o melhor. O ponto crtico da oligarquia a facilidade com que o grupo dirigente se fragmenta em faces - isto , a falta de um guia nico, nece