polÍtica - bobbio, norberto. liberalismo e democracia - humcertoalguém

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NORBERTO BOBB10 LIBERALISMO E DEMOCRACIA Traduciio: Marco Aurelio Nogueira editora brasiliense

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NORBERTO BOBB10

LIBERALISMO E

DEMOCRACIA

Traduciio:

Marco Aurelio Nogueira

e d i t o r a b r a s i l i e n s e

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Copyright © by Franco Angeli Libr i, s . f. 1., Viale Monza 106

Miliio, Italia

Titulo original: Liberalismo e democrazia

Copyright © da traduciio brasileira: Editora Brasiliense S.A.

Nenhuma parte desta publicacao pode ser gravada,

armazenada em sistemas eletronicos, fotocopiada,

reproduzida por meios mecdnicos ou outros quaisquer

sem autorizacdo previa do editor .

Prime ira edicdo, 1988

6." edicdo, 1994

4. a reimpressiio, 2000

Revisiio: C arm em T . S . Costa

Capa: Gilberto Miadaira

Dados Internacionais de Cata1oga~ao na Publica9ao (CIP)

(Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Bob_bio, Norberto, 1909-

Liberalismo e democracia I Norberto Bobbio

tradu9ao Marco Aurelio Nogueira. -- Sao Paulo

Brasiliense, 2000.

Titulo original: Liberalismo e democrazia.

4& reiropr. da 6. ed. de 1994.

Bibliografia.

ISBN 85-11-14066-2

1. Democracia2. Libe~a~~~o + :

00-3144 CDD-320.51

indices para <=:'at~oqo ~i.stexn!tico:

1. Liberalismo : CiencLa politica 320.51

editora braslliense s.a.

Matr iz : Rua Ai ri, 22 - TatuapeCEl' 03310-010 - Sao Paulo - SP

Fone I Fax: (Oxxl I) 218.1488

E-mail: [email protected]

www.editorabrasiliense.corn.br

Iodice

I. A . liberdade dos antigos e dos modernos 7

§(}s direitos do horn ern 11

Os limites do poder do Estado 17

_ Liberdade contra poder . . . . . . . . . . . . . . . . . .. .. 20

\. 0antagonismo e fecundo , 26

(,. Demoeracia dos antigos e dos modernos , 31

(j) Democraeia e.igualdade 37

H. 0encontroentre liberalismo e democracia , 42q. Individualis1n:o e organicismo . . . . . . . . . . . . . . .. 4S

10 . Liberais e democratasJ:lo seculoXfX , 49

I I. A . tirania da maioria S5

I 2. Liberalismo eutilitarismo . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 62

IJ. A democraciarepresentativa 68

14. Liberalismo e democracia na Italia 72

15. A democracia diante do socialismo 79

16.0 novo liberalismo , 85

17. Democracia e ingovernabilidade 92

Bibliografia :. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 98

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1. A liberdade dos

antigos edos modernos

I

I

I

I

J \. existencia atual de regimes denominados liberal-

dl 'IlIOlT[lticos ou de democracia liberal leva a crer que li-

bcrulisrno e democracia sejam interdependentes. No en-

t .uuo. 0 problema das relacoes entre e1ese extremamente('OIIlP1cxo,e tudo menosIinear: Na acepcao mais comum

!los dois ,termos, por t'liheralism.o~' entende-se uma de-

(crtuiuada C9nc~BGao de Estado, na qual 0 Estado tern

podcrcs e ,funGoeSlimitadas, e como tal se contrapoe tan-to ao Estado absolute ,quanto ao Estado que hoje cha-

1 1 1 :1 I I I os de socialJ por'~'etrlocracia" entende-se uma das

v a r i . r x Iormas de governo, ern particular aquelas em que

\I poder nao esta,nas maos de urn s6 ou de poucos, mas

dl' (odos, ou melhor, da maior parte, como tal se contra-

poudo a s Iorrrias autocraticas, comoa monarquia e a oli-

garqi.lia.iUm Estado liberal nao e necessariamente demo-. _ ,· f

l ' I ' : ' 1 I ico.ao contrario, realiza-sehistoricamente emsocie-

dades nas quais a participacao no governo e bastante res-

[rita, l imitada as classes possuidoras, Urn governo demo-

cratico nao da vida necessariamente a urn Estado liberal:

ao contrario, 0Estado liberal classico foi posto em crise

 

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8 NORBERTO BOBBIO LIBERALISMO E DEMOCRACIA 9

pelo progressivo processo de democratizacao produzido

pela gradual ampliacao do sufragio ate 0 sufragio uni-

versal.

Sob a forma da contraposicao entre liberdade dos

modernos e liberdade dos antigos, a antitese entre libera-

lismo e democracia foi enunciada e sutilmente defendida

por Benjamin Constant (1767-1830) no celebre discurso

pronunciado no Ateneu Real de Paris em 1818, do qual epossivel fazer comecar a historia das dificeis e con trover-

tidas relacoes entre as duas exigencias fundamentais de

que nasceram os Estados conternporaneos nos paises

economic a e socialmente mais desenvolvidos: a exigencia,

de urn lado, de limitar 0poder e, de outro, de distribui-lo .

Nao podemos mais usufrir da liberdade dos antigos,

que era constituida pela participacao ativa e cons-

tante no poder coletivo. A nossa liberdade deve, ao

contrario, ser constituida pela Iruicao pacifica da in-

dependencia privada. 2

oobjetivo dos antigos - escreve ele - era a distri-

buicao do poder politico entre todos os cidadaos de

uma mesma patria: era isso que eles chamavam de

liberdade. 0 objetivo dos modernos e a seguranca

nas fruicoes privadas: eles chamam de liberdade as

gar anti as acordadas pelas instituicoes para aquelas

fruicoes.'

Constant citava os antigos, mas tinha diante de si

1 1 1 1 1 alvo bern mais proximo: Jean-Jacques Rousseau. De

1', ,10, 0 autor do Contrato Social havia inventado, nao

~1.'1lI fortes sugestoes dos pens adores classicos, uma re-

publica na qual 0 poder soberano, uma vez instituido

pela concordada vontade de todos, torna-se infalivel e

"1I,'toprecisa dar gar anti as aos suditos, pois e impossivelque 0 corpo queira ofender a todos os seus membros". 3

NflO que Rousseau tenha levado 0 principio da vontade

~l'ral au ponto de desconhecer a necessidade de limitar 0

IHl(k-r do Estado: atribuir a ele a paternidade da "demo-

nacia totalitaria" e uma polemica tao generalizada

qnanlo erronea. Embora sustentando que 0 pacta social

d:1 ao corpo politico urn poder absoluto, Rousseau tam-

bern susten:ia::.quei"o corpo soberano, da sua parte, nao

pnde soorecal;.;r,egaros siiditos com nenhuma cadeia que

sd'll inutil a"'comunidade" ..4 Mas e certo que esses li-

lIIile~"~ao sao pre-dmstituidos ao nascimento do Es-

lltdo. como quer adoutrina dos direitos naturais, que

rcprcscnta 0micleo doutrinal do Estado liberal. De fato

l'lllhora admitindoquevtudo aquilo que, com 0 pacto

social, cada urn aliena de seu poder. .. e unicamente a

parte de tudo aquilo f'ujouso e importante para a co-

Como liberal sincero, Constant considerava quees-ses dois objetivos estavam emc~ntnist~ entre si. A pirti~

cipacao direta nas decisoes coletivas terminapor subme-

ter 0 individuo a autoridade do todo e portorna-lo nao li-

vre como privado; e isso enquanto a liberdade do privado eprecisamente aquilo que 0 cidadao exige hoje do poder

publico. Concluia:

(1) Benjamin Constant, De la 'Liberte des Anciens Comparee a celie

des Modernes (1818), in Collection Complete des Ouvrages, vol. 4, parte 7,

Pa ris, Bechet Librair e, 1820, p. 253 (trad. it., in B. Constant, introducao e

tr aducao de Umberto Cerroni, Roma , Samona e Savelli, 1965, p. 252) .

(2) Trad. cit., p. 252.

(3) 1.-1. Rousseau, Du Contrat Social, 1,7 ( trad . it ., in J.-J. Rousseau,

S..,.ill; Politici, P. Alatri (org.), Turirn, Utet, 1970, p. 734).

(4) Trad. cit., p. 744.

 

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10 NORBERTa BOBBIO

munidadc", Rousseau conc1ui que "0unico corpo sobe-

rano ejuiz dessa importancia".'

2. Os direitos do homem

(5) Trad. cit., p. 744.

1 " 0 pressuposto filos6fico do Estado liberal, entendi-,.do como Estado limitado em contraposicao ao Estado

ahsoluto, e a doutrina dos direitos do homem elaborada

pcla escola do direito natural (ou jusnaturalismo): dou-

Irina segundo a qual 0 homem, todos os homens, indis-

criminadamente, tern por natureza e, portanto, indepen-

dcntcmente de sua propria vontade, e menos ainda da

vontado de alguns poucos ou de apenas urn, certos di-

reil(ls fundamentals, como 0 direito a vida, a liberdade, a:,q~llralH;a, a Ielicidadec- direitos esses que 0 Estado, ou

111"is concretamente aqueles que num determinado mo-

IIIl' IIIII hist6rico detem 0 poder legitimo de exercer a for-

1;:1 para obter a obediencia a seus comandos devem res-

pvitnr, e portanto nao invadir, e ao mesmo tempo prote-

~'.\'I' contra toda possivel invasao por parte dos outros],

;\Iri huir a alguem urn direito significa reconhecer que

ell' tern afaculdade de fazer ou nao fazer algo conforme

sell desejo e tambem 0poder de resistir, recorrendo, em

ultima instancia, a Iorca (propria ou dos outros), contra 0

eventual transgressor, 0 qual tern em consequencia 0de-

I

I

II

I'

 

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12 NORBERTO BOBBIO

ver (ou a obrigaciio) de se abster de qualquer ato que

possa de algum modo interferir naquela faculdade de fa-

zer ou nao fazer. "Direito" e "dever" sao duas nocoes

pertencentes a linguagem prescritiva, e enquanto tais

pressupoem a existencia de uma norma ou regra de con-duta que atribui a urn sujeito a faculdade de fazer ou

nao Iazer alguma coisa ao mesmo tempo em que impoe

a quem quer que seja a abstencao de toda acao capaz de

impedir, seja por que modo for, 0 exercicio daquela fa-

culdade. Pode-se definir 0 jusnaturalismo como a dou-- .... . , " . . . . -.. - ..... --" . - ' ..

trina segundo a qual existem lei~Jlao pastas pela vontade_~ .. "'__"'__""-~'~-"'"._"~".,_.,.". "__~~_~c··.~·.,,.·__.~-"-.,.~.~«- .._..,_._ .__....•........•._•... _ __ . .•."._ ___. _._ - . _-". _ " . _

humana -- que por is so mesmo precedem it formacao de

todo grupo social e sao reconheciveis atraves da pesquisa

racional - das quais derivam, como em toda e qualquerlei moral ou juridica, direitos e deveres que sao, pelo

proprio fato de serem derivados de uma lei natural, dire i-

tos e deveres naturaisi Falou-se do jusnaturalismo como

pressuposto "filo~ofico;' do liberalismo porque ele serve

para fun dar os limites do poder a base de uma concepcao

geral e hipotetica da natureza do homern que prescinde

de toda verificacao empiric a e de toda prova historica,

No capitulo IIdo Segundo Tratado sobre 0 Governo, Lo-

cke, urn dos pais do liberalismo moderno, p~_rte._c!Q._~s_t,t_:

do de natureza descrito como urn estado de perfeita li-

·~~fadeelgualdade~-govemado por uma lei da natureza

qll~

ensina a todos os homens, desde que desejem con-

sliTta:=ra,que,sendo todos iguais e independentes,

ninguem deve provocardanos aos demais no que se

refere a vida, a saude, a liberdade ou as posses. 6

(6) John Locke, Two Treatises of Government (1690), n ,6 (trad, it.,

L. Pareyson (org.), Turim, Utet, 3~ ed., 1980, p. 231) .

L1BERALlSMO E DEMOCRACIA 13

Essa descricao e fruto da reconstrucao fantastic a de

1 1 1 1 1 presumivel estado originario do homem, cujo unico

ohjctivo code aduzir uma boa razao para justificar os

limites do poder do Estado. A doutrina dos direitos natu-

ruis, de fato, esta na base das Declaracoes dos Direitosproclarnadas nos Estados Unidos da America do Norte (a

vomecar de 1776) e na Franca revolucionaria (a comecar

lit' 17H9), atraves das quais se afirma 0 principio funda-

IIIClllal do Estado liberal como Estado limitado:

o objetivo de toda associacao politic a e a conserva-\·rto dos direitos naturais e nao prescritiveis do ho-

I11cm(art. 2? da Declaracao dos Direitos do Homem

e do Cidadao , 1789).

Lnquanto teoria diversificadamente elaborada por

I'ili,sllros, teologos e juristas, a doutrina dos direitos do

luuucm pode ser considerada como a racionalizacao pos-

tumu do cstado de coisas a que conduziu, especial mente

1111 1 1 1 1 . : 1 < 1 terra e muitos seculos antes, a luta entre a mo-

III1rqllia cas outras forcas sociais, que se conc1uiu com a

I'llllressilo cia Magna Carta por parte de Joao Sem Terra

( I.~IS). quando as faculdades e os poderes que nos seen-

Iw, Iuluros scrao chamados de "direitos do homem" sao

H'I'ollilccitios sob 0 nome de "liberdade" (libertates,

/I'{",I'I,i,\I''\, freedom), on seja, como esferas individuais

0 1 . 11'. ,," (. d p posse de bens protegidos perante 0 poder

" 1 1 , , 1 1 , , " t I . , r e - i . Embora esta e as sucessivas cartas.tenham

II 1 ' . 1 1lila j u r i r l i c a de concessoes soberanas, elas sao de fa-

III II n-sultado de urn verdadeiro pacto entre partes con-

II illI"S lOIS 110 que -diz respeito aos direitos e deveres reci-

PIIWIIS IIa relacao politica, isto e , na relacao entre dever

dl' prote\~ao (por parte do soberano) e dever de obedien-\Iii (IIi' qual consiste a assim chamada "obrigacao politi-

••" pOI' parte do sudito), comumente chamado de pac-

 

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14 NORBERTO BOBBIO

tum subiectionis . Numa carta das "liberdades" 0 objeto

principal do acordo sao as formas e os limites da obe-

diencia, ou seja, a obrigacao politica, e correlativamente

as formas e os limites do direito de coman dar . Essas an-r., ·,tigas cartas, como de resto as cartas constitucionais oc-

\'/ troyees" das monarquias constitucionais da idade da res-

tauracao e depois (entre as quais 0 estatuto albertino de

1848), tern a Iigura juridica da concessao, que e urn ato

unilateral, embora sejam de fato 0 resultado de urn acor-

do bilateral. Sao por isso uma tipica forma de ficcao ju-

ridica, que tern por objetivo salvaguardar 0 principio da

superioridade do rei, e portanto assegurar a perrnanen-

cia da forma de governo monarquica, nao obstante a

ocorrida limitacao dos poderes tradicionais do detentor

do poder supremo.

Naturalmente, mesmo nesse caso, 0 cursu historico

que da origem a uma deterrninada ordenacao juridica e a

sua justificacao racional apresentam-se com os termos

invertidos:[?istoricamente,og§!~Q9g£.c:ra,1 .nasce c l§

uma continua e progressiva~Tosa~Lg_QP()cl~r.a.bsoluto do

rei e:-emperiodos hlst6ricos de crise mais aguda, de uma

~tura revolucionaria (exemplares as casos da Inglater-

fa do secufoXVlfe"(Ia Franca do fim do seculo XVIII);

racionalmente, 0 Estado liberal e justificado como 0 re-

resultado de urn ac~rd()- entre'-1l1di~iduosinidaJmente u -vres que COnve!lcI(~nam estabelecer os vincuIos estrita-

mente necessaries a uma convivencia pacifica e dura-

doura~lEnquanto 0cursu historico procede de urn estado

iniciaf.lde servidao a estados sucessivos de conquista de

espacos de liberdade por parte dos sujeitos, atraves de

urn processo de gradual liberalizacao, a doutrina percor-

re 0caminho inverso, na medida em que parte da hipote-se de um estado inicial de liberdade, e apenas enquanto

(*) Em frances no original: outorgadas, (N. T.J

UBERALISMO E DEMOCRACIA IS

concebe 0homem como naturalmente livre e que conse-

gue construir a sociedade politic a como uma sociedade

corn soberania Iimitada, Em substancia, a doutrina, es-

pccialmente a doutrina dos direitos naturais, inverte 0

andamento do curso hist6rico, colocando no inicio como

Iundamento, e portanto como prius, aquilo que e histori-IIICIIe 0 resultado, 0posterius .

Afirrnacao dos direitos naturals e teoria do contrato

sm'jal, ou contratualismo, estao estreitamente ligados. A

id{'ia de que 0 exercicio do poder politico .apenas e legi-

I l u i o - sc fundado sobre 0 consenso daqueles sobre os

'Iuais dcve ser exercido (tambem esta e uma tese lockea-

1111:1), c portanto sobre urn acordo entre aqueles que deci-tlt'llI xubmeter-se a urn poder superior e com aqueles a

quem esse poder e confiado, e uma ideia que deriva da

pn·ssllposi~ao de que os individuos tern direitos que nao

d('pclI<icm da instituicao de urn soberano e que a institui-

!,'IIO do xoberano tern a principal funcao de permitir a

IIdl x hi la explicitacao desses direitos compatlvel com a

Ii"f.{lIralll,'a social[Q_5l1l:~~lln~a doutrina dos direitosdo

I.H~111!'111 c o contratualis1po e a comum. concepcao indivi-

Iftlal1:.LI d ii sOCledade:'~a concepcao segundo a qual pri-

1111'1111 n:isk 0 individuo singular com seus interesses e

\ '11111 SIl;I~; carencias, que tomam a forma de di;~'it~se~

vlrtu.l« da assuncao de uma hipotetica lei da natureza, e

tI('Plli~ a sociedade, e nao vice-versa como sustenta 0 or-

""ldd~1II0 em todas as suas formas, segundo 0 qual a

.IIiw!c·dllde (~anterior aos individuos ou, conforme a for-

1 I 1 1 1 1 1 1 uristotelica destinada a ter exito ao longo dos secu-

Ill'" 0Indo 6 anterior as partes:jb contratualismo moder~

1111 rvprcxcnta uma verdadeira revira~~lta na historia d~

pl'lIsalllcnto politico dominado pelo organicismo na me-dliia L '11l que, subvertendo as relaeoes entre individuo e

~Il('j(:dade,faz da sociedade nao mais um fato natural, a

('xislir independentemente da vontade dos individuos ,

 

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16 NORBERTO BOBBIO

mas urn corpo artificial, criado pelos individuos a sua

imagem e - s e m e l h a n < ; a e p a r a a s a t is f a ! ; a o de seus interes-

ses e carencias e Qrnais amplo exercicio de seus direitos.]

Por sua vez, 0acordo que da origem ao Estado e possivel

porque, ses.!lop<lo.a teoria do direito natural, existe nanatureza {;maleique atribui a todos os individuos alguns

'oireh()s fundamentais de que 0 individuo apenas pode se

despir voluntariamente, dentro dos limites em que esta

remincia, concordada com a analoga remincia de todos

os outros, permita a cornposicao de uma livre e ordenada

convivencia,

Sem essa verdadeira revolucao copernicana, a base

da qual 0 problema do Estado passou a ser visto nao

mais da parte do poder soberano mas da parte dos sudi-tos, nao seria possivel a doutrina do Estado liberal, que ein primis a doutrina dos limites juridicos do poder esta-

talIJem individualismo nao ha liber.al!~_!l}g)

3. Os Iimltesdo poder do Estado

lulou-se ate aqui genericamente de Estado limitado

till , I e - limites do Estado. Deve-se agora precisar que essa

1'~lm'~s,\(lcompreende dois aspectos diversos do proble-

1 1 1 1 1 . aspectos que nem sempre sao bern distinguidos: a)

n s lh u it c» dospoderes; b) os limites dasfun{:oes do Esta-

till, 1\ doutrina liberal compreende a ambos, embora

pIISS.1I11 des ser tratados separadamente, urn excluindo 0

11111 I ' l l . \ ! > liberalismo e uma doutrina do Estado limitado

IUllto ~'Olll rcspeito aos seus poderes,.9.'i1antoa!isr~as .f:un-

,. ' . .".)\ IHH;;'lO corrente que serve para representar 0 pri-

111I· ' rd(· Fst ado de direito; a nocao corrente para repre-

' 1 1' 1 11 1 1 1 ' 0 segundo e Estado minimo JEmbora 0 liberalis-

11111 \'11 I I ( ' (. 11 o Estado tanto como Es'tado de direito quan-

IIIl'\llllll Estado minimo, pode ocorrer urn Estado de di-

lI'tllI qlll' nao seja minimo (por exemplo, 0Estado social

1'llllit' llIjlllrfmeo) e pode-se tambem conceber urn Estado

tuiuuuo que nao seja urn Estado de direito (tal como,1'11111 rcspeito a esfera economica, 0 Leviata hobbesiano,

!jill' (.ao rnesmo tempo absoluto no mais pleno sentido da.,.~

[urlavra e liberal em economia):3§nquanto 0 Estado de

 

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18 NORBERTO BOBBI0 LlBERALlSMO E DEMOCRACIA 19

direito se contrapoe ao Estado absoluto entendido como

legibus solutus, 0Estadc minimo se contrapoe ao Esta-

do maximo: deve-se, entao, dizer que 0Estado liberal se

afirma na luta contra 0 Estado absoluto em defesa do

Estado de direito e contra 0Estado maximo em defesa do

Estado minimo, ainda que nem sempre os dois movimen-

tos de emancipacao coincidam historic a e praticamente "]

Por Estadogedireiioentende-se geralmente urnEs::'"

t(ldoell1q~~~~ip~deres publicos sao regulados por nor-

mas gerais (as leis fundamentais ou constitucionaisye

devem ser exercidos no ambito das leis que os regulam,

~ a i v o odireito do cidaaao de recorrer aumjtiizillg.epen-

dente para fazer com que seja!,econhecido -~ refl~t~d~' 0

abusQ__Q_l!J~:(~S~§~QcJeoder. Assim entendido, 0 Esta-(fO-de direito reflete a velha doutrina - associada aos

classicos e transmitida atraves das doutrinas politicas

medievais - da superioridade do governo das leis sobre

o governo dos homens, segundo a formula lex tacit re-

gem,' doutrina essa sobrevivente inclusive na idade do

absolutismo, quando a maximaprinceps legibus solutus"

e entendida no sentido de que 0 soberano nao estava su-

jeito as leis positivas que ele proprio emanava, mas est a-

va sujeito as leis divinas ou naturais e as leis fundamen-

tais do reino. Por outro lado, q~H!:rlg.oe fala de Estado

de direito no ambito da doutrina liberal do Estado, deve-

se acrescentar a definicao tradicional uma determinacao

ulterior: a constitucionalizacao dos direitos naturais, ou

seja, a transformacao desses direitos em direitos juridi-

camente protegidos, isto e , em verdadeiros direitos posi-

tivos. Na doutrina liberal, Estado de direitosigQ.iJi<:,! nao

so subordinacao dos poderes piiblicos de qualquer grau

as leis gerais do pais, limite que e puramente formal,

mas tambem subordinacao das leis ao limite material do

reconhecimento de-alguns (lireita!'; fUlldamenfiis c'on-si-

derados constitucionalmente,. eportanio eii1'Hiihacle

principio "inviolaveis" (esse adjetivo se encontra noa:-rt.

~~)da constitui~ao italian a). Desse ponto de vista pode-se

Ialar de Estado de dire ito em senti do forte para distin-

gui-lo do Estado de dire ito em senti do fraco, que e 0Es-tado nao-despoticn, isto e, dirigido nao pelos homens,

l~laspelas leis, e do Estado de direito em sentido fraquis-

sUllo, tal como 0Estado kelseniano segundo 0 qual, uma

vez resolvido 0Estado no seu ordenamento juridico todo

Estado e Estado de dire ito (e a propria nocao de Estado

de ~Freito perde toda Iorca qualificadora).~Do Estado de dire ito em senti do forte, que e aquele

proprio da doutrina liberal, sao parte integrante todos

os mecanismos constitucionais que impedem ou obstacu-

lizam 0 exerdcio arbitrario e ilegitimo do poder e impe-

dem ou desencorajam 0 abuso ou 0 exercicio ilegal do

poder. Desses mecanismos os mais importantes sao: 1) 0

controle do Poder Executivo por parte do Poder Legisla-

tivo; ou, mais exatamente, do governo, a quem cabe 0

Poder Executive, por parte do parlamento, a quem cabeem ultima instancia 0 Poder Legislative e, a orientacao

politica; 2) 0 eventual controle do parlameritono exerci-

cio do Poder Legislativo ordinario por parte de uma corte

jurisdicional a quem se pede a averiguacao da consti-

tucionalidade das leis; 3) uma relativa autonomia do go-

verno local em todas as suas form as e em seus graus com

respeito ao governo central; 4) uma magistratura inde-pendente dopoder politico.

(7) H. Bracton, De Legibus et Consuetudin ibus Angliae, G. E. Wood-

bine (org.), Cambridge. Mass .• Harvard University Press. 1968. vol. 2, p. 33.

(8) Ulpiano, Dig .• I. 3, 31.

 

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LlBERALISMO E DEMOCRACIA 21

4. Liberdadecontra poder

internacional.ljco pensamento liberal, teoria do controle

do poder e teoria da limitacao das tarefas do Estado pro-

cedem no mesmo passo: pode-se ate mesmo dizer que a

segunda e a conditio sine qua non da prirneira, no senti-

do de que 0controle dos abusos do poder e tanto mais fa-

cil quanto mais restrito e 0ambito em que 0 Estado pode

estender a propria intervencao, ou mais breve e simples-

mente no sentido de que 0Estado minimo e mais contro-

lavel do que 0Estado maximo] Do ponto de vista do indi-

viduo, do qual se poe 0 liberalismo, 0 Estado e conce-

bido como urn mal necessario: e enquanto mal, ernbora

necessario (e nisso 0 liberalismo se distingue do anar-

quismo), 0Estado deve se intrometer 0menos possivel na

esfera de acao dos individuos. As vesperas da revolucaoamericana, Thomas Paine (1737·1B09), autor de urn en-

saio em defesa dos direitos do hornem, expressou com

grande clareza tal pensamento:

\

[Os mecanismos constitucionais que carac~eri~~m 0

Estado de dire ito tern 0 objetivo de defender 0 individuo

dos abusos do pode(~Em outras palavras, sao garantias

de liberdadc. da assim chamada liberdade negativa, en-

tendida como esfera de acao em que 0 individuo nao esta

obrigado por quem detem 0poder coativo a fazer aquilo

que nao deseja ou nao est a impedido de fazer aquilo que

deseja(Ha uma acep~a~ de.liberdade - que e a acep~~o

prevalecente na tradicao liberal - segundo a qual .'lle

berdade" e "poder" sao dois termos antiteticos, quede-

notam duas realidades em contraste entre si .e sao, por-

tanto. incornpativeis: nas relacoes entre duas pessoas, amedida que se estende 0poder (poder de coman dar ou de

impedir) de uma diminui a liberdade em senti do nega-

tivo da outra e, vice-versa, arnedida que a segunda am-

plia a sua esfera de liberdade diminui 0poder da prime~-

raJDeve-se agora acrescentar que para.o pens~mento 11-

beral a liberdade individual esta garantida, mars que pe-

los mecanismos constitucionais do Estado de direito, (tambem pelo Iato de que ao Estado sao reconhecidas ta-

refas limitadas a manutencao da ordem publica interna e

A sociedade e produzida por nossas carencias e 0

governo por nossa perversidade; a primeira promove

a nossa Ielicidade positivamente mantendo juntos os

nossos afetos, 0 segundo negativamente mantendo

sob freio os nossos vicios. Uma encoraja as relacoes,o outro cria as distincoes. A primeira protege, 0 se-

gundo pune. A sociedade e sob qualquer condicao

uma bencao: 0governo, inclusive na sua melhor for-

ma, nada mais e do que urn mal necessario, e na sua

pior forma e insuportavel. 9

Urna vez definida a liberdade no sentido predomi-

nante da doutrina liberal como liberdade em relaciio ao

(9) Thomas Paine, Common Sense (1776) (trad, it., in Thomas Paine,

I Diritti deLrUomo, T. Magri (org.), Editori Riuniti, 1978, p. 6S).

 

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22 NORBERTO BOBBIO LIBERALISMO E DEMOCRACIA 23

Estado , o processo de formacao do Estado liberal pode

ser identificado com 0progressivo alargamento da eslera

de liberdade do individuo, diante dos poderes publicos

(para usar ostermos de Paine), com a progressiva eman-

cipacao da sociedade ou da sociedade civil, no senti dohegeliano e marxiano, em relacao ao Estado. As duas

principais esferas nas quais ocorre essa emancipacao sao

a esfera religiosa ou em geral espiritual e a esfera econo-

mica ou dos interesses materiais, Segundo a conhecida

tese weberiana sobre as relacoes entre etica calvinista e

espirito do capitalismo, os dois processos estao estreita-

mente ligados. Mas, independentemente dessa discutida

conexao, e urn fato que a historia do Estado liberal coin-

cide, de urn lado, com 0 fim dos Estados confessionais ecom a formacao do Estado neutro ou agnostico quanto

a s crencas religiosas de seus cidadaos, e, de outro lado,

com 0 fim dos privilegios e dos vinculos feudais e com

a exigcncia de livre disposicao dos bens e da liberdade de

troca, que assinala 0nascimento e 0desenvolvimento da

sociedade mercantil burguesa.

Sob esse aspecto, a concepcao liberal do Estado con-

trapoe-se as varias form as de paternalismo, segundo as

quais 0 Estado deve tomar conta de seus suditos talcomo 0pai de seus filhos, posta que os siiditos sao consi-

derados como perenemente menores de idade. Urn dos

lins a que se propoe Locke com os seus Dois Ensaios so-

bre 0Governo code demonstrar que 0 poder civil, nas-

cido para garantir a liberdade e a propriedade dos indivi-

duos que se associam com 0 proposito de se autogover-

nar e distinto do governo paterno e mais ainda do patro-

nal. 0paternalismo tambem e urn dos alvos melhor de-

finidos e golpeados POl' Kant (1724-1804), para quem

sobre os filhos, isto e , urn governo paternalista (im-

perium paternale), no qual os suditos, tal como fi-

lhos menores incapazes de distinguir 0 util do preju-

dicial, estao obrigados a se comportar apenas passi-

vamente, para esperar que 0chefe do Estado julguede que modo devem e1es ser felizes e para aguardar

apenas da sua bondade que ele 0 queira, urn gover-

no assim e 0pior despotismo que se possa imaginar.'?

Kant preocupa-se, sobretudo, com a liberdade mo-

ral.dos individuos. Sob 0 aspecto da liberdade economic a

ou da melhor maneira de prover aos proprios interesses

materiais, nao menos clara e conhecida e a preocupacao

de Adam Smith, para quem, "segundo 0 sistema da li-berdade natural", 0 soberano tern apenas tres deveres de

grande importancia, vale dizer, a defesa da sociedade

contra os inimigos externos, a protecao de todo individuo

das ofens as que a ele possam dirigir os outros individuos,

e 0provimento das obras piiblicas que nao poderiam ser

executadas se confiadas a iniciativa privada. Embora

possam ser distantes os pontos de partida de cada urn

deies[tanto em Kant quanta em Smith a doutrina dos

iimite-s das tarefas do Estado funda-se sobre 0 primado

da Iiberdade do individuo com respeito ao poder sobera-

110 e, em consequencia, sobre a subordinacao dos deveres

do soberano aos direitos ou interesses do individu~:-(

Ao final do seculo das Declaracoes dos Direitos, de

Kant e de Smith, Wilhelm von Humboldt (1767-1835)

excreve a sintese mais perfeita do ideal liberal do Estado,

com as Ideias para um "Ensaio sobre os Limites da Ati-

(10) E. Kant, Uber den Gemeinspruch: Das mag in der Theorie richtig

srin, taugt aber nicht fur die Praxis (1793) (trad. it., Sopra ildetto comune:

"Questa pu6 essere giusto in teoria ma non valeper fapratica"; in E. Kant ,

Scritti Politici e di Filosofia della Storia e del Diritto, Turim, Utet, 1956,

p.255).

urn governo fundado sobre 0 principio da benevo-

lencia para com 0povo, como 0 governo de urn pai

 

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24 NORBERTO BOBBIO

vidade do Estado" (1792). Como se nao bastasse 0 titulo,

para compreender a intencao do autor podemos recorrer

a maxima inserida no primeiro capitulo, extraida de Mi-

rabeau pai:

o dificil e promulgar apenas as leis necessanas e

permanecer sernpre fiel ao principio verdadeiramen-

te constitucional da sociedade, 0 de se proteger do

furor de governar, a mais funesta doenca dos gover-

nos modernos.

Sobre 0ponto de partida do individuo em sua inefa-

vel singularidade e variedade, 0 pensamento de Hum-

boldt e seeo e conciso. 0 verdadeiro objetivo do homem,

afirma, e a maximo desenvolvimento de suas faculdades.

Em vista do alcance desse fim, a maxima fundamental

que deve guiar 0Estado ideal e a seguinte:

ohomern verdadeiramente razoavel nao pode dese-

jar outro Estado que nao aquele no qual cada indivi-

duo possa gozar da rnais ilimitada liberdade de de-

senvolver a si mesmo, em sua singularidade incon-

fundivel, e a natureza Iisica nao receba das maos

do homem outra forma que nao a que cada indivi-duo, na medida de suas carencias e inclinacoes, a

ela pode dar par seu livre-arbitrio, com as unicas

restricoes que derivam dos limites de suas Iorcas e

de seu direito."

A conseqiiencia que Humboldt extrai dessa premis-

sa e que a Estado nao deve se imiscuir "na esfera dos

(11) W.von Humboldt, Ideen zu einem "Versuch die Grenzen desStaates zu bestimrnen" (1792) (trad. it., Idee per un "Saggio sui Limiti dell'

Azione dello State", F. Serra (org.), Bolonha, I IMulino, 1961, p. 62).

LIBERALISMO E DEMOCRACIA2 S

negocios privados dos cidadaos, salvo se esses negocios se

traduzirem imediatamente numa ofens a ao direito de urn

por ~~rte ~e outro" .12 Ao lado da subversao das relacoes

tradicionais entre individuos e Estado, proprio da con-ce~c;a~ organic a, ocorre tarnbem, com respeito a essas

~rop:las relacoes, a subversao dos nexos entre meio e

fim:\,§egundo Humboldt, 0 Estado nao e um Iim em si

Il1csm~, mas apenas urn meio "para a formacao do ho-

mcm". ~e 0Estado tern urn fim ultimo, esse e 0 de "ele-var os cldadaos ao ponto de poderem eles perseguir es-

~)o,~taneamente 0 fim do Estado, movidos pela unica

ideia da vantagem que a organizacao estatal a eles ofere-

ce pa~a 0 alcance dos proprios objetivos individuals". 13

Repetidas vezes se afirma no ensaio que fim do Estado eupenas a "seguranca", entendida como a "certeza da li-

berdade no am bi to da lei" .14

(12) Trad. cit., p. 63.

(13) Trad. cit., p. 99.

(14) Trad. cit., p. 113.

 

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5. 0 antagonismo e

fecundo

Ao lado do tema da liberdade individual como fim

unico do Estado e do tema do Estado como meio e nao

como fim em si mesmo, 0 escrito de Humboldt apresenta

urn outro motivo de grande interesse para a reconstrucao

da doutrina liberal: 0 elogio da "variedade". Numa cer-

rada critic a ao Estado providencial, ao Estado que de-

monstra excessiva solicitude para com 0 "bem-estar" dos

cidadaos (uma critic a que prefigura a analoga deminciados presumiveis equivocos do Estado assistencial por

parte do neoliberalismo conternporaneo), Humboldt ex-

plica que a intervencao do governo para alem das tarefas

que lhe cabem - relativas a . ordem extern a e it ordem

intern a - terrnina por criar na sociedade comportamen-

tos uniformes que sufocam a natural variedade dos cara-

teres e das disposicoes, Aquilo a que os governos tendem,

a despeito dos individuos, sao 0 bem-estar e a calma:

"Mas 0 que 0 homem persegue e deve perseguir a algocompletamente diverso, e variedade e atividade" _ IS Quem

(15) Trad. cit., p. 6S.

LIBERALISMO E DEMOCRACIA 27

pens a diversamente suscita a fundada suspeita de consi-

derar os homens como aut6matos. "De decenio em dece-

nio" - anota (mas 0 que nao teria afirmado diante da

"cela de aco" do Estado burocratico de hoje") - "au-mentam, na maior parte dos Estados, 0 pessoal dos fun-

cionarios e os arquivos, enquanto diminui a liberdade

dos suditos" .16 Conc1ui: "Desconsideram-se assim os ho-

~nens... para ocuparern-se das coisas; as energias para

interessarern-se pelos resultados" Y

Desse modo, a defesa do individuo contra a tentacao

do Estado de prover ao seu bem-estar golpeia nao apenas

a csfera dos interesses, mas tambem a esfera moral; hoje

cstamos demasiadamente influenciados pela critic a ex-

clusivamente econ6mica ao Wei/are State para nos dar-

1l10S conta de que 0 primeiro liberalismo nasce com uma

forte carga etica, com a critica do paternalismo, tendo a

sua principal razao de ser na defesa da autonomia da

pessoa humana. Sob esse aspecto, Humboldt vincula-se

a Kant, este e Humboldt a Constant. Mesmo em Smith,

que de resto antes de ser urn economista foi urn moralis-

la, a liberdade tern urn valor moral.

Ao tema da variedade individual contraposta it un i-

Iormidade estatal vincula-se 0outro tema caracteristico eiuovador do pensamento liberal: a fecundidade do anta-

W mismo. Atradicional concepcao organic a da sociedade

('....ima a harmonia, a concordia mesmo que forcada, a

subordinacao regulada e controlada das partes ao todo,

cundcnando 0 conflito como elemento de desordem e de

desagrcgacao social. Ao contrario disso, em todas as cor-

rcutos de pensamento que se contrapoem ao organicismo

nfirma-se a ideia de que 0 contraste entre individuos e

grupos em concorrencia entre si (inclusive entre Estados,

(16) Trad. cit.. p. 73.

(17) Trad. cit., p. 74.

 

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I

I

, I

II

II I

1 \ 1 1

II I

j'

28 NORBERTO BOBBIO

don de 0elogio da guerra como formadora da virtude dos

povos) e benefice e e uma condicao necessaria do pro-

gresso tecnico e moral da humanidade, 0 qual apenas se

explicita na contraposicao de opinioes e de interesses di-

versos, desde que desenvolvida essa contraposicao no de-

bate das ideias para a busca da verdade, na competicao

economic a para 0alcance do maior bem-estar social, na

luta politica para a selecao dos melhores governantes.

Compreende-se assim como e que, partindo dessa con-

cepcao geral do homem e da sua hist6ria, a liberdade

individual entendida como emancipacao dos vinculos

que a tradicao, 0 costume, as autoridades sacras e pro-

Ianas impuseram aos individuos no decorrer dos seculos,

torne-se uma condicao necessaria para permitir (junta-mente com a expressao da "variedade" dos carateres in-

viduais) 0conflito e, no conflito, ° aperfeicoamento reci-

proco.

No ensaio Ideia de uma Historia Universal de um

Ponto de Vista Cosmopolita (1784), Kant expressou com

o maximo despreendimento a conviccao de que 0 anta-

gonismo e "0meio de que se serve a natureza para reali-

zar 0 desenvolvimento de todas as suas disposicoes", 18

entendendo por "antagonismo" a tendencia do homemde satisfazer os pr6prios interesses em concorrencia com

os interesses de todos os demais: uma tendencia que exci-

ta todas as suas energias, 0 induz a veneer a inclinacao apreguica e a conquistar urn posta entre QS seus cons6cios.

Sobre 0 significado nao apenas economico mas moral da

sociedade antagonica contraposta a sociedade harmoni-

ca, Kant formula urn juizo que pode muito bern ser con-

siderado como 0micleo essencial do pensamento liberal:

(18) E. Kant, Idee zu einer allgemeinen Geschichte in weltbiirgerlicher

Absicht, 1784 (trad. it., Idea di una Storia Universale dal Punto di Vista Cos-

mopolitico , in Scritti Politici, cit ., p. 127) .

LlBERALlSMO E DEMOCRACIA 29

"Scm a insocialidade, todos os talentos permanece-

riam fechados numa vida pastoral arcadica ... ; sem ela os

hornens, tal como as boas ovelhas conduzidas ao pasto-

reio, nao dariam valor algum a existencia". E do enun-

dado desse juizo categ6rico extrai 0 seguinte hino a sa-

piencia da criacao:

Devemos, entao, dar gracas a natureza pela intra-

tabilidade que gera, pela invejosa ernulacao da vai-

dade, pela cupidez jamais satisfeira de possuir e de

dominar! Sem isso, todas as excelentes disposicoes

naturais intrinsecas a humanidade permaneceriam

cternamente adormecidas sem qualquer desenvol-

vimento.v

Como teoria do Estado limitado, 0 liberalismo con-

trupbe 0Estado de dire ito ao Estado absoluto e 0Estado

uunimo ao Estadomaximo. Atraves da teoria do pro-

Mrcssomediante 0 antagonismo, entra ern campo a con-

tI'llposicao entre os livres Estados europeus e 0 despotis-

1110 oriental. A categoria do despotismo e antiga e sempre

Irwc, alem do seu significado analitico, urn forte valor

pol(·lllico. Corn a expansao do pensamento liberal, a elaM' ncrcsccnta lima ulterior conotacao negativa: precis a-

uu-utc em de~orrencia da submissao geral - pela qual,

1'011111j[l havia dito Maquiavel, 0 principado do Turco ej.!lIwrllado "por urn principe e todos os outros sao ser-

vos" ,'Il ou entao, como dira Hegel (17'70-1831), nos rei-

!IllS dcspoticos do Oriente "apenas urn e livre"?' -, os

(19) 'I'rad. cit., p. 128.

(20) N. Machiavelli, II Principe, cap. 4, in Tutte le Opere, F. Flora

(," g.). Milao, Mondadori, 1949, vol. 1, p. 14.

(21) G. W. F. Hegel, Vorlesungen iiber die Philosophie der Geschichte

lit "d. it., Lezione sul/a Filosofia della Storia, Florenca, La Nuova I tal ia , 1947,

, , , I . I. p. 158).-

 

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]() NORBERTO BOBBIO

Estados despoticos sao estacionarios e imoveis, nao es-

tan do sujeitos a lei do progresso indefinido que vale ape-

nas para a Europa civil. Desse ponto de vista, 0 Estado

liberal converte-se, mais que numa categoria politica ge-

ral, tambem num criterio de interpretacao historica.

6. Democracia dos

,antigos e dos modernos

Como teoria do Estado (e tambem como chave de

lnterpretacao da hist6ria), 0 liberalismo e moderno, en-

quanta a democracia, como forma de governo, e antiga.

() pcnsamento politico grego nos transmitiu uma celebre

Ilpologia das formas de governo das quais uma e a demo-

cracia, definida como governo dos muitos, dos mais, da

muioria, ou dos pobres (mas onde os pobres tomam a

diuulcira

esinal de que 0 poder pertence ao plethos ,

aIIIIINsa), em suma, segundo a propria composicao da pa-

IIIVI'Ol, como governo do povo, em contraposicao ao go-

VI'IIIII de uns poucos. Seja 0 que for que se diga, a verda-

til' (,que, nao obstante 0 transcorrer dos seculos e todas

liS discussoes que se travaram em torno da diversidade da

deuiocracia dos antigos com respeito a democracia dos

uiodcrnos, 0 significado descritivo geral do termo nao se

ullerou , embora se altere, conforme os tempos e as dou-

trinas, 0 seu significado valorativo, segundo 0 qual 0 go-

vcrno do povo pode ser preferivel ao governo de urn ou de

1 )( iucos e vice-versa. 0 que se considera que foi alterado

1 1 < 1 passagem da democracia dos antigos a democracia

 

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32NORBERTO BOBBIO

dos modernos, ao menos no julgamento dos que veem

como iitil tal contraposi~ao, nao e 0titular do poder poll-

tico, que e sempre 0 "povo", entendido como 0 conjunto

dos cidadaos a que cabe em ultima instancia0

direito detomar as decisoes coletivas, mas 0modo (mais ou menos

amplo) de exercer esse direito: nos mesmos anos em que,

atraves das Declara~oes dos Direitos, nasce 0 Estado

constitucional moderno, os autores do Federalista con-

trapoem a democracia direta dos antigos e das cidades

medievais it democracia representativa, :que e 0 unico

governo popular possivel num grande Estado. Hamiltonse exprime do seguinte modo:

E impossiveller a respeito das pequenas republic as

daGrecia e da Italia sem provar sentimentos de hor-

ror e desgosto pelas agita~oes a que estavam elas

submetidas, e pela rapida sucessao de revolu~oes

que as mantinham num estado de perpetua incerte-

za entre os estadios extremos da tirania e da anar-quia. 22

Madison the faz eco:

odefensor de governos populares jamais se encon-

trara tao embara~ado em considerar 0 carater e 0

destino deles como quando apreciar a facilidade

com que degeneram aquelas formas corruptas do vi-ver politico. 23

(22) A. Hamilton, J. Jay e J. Madison, The Federalist (1788) (trad. it.,II Federalista, M. D'Addie e G. Negri (orgs.), Bolonha, II Mulino, 1980,p.83).

(23) Trad. cit., p. 89.

L1BERALISMO E DEMOCRACIA 33

Afirmar que 0 defeito da democracia citadina Iosse

() agitar-se das Iaccoes era, na realidade, urn pretexto e

refletia 0 antigo e sempre recorrente desprezo pelo povo

por parte dos grupos oligarquicos: as divisoes entre par-

tes contrapostas iriam se reproduzir sob a forma de par-

lidos nas assembleias dos representantes. 0 que, ao con-

trario, constituia a unica e solida razao da democracia

representativa eram objetivamente as grandes dimensoes

dos Estados modernos, a comecar da propria uniao dastreze colonias inglesas, a respeito de cuja constituicao

os escritores do Federalista estavam discutindo. Havia

reconhecido isso 0 proprio Rousseau, admirador apai-

xonado dos antigos que tinha tornado a defesa da de-

mocracia direta sustentando que "a soberania nao pode

scr representada" e, portanto, "0povo ingles ere ser

livre, mas se equivoca redondamente; so 0 e durante a

eleicao dos membros do parlamento; tao logo sao esses

clcitos, ele volta a ser escravo, nao e mais nada" . 2 , 4 Rous-

M'all, entretanto, tambem estava convencido de que

"IIlila verdadeira democracia jamais existiu nem existi-

Ii,", puis exige, acima de tudo, urn Estado muito peque-

IH1, "110 qual seja Iacil ao povo se reunir"; em segundo

Iligar, "uma grande simplicidade de costumes"; alem do

IIIl1is, "urna grande igualdade de condicoes e fortunas";

pOI' rim, "pouco ou nada de luxo". Donde era levado a

(',,"clllir: "Se existisse urn povo de deuses, seria gover-

undo democraticamente. Mas urn governo assim perfeito

11:,06 feito para os homens", 25 Tanto os autores do Fede-ralista quanta os constituintes franceses estavam conven-

cidos de que 0 unico governo democratico adequado a

1 1 1 1 1 povo de homens era a democracia representativa,

aquela forma de governo em que 0 povo nao toma ele

(24) 1. J. Rousseau, nil Contra! Social, Il, 15(trad. cit., p. 802).

 

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34 NORBERTO BOBBIO

mesmo as decisoes que the dizem respeito, mas elege seus

proprios representantes, que devem por ele decidir. Mas

nao pensavam realmente que instituindo uma democra-

cia representativa acabariam por enfraquecer 0principio

do governo popular. Prova disso e que a primeira consti-tuicao escrita dos estados da America do Norte, a da Vir-

ginia (1776) - mas a mesma formula se encontra tam-

bern nas constituicoes sucessivas -, diz: "Todo 0 poder

repousa no povo e, em conseqiiencia, dele deriva; os ma-

gistrados sao os seus fiduciaries e servidores, e durante

todo 0 tempo responsaveis perante e1e"; eo artigo 3? da

Declaracao de 1789 repete: "0 principio de toda sobera-

nia reside essencialmente na nacao. Nenhum corpo, ne-

nhum individuo pode exercer uma autoridade que naoemane expressamente da nacao" . A parte 0fato de que 0

exercicio direto do poder de decisao por parte dos cida-

daos nao e incompativel com 0 exercicio indireto atraves

de representanteseleitos, como demonstra a existencia

de constituicoes, como a italian a vigente (que previu 0

instituto do referendum popular, embora apenas com

eficacia ab-rogativa), tanto a democracia diretaquanto a

indireta descendem do mesmo principio da soberania

popular, apesar de se distinguirem pelas modalidades e

pelas form as com que essa soberania e exercida.De resto, a democracia representativa tambem nas-

ccu da conviccao de que os representantes eleitos pelos

cidadaos estariam em condicoes de avaliar quais seriam

os interesses gerais melhor do que os proprios cidadaos,

fechados demais na contemplacao de seus proprios inte-

resses particulares; portanto, a democracia indireta seria

mais adequada precisamente para 0 alcance dos fins a

que fora predispostaa soberania popular. Tambem sob

esse aspecto a contraposicao entre democracia dos anti-

gos e democracia dos modernos termina por ser desvian-

te, na medida em que a segunda se apresenta, ou e apre-

LIBERALISMO E DEMOCRACIA 35

sentada, como mais perfeita, com respeito ao fim, do que

a primeira. Para Madison, a delegacao da acao do go-

verno a urn pequeno mimero de cidadaos de provada sa-

bedoria torn aria "menos provavel 0 sacrificio do bern do

pais a consideracoes particularistas e transitorias" .26 Masisso desde que 0deputado, uma vez eleito, se comportas-

se nao como urn homem de confianca dos eleitores que 0

tinham posto no parlamento, mas como urn representan-

Ie da nacao inteira. Para que a democracia fosse em sen-

lido proprio rep resentativa , era necessario que fosse ex-

cluido 0mandato vinculatorio do eleitor para com 0 elei-

to, caracteristico do Estado de estamentos, no qual os

cstamentos, as corporacoes, os corpos coletivos transmi-

Ham ao soberano, atraves de seus delegados, as suas rei-vindicacoes particulares. Tambem nessa materia 0 ensi-

namento vinha da Inglaterra. Burke havia dito:

Exprimir uma opiniao e urn direito de todo homem;

ados eleitores e uma opiniao que pesa e deve ser res-

peitada, e urn representante precisa estar sempre

pronto a escuta-la ... Mas instrucoes imperativas,

mandatos aos quais 0membro das AssemblCias deve

cxpressa e cegamente obedecer, tais coisas sao com-

plctamente estranhas as leis dessa terra. 27

Para tornar inclusive formalmente vinculatoria a

M~para<:fLO entre representante e representado, os consti-

IlIillles Iranceses, seguindo a opiniao eficazmente expos-

II pOI" Sieyes (1748-1836), introduziram na constituicao

,I" 1 791 a proibicao de mandato imperativo com 0 art. 7?,

II.. se<;. III, do cap. I, do titulo II, que prescreve: "Os

rcprcscntantes nomeados nos departamentos nao serao

(26) The Federalist, cit., p. 96.

(27) Edmund Burke , Speech at the Conclusion of the Poll on his Being

/ I" . .lured Duly Elected, in The Works. J. Dodsley , 1792, vol . 2, p. 15.

 

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36 NORBERTO BOBBIO

representantes de urn departamento particular, mas da

nacao inteira, e nao podera ser dado a eles nenhum man-

dato" .28 Desde entao, a proibicao feita aos representantes

de receber urn mandato vinculatorio da parte de seus

e1eitores tornar-se-a urn principio essencial ao funciona-

mento do sistema parlamentar, 0 qual, exatamente em

virtu de desse principio, distingue-se do velho Estado de

estamentos em que vigor a 0 principio oposto da repre-

sentacao corporativa fundada sobre 0vinculo de manda-

to do delegado que e institucionalmente chamado a de-fender os interesses da corporacao, disso nao se podendo

distanciar sob pena de perder 0 dire ito de representacao.

A dissolucao do Estado de estamento liberta 0 individuo

na sua singularidade e na sua autonomia: e ao individuoenquanto tal, nao ao membro de uma corporacao, que

cabe 0 direito de eleger os representantes da nacao - os

quais sao cham ados pelos individuos singulares para re-

presentar a nacao em seu conjunto e devem, portanto,

desenvolver sua acao e tomar suas decisoes sem qualquervinculo de mandato. Se por dernocracia modern a enten-

de-se a democracia representativa, e se a democracia re-

presentativa e inerente a desvinculacao do representante

da nacao com respeito ao singular individuo representa-

do e aos seus interesses particularistas, entao a democra-

cia moderna pressupoe a atomizacao da nacao e a sua

recomposicao num nivel mais elevado e ao mesmo tempo

mais restrito que e 0 das assembleias parlamentares.

Mas tal processo de atomizacao e 0 mesmo processo do

qual nasceu a concepcao do Estado liberal, cujo fund a-

mento deve ser buscado, como se disse, na afirmacao dos

direitos naturais e inviolaveis do individuo.

(28) Para urn comentario sobre 0tema, ver P < Violante, La spazio della

Rormresentanza. I. Francia 1788·1789, Palermo, Renzo Mazzone Editore,

7. Democracia eigualdade

o liberalismo dos modernos e a democracia dos an-

Iig()s foram frequentemente considerados antiteticos, no

scntido deque os dernocratas da antigiridade nao conhe-

Ci:1Il1 nern a doutrina dos direitos naturais nem 0 dever

(1" I '>.;tadode limitar a propria atividade ao minirno ne-

('l'~:;:lri() para a sobrevivencia da comunidade. De outra

!lllrk,Los modernos liberais nasceram exprimindo uma

profunda desconfianca para com toda forma de governo

popular, tendo sustentado e defendido 0 sufragio restrito

duran te todo 0 area do seculo XIX e tambem posterior-

1111'111( ' . 1 £ 1 a democracia modern a nao so nao e incompa-

IIVI'i ('(-;i"n0 liberalismo como pode dele ser considerada,

Nub ruu ilos aspectos e ao menos ate urn certo ponto, urn

natural prosseguimento.

Corn uma condicao: que se tome 0 termo "demo-

l'l";tl'ia" em seu significado juridico-institucional e nao no

dico, ou seja, num significado mais procedimental do

que substancial. E inegavel que historicamente "demo-vracia" teve dois significados prevalecentes, ao menosna

origem, conforme se ponha em maior evidencia 0conjun-

to das regras cuja observancia e necessaria para que 0

 

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38 NORBERTO BOBBIO

poder politico .seja efetivamente distribuido entre a maior

parte dos cidadaos, as assim chamadas regras do [ogo,

ou 0 ideal em que um governo democratico deveria se

inspirar, que e 0 da igualdade. A base dessa distincao

costuma-se distinguir a democracia formal da substan-

cial, ou, atraves de uma outra conhecida forrnulacao, a

democracia como governo do povo .da democracia como

governo para 0povo. Nao e 0caso, aqui, 'de repetir ainda

uma vez que nessas duas acepcces a palavra "democra-

cia" e usada em dois significados diversos 0 suficiente

para produzirem imiteis e interminaveis discussoes,

como a dedicada a saber se e mais democratico um regi-

me em que a democracia formal nao se faz acompanharde uma ampla igualdade ou 0regime em que uma ampla

igualdade e obtida atraves de um governo desp6tico.

Desde quena Ionga hist6ria da teoria democratica se

combinam elementos de metodo e motivos ideais, que

apenas se encontram fundidos na teoriarousseauniana,

na qual 0 ideal fortemente igualitario que a move s6 en-

contra realizacao na formacao da vontade geral, ambos

os significados sao historicamente legitimos, Mas a legi-

timidade historica de seu usa nao permite nenhuma ila-

<;aosobre a eventual presenca de elementos conotativoscomuns.

Dos dois significados, eo primeiro que esta histori-

camente ligado a formacao do Estado liberal. No caso de

se assumir 0segundo, 0problema das relacoes entre libe-

ralismo e democracia torna-se muito complexo, tendo ja

dado lugar, e ha motivos para crer que continuara a dar

lugar, a debates inconclusivos. De fato, nesse modo 0

problema das relacoes entre liberalismo e democracia se

resolve no dificil problema das relacoesentre liberdade eigualdade, um problema que pressupos uma resposta

univoca a essas duas perguntas: "Qualliberdade? Qualigualdade?" .

LIBERALISMO E DEMOCRACIA 39." ..

~Em seus significados mais amplos, quando se esten-

dum a esfera economica respectivamente 0 direito a li-

bcrdade e 0direito a igualdade, como ocorre nas doutrinasopostas doliberismo* e do igualitarismo, liberdade e igual-

dude sao valores antiteticos, no sentido de que nao se

rode realizar plenamente um semlimitar fortementeo

oiuro: uma sociedade liberal-liberista e inevitavelmente

I1l1o-iguaHt£uia, assim como lima sociedade igualitaria einevitavelmente nao-liberaC'J_,ibertarismo e igualitarismo

Iundam suas raizes em concep<;oes do homem e da socie-

dude profundamente diversas: individualista, conflitua-

Iista e pluralista a liberal; totalizante, harmonica e mo-

nista a igualitaria.!'J?ara 0 liberal, 0 fim principal e a ex-

punsao da personalidade individual, mesmo se 0 desen-

volvimento da personalidade mais rica e dotada puder se

nfirrnar em detrimento do desenvolvimento da persona-

lldade mais pobre e menos dotada; para 0 igualitario, 0

fill! principal eo desenvolvimento da comunidade em seu

conj I I 1 1to, mesmo que ao custo de diminuir a esfera deIlIwrdade dos singulares,

\ A {mica forma de igualdade que nao s6 e compativel( '0111 II liberdade tal como entendida pela doutrina libe-rul, max que e inclusive por essa solicitada, e a igualdadelilt lihcrdade: 0 que significa que cada urn deve gozar de

1 1 1 1 1 1 / 1 liberdade quanto compativel com a liberdade dos

0111 ros, nodendo fazer tudo 0 que nao of end a a igual li-

h("! 'dade dos outros:lj>raticamentr desde as origens do

ENtudo liberal essa forma de igualdade inspira dois prin-

dpills fundamentais, que sao enunciados em normas

l'ollstitucionais: a) a igualdade perante a lei; b) a igual-

( ...) Como ficara claro ao longo do texto, e particularmente no capi-

1111"Ih, infra, em italiano Ia la-se em "liberismo" para designar sobretudo 0

unlverso do liberalismo economico, do livre-cambismo, ficando 0 termo "libe-

rulismo" reservado para 0universo do Iiberalismo polit ico. (N. T.)

 

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40 NORBERTO BOBBIO

-!

dade dos direitos. \0 prirneiro pode ser encontrado nas

constituicoes fran~esas de 1791, 1793 e 1795; e depois

gradativarnente no art. 10 da Carta de 1814" no art. 6°

da constituicao belga de 1830, no art. 24 do estatuto al-bertino (1848). De igual dimensao e considerada a XIV

Ernenda da Constituicao dos Estados Unidos, que deseja

assegurada a cada cidadao "a igual protecao das leis". 0

segundo encontra-se afirrnado solenemente no art. 1? da

Declaracao dos Direitos do Hornern e do Cidadao de

1789: "Os hornens nascem e devem permanecer livres e

iguais em seus direitos". Ambos os principios atravessarn

toda a historia do constitucionalismo moderno e estao

conjuntamente expressos no art. 3?, primeiro paragrafo,

da constituicao italiana vigente: "Todos os cidadaos tern

identica dignidade social e sao iguais perante a lei".

o principio da igualdade perante a lei pode ser in-

terpretado restritivamente como uma diversa Iormulacao

do principio que circula em todos os tribunais: "A lei eigual para todos" Nesse senti do significa simplesmente

que 0juiz deve ser imparcial na aplicacao da lei e, como

tal, faz parte integrante dos remedies constitutivos e

aplicativos do Estado de direito, sendo assim inerente ao

Estado liberal pela j:i mencionada identificacao do Esta-

do liberal com 0Estado de direito. Extensivamente isso

significa que todos os cidadaos devem ser submetidos as

mesmas leis e devem, portanto, ser suprimidas e nao re-

tomadas as leis especificas das singulares ordens ou es-

tados: 0 principio e igualitario porque elimina uma dis-

criminacao precedente. No preambulo da constituicao de

1791, le-se que os constituintes desejaram abolir "irre-

vogavelmente as instituicoes que feriam a liberdade e a

igualdade dos direitos", e entre tais instituicoes sao in-cluidas as mais caracteristicas instituicoes feudais. 0

preambulo se encerra com uma frase: "Nao existem mais

para parte alguma da nacao, nem para algum individuo,

LIBERALISMO E DEMOCRACIA 41

qualquer privilegio ou excecao ao direito comum de to-

dos os franceses", que ilustra a contrario, como melhor

na o se poderia desejar, 0 significado do principio da

lgualdade diante da lei como recusa da sociedade por

estamentos e, assim, ainda uma vez, como afirmacao dasociedade em que os sujeitos originarios sao apenas os

lndividuos uti singuli.

Quanto a igualdade nos ou dos direitos, ela repre-

scuta urn momento ulterior na equalizacao dos indivi-

duos com respeito a igualdade perante a lei entendida

como exclusao das discriminacoes da sociedade por es-

tumcntos: significa 0 igual gozo por parte dos cidadaos

de alguns direitos fundamentais constitucionalmente ga-

ruutidos. Enquanto a igualdade perante a lei pode serintcrpretada como uma forma especifica e historic amen-

to deterrninada de igualdade juridica (por exemplo, no

dlreito de todos de ter acesso a jurisdicao comum ou aos

principais cargos civis e militares, independentemente do

nnsci rnento) , a igualdade nos direitos compreeende a

lMlialdade em todos os direitos fundamentais enumera-

! lo s n urn a constituicao, tanto que podem ser definidos

como fundamentals aqueles, e somente aqueles, que

dcvcm ser gozados por todos os cidadaos sem discrirni-

l Iu,, '( ')es derivadas da classe social, do sexo, da religiao, da

1 ' 1 1 , , ' 1 1 , etc. 0 elenco dos direitos fundamentais varia de

(-po('a para epoca, de povo para povo, e por isso nao se

pwk fixar urn elenco de uma vez por todas: pode-se ape-

IIiIS diver que sao fundamentais os direitos que numa de-

[orutiuada constituicao sao atribuidos a todos os cida-

dflw; indistintamente, em suma, aqueles diante dos quais

1 1 ) ( los (IS cidadaos sao iguais,

 

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L1BERAlISM() I', DEMOCRACIA 43

8. 0 encontro entre

Iiberalismo edemocracla

que e, como se viu, a soberania popular. 0 unico modo

de tornar possivel 0 exercicio da soberania popular e a

atribuicao ao maior numero de cidadaos do dire i to de

participar direta e indiretamente na tomada das decisoes

coletivas; em outras palavras, e a maior extensao dos di-

reitos politicos ate 0 limite ultimo do sufragio universal

tnasculino e Ieminino, salvo 0 limite da idade (que em

geral coincide com a maioridade). Embora muitos escri-

(ores liberais tenham contestado a oportunidade da ex-

tensao do sufragio e no momenta da formacao do Estado

liberal a participacao no va to fosse consentida apenas

<lOS proprietaries, a e que 0 sufragio universal

na o e em linha de contrario nem ao Estado de

direito nem ao Estado minimo.Ao contrario, deve-se di-

zer que se foi Iorrnando uma tal interdependencia entre

lim C outro que, enquanto no inicio puderam se Iormar

I ':stados liberais que nao eram democraticos (a nao ser

nas dcclaracoes de principio), hoje Estados liberais nao-

dcmocraticos nao mais concebiveis, nem Estados

dcmocraticos que nao Iossern tambem liberais. Existem,

em surna, boas razoes para crer: a) que hoje 0 metodo

dcmocratico seja necessario para a salvaguarda dos direi-

los Iuudamentais da pessoa, que estao na base do Estado

direitos seja necessa-ria pard 0 correto do metodo democra-

IH'I\.

Com respeito ao primeiro ponto deve-se observar 0

IIII!' St'!',lIC: a maior garantia de que os direitos de liber-

datil' sl'jam protegidos contra a tendencia dos govern an-

k:, dt' limita-los e los esta na possibilidade que

(I. ('jrbdilos ten ham defends-los contra os eventuais

uhusos , 0 melhor remedio contra 0 abuso de poder sob

qualquer forma - mesmo que "melhor" nao queirarc.rlmente dizer nem otimo nem infalivel -- e a partici-

p,,\~l() direta au dos cidadaos, do maior mimero

Nenhum dos principios de igualdade, acima ilustra-

dos, vinculados ao surgimento do Estado liberal, tern a

ver com 0 igualitarismo democratico, 0 qual se estende

ao ponto de perseguir 0 ideal de uma certa equalizacao

economica, estranha a tradicao do pensamento liberal,

Este se projetou ate a aceitacao, alem da igualdade juri-

dica, da igualdade das oportunidades, que preve a equa-

lizacao dos pontos de partida, mas nao dos pontos de

chegadaf Com respeito, portanto, aos varios significados

possiveis de igualdade, liberalismo e democracia estaodestinados a nao se encontrar, 0 que explica, entre ou-

tras coisas, a contraposicao historica entre eles durante

uma longa fase. Em que senti do , entao, a democracia

pode ser considerada como 0prosseguimento e 0 aperiei-

coamento do Estado liberal, ao ponto mesmo de justifi-

car 0 usa da expressao "liberal-democracia" para desig-

nar urn certo mimero de regimes atuais? Nao s6 0 libera-

lismoe compativel com a democracia, mas a democracia

pode ser considerada como

°natural desenvolvimento do

Estado liberal apenas se tomada nao pelo lade de seu

ideal igualitario, mas pelo lado da sua formula politica,

 

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44 NORBERTO BOBBIO

de cidadaos, na formacao das leis. Sob esse aspecto, os

direitos politicos Sao urn complemento natural dos direi-

tos de liberdade e dos direitos civis, ou, para usar as co-

nhecidas expressoes tornadas celebres por Jellinek (1851

-1911), os iura activae civitatis constituem a melhor sal-

vaguarda que num regime nao Iundado sobre a sobera-

nia popular depende unieamente do direito natural de

resistencia a opressao,Com respeito ao segundo ponto, que se refere nao

mais a necessidade da demoeracia para a sobrevivencia

do Estado liberal, mas, ao contrario, ao reconhecimento

dos direitos inviolaveis da pessoa sobre os quais se funda

o Estado liberal para 0born funeionamcnto da democra-

cia, deve-se observar que a participacao no voto pode ser

considerada como correto e eficaz exercicio de urn poderpolitico, isto e , 0 poder de influenciar a formacao das

decisoes coletivas, apenas caso se descnvolva livremente,

quer dizer, apenas se 0 individuo se dirige as urn as para

expressar 0 proprio voto goza das liberdades de opiniao,

de imprensa, de reuniao, de associacao, de todas as li-

berdades que constituem a essencia do Estado liberal, e

que enquanto tais passam por pressupostos necessaries

para que a participacao seja real enao ficticia.

Ideais liberais e metodo democratico vier am gra-

dualmente secombinando num modo tal que, se e ver-

dade que os direitos de liberdade foram desde 0 inicio a

condicao necessaria para a direta aplicacao das regras do

jogo democratico, e igualmente verdadeiro que, em se-

guida, 0 desenvolvimento da democracia se tornou 0

principal instrumento para a defesa dos direitos de liber-

dade. Hoje apenas os Estados nascidos das revolucoes

liberais sao democraticos c apcnas os listados democra-

ticos protegem os direilos do homcm: todos os Estados

autoritarios do nuuulo sao ;H) IllesIII0 tempo antiliberaise antidemocra InIS.

9. Individualismo e• •orgamcismo

Esse nexo reciproco entre liberalismo e democracia

e possivel porque ambos tern urn ponto de partida co-

mum: 0 individuo. Ambos repousam sobre uma concep-

cao individualista da sociedade. Toda a historia do pen-

samento politico esta dominada por uma grande dicoto-

mia: organicismo (holismo) e individualismo (ato-

mismo). Mesmo que 0 movimento nao seja retilineo,

pode-se dizer com uma certa aproximacao que 0 organi-

cismoe antigo, e 0 individualismo moderno (ou pelo me-

nos dele se pode fazer comecar a teo ria do Estado mo-

derno): uma contraposicao historicamente mais correta

que a proposta por Constant entre democracia (antiga) e

liberalismo (moderno). Enquanto 0 organicismo consi-

dera 0Estado como urn grande corpo composto de partes

que concorrem - cada uma segundo sua propria desti-

nacao e em relacao de interdependencia com todas as

demais - para a vida do todo, e portanto nao atribui

nenhuma autonomia aos individuos uti singuli, 0 indivi-dualismo considera 0Estado como urn conjunto de indi-

viduos e como 0 resultado da atividade deles e das rela-

\" " . . . ." . " " " . " " " ' ". " ; L I " ' " " ' . - - - - - , I I U U & i i l l . l ll l i l i U i l iU ~ l l i l i I U I1 1 . l i l l • • • • • • • • •

 

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46 NORBERTO BOBBIO

coes POI' des estabelecidas entre si. 0 principio constitu-

tivo do organicismo foi formulado de uma vez para sem-

pre por A ristoteles, nas primeiras paginas da Politica:

"0 todo precede necessariamente a parte, com 0 que,

quebrado 0 todo, nao havera mais nem pes nem maos",

com a conseqiiencia de que "a cidade e por natureza

(atente-se: "por natureza") anterior ao individuo" .29 Para

se encontrar uma cornpleta e perfeitamente consciente

teoria individualista e preciso chegar a Hobbes, que par-

te da hipotese de urn est ado de natureza em que existem

apenas individuos separados uns dos outros por suas

paixoes e por seus interesses contrapostos, individuos

Iorcados a se unir de comum acordo numa sociedade po-

Utica para Iugir da destruicao reciproca, Essa reviravolta

no ponto de partida tern conseqiicncias decisivas para 0

nascimento do pensamento liberal e dernocratico moder-

no. No que diz respeito ao liberalismo, uma coerente

concepcao organica, que considera 0Estado como uma

totalidade anterior e superior as suas partes, nao pode

conceder nenhum espaco a esferas de acao independen-

tes do todo, nao pode reconhecer uma distincao entre

esfera privada e esfera publica, nem justificar a subtra-

.;ao dos interesses individuais, satisfeitos nas relacoes

com outros individuos (0mercado), ao interesse publico.No que diz respeito a democracia , que se funda sobre uma

concepcao ascendente do poder, o organicismo, fundan-

do-se ao contrario sobre uma concepcao descendente, se

inspira em modelos autocraticos de governo: dificil ima-

ginar urn organismo em que sejam os membros a co-

mandar e nao a cabeca,

Resta dizer que, ernbora xcndo 0 liberalismo e a de-

mocracia conccpcoes irulividualistas, 0 individuo do pri-

(2'1) /\,i·.I"klo--_. I', .{,I ••. , I '-. II II,,,,, II.,(. i\ _Viall" (org.), Turim,

U te l, l q_ ', .~ , \ '. ' ,· 11

IIII

, I I II. .

LlBERAUSMO l'DLMOCRAClA 47

meiro nao eo mesmo individuo da segunda, ou para di-

zer melhor, 0 interesse individual que 0primeiro se pro-

poe a proteger nao e 0 protegido pela segunda. 0 que

pode servir para explicar, ainda uma vez, porque e que a

cornbinacao entre liberalismo e democracia nao apenas e

possivel, como tam bern necessaria.

Nenhuma concepcao individualista da sociedade

prescinde do fato de que 0 homem e urn ser social, nem

considera 0 individuo isolado. 0 individualismo nao deve

ser confundido com 0 anarquismo filos6fico a Stirner

(1806-1856). Mas as relacoes do individuo com a socie-

dade sao vistas pelo liberalismo e pela democracia de

modo diversos: 0primeiro extrai 0 singular do corpo or-

ganico da sociedade e 0 faz viver, ao menos por uma lar-

ga parte da sua vida, fora do ventre materno, pondo-o nomundo desconhecido e pleno de perigos da luta pela so-

brevivencia; a segunda 0 reune aos outros homens, a ele

semelhantes, para que da uniao deles a sociedade seja

recomposta nao mais como um todo organico, mas como

uma associacao de individuos livres. 0 primeiro reivin-

dica a liberdade individual tanto na esfera espiritual

quanto na economic a contra 0Estado; a outra reconcilia

o individuo com a sociedade fazendo desta 0 produto de

urn acordo dos individuos entre si. 0 primeiro faz dosingular 0protagonista de toda atividade que se desenro-

la fora do Estado; a segunda 0 faz protagonista de uma

forma divers a de Estado, na qual as decisoes coletivas

sao tomadas diretamente pelos singulares ou POl' seus

delegados ou representantes, Do individuo 0 primeiro

poe em evidencia a capacidade de se autoformar, de de-

senvolver as proprias faculdades, de progredir intelectual

e moralmente em condicoes de maxima liberdade em

relacao a vinculos externos impostos coercitivamente; a

segunda exalta, sobretudo, a capacidade de superar 0

isolamento atraves de varies expedientes capazes de per-

 

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48 NORBERTO BOBBIO

mitir a inslilui(,:i'to de um poder comum nao tiranico, Das

duas faces do individuo 0 primeiro obscrva a que esta

voltada para 0 interior; a segunda, a voltada para 0 exte-

rior. Trata-se de dois individuos potencialmente diver-

sos: 0 individuo como microcosmo ou totalidade em si

mesma completa, ou como particula indivisive 1(atomo),

mas diversamente componivel e recomponivel com ou-

tras particulas semelhantes numa unidade artificial (e,

portanto, sempre decomponivel).

Tanto 0 individualismo liberal quanto 0 individua-

lismo democratico nascem, como sc disse, em contraste

com as varias formas de organicixmo, mas atraves de

dois processes diversos: 0primciro por gradual corrosao

da totalulade, atraves da qual ox individuos, como filhos

tornados maiorcs de idudc, dcstacam-se do grupo primi-

tivo onipotcnte e oniprcxcnte e conquistam espacos sem-

pre mais amplos de acao pcxxonl: 0segundo por dissolu-

cao interua da compacta unidade global, donde se for-

mam partes indcpcndentes umax <lasoutras e todas jun-

tas do inteiro, e comecam a ter vida propria. 0 primeiro

processo tem POI' efeito a reducao aos minimos term os do

poder publico, 0 segundo 0 reconstitui, mas como soma

de poderes particulares, 0 que e evidente no contratua-

lismo que funda 0 Estado sobre um instituto juridico,como 0 contrato, proprio da esfera do direito privado,

onde se encontram vontades particulares para a forma-

cao de uma vontade comum.

10. Liberals edemocratas

no seculo XIX

No continente europeu, a historia do Estado liberal

e da sua continuacao no Estado dernocratico pede ter seu

inicio fixado justarnente na idade da restauracao que,

com uma certa enfase retorica - nao desprezivel noana

do decimo aniversario do regime faseista, quando aque-

las paginas foram publicadas (1932) -, Benedetto Croce

(1866-1952) chamou de idade da "religiao da liberdade",

na qual acreditava ver 0 "periodo germinal" de umanova civilizacao. 30 Em seu conceito de liberdade, Croce

incluia sem maiores distincoes tanto a liberdade liberal,

por exemplo na passagem em que fala de "substituicao

do absolutismo de governo pelo constitucionalismo",

quanto a liberdade democratica, ao falar das "reformas

no eleitorado e da ampliacao da capacidade politica", as

quais acrescenta a "libertacao do dorninio estrangeiro"

(ou liberdade como independencia nacional). Mas quan-

(30) Benedetto Croc.., Storia d'Europa nel Secolo Decimonono, Bari,

Laterza. 1932, p. 21.

 

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50 NORBERTO BOBBIO

to ao "periodo germinal", embora nao desejando chegar

as "florestas germfinicas" em que teria nascido a liber-

dade dos modernos, segundo Montesquieu retomado por

Hegel, a teoria e a praxis moderna do Estado liberal ti-

nham na verdade comecado na Inglaterra do seculo

XVII, que permaneceu por seculos 0modelo ideal para a

Europae os Estados Unidos da America. Naquele cadi-

nho de ideias, naquele pulular de seitas religiosas e de

movimentos politicos que foi a revolucao puritana, abri-

ram caminho todas as ideias de liberdade pessoal, de re-

ligiao, de opiniao e de imprensa destinadas a se tornarem

opatrimonio duradouro do pensamento liberal. Em seu

exito sangrento se havia afirmado a superioridade do

parlamento sobre 0 rei, que, embora gradualmente e de

maneira alternada, terminaria por impor 0Estado repre-

sentativo como forma ideal de constituicao, cuja eficacia

ainda subsiste (inclusive porque nao foi substituida por

nada melhor); a doutrina da separacao dos poderes ins-

pirou Montesquieu e atraves dele 0 constitucionalismo

americano e europeu. Se por democracia se entende

como fazemos aqui, a extensao dos direitos politicos a

todos os cidadaos maiores, entao 0 ideal democratico

teve a sua primeira afirmacao forte nos anos da great

rebellion: foram de fatos os Niveladores que, no Pactodo Livre Povo Ingles (1649), afirmaram pela primeira

vez, contra 0 principio dominante (e por dois seculos

mantido intangivel) da limitacao dos direitos politicos

apenas aos proprietaries, 0principio democratico segun-

don qual

a suprema autoridade da Inglaterra e dos territories

a eia incorporados ser;1(~residir{t de agora em diante

numa rcprcscn t :11:;111o PIIVll cornposta por quatro-

centas peSSllas, 11;1\. tuais, na eleicao das quais -

justa a lei da 11;1111n'/Il todos os homens maiores

L1BERAI.lSMO E DFMOCRACIA 51

de vinte e urn anos ... terao direito de voto e serao

elegiveis para aquele cargo supremo."

Alem domais, apenas na Inglaterra, a partir da se-

gunda revolucao (1688), a passagem da monarquia cons-

titucional a monarquia parlamentar, da monarquia limi-

tada a democracia alargada, ocorre por evolucao inter-

na, sem tremores violentos ou retrocessos, atraves de urn

processo gradual epacifico.

Na Franca, que sob tantos aspectos foi urn guia para

a Europa continental, 0 processo de democratizacao foi

bern mais acidentado: a tentativa de irnpo-lo pela Iorca

na revolucao de 1848, rapidamente debelada, levou ainstauracao de urn novo regime cesarista (0 segundo im-

perio de Napoleao II!). Enquanto 0 ultimo regime cesa-

rista ingles, a ditadura de Cromwell, estava ja distante,

na Franca a rapida passagem da republica jacobina ao

imperio napoleonico suscitou nos escritores fortes senti-

mentos liberais antidernocraticos, que nao morrerao tao

cedo e deixarao profundas marcas no debate sobre a pos-

sivel e auspiciosa continuidade entre Estado liberal e Es-

tado democratico. Junto aos escritores conservadores

tornou-se quase urn lugar-comum, nao sem reminiscen-

cias classicas eem particular platonicas, a tese segundo a .qual democracia e tirania sao as duas faces de uma mes-

rna moeda e 0cesarismo nada mais tinha sido do que a

natural e terrivel consequencia da desordem provocada

pelo advento da republica e dos demagogos. Nas ultimas

paginas da Democracia na America, Tocqueville (1805-

1859) formulara sua celebre profecia:

Imaginemos sob quais novos aspectos 0 despotismo

poderia ser produzido no mundo: vejo uma multi-

(31) Ver in V. Gahricli, Puritanesimo e Liberia, Turim, Einaudi,

1956. pp. 155-156.

i

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52 NORBERTOBOBBIO

dao inumeravel de homens semelhantes e iguais,

que nada mais fazem que girar sobre si mesmos,

em busca de pequenos e vulgares prazeres com que

saciar a alma... Acima deles ergue-se urn poder

imenso e tutelar, que se encarrega sozinho de Ihesgarantir a satisfacao dos bens e de velar POl' sua sor-

teo E absoluto, minucioso, sistematico, previdente e

brando."

A passagem ainda mais rapida da efemera republica

(1848) ao Segundo Imperio pareceu dar razao ao perspi-

caz descobridor da democracia americana.

POl' todo 0 seculo os processos de liberalizacao e de

democratizacao continuaram a se desenvolver, ora con-juntamente, ora separadamente, con forme 0 alargamen-

to do sufragio fosse considerado como uma necessaria

integracao do Estado liberal ou como urn obstaculo ao

seu desenvolvimento, urn acrescimo ou uma diminuicao

de liberdade. A base desse diverso modo de viver a rela-

.;ao entre Estado liberal e democracia, prolongou-se no

amplo alinhamento liberal a contraposicao entre urn li-

beralismo radical, ao mesmo tempo liberal e democrati-

co, e urn liberalismo conservador, liberal mas nao demo-cratico, que jamais renunciou a batalha contra qualquer

proposta de .alargamento do direito de voto, considerado

como uma ameaca a liberdade, Do mesmo modo, no

ambito do amplo alinhamento democratico, passaram a

existir dernocratas liberais e democratas nao-liberais,

esses segundos interessados mais na distribuicao do po-

del' que em sua limitacao, nas instituicoes do autogover-

no mais que na divisao do govnllo central, mais na sepa-

(32) 1\11 \;\ .kl ... ' I'" vil l. : /1 " l., " " 1 1 " " ' 1 , 1 / " " ('/I Amerique (1835-1840)

(trad. ir.. in 1\ , 0 1 ' I . .. 'I'''' ill, \, III/I """11"1, N. M atteuci (org .), Turim ,

,Utet, vol, z , 1', !II ' \

L1BII<I\I.ISM() I, DEMOCRACIA 53

racao horizontal que na vertical dos poderes, mais na

conquista da esfera publica que na cuidadosa defesa da

esfera privada, Enquanto liberais democrat as e demo-

cratas liberais terrninarao por confluir uns nos outros na

promocao gradual das varias etapas, mais ou menos nu-

merosas, do alargamento dos direitos politicos ate 0 su-

fragio universal, os democratas puros ficarao vizinhos

aos primeiros movimentos socialistas, embora numa re-

lacao frequentemente de concorrencia, como acontece na

Italia com 0 partido mazziniano. Entre os democratas

puros e os liberais conservadores a distancia e tamanha

que faz com que sejam reciprocamente incompativeis.

Esquematicamente, a relacao entre liberalismo e

dernocracia pode ser representada segundo estas trescombinacoes: a) liberalismo e democracia sao compati-

veis e, portanto, componiveis, no senti do de que pode

existir urn Estado liberal e democratico sem, porem, que

se possa excluir urn Estado liberal nao-democratico e urn

Estado democratico nao-liberal (0primeiro e 0 dos libe-

rais conservadores, 0 segundo 0 dos democrat as radi-

cais); b) liberalismo e democracia sao antiteticos, no sen-

tido de que a democracia levada as suas extremas conse-

qiiencias termina POl' destruir 0 Estado liberal (comosustentam os liberais conservadores) ou pode se realizar

plenamente apenas num Estado social que tenha aban-

donado 0 ideal do Estado minimo (como sustentam os

democratas radicais); c) liberalismo e democracia estao

ligados necessariamente urn a outra, no sentido de que

apenas a democracia est a em condicoes de realizar ple-

namente os ideais liberais e apenas 0Estado liberal pode

ser a condicao de realizacao da democracia. Usando as

categorias da moralidade, quanta a a, a relacao e de pos-

sibilidade (Iiberalismo vel democracia); quanta a b, a re-

lacao e de impossibilidade (liberalismo aut democra-

cia); quanto a r, {.de necessidade (liberalismo e de-

 

Ii

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\

54 NORBERTO BOBBIO

mocracia). No momento mesmo em que a democracia,

como forma de governo, se conjuga tanto com 0 libera-

lismo quanta com 0 socialismo, tambem a relacao entre

dernocracia e socialismo pode ser representada de igual

modo como relacao de possibilidade ou de possivel coe-

xistencia, de impossibilidade (por parte dos democrat as

liberais ou, no extremo oposto, dos defensores da ditadu-

ra doproletariado), ou de necessidade, como nas doutri-

nas enos movimentos social-democratas, segundo os

quais apenas atraves da democracia se realiza 0 socialis-

mo e apenas no socialismo 0 processo de realizacao da

democracia chega aoseu pleno cumprimento. 11. A tirania da • •maiona

As duas alas do liberalismo europeu,a mais conser-

vadora ea mais radical, sao bern representadas, respecti-

vamente, pelos dois maiores escritores liberais do seculo

passado, Alexis de Tocqueville eJohn Stuart Mill (1807-

1873). Contemporaneos (0primeiro nascido em 1805 e 0

segundo em 1807), chegaram a se conhecer e se estima-

ram. Mill escreveu naLondon Review, orgao dos radicais

ingleses, uma longa resenha do primeiro volume da De-

mocracia na America. 33 Na obra sobre a democracia re-

presentativa, pubIicada quando 0amigo ja estava morto

(1861), recorda aos seus leitores aquela great work .34

Da sua parte, Tocqueville, ao receber ja moribundo 0

ensaio sobre a liberdade,escreve ao autor: "Nao duvido

que voce sinta a todo instante que neste terreno da liber-

(33) J. S. Mill, "Tocqueville on Democracy in America", in London

Review, junho-janeiro, lIB5-1'U6, pp. 85-129 (trad. it., D. Cofrancesco(org.),Napoles, Guida, 1971, PI'. ')()lhl).

(34) J. S. Mill, ((",,,idcmlions on Representative Government, in Col-

lected Papers of John .')111",., Mill, Londres, University of Toronto Press,

Routledge and Kegan 1',,,,1. 1.t>Il<ires, 1977, vol. 19, p. 468.

 

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56 NORBERTO BOBBIO

dade nao possarnos caminhar sem nos darmos a mao" .3S

Mesmo considerando a diferenca de tradicoes, decultura

e de temperamento, a obra dos dois gran des escritores

representa bem 0 que de eomum havia nas duas maiores

tradicoes do pensamento liberal europeu, a inglesa e a

francesa, Tocqueville havia dedicado anos de estudo e de

reflexao a democracia de uma sociedade nova e projeta-

da para 0 futuro, como a americana: Mill, de outra par-

te, menos insular do que muitos de seus compatriotas,

conhecia 0 pensamento frances, a cornecar de Comte

(1798-1857).

Tocqueville foi antes liberal que democrata. Estava

firmemente convencido de que a liberdade, principal-

mente a liberdade religiosa emoral (mais que a economi-

ca), era 0 Iundamento e 0 ferrnento de todo poder civil.

Mas havia compreendido que 0seculo nascido da revolu-

cao caminhava impetuosa e inexoravelmente em direcao

a democracia. Era um processo incontrolavel, Na intro-

ducao a primeira parte (Livro I) da sua obra (1835) per-

guntou-se

Por acaso existe alguem capaz de pensar que a de-

mocracia, depois de ter destruido0

Ieudalismo evencido os reis, retrocedera diante dos burgueses e

dos ricos? Sera possivel que interrompa sua marcha

justamente agora que se tornou tao forte e seus ad-

versarios tao Iracosf "

Tocqueville explicava que 0seu livro havia sido es-

crito sob a impressao de uma espccie de terror religioso

perante a "revolucao irrexistivcl" que, sobrepujando

(.l~) "Tul'Ql)4'vllk II1I Iknlil l 1111V ill Auu-ricu". trad. cit., p. 13.

(3h, Ah- x i-. d~" I til qlll\d\I "" III /),:,mwralie en Amerique, trad, cit.,

n, p. 19.

L1BERALISMO E DEMOCRACIA 57

todo obstaculo, continuava a avancar em meio as ruinas

por ela mesma produzidas. Por toda a vida, ap6s a via-

gem aos Estados Unidos em que procuraracompreender

as condicoes de uma sociedade democratic a num mundo

tao diverso do europeu e na qual pudera apreender "aimagem da propria democracia", foi assediado pela per-

gunta: "Podera a liberdade sobreviver, e como, na socie-

dade democratica?".

Na linguagem de Tocqueville "democracia" signifi-

ca, por urn lado, como forma de governo em que todos

participam da coisa publica, 0contrario de aristocracia;

por outro lado, significa a sociedade que se inspira no

ideal da igualdade e que, ao se estender, acabara por

submergir as sociedades tradicionais fundadas sobreuma ordem hierarquica imutavel. A ameaca que deriva

da democracia como forma de governo e para ele, comode resto para 0 amigo John Stuart Mill, a tirania da

maioria: 0 perigo que a democracia corre como progres-

siva realizacao do ideal igualitario e 0 nivelamento, cujo

efeito final e 0 despotismo. Sao duas formas diversas detirania, e, portanto, ambas embora de maneira diversa,

sao a negacao da liberdade. 0 fato de que na obra de

Tocqueville esses dois significados de democracia jamais

tenham sido muito bern distinguidos pode induzir 0 lei-

tor ajuizos diversos, se nao opostos, a respeito da postu-

ra tocquevilliana diante da democracia. Considerada a

democracia nao como conjunto de instituicoes das quais

a mais caracteristica e a participacao do povo no poder

politico, mas como sistema que exalta 0valor da igualda-

de nao s6 politic a como social (igualdade das condicoes

em prejuizo da liberdade), Tocqueville se revela sempre

um escritor liberal c nao-democratico, Jamais demonstra

a menor hesitacao em antepor a liberdade do individuo aigualdade social, 11:1 mcdida em que esta convencido de

que os povos deIII()(. i'li icos, apesar de terem uma inclina-

 

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58 NORSERTO BOSBIO

cao natural para a liberdade, tern "uma paixao ardoro-

sa, insaciavel, eterna, invencivel" pela igualdade e em-

bora "desejem a igualdade na liberdade" sao tambem

capazes, se nao podem obte-la, de "desejarern a igual-

dade na escravidao". 37 Estao dispostos a suportar a po-

breza, nao a aristocracia.

A tirania da maioria Tocqueville dedica 0 capitulo

setimo da segunda parte do Livro I de A Democracia na

America. 0 principio de maioria e urn principio iguali-

tario na medida em que pretende fazer com que prevale-

ca a forca do mimero sobre a Iorca da individualidade

singular; repousa sobre 0 argumento de que "existem

mais cultura e mais sabedoria em muitos homens reuni-

dos do que num s6, no mimero mais do que na qualidade

dos legisladores. E a teo ria da igualdade aplicada a inte-ligencia" .38

Entre os efeitos deleterios da onipotencia da maio-

ria, estao a instabilidade do Legislative, a conduta Ire-

quentemente arbitraria dos funcionarios, 0 conformismo

das opinioes, a reducao do mimero de homens ilustres na

cena politica. Para urn liberal como Tocqueville, 0 poder

e sempre nefasto, nao importa se regio ou popular. 0

problema politico POl' excelencia e 0 relativo nao tanto a

quem detem 0 poder quanto ao modo de controla-lo elimita-lo. 0 bom governo nao se julga pelo numero gran-

de ou pequeno dos que 0 possuem, mas pelo numero

grande ou pequeno das coisas que lhe e licito fazer.

A onipotencia e em si coisa rna e perigosa ... Nao ha

sabre a terra autoridade tao respeitavel em si mes-

rna, ou revestida de um dircito tao sagrado, que eu

deixaria agir scm coni role C dominar sem obstacu-

(37) ' 1 ' ' - ; 1 < 1 . ,·il , II. I' 'iii1

(3t» '1'1'".1. (II .II I' "II

LIBERAlISM() I ;. III'MOCRACIA 59

los. Quando vejo conccdidos 0 direito e a faculdade

de tudo fazer a urna potencia qualquer, seja ela

povo ou rei, dernocracia ou aristocracia, exercida

numa monarquia ou numa republica, afirmo: esta

ali 0 germe da tirania."

Tocqueville teve aguda compreensao da inconciliabi-

lidade em ultima instancia do ideal liberal - para 0 qual

o que conta e a independencia da pessoa na sua esfera

moral e sentimental - com 0 ideal igualitario, que dese-

ja uma sociedade composta tanto quanta possivel por

individuos semelhantes nas aspiracoes, nos gostos, nas

necessidades e nas condicoes, Jamais teve muitas ilusoes

a respeito da sobrevivencia da liberdade na sociedade

democratica, embora nunca se tenha resignado a aceitarpara os seus contemporaneos e para as geracoes futuras

o destino dos servos satisfeitos. S~tOmemoraveis as ulti-

mas paginas do segundo livro da sua "grande obra" (pu-

blicado em 1840), nas quais sente que se aproxima 0

momenta em que a democracia ira se traduzir em seu

contrario, POl' portal' em si os germes do novo despotis-

mo, sob a forma de urn governo centralizado e onipresen-

teo A sugestao da democracia dos antigos desaprovada

POl' Constant, e, portanto, da onipotente vontade geralde Rousseau, faz com que ele afirme:

Nossos contemporaneos irnaginam urn poder unico,

tutelar, onipotente, mas eleito pelos cidadaos; com-

binam centralizacao e soberania popular. Isso lhes

da urn pouco de alivio. Consolam-se do fato de es-

tarem sob tutela pensando que eles mesmos escolhe-

ram os tutores ... Num sistema desse genero, os ci-

(39) Trad. cit., II, I' 299:

 

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6 0 NORBERTO BOBBIO

dadaos saem por urn momento da dependencia;

para designar 0 seu patrao, e depois nela reingres-

sam."

Nao, a democracia, entendida como participacaodireta ou indireta de todos no poder politico, nao e POl' sis6 remedio suficiente contra a tendencia a se constitui-

rem sociedades cada vez menos livres: "Ninguem jamais

Iara acreditar - exclama no final - que urn governo

liberal energico e sabio possa sair dos sufragios de urn

povo de servos" .41 Os remedies, que Tocqueville acredita

existirem e nao se cansara de propor, sao os classicos

remedies da tradicao liberal, acima de tudo a defesa de

algumas liberdades individuais, como a liberdade de

imprensa, a liberdade de associacao, e em geral a defesa

dos direitos do individuo que os Estados democraticos

tendem a desconsiderar em nome do interesse coletivo, e,

portanto, 0 respeito as formas que garantam ao menos a

igualdade perante 0 direito e, por fim, a descentrali-

zacao.

Pela mesma razao porque foi antes liberal que de-

mocrata, Tocqueville jamais chegou a ser tentado pelo

socialismo, pelo qual manifestou em varias ocasioes a

mais profunda aversao. Pode-se ser democrata e liberal,democrat a e socialista, mas e muito dificil ser ao mesmo

tempo liberal e socialista. Radicalmente nao-democrati-

co quando deve confrontar a democracia com 0 sublime

ideal da liberdade, Tocqueville torna-se urn defensor da

democracia quando 0adversario a ser refutado e 0 socia-

lismo, no qual ve a confirmacao do Estado coletivista que

daria vida a uma sociedade de casto res e nao de homens

livres. Num discurso sohrc () direito ao trabalho proferi-

(40) Trad. cit.. II, II Hll

(41) Trae!. (';1., II. p. HI',

LIBEHAUSMO E DEMOCRACIA 61

do na Assembleia Constituinte, em 12 de setembro de

1848, evoca e exalta a democracia americana, observan-

do, entre outras coisas, ser ela completamente imune ao

perigo socialista e afirmando que democracia e socialis-

rno nao sao de fato solidarios: "Sao coisas nao apenasdiferentes mas contrarias". Tern em comum uma unica

palavra, a igualdade, "Mas. estejam atentos a diferenca,

conclui: a democracia deseja a igualdade na liberdade e

o socialismo deseja a igualdade na molestia e na servi-

dao."42

(42) Alexis de 'I'ocqucville, Discours sur la Revolution Sociale (1848)

(trad. cit., T, p. 289).

 

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12. Llberalismo e

utilitarlsmo

Ao contrario de Tocqueville, Mill foi liberal e demo-

crata: considerou a democracia, e em particular 0 gover-

no representative (que ele tambem chamava de "governo

popular"), como 0desenvolvimento natural e conseqiien-

te dos principios liberais. Nao que ele nao percebesse os

males de que sofria 0 governo democratico. Mas bus-

cou-lhes os remedies com maior confianca num futuro de

progresso gradual e necessario. Em seus ultimos escritos

considera ate mesmo como nao incompativeis 0 libera-

lismo e 0 socialismo. Suas duas principais obras de teor

politico (ele Ioi, sobretudo; urn filosofo e urn economista)

sao intituladas, respectivamente, Sabre a Liberdade

(1859) e Consideracoes sobre 0 Governo Representativo

(1863). Tocqueville foi urn historiador e urn escritor poli-

tico; Mill foi tambem urn teorico da politic a e, bern mais

do que seu admirado amigo Irauces, teve a vocacao e 0

talento do reforrnador.

Como le(lI'ico, l'I'IIH'klldo,sc a filosofia utilitaristade seu mcstrc ma ior, "'WillY Bentham (1748-1832), pos a

doutrina lihcrn] \Obll' 11111 Iundamento diverso do dos es-

L1BERAUSMO I', DEMOCRACIA 63

critores precedentes, dan do vida (ou, para dizer melhor,

uma notavel sustentacao) a corrente do liberalismo que

sera depois largamente prevalecente. A doutrina prece-

dente havia fundado 0 dever dos governantes de restrin-

gil' 0exercicio do poder publico sobre a existencia de di-reitos naturais, por isso inviolaveis, dos individuos. Num

escrito de 1795, Anarchical Fallacies, Bentham havia

desfechado urn violento ataque contra as Declaracoes

dos direitos franceses, pondo em relevo com corrosiva

ironia, sua debilidade filos6fica, sua inconsistencia logica

e seus equivocos verbais, alern de sua total ineficacia pra-

tica. A proposito da declaracao de que todos os homens

nascem livres, exclama: "Absurda e miseravel boba-I" E li "N- .gem.. exp ica: ao existe nada de semelhante a di-

reitos naturais, nada de semelhante a direitos anteriores

as instituicoes de governo, nada de semelhante a direitos

naturais opostos ou em contradicao com os legais" .43 Em

contraposicao a secular tradicao do jusnaturalismo, Ben-

tham formula 0 "principio de utilidade", segundo 0 qual

o unico criterio que deve inspiral' 0born legislador e 0 de

emanar leis que tenham POl' efeito a maior felicidadc do

maior rnimero, 0 que quer dizer que, se devcm existir

limites ao poder dos governantes, e1es nao derivarn da

pressuposicao extravagante de inexistentes e de modo al-gum demonstraveis direitos naturais do hornem mas da

consideracao objetiva de que os homens desejam 0prazer

e rejeitam a dor, e em consequencia a melhor sociedade ea que consegue obter 0 maximo de felicidade para 0

maior mimero de seus componentes. Na tradicao do pen-

samento anglo-saxao, que certamente e a que forncccu a

mais duradoura e coerente contribuicao ao deser.volvi-

mento do liberalismo, a partir de Bentham utilitaris-

(43) Jeremy Bentham, Anarchical Fallac ies, in The Works, J. Bowring

(org.), Edimburgo, William Tait, vol. 2, p. 500,

 

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64 NORBERTa BOBBIO

mo e liberalismo passam a caminhar no mesmo pas-

so, e a filosofia utilitarista torna-se a maior aliada teorica

do Estado liberal. A passagem do jusnaturalismo ao uti-

litarismo assinala para 0 pensamento liberal uma verda-

dadeira crise dos fundamentos, que alcancara 0 renova-

do debate a respeito dos direitos do homem desses ulti-

mos anos.

Mill e urn utilitarista declarado e convicto:

A doutrina que admite como fundamento da mora-

li dade a utilidade ou 0 principio da maxima felici-

dade sustenta que as acoes humanas sao justas na

medida em que tendem a promover a felicidade e

injustas na medida em que tendem a promover 0

contrario da felicidade. 44

E entende a felicidade benthamianamente, como 0

prazer ou a ausencia da dor, a infelicidade como dor ou a

privacao do prazer. Por outro lado, enquanto doutrina

moral que critica e refuta toda outra forma de funda-

mento da obrigacao moral que nao seja a que faz refe-

rencia ao prazer e a dor, 0 utilitarismo se preocupa nao

com a utilidade do individuo isolado com respeito ados

outros individuos, mas com a utilidade social, nao com"a felicidade singular de quem age, mas com a felicidade

de todos os interessados", tal como pode ser avaliada por

urn "espectador benevolo e desinteressado". 4S Conse-

qiientemente, cern coerencia com a critica benthamiana

dos direitos naturais, Mill rejeita a tentacao de recorrer a

doutrina jusnaturalista para fundar e justificar a limita-

cao do poder do Estado. Afirrna cxpressamente na intro-

(44) J. S. Mill, U/ili/wIIII/I.,TII (IHh.l) (trad. it., E. Musacchio (org.) ,Bolonha, Cappelli , «)HI. p. '.H)

(45) Tra(1 . cil ., p . 1 0 / \

L IB ER AL ISM () ,. 1 1I·.M OCR ACIA 65

ducao a Sabre a Liberdadc, onde apresenta e propoe os

principios inspiradores da sua doutrina: "E oportuno

declarar que renuncio a quaJquer vantagem que para

minha argumentacao poderia derivar da concepcao do

direito abstrato como independente da utilidade", pois

"considero a utilidade como 0criterio ultimo em todas as

questoes eticas", desde que se trate "da utilidade em seu

sentido mais amplo, fundado sobre os interesses perm a-

nentes do homem enquanto progressivo" .46

Seguindo a trilha da tradicao do pensamento libe-

ral, a liberdade pela qual se interessa Mill e a liberdade

negativa, ou seja, a liberdade entendida como situacao

na qual se encontra urn sujeito (que tanto pode ser urn

individuo quanto urn grupo que age como urn todo uni-

co) que nao esta impedido por qualquer Iorca externa defazer aquilo que deseja e nao esta constrangido a fazer

aquilo que nao deseja. Trata-se para Mill, entao, de

formular urn principio a base do qual sejam estabeleci-

dos, por urn lado, os limites nos quais e licito ao poder

publico restringir a liberdade dos individuos: por outro

lado, e correspondentemente, 0 ambito no qual os indi-

viduos ou os grupos possam agir scm encontrar nbs-

taculos no pc Ier do Estado; trata-se, entao, em outras

palavras, de delimitar a esfera privada com respeito apublica de modo que 0 individuo possa gozar de uma

liberdade protegida contra a invasao por parte do poder

do Estado, liberdade essa que devera ser a mais ampla

possivel no necessario ajustamento do interesse indivi-

dual ao interesse coletivo. 0 principio proposto por Mill

eo seguinte: "A humanidade esta justificada, individual

ou coletivamente, a interferir sobre a liberdadc de acao

(46) J. S. Mill, On Liberty (1858), in Collected Papers of John StuartMill, cit ., vol, 18 , p , 224 (trad. it . . G. Giore llo e M. Mondadori (orgs.), Milao,

11 Saggiatore, 1981 , p. 34) .

 

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6 6 NORBERTO BOBBIO

de quem quer que seja apenas com 0 objetivo de se pro-

teger", razao pela qual "0unico objetivo pelo qual se

pode exercer legitimamente urn poder sobre qualquer

membro de urna comunidade civil, contra a sua vontade,

e 0 de evitar danos aos outros". 47 Segue-se dai que "sealguem comete urn ato que prejudica outros, tem-se en-

tao urn motivo evidente para puni-lo com sancoes legais

ou, no caso em que seja de incerta aplicacao, com a de-

saprovacao geral" .48

o objetivo a que se propoe Mill ao enunciar esse

principio e 0de limitar 0direito do Estado de restringir a

esfera da liberdade individual - na qual 0 individuo

pode escolher entre varias alternativas, e de .induzir os

cidadaos a fazer ou nao fazer algo contra a vontade deles

- apenas a esfera das acoes extern as (no senti do kan-

tiano da palavra), isto e , as acoes com as quais urn indivi-

duo, para satisfazer urn interesse proprio, pode interferir

no interesse de urn outro; e, correspondentemente, de

salvaguardar 0 singular da ingerencia do poder publico

em todas as acoes que dizem respeito apenas a ele, como

a esfera da consciencia interior e da liberdade de pensa-

men to e de opiniao, da liberdade de agir segundo os pro-

prios gostos e os proprios projetos, da liberdade de se

associar com outros individuos. No caso de se ter conven-

cion ado chamar de paternalismo toda doutrina politic a

que atribui ao Estado 0 direito de interferir na esfera in-

terior do individuo com base na consideracao de que

todo individuo, inclusive 0 adulto, precisa ser protegido

das proprias inclinacoes e dos proprios irnpulsos, entao 0

liberalismo se revela ainda uma vezem Mill, como em

Locke e em Kant, a doutrina antipaternalista por exce-

Iencia, na rnedida em que parte do pressuposto etico se-

(47) Tt,ul. ..,1 . I' I.'

(48) Tr;I<1.nL. p \.I

LIBERALISMO E DEMOCRACIA 6 7

gundo 0 qual, para lembrar uma forte expressao millia-

na, "cada urn e 0 unico guardiao autentico da propria

saude, tanto fisica quanta mental e espiritual". 49 Nao es-

tou afirmando que nao existam elementos paternalistas

tambem em Mill (como de resto em Locke e em Kant).Tenha-se em mente 0fato de que, na definicao acima re-

ferida, Mill limita 0 proprio assunto aos membros "de

uma comunidade civil", civilizada: 0 principio da liber-

dade vale, portanto, apenas para individuos na pleni-

tude de suas faculdades. Nao vale para os menores de

idade, ainda sujeitos a protecao paterna, e nao vale para

as sociedades atrasadas, que podem ser embloco consi-

deradas como formadas por menores de idade. Sobre

esse ultimo ponto a opiniao de Mill e muito clara: "0despotismo e uma forma legitim a de governo quando se

esta na presenca de barbaros, desde que 0 fim seja 0pro-

gresso deles e os meios sejam adequados para sua efetiva

obtencao" .50 A parte a subordinada concessiva (mas

quem julga 0 fim e quem julga a adequacao dos meios ao

fim?), tal opiniao de Mill em nada difere da tradicional

justificacao dos regimes despoticos, que jf t conforme

Aristoteles eram vistos como adequados aos povos natu-

ralmente servos.

(49) Trad. cit., 1' . . Ih.

(SO) Trad. cir., 1' . . 1 . 1

 

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13. A democraciarepresentativa

Tanto quanto Tocqucvillc, Mill tambem teme a ti -

rania da rnaioria c a conxidcra 11111 <los males dos quais a

socicdade dcvc sc proteger. Ixxo, porern, nao 0 leva a re-

nunciar ao gOVCrJlO dcmocratico, No livro sobre a demo-

cracia representativa, publicado poucos anos apos 0 en-

saio sobre a liberdade, poe-se 0classicoproblema da me-

lhor forma de governo e responde que ela e , precisa-

mente, a democracia representativa, que constitui, ao

menos nos paises com urn certo grau de civilizacao, 0prosseguimento natural de urn Estado desejoso de asse-

gurar aos seus cidadaos 0maximo de liberdade: "A par-

ticipacao de todos nos beneficios da liberdade e 0 con-ceito idealmente perfeito do governo livre". Tal maxima

e confortada pelo seguinte comentario:

Na rnedida em que alguux. n ; 1 O importa quem, sao

excluidos desses lWlldkios, seus interesses sao dei-

xados sern as gaJ'allti:I.'; conccdidas aos demais, fi -

cando- !Ill'S d i111111111( las as possibilidades e os estimu-

los que dl' ( l11l1.1 1I1 .IIII' II 'a teriam para a aplicacao

1 , 1

~

LlBERALISMO E DEMOCRACIA 69

das energias em prol do proprio bern e do bern da

comunidade."

Trata-se de urn comentario que mostra com grande

clareza0

nexo entre liberalismo e democracia ou, maisprecisamente, entre uma determinada concepcao de Es-

tado e os modos e as formas de exercicio do poder capa-

zes de melhor assegurar a sua atuacao.

A afirrnacao segundo a qual °perfeito governo livre

e aquele em que todos participam dos beneficios da li-

berdade leva Mill a se fazer promotor da extensao do

sufragio, sobre a trilha do radicalismo de origem ben-

tharniana de que nascera a reforrna inglesa eleitoral de

1832. Urn dos remedies contra a tirania da maioria esta

exatarnente no fato de que, para a formacao da maioria,

participem das eleicoes tanto as classes abastadas (que

sempre constituern uma minoria da populacao que ten de

naturalmente a prover aos proprios interesses exc1usivos)

quanta as classes populares, desde que paguem urn im-

posto por menor que seja. A participacao no voto tem

urn grande valor educativo: e atraves da discussao poli-

tica que 0 operario (the manual labourer), cujo trabalho

e repetitivo e cujo ambiente de fabric a e angustiante,

con segue compreender a relacao entre eventos distantes eo seu interesse pessoal e estabelecer relacoes com cida-

daos divers as das suas cotidianas relacoes de trabalho,

tornando-se, assim, membro consciente de uma grande

comunidade: "Numa nacao civilizada e adulta nao deve-dam existir nern parias nem hornens incapacitados, ex-

ceto par culpa propria".'?

o sufragio universal, porem, e urn ideal limite, do

(51) J. S.Mill. (·oll.",I ..raliolls 1111Representative Government, in Col-

leeted Papers, cit., vol . I". I' ·11111.

(52) 01'. ( 'i l . . 1 '1 /11

 

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70 NORBERTO BOBBIO

qual as propostas millianas ainda estao muito distantes:

alem dos falidos e dos devedores fraudulentos, Mill ex-

clui do direito de voto os analfabetos (pregando 0 en sino

estendido a todos: "0 ensino universal deve preceder 0

sufragio universal") e os que vivem de esmolas das paro-quias, com base na consideracao de que quem nao paga

um pequeno imposto nao tem 0direito de decidir 0modo

peloqual cada um deve contribuir para as despesas pu-

blicas. Por outro lado, Mill e Iavoravel ao voto feminino

(contrariamente a tendencia prevalecente nos Estados

europeus, que em geral chegaram a extensao do voto aos

analfabetos antes que as mulheres), com base no argu-

mento de que todos os seres human os tern interesse em

ser hem governados e, portanto, todos tern igual necessi-

dade de voto para assegurar a parte dos beneficios que

cabe a cada membro da comunidade. Invertendo 0 ar-

gumento habitual dos antifeministas, Mill sustenta que

"se houver alguma diferenca, as mulheres tern maior ne-

cessidade do voto do que os homens, ja que, sendo fisi-

camente mais frageis, dependem para sua protecao mui-

to mais da sociedade e das leis. 53

osegundo remedio contra a tirania da maioria con-

siste, para Mill, numa mudanca do sistema eleitoral, is to

e , na passagem do sistema majoritario - pelo qual todocolegio temo direito de conduzir apenas um candidato e

dos candidatos em disputa aquele que recebe a maioria

dos votos (nao importa se em um ou dois turnos) vence e

os demais perdem - para 0 sistema proporcional (que

Mill acolhe seguin do a Iorrnulacao de Thomas Hare,

1806-1891), que assegura uma adequada 'representa~ao

tarnbem as minorias, em proporcao aos votos recebidos

ou num unico colegio nacional (Ill num colegio amplo 0

suficiente para perruit ir a eki(,~a()de varies representan-

(53) 01'. cir., p. ·11 '1

LIBERALISMO E DEMOCRACIA 71

tes. Ao apresentar as vantagens e as qualidades positivas

do novo sistema, Mill sublinha 0 freio que a maioria en-

contraria na presenca de uma minoria aguerrida capaz

de impedir a maioria de abusar do proprio poder e, por-

tanto, a democracia de degenerar. Mill encontra, assim,ocasiao para fazer urn dos mais altos elogios ao antago-

nismo que 0 pensamento liberal jamais registrou, numa

passagem em que se pode condensar a essencia da etica

liberal:

Nenhuma comunidade jamais conseguiu progredir

senao aquelas em que se desenvolveu um conflito

entre 0 poder mais forte e alguns poderes rivais; en-

tre as autoridades espirituais e as temporais; entre

as classes militares ou territoriais e as trabalhado-

ras; entre 0 rei e 0 povo; entre os ortodoxos e os re-

formadores religiosos."

Nao obstante a plena aceitacao do principio demo-

cratico e 0 elogio da democracia representativa como a

melhor forma de governo, 0 ideal da democracia perfeita

esta ainda bem longe de ser alcancado. Quase para ate-

nuar 0efeito inovador do sufragio ampliado, Mill propoe

o instituto - que acabou por nao ter sucesso - do votoplural, segundo 0 qual, se e justo que todos votem, nao

esta afirrnado que todos devam ter direito a um unico

voto: segundo Mill, 0 voto plural caberia nao aos mais

ricos, mas aos mais intruidos, com a reserva de poder ser

atribuido aos que 0 solicitem e passem por um exarne,

Nao por acaso nas constitui<;oes modernas se afirrna que

o direito de voto deve ser "igual" (como no artigo 48 da

constituicao italian a vigente).

(54) Op, cit .. 1. ·1','1.

 

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14. Llberalismn e

democrac!ia na Italia

. Com todos os Iimites inerentcs a urn libera1ismo

ainda forte mente impregnado de paternalismo e de uma

democraeia incompleta e nao igualitaria, a obra de Mill

representou urn fecundo encontro entre pensamento U-

be.ra1e pensamento dernocratico. Nao obstante isso, libe-

rais e democratas continuaram. como de resto conti-

nuam ate hoje, a dar vida a movimentos e alinhamentos

politicos diferenciados, contrapostos conformc 0 alvo

principal ~eja ~ crescente invasao do Estado, interpreta-

d~ pel?s Iiberais - nao sem razao - como uma conse-

q.uencla .do processo de democratizacao, ou a persisten-

CIade oltgarquias politic as e de fortes desigualdades eco-

nornicas, interpretadas pelos democratas - nao sem

razao - como uma consequencia da lentidao com que

aquele processo de democratizacao ocorreu e dos obsta-

culos que a ele Ioram inierpllstos pelos beati possidentes.

Nesse senti do, a contrapllsil;ilO entre liberalismo e demo-

crac.ia tambcrn IHHh' .~;n-oll\iderada de urn outro pontode vista: 0 descnvolviuu-ut« da doutrina liberal esta es-

treitamente ligadll ;', (11111;( cconornica das sociedades

• • • 1 " ' . ' . 11 11 1 1 : " 1 1 ' i w - . . . " ' 4 ' . ' u ,~U"UilolJU"", '", I .u",""., , , , , , . , , , ,

L1BERALlSM() I~DEMOCRACIA 73

autocraticas; 0 desenvolvimcnto da doutrina democrati-

ca esta mais estreitamente ligado a uma critica de carater

politico ou institucional. 0 certo e que por todo 0 seculo

passado liberalismo e democracia designam doutrinas e

movimentos antagfmicos entre si: os liberais, que defen-dem a conquista ou a exigencia dos direitos de liberdade,

de que e portadora a idade da restauracao, desconfiam

das nostalgias revolucionarias dos democratas; os de-

mocratas, que entendem nao ter se completado 0 proces-

so de emancipacao popular iniciado com a Revolucao

Francesa e interrompido com a restauracao, rejeitam os

liberais como 0 partido dos moderados. Antes da forma-

~ao dos partidos socialistas, os parlamentares se divi-

diam em dois alinhamentos contrapostos, 0 partido da

conservacao e 0 partido do progresso, correspondentes,

grosse modo, a contraposicao entre liberais e democra-

tas, sendo considerada como a dialetica politica mais

correta aquela que se desenrola alternadamente entre es-

ses dois alinhamentos, embora na patria do parlamento e

do bipartidarismo, a Inglaterra, os dois partidos contra-

postos fossem chamados respectivamente de conservador

e liberal (mas 0 conteiido dos programas dos partidos

muda com 0 passar do tempo, mesmo que nao mude 0

nome deles). Para uma gradual convergencia entre a tra-

dicao liberal e a democratic a contribuem precisamente,

primeiro, a formacao dos partidos socialistas e, ainda

mais, 0 aparecimento, no seculo seguinte, de regimes

nem liberais nem dernocraticos, como os regimes fascis-

tas, e do regime instaurado pela revolucao de outubro na

Russia: diantc da novidadc representada pelos Estados

totalitarios do scculo vinte, as diferencas origin arias

entre liberalismo c dcmocracia tornar-se-ao hist6rica e

politicamente irrek-v.urtcs.No pensamcuto politico italiano da segunda metade

do seculo passado, qll' de resto reflete as linhas gerais do

 

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74 NORBERTO BOBBIO

pensamento politico europeu, especial mente 0 frances, a

contraposicao entre escola liberal e escola democratic a ebastante clara, especialmente em decorrencia da presen-

ca ativa de um escritor e agitador politico como Mazzini

(1805-1872); sempre incluido, mesmo fora de nosso pais,entre os expoentes mais representatives das correntes

democratic as que agitam as nacoes europeias em luta

contra as velhas autocracias,

Expondo sua interpretacao da obra literaria de

Mazzini, Francesco De Sanctis (1817-1883) tracou as li-

nhas mestras da distincao entre a escola liberal e a escola

democratica, consideradas como as duas correntes vivas

do espirito publico italiano no seculo XIX. Embora pon-

do em destaque sobretudo 0 aspecto literario, De Sanctis

observou que a semelhanca entre ambas estava no fato

de que nelas se tin ham misturado fins politicos, morais,

religiosos, donde, ao contrario das escolas meramente li-

terarias, elas terem agido sobre toda a sociedade italiana

e nao 86 sobre 0 restrito circulo dos literatos. De resto, 0

proprio De Sanctis, dedicando uma parte de seu curso a

Mazzini, julgava estar fazendo obra uti! ao dever de edu-

cacao nacional, na qual incluia a formacao de uma jo-

vern esquerda capaz de assegurar uma nova direcao ao

pais, "uma nova postura diante das classes populares,urn novo conceito do que e nacional, diverse do da direita

historica, mais arnplo, menos exclusivista, menos poli-

cialesco" .55 Interpretava a escola liberal como aquela

que havia rejeitado a liberdade como fim ultimo, da qual

se tinham feito divulgadores os fi16sofos do seculo XVIII ,

mestres da revolucao, e se contentara com a liberdade

como meio ou como metoda au "procedimento", com a

liberdade apenas formal. cia qual cada urn podia servir-se

para os proprios fins.

(55) Francesco p,. S" , ,< 'I I · . . I cucrutura e Vita Nazionale, Turirn, Ei-

naudi, 1950. p. 7.

LIBERALlSM() I': DEMOCRACIA75

Nesta escola liberal _- comentava - entram ho-

mens com fins os mais diversos, como se estivessem

sobre terreno comum: os clericais que querem livre

a Igreja, os conservadores que desejam a liberdade

das classes superiores, os democratas que querem aliberdade das classes inferiores, os progressistas que

buscam seguir em frente sem forear a natureza. 56

Ao contrario. entendia a escola democratic a c.omo a

que era inspirada pelo ideal de uma nova socle~ad.e

"fundada na justica distributiva, na igualdade d~ .direl-

to, a qual, nos paises mais avaneados, tambem e [gual-

dade de fato", e para a qual a liberdade nao era apen~s

procedimento ou metodo mas "substancia" .57 E preci-

sava:

Onde existe desigualdade, a liberdade pode estar es-

crita nas leis, no estatuto, mas nao e coisa real: nao

e livre 0campones que depende do proprietario. nao

e livre 0 empregado que permanece submetido ao

patrao, nao e livre 0homem da gleba sujeito ao tra-

balho incessante dos campos.58

Concluia afirmando que essas ideias conduzem itres publica, que "nao e 0governo deste ou daquele, nao eo poder arbltrario ou dominio de classes: e 0 governo de

todos" .59 Urn Estado que considera a liberdade como

meio pode ser neutro, indiferente ou ateu. Nao pode ser

assim 0Estado de todos, a res publica precisamente, que

(56) Francesco 1kSaUdis, Mazzini e la Scuola Democratica. Turim,

Einaudi, 1951, p. Il.

(57) Op, cir., 1' .1.1.(58) Op. eil . . I' 1,1.

(59) Op. cii., 1'1'. 111·1.

 

76

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NORBERTO BOBBIO

deve se proper 0 objetivo da educacao nacional e isso

especialmente apos uma unificacao rapida e forcada,

Para permanecer na Italia, esse persistente contras-

te pode ser eficazmente representado pela contraposi~ao

entre os dois maiores protagonistas do nosso risorgi-

me~to*, Cavour (1810-1868) e Mazzini. Urn dos pri-

metros autores de que 0 jovem Cavour absorve certos

principios desde entao jamais abandonados foi alem de

Constant, Bentham. Dele Cavour extraiu a ideia da in-

sustentabilidade das teorias jusnaturalistas e uma forte

conviccao a respeito da bondade do utilitarismo, ao pon-

"to mesmo de se considerar com visivel prazer urn "ben-

thamiano endurci"60.** Num de seus escritos doutrina-

rios mais completos, Os Sistemas e a Democracia. Pen-

samentos (1850), Mazzini faz de Bentham, com sua dou-

~rina utilitarista, 0maior responsavel pelo materialismo

Im_pera~te nas doutrinas democratic as e socialistas, de

Samt-SImon (1760-1825) aos comunistas, mas nao cita

expressamente nem Marx (1818-1883) nem Engels

(1820-1895); alem do mais, chama Bentham de "chefe e

legislador da escola" que compreende todos os "adora-

?o;:es do iitil". 61 A doutrina do iitil Mazzini contrapoe a

ideia do dever e do sacrificio pela santa causa da huma-

nidade:

Na? - exclama -,0 interesse e 0prazer nao sao os

!DelOScom que a democracia podera transformar 0

. (*) l!isorgimento: periodo hist6rico compreendido, grosso modo, entre

o final do seculo XVIII e 1870, no qual sc completou 0 processo de formacaodo Estado unitario italiano. (N. T.)

(60) Extraio essa citacao de R. Romeo, Cavoure i lsuo Tempo I 1810-1842, Bar i, Laterza , 1969, p. 2HH. . ,

. (**) Endurei: em fralin's 1111 lI riMillal - endurecido, empedernido , in-

transigente. (N. T.)

(61) G. Mazzini, / S,sl. ."" , . /11 / )< 'moerazia Pensieri I 'n M "G . I, azzrru,. Galasso (org.), Bolonha. II Mill"" • . 1%1, pp. 101-102.

LIBERALISMO E DEMOCRACIA 77

elemento social; uma teorica do util nao tara com

que os confortos da riqueza sintam os sofrimentos

das classes pobres e a urgente necessidade de urn

remedio.?

Cavour e urn admirador de Tocqueville, com quem

divide a apreensao pela march a inexoravel da humani-

dade para a democracia. Tocqueville, ministro do Exte-

rior da republica frances a de junho de 1849, da a palavra

definitiva sobre a queda da republica romana, e Mazzini

endereca a ele e ao ministro Falloux (1811-1886) uma

veemente carta na qual os apostrofa como "ultimos alu-

nos de uma escola que, comecando por predizer a dou-

trina ateia da arte, terminou na formula do poder pelo

poder'L'" Cavour, defensor do juste milieu, ou seja, de

uma solucao intermediaria, a unica conforme a razao,

entre reacao e revolucao. Mazzini, intransigente propa-

gador da revolucao nacional, que se coloca claramente

num dos dois extremos rejeitados pela flexivel solucao

dos doutrinadores liberais. Cultor da ciencia economic a,

admirador dos grandes economistas, de Smith a Ricardo

(1772-1823), Cavour, liberista convicto e irredutivel, foi

seguidor das teorias do livre-cambismo, que Mazzini

sempre combateu com forca propugnando urn Estado

investido de funcao educativa: e oposto a concepcao libe-

ral do Estado como mal inevitavel e, portanto, limitado

tao-somente ao oficio de agente de policia, Nada demais

distante do pensamento de urn liberal inteiro como Ca-

vour do que a critica mazziniana do Estado "despido de

toda virtude iniciadora, scm outra missao senao a de im-

pedir", tanto que

(62) Op. cil., 1'. 110.

(63) G. Mavviui: 1<'11.. ,,11i SiWlOri Tocqueville e Falloux Ministri di

Francia, in G. Mavz.uu, S, ru tt 1',,/tIil'i, T. Grandi eA. Comba (orgs.), Turim,

Utet , 1972, p. 647 .

 

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78 NORBERTO BOBBro

substituiu a sociedade por urn agregado de indivi-

duos, obrigados a se manter pacificos, mas dedica-

dos a fins particulares, e livres para escolher cada

urn 0 proprio caminho, ajude ou nao ajude ao cum-

primento da missao comum. Em politic a como em

economia 0 laissez faire, laissez passer e a suprema

formula da escola. 64

Nada de mais hostil a mentalidade cavouriana Iavo-

ravel ao progresso atraves da gradual adaptacao das ins-

tituicoes a evolucao da sociedade que 0 abstrato revolu-

cionarismo mazziniano, que contrapoe ao simples e sau-

davel criterio do iitil 0 imperativo do sacrificio, trans-

forman do a iluminista exaltacao dos direitos individuaisnuma severa predica dos deveres. "Fiel ao seu bentha-

mianismo originario - escreve Romeo -, Cavour fica

persuadido de que 0 progresso econornico realmente nao

contrasta,ao contrariocoincide, com 0 espiritual e mo-

ral'"." Por antitese, fiel ao seu originario antibenthamia-

nismo, Mazzini afirma que 0 progresso espiritual e con-

dicao do progresso material: com a doutrina da felicida-

de e do bem-estar inspirada no utilitarismo, Iormam-se

homens egoistas,' adoradores da materia. "Trata-se,

pois, de encontrar urn principio educativo superior ... E

esse principio e 0 dever" .66

(64) G. Mazvini. / S/sl"/I/l " / 1 1 Democrazia, cit., p. 96.

(6S) R. Romeo. ( '1 11 '' '1 11 , i/ su«. Tempo, cit., p. 288.

(66) G. Mazzini. /1.,/ /)''''''''/ dcit'Uomo, in Scritti Politici, cit., p. 847.

15. A democraciadiante do socialismo

I<,

Nao obstante 0conubio historico, lenta e arduamen-te realizado, entre ideais liberais e ideais dernocraticos, 0

contraste entre liberalismo e democraciajamais chegou a

diminuir. Ao contrario, sob certos aspectos veio se acen-

tuando nos ultimos anos.Para manter vivo 0 contraste e acentua-lo, sobre-

veio, a partir da segunda metade do seculo p~ssado, a

entrada na cena politic a do movimento operario , que se

vai inspirando cada vez mais nas doutrinas socialistas,

antitetlcas as liberais, embora sem repudiar 0 metodo

democratico, que sob revive numa expressiva parte do

movimento, regra geral em sua ala reformista, como, por

exemplo, no partido trabalhista Ingles ou no partido so-

cial-democratico alemao. A relacao entre liberalismo e

democracia, como vimos, nunca foi de antitese radical,

apesar de tel' sido dificil e freqiientemente contestado 0

enxerto dos ideais dernocraticos no tronco originario dos

ideais liberais, e apesar da integracao entre liberalismo e

democracia, onde ocorreu, ter se dado lentamente, nao

sem contrastes e rupturas, A relacao entre liberalismo esocialismo, ao cOlltr[lrio,jQ~ desde 0 inicio uma relacao

de antitese clara, c isso nao apenas, como seria possivel

 

L1BERALISMO E DEMOCRACIA81

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80 NORBERTO BOBBIO

a~re?it~r, n~ d~utrina marxiana emarxista. Qpomo da

dISCO.r?l~oi a liberdade economica, que pressupoe a de-

f~sa ilimitada da propriedade privada. Por mais defini-

coes que se possam dar do socialismo do seculo passado

(~f~ram dadas centenas), ha ao menos urn criterio dis-

tmtlv~ const.ante e determinante para distinguir uma

do?trma sO~lalistade todas as outras: a critica da pro-

priedade privada como fonte principal da' ~desigualdade

entre oshome~s"(para retomar 0conhecido discurso de

~ousseau) ~a sua eliminacao total ou parcial como pro-

Jet~ d.a sociedade futura. A maior parte dos escritores

~ocla~l~tas e dos movimentos que neles se inspiraram

IdentIfl~ar,a~ 0 l!h~r_a1is1ll()- com ou sem razao, mas no

~lano historico certamente com razao - com a defesa da

b~erdade:eco.n?mica e, portanto, com a defesa da pro-

pne~ad~ individual como unica garantia da liberdade

econ,o~lUca,entendida por sua vez como pressuposto ne-

cessano da real explicacao de todas as outras liberdades.

Nu~~ concep~ao c1assista da hist6ria, que 0movimento

socialista havia herdado da historiografia burguesa se-

gundo a qu~l 0 principal sujeito hist6rico sao as classes e

o~e~envolvlmento hist6rico sefaz com a passagem do do-

mt~10de.uma ~lasse para 0dominio de uma outra classe,

o bbera~lsmo, interpretado como a concepcao segundo a

qual a ltberdade economica e 0 fundamento de todas a

demais ~iberdades.e sem e1a nenhum homem pode se~

verdadeiramente livre, terminava por ser degradado

p~losescritores socialistas enao s6por Marx (que apesa~

disso exc:rceu u~a prevalente influencia na formacao

dos partidos socialistas continentais, especialmente na

Alemanha ~na ~ali~), apura esimples ideologia da classe

b?r~uesa, IStOe, a ideologia da parte adversa que os so-

cialistas deveriam combatcr ate acompleta extincao.

. Enquanto:1 rel;II::1O entre liberalismo e socialismo

foide clara antitesc, lallio xc 0 socialismo fosse julgado

a base de seu projeto de sociedade futura como se Iosse

eonsiderado como a ideologia de uma c1asse destinada a

sueeder a classe burguesa no desenvolvimento progressi-

vo da hist6ria, a relacao entre socialismo e democracia

foi bern mais, desde a origem, urna relacao de comple-

mentaridade, assim como houvera sido ate entao a rela-

Gaoentre democracia e liberalismo. Tornou-se opiniao

eorrcntc\que 0 socialismo, julgado ate entao eomo in-

compativel com 0 liberalismo, nao era de Iato incom-

pativel com a democracia. Para reforcar 0 nexo de

compatibilidade (rnelhor: de complementaridade) entre

socialismo e democracia, Ioram sustentadas duas teses:

antes de tudo, 0 processo de democratiza<;ao produziria

inevitavelmente, ou pelomenos favoreceria, 0 advento de

uma sociedade socialista, fundada na transformac;ao doinstitute da propriedade e na coletiviza~ao pelo menos

dos principais meios de producao: em segundo lugar,

apenas 0 advento da sociedade socialista refor~aria e

alargaria a participac;ao politica e, portanto, tornaria

possivel a plena realizacao da democracia, entre cujas

promessas - que a dernocracia liberal jamais seria ca-

paz de cumprir - estava tambem a deuma distribui~ao

igualitaria (ou ao menos mais igualitaria) do poder eco-

nomico e do poder politico. Com base nessas duas teses,

a indissolubilidade de democracia e socialismo passou a

ser demonstrada, por parte das correntes principais do

socialismo, como uma condicao necessaria do advento da

sociedade socialista e, por parte das correntes democra-

ticas, como uma condicao do desenvolvimento da pro-

pria democracia.Com isso nao sc quer dizer que a relacao entre de-

mocracia e socialislllo tenha sido sempre pacifica. Sob

certos aspectos. ali;ls, Io i corn frequencia uma relacao

polemice, nao div('I'salllcnte da relacao entre liberalismo

e democraci«. J':ra t'Viilcnlc que 0 reciproco reforco da

 

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82 NORBERTO BOBBIO

democracia pelo socialismo e do socialismo pela demo-

cracia era uma relacao circular. De que ponto do circulo

dever-se-ia comecar? Comecar pelo alargamento da de-

mocracia significava contentar-se com um desenvolvi-

mento gradual e incerto. Era, ao contrario, possivel, de-

sejavel e licito comecar de imediato a transiormacao so-

cialista da sociedade com um saIto qualitativo revolucio-

nario, renunciando, portanto, ao menos provisoriamen-

te, ao metodo democratico? Assim foi que a partir da

segunda metade do seculo passado, ao contraste entre

liberalismo e democracia, foi-se sobrepondo 0 contraste

entre os defensores da liberal-democracia, de urn lado,

freqiientemente aliados entre si contra 0 socialismo con-

sider ado como negador tanto do liberalismo quanto dademocracia, e os socialistas democraticos e nao-demo-

craticos, de outro, divididos nao tanto pela oposicao ao

liberalismo (comum a ambos) quanto pelo diverso juizo

dado a respeito da validade e da eficacia da democracia ,

ao menos no primeiro momento da conquista do poder.

De qualquer modo, a dtivida sobre a validade do metodo

democratico para a assim chamada fase de transicao

jamais cancelou por completo a inspiracao democratica

de {undo dos partidos socialistas, no que se refere ao

avanco da democracia numa sociedade socialista, e a

conviccao de que uma sociedade socialista seria de longe

mais democratica do que a liberal, nascida e crescida

com 0nascimento e 0crescimento do capitalismo.

Em favor desse avanco da democracia socialista com

respeito it democracia liberal, pode-se encontrar na

imensa literatura do ultimo seculo ao menos tres argu-

mentos: a) enquanto a democracia liberal - ou, polemi-

camente, capitalista e, do ponto de vista do sujeito histo-

rico que a prornoveu , hurguesa - nasceu como demo-cracia representativa II;! qual os representantes eleitos

tomam suas decisoes xrm vinculo de mandato, a demo-

_ _ _ m . r iDn.,., ' _ ' _ " u

l' I i ·' i ~ II ' UU , II U ' I 'WU ' I , " "' I J , '' ' I J" ' '' ' I ;' ' 'J J ' J '' ' '. ' ' '' J ' '" . " ", , , , , , , , , , ,, , , , , . , ,, ,

LIBERALISMO E DEMOCRACIA 83

cracia socialista - ou, do ponto de vista classista, prole-

taria - sera uma democracia direta, no duple senti do de

democracia de todo 0 povo sem representantes e de de-

mocracia nao de representantes mas de delegados cujos

mandatos vinculados estao sujeitos a revogac;ao; b) en-quanto a democracia burguesa permitiu, ate 0 extremo

limite do safragio universal masculino e feminino, a par-

ticipacao no poder politico,· central e local, apenas a de-

mocracia socialista permitira a participacao popular

tambem na tom ada de decisoes economic as que numa

sociedade capitalista sao tomadas autocraticamente,

representando nesse sentido nao s6 urn reiorco da parti-

cipacao em intensidade, mas tambem uma extensao

quantitativa, como efeito da abertura de novos espaeos

para 0 exercicio da soberania popular em que consiste a

essencia da democracia; c) enfim, aquilo que mais im-

porta: enquantona democracia liberal a atribuicao ao

povo do direito de participar direta ou indiretamente das

decisoes politicas nao procede no mesmo passo de uma

mais equanime distribuieao do poder economico e, por-

tanto, faz do direito de voto uma mera aparencia, na

democracia socialista essa mais equanime distribuicso.

tornando-se urn dos objetivos primarios da rnudanca do

regime economico, transform a 0 poder formal de part~-cipacao em poder substancial e, ao mesmo tempo, reali-

za a democracia inclusive no seu ideal ultimo, que e 0 damaior igualdade entre os homens. .o fato de que movimentos antiteticos como 0movi-

mento liberal e 0 movimento socialist a tenham ambos

abracado 0 ideal democratico ao ponto de darem origem

a regimes de democracia liberal e a regimes de democra-

cia social, emhora nao socialista (urn regime que seja ao

mesmo tempo delllOcratico e socialista ate agora nao

existiu), podc fOlfn pcnsar que desde dois seculos a de-

mocracia {~ 111));1 l'sl,,':cie de denominador comum de

 

84 NORBERTO BOBBIO

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todos os regimes que se desenvolveram nos paises eco-

nomica e politicamente mais avancados. Mas nao se deve

acreditar que 0 conceito de democracia permaneceu 0

mesmo quando da passagern da democracia liberal ademocracia social. No binomio liberalismo mais demo-

cracia, democracia significa principalmente sufragiouniversal e, portanto, um rneio de expressao da livre

vontade dos individuos singulares; no binomio democra-

c~a mais socialismo, democracia significa ideal igualita-

no que apenas a reforma da propriedade proposta pelo

socialismo podera realizar. No primeiro binomio e conse-qiiencia, no segundo um pressuposto, Como conseqtien-

cia, no primeiro completa a serie das liberdades parti-

culares com a 1iberdade politica; como pressuposto, no

segundo, sera completada tao-somente pela futura e es-

perada transformacao socialista da sociedade capitalista.

A ambigiiidade do conceito de democracia surge em

toda a sua evidencia na assim chamada "democracia so-

cial", que deu origem ao Estado de servicos (expressao

mais apropriada do que aquelas, respectivamente falsas

por excesso e por defeito, de "Estado-bem-estar" e "Es-

tado assistencial"). A dernocracia social pretende ser,

com respeito a democracia liberal, uma fase ulterior, na

medida em que inscreveu na propria declaracao dos di-

reitos os direitos sociais, alem dos direitos de liberdade;pretende ser, ao contrario, com respeito a democracia

socialista, apenas uma primeira fase. Tal ambigtiidade

se revel a na dupla critica que a democracia social recebe

ora da direita, por parte do liberalismo intransigente,I A '

que ne a entreve uma diminuicao das liberdades indivi-

d.uais; ora da esquerda, por parte dos socialistas imp a-

cientes, que a condenam como solucao de compromisso

entre 0velho e 0 novo que, rnais do que favorecer a reali-

zacao do socialismo, a obxlaculiza e a torna ate mesmo

impossivel.

16. 0 novo liberalismo

Voltando it relacao entre liberalismo e democracia,

nao ha diivida de que a emergencia e a difusao das dou-

trinas e dos movimentos socialistas, bem como a corres-

podente e explicitamente declarada alianca desses mo-

vimentos com os partidos democraticos, reabriram 0

contraste historico entre liberalismo e democracia, exa-

tamente no momenta em que, caminhando os paises

mais avancados rumo ao sufragio universal, parecia que

entre liberalismo e democracia teria havido uma conci-liacao historic a definitiva. Se, efetivamente, como estava

inscrito no programa dos partidos social-democraticos

da Segunda Internacional, 0 processo de progressiva

democratizacao levaria inevitavelmente ao socialismo,

deveriam os liberais favorecer esse processo? Precis a-

mente na reacao contra 0 presumido avanco do socialis-

mo, com sell programa geral de economia planificada e

de coletivizaciio dos meios de producao, a doutrina libe-

ral Ioi cada va, mais se concentrando na defesa da eco-

nomia de mcrca do c da liberda de de iniciativa economica

(bern como da corrcspondente tutela da propriedade pri-

.I.: I t l t i l i t ! • • • ' I ' ! ! I : I : I : I I ' l t 1 1 1 " 1 ' . 11 : II II IW : !: • • : : i I . : 1 i I I : ! : I I : :I : : I I I ! : " ' I i I I ' i I : . : :I t l l ' l l : _ . 1 : . : : 1i II ': !: I: I. I! "I iI i! I: !_ I I II ": II :I iI i" W II I: !l !! H iI II !l !i il ll :" ". "" :" ", , : ' " " 1 , ' 11 : ' ,' : ": 1" 1 :, .1 1 1 1 :1 , , ,, ', ': "; :' 11 '1 ' - '- _ ,

 

86 NORBERTO BOBBIOLIBERALISMO E DEMOCRACIA 87

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vada), identificando-se com a doutrina economic a que

na linguagem politica italian a recebeu 0 nome de libe-

rismo. Como sempre ocorre, mesmo diante do contraste

entre duas ideologias nascidas em contraposicao uma aoutra e nas suas linhas programaticas antiteticas, como

liberalismo e socialismo, existiram tentativas de media-r;ao ou de sintese, que van do conhecido livro de Hobhou-

se (1864-1929) de 1911, Liberalismo, ao Socialismo Libe-

ral, de Carlo Rosselli (1899-1937), de 1930 e, para ficar

na Italia, ao Iiberal-socialismo, formula desconhecida

em outros lugares, mas que, apesar disso, foi a ideia ins-

piradora de um pequeno partido antifascista, 0 Partido

da Acao, que durou poucos anos (1942-1947). A antitese,

porem, permaneceu e se foi reforcando e enrijecendo nos

dois ultimos decenios, em seguida a dois fenfimenos his-

toricamente muito relevantes: num primeiro tempo, 0

flagrante nao-Iiberalismo dos regimes em que foi tentada

pela primeira vez uma transformaean socialista da socie-

dade; num segundo tempo, a emergencia de aspectos

nao-Iiberais nos regimes em que mais avancou a realiza-

eao do Estado-previdencia. 0socialismo liberal (ou libe-

ral-socialismo) permaneceu ate agora ou urn ideal dou-

trinario abstrato - tao sedutor em teoria quanta dificil-

mente traduzivel em instituicoes - ou uma das formulas

que servem para definir aquele regime no qual a tutelado aparato estatal se estendeu dos direitos de liberdadeaos direitos sociais.

Enquanto a conjugacao de liberalismo e socialismo

foi ate agora tao nobre quanto veleitaria, a progressiva

identificacao do liberalismo com 0 liberismo e urn dado

de fato indiscutivel, cuja constatacao' serve para com-

preender urn aspecto (e nao dos mais irrelevantes) do

atual Iitigio politico que sc estende dos Estados Unidos

a Europa ocidental, Na Italia, urn episodio extrema-mente significative d("s~)('esdarecimento foi a disputa

entre Croce e Einaudi (1874-1961), travada nos ultimos

anos do regime fascista, sobre a relacao entre 0 libera-

lismo etico-politico e 0 liberalismo economico. Nessa

disputa, Einaudi, como economista liberal que era, sus-

tenta contra Croce a tese segundo a qual liberalismo eti-

co-politico e liberalismo economico (ou liberismo) sao in-

dissohiveis, e onde nao ha 0 segundo nao pode haver 0

primeiro. 'por sua vez, Croce, que sob certos aspectos era

mais conservador do que Einaudi, sustenta a tese oposta,

segundo a qual a liberdade, sendo urn ideal moral, pode

se realizar atraves das mais divers as providencias eco-

nomicas desde que voltadas a elevacao moral do indivi-

duo, citando com aprovacao a "bela eulogia e apologia"

do socialismo liberal feita por Hobhouse."

Ao se observar 0 significado prevalente de liberalis-mo, com referencia particular as diversas correntes assim

chamadas neoliberais, e preciso admitir que entre 0 fil6-

sofo e 0economista teve razao 0 segundo. Por neolibera-

lismo se entende hoje, principalmente, uma doutrina

economica conseqiiente, da qual 0 liberalismo politico e

apenas urn modo de realizacao, nem sempre necessario:

ou, em outros termos, uma defesa intransigente da liber-

dade economica, da qual a liberdade politica e apenas

urn corolario. Ninguem melhor do que um dos notaveis

inspiradores do atual movimento em favor do desmante-

lamento do Estado de services, 0 economista austriaco

Friedrich von Hayek, insistiu sobre a indissolubilidade

de liberdade economica e de liberdade sem quaisquer ou-

tros adjetivos, reafirmando assim a necessidade de dis-

tinguir c1aramente 0 liberalismo, que tern seu ponto de

(67) Os momiound .."('slTitosde Croce e de Einaudi foram reunidos no

volume Liberismo c:'d"·,.,,h.\1II0, P. Solari (org.), Napoles, Ricciardi, 1957. 0

elogio a Hobhousc s,· ,,",'oulra uo primeiro desses escritos, La Concezione

Liberale come CII/""':',>I,,' '/"/1" Vii" (1927), p. 14.

•••• '•...'1::1.11I m m l W l l t l? _ . : l I i I Y I i I W ! ! ' I i I W ' l i I u! : : :I i I· _ ' * I i IU ; ! U ' l iI t ' .: ! I '. W : - : . ' !I t : .U U i U . : W . : * U : I I i i' : U ! ' :" I I I' ' ji l li f il i li l ll i li l ·' * W I I I I & i l: l ll l lU i ' : 'l I ii i li U i i ll i li l :U ' I I I i' W H t U . ' i W \ ! i I .' " . U I ' . _ w w _ · ! ! lU : ' : ' : : t :. , :: , ; !, i , i i l i iu : i i : !, l t l iJ :l i " " I I •

 

88 NORBERTO BOBBIO LIBERALlSMO E DEMOCRACIA 89

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partida numa teoria economica, da democracia, que euma teoria politica, e atribuindo it liberdade individual

(da qual a liberdade econornica seria a prime ira condi-

cao) urn valor intrinseco e a democracia unicamente um

valor instrumental. Hayek admite que, nas lutas passa-

das contra 0 poder absoluto, liberalismo e democracia

puderam proceder no mesmo passe e confundir-se um na

outra. Mas agora tal confusao nao deveria mais ser possi-

vel, pois acabamos por nos dar conta - sobretudo obser-

vando a que consequencias nao-Iiberais pode conduzir, e

de fato conduziu, 0 processo de dernocratizacao - de

que liberalismo e democracia respondem a problemas di-

versos: 0liberalismo ao problemas das funcoes do gover-

no e em particular it limitacao de seus poderes; a demo-

cracia ao problema de quem deve governar e com quaisprocedimentos.

o liberalismo exige que todo poder - e, portanto,

tambern 0 da maio ria - seja submetido a limites.

A democracia, ao contrario, chega a considerar a

opiniao da maioria como 0 unico limite aos poderes

governativos. A diversidade entre os dois principios

emerge do modo mais claro ao se atentar aos respec-

tivos opostos: para a democracia, 0 governo autori-

tario: para 0liberalismo, 0totalitarismo."

Naturalmente, tambem 0 termo "Iiberalismo",

como todos os termos da linguagem politica, conheceu

diversos significados, mais ou menos amplos, Porem, 0

pensamento de von Hayek, exposto em numerosas obras

que podem muito bem ser consideradas como a summa

da doutrina liberal contcmporanea, representa uma no-

(68) Friedrich V " " l i avrk . libcralismo, inEnciclopedia del Novecento ,

Rorna, Ist ituto cldl'E"(' id"I ' . .t lia 11. i11"" ;I , vol . 3 , p, 990 .

tavel confirmacao daquilo que foi 0micleo originario do

liberalismo classico: uma teoria dos limites do poder do

Estado, derivados da pressuposicao de direitos ou inte-

resses do individuo, precedentes a formacao do poder

politico, entre os quais nao pode estar ausente 0 direito

de propriedade individual. Tais limites valem para quem

quer que detenha 0 poder politico, inclusive para 0 go-

verno popular, isto e, inclusive para um regime demo-

cratico em que todos os cidadaos tem 0 direito de parti-

cipar mesmo que indiretamente da tomada das grandes

decisoes, e cuja regra e a regra da maioria. Ate on de se

estendem os poderes do Estado e ate onde os direitos dos

individuos, ou a esfera da assim chamada liberdade ne-

gativa, e algo que nao pode ser estabelecido de uma vez

para sempre: porem, e principio con stante e caracteris-tico da doutrina liberal em toda a sua tradicao, especial-

mente a anglo-saxa, que 0 Estado e tao mais liberal

quanta mais reduzidos sao esses poderes e, correlativa-

mente, quanta mais ampla e a esfera da liberdade nega-

tiva. A diferenca entre liberalismo e autoritarismo (me-

lhor que totalitarismo) esta na diversa conotacao positiva

ou negativa dos dois termos opostos, poder e liberdade, e

das conseqiiencias-que disso derivam. 0 liberalismo e a

doutrina na qual a conotacao positiva cabe ao termo "Ii-

berdade", com a conseqiiencia de que uma sociedade e

tanto melhor quanta mais extensa e a esfera da liberdade

e restrita a do poder.

Na Iorrnulacao hoje mais corrente, 0 liberalismo e a

doutrina do "Estado minirno" (0minimal state dos an-

glo-saxoes). Ao contrario dos anarquistas, para quem 0

Estado e um mal absolute e deve, pois, ser eliminado,

para 0 liberal () Estado e sempre um mal, mas e neces-

sario, devendo, porranto, ser conservado embora dentro

de limites os mais restritos possiveis. Precisamente combase na exito < 1 : 1 j'('lt'llluia "Estado minimo" explica-se a

• • : . · lm l rI O -I '- -l lt " I' ! l i l l i ' t l m l - - I I U ! ! l t l t ll l t lt l u : r @ . I , . ,. P ' . 1r ' . ' I i I Q l i l l i l l l l i T l l l i i ! ! ! : I i I I t ! ' I I Ii I : : I I I i W ' i U I I I I ' : i : I i U I I i I I W ' I I i I I W H I I D H ! ! ! H H . , ! ' H Y_I'!U"iI,IJld,"d_ ";,I,iiiiliii,i;ih,IIILlllll li------

 

90 NORBERTO BOBBIO LIBERALISMO E DEMOCRACIA 91

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vastidao do debate travado em torno ao livro de Robert

Nozick, Anarquia, Estado e Utopia, surgido em 1974.69

A obra de Nozick move-se contra duas frentes: contra 0

Estado maximo dos defensores do "Estado de justica" ,

ao qual sao atribuidas funcoes de redistribuicao da ri-queza, mas tambem contra a total eliminacao do Estado

proposta pelos anarquistas. Embora com argumentos

novos, Nozick retoma e defende a tese liberal classica do

Estado como organizacao monopolista da forca cujo

iinico e limitado objetivo e proteger os direitos indivi-

duais de todos os membros do grupo. Partindo da teoria

lockeana do estado de natureza e dos direitos naturais,

mas repudiando 0 contratualismo como teoria que ve 0

nascimento do Estado num acordo voluntario e se en-

trega a feliz (e talvez tambem falaz) ideia de uma criacaoda "mao invisivel", Nozick constroi 0Estadocomo uma

livre associacao de protecao entre individuos que estao

num mesmo territorio, cuja Iuncao e a de defender os di-reitos de cada individuo contra a ingerencia por parte de

todos os demais e, portanto, a de impedir qualquer for-

ma de protecao privada, ou, dito de outra forma, a de

impedir que os individuos facam justica por si mesmos.Alem do mais, quanto a determinacao dos direitos indi-

viduais que 0 Estado deve proteger, a teoria de Nozick

esta genericamente fundada sobre alguns principios do

direito privado, segundo os quais todo individuo tern di-

reito de possuir tudo 0que adquiriu justamente (ou prin-

cipio de justica na aquisicao) e tudo 0 que adquiriu jus-

tamente do proprietario precedente (principio de justica

na transferencia). Qualquer outra funcao que 0 Estado

(69) Para urn resumo do debate, com a correspondente bibliografia,

ver F. Comanducci, "l.a meta-utopia di Nozick", Materiali per una Stor ia

della Cultura Giuridica , XII, l'lill. 1'1'. 507-523_Tambern existe uma tradu-"ao italiana do livro de Nozn-k , llon-ucu, LeMonnier, 1981.

I: : ! !!!! II I I :!: ., n i l ; ; Wi . 1 I !: : lt : ! ' i' 1 U m ' : ! i t u : : ! " ! ! " U: r : U · \- l u q 'H H H

se atribua e injusta, pois interfere indevidamente na vida

e na liberdade dos individuos. A conclusao e que 0 Es-

tado minimo, embora sendo minimo, e 0 Estado mais

extenso que se possa conceber: qualquer outro Estado e

imoral.A teoria de Nozick poe mais problemas do que ecapaz-de . resolver: esta toda fundada na aceitacao da

doutrina juridica dos titulos de aquisicao originaria e de-rivada da propriedade, sobre a qual 0 autor nao da a mi-nima explicacao. De qualquer modo, represent a exem-

plarmente 0ponte extremo a que chegou a reivindicacao

da tradicao autentica do liberalismo, como teoria do Es-

tado minimo, contra 0Estado-bem-estar que se propoe,

entre as suas Iuncoes, tambem a da justica social. Como

tal, nao pode deixar de acertar as contas com a tradicaodo pensamento democratico, nao tanto no que diz respei-

to a democracia igualitaria (que, como se disse desde 0

inicio, mal se concilia com 0 espirito do liberalismo)

quanto a propria democracia formal, cujo exercicio leva-

ria por toda parte - inclusive onde nao se formaram

partidos socialistas, como nos Estados Unidos - a urn

excesso de intervencionismo estatal incompativel com 0

ideal do Estado que governe 0menos possivel.

 

LIBERALISMO E DEMOCRACIA 93

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17. Democracla e

lngovemabllldade

A relacao entre liberalismo e democracia foi sempre

uma relacao dificil: nee cum te nee sine te. Hoje que 0

liberalismo parece mais uma vez ancorado, de resto coe-

rentemente com a sua melhor tradicao, na teoria do Es-

tado minimo, a relacao tornou-se mais dificil do que

nunea. Nesses ultimos anos 0tema principal da polemic a

foi 0 da ingovernabilidade." Enquanto que no inicio do

litigio 0alvoprincipal foi, como seviu, a tirania da maio-

ria, donde derivou a defesa intransigente da liberdade

individual contra a invasao da esfera publica mesmo que

regulada it base doprincipio demaioria, hoje 0alvoprin-

cipal e a incapacidade dos governos democraticos de do-

minarem convenientemente os conflitos de uma socie-

dade complexa: urn alvo de sinal oposto, nao 0 excesso,

mas 0defeito do poder.

(70) 0 debate sobre a ingllvtTllahilidade das democracias nasceu com

a obra coletiva de M. Crozier, S. I' 1IIIIItington e J. Watanuki, La Crisi della

Democrazia. Rapporto sulla (;ol"'(11,,/Jihlu della Democrazia alia Commis-

. sione Trilaterale(1975)(lrad.'1 ,Md,,", Franco Angeli, 1977),

otema da ingovernabilidade a que estariam predes-

tinados os regimes democraticos pode ser articulado em

tres pontos:

a) bern mais do que os regimes autocraticos, os re-

gimes democratic os sao caracterizados por uma despr~-

porcao crescente entre 0mimero de demandas proveni-

entesda sociedade civil e a capacidade de resposta do

sistema politico, Ienomeno que na terminologia da teoria

dos sistemas recebe 0nome de sobrecarga. Tal fenomeno

seria caracteristico das democracias por duas razoes

opostas, mas convergentes para 0mesmo resultado. De

urn lado, os institutos herd ados pelo regime democratico

doEstado liberal, que, como se disse, constituem 0pres-

suposto do born funcionamento do poder popular, da li-

berdade de reuniao e de associacao, da livre organizacao

degrupos deinteresse, de sindicatos, de partidos, itmaxi-

maextensao dos direitos politicos, fazem com que se torne

mais Iacil, por parte dos singulares e dos grupos, 0enca-

minhamento de solicitacoes aos poderes publicos para

serem atendidas no rnais breve tempo possivel, sob a

ameaca de urn enfraquecimento do consenso, numa pro-

porcao absolutamente desconhecida pelos governos auto-

craticos, onde os jornais sao control ados pelo governo,

onde os sindicatos nao existem ou sao dependentes dopoder politico, onde nao existe outro partido a nao ser 0

que apoia 0 governo ou e uma emanacao direta dele. I?e

outro lado, os procedimentos predispostos por urn SIS-

tema dernocratico para tomar as decisoes coletivas, ou

que deveriam dar uma resposta as demandas propost~s

pela sociedade civil, sao de ordem que desaceleram e as

vezes esvazia 111 , atraves do jogo dos vetos cruzados, 0

proprio iter da dccisao, it diferenca do que ocorre num

regime autocraticn, onde a concentracao do poder em

poucas maos (S('II:10 ate mesmo urn chefe carismatico

cuja vontade (. h - i ) c a supressao das instancias como °

 

94 NORBERTO BOBBIO LlBERALISMO E DEMOCRACIA 9S

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parlamento - no qual as diversas opinioes sao confron-

tad as e as decisoes tomadas apenas apes longos debates,

com as proprias decisoes do parlamento podendo ser

submetidas ao controle de urn orgao jurisprudencial

como a corte constitucional ou ao proprio povo atravesdo recurso ao referendum - permitem decisoes rapidas,

peremptorias e definitivas. Com uma expressao sintetica,

pode-se exprimir esse contraste entre regimes democra-

ticos e autocraticos com respeito a relacao entre de-

mandas e respostas dizendo que, enquanto a democracia

tern a demanda facil e a resposta dificil, a autocracia

torna a demanda mais dificil e tem mais Iacil a resposta;

b) nos regimes democraticos a conflitualidade so-

dale maiordo que nos regimes autocraticos, Como

uma das funcoes de quem governa e a de resolver os con-flitos sociais de modo a tornar possivel uma convivencia

entre individuos e grupos que representam interesses di-

versos, e evidente que quanta mais aumentam os con-

flitos mais aumenta a dificuldade de domina-los. Numa

sociedade pluralista,como e a que vive e floresce numsistema politico dernocratico, onde 0 conflito de classe emultiplicado por uma miriade de conflitos menores cor-

porativos, os interesses contrapostos sao rmiltiplos, don-

de nao e possivel satisfazer urn deles sem ofender urnoutro, numa cadeia sem fim. Que 0 interesse das partes

singulares deva estar subordinado ao interesse coletivo euma formula, corn efeito, privada de urn conteiido pre-

eiso. Geralmente 0 unico interesse comurn a que obe-

decem os varies componentes de urn governo democra-

tico, de urn governo em que os partidos singulares devem

prestar contas aos proprios eleitores das opcoes feitas, e ode satisfazer os interesses que produzem maiores con-

sensos e sao sempre interesses parciais;

c) nos regimes dcrnocraticos 0poder esta mais am-

plamente distribuido do que 110S regimes autocraticos;

ne1esseencontra, ern contraste com 0que ocorre nos re-

gimes opostos, 0 fenomeno que hoje se denomina de po-

der "difuso". Uma das caracteristicas da sociedade de-

mocratica e a de ter mais centros depoder (donde 0nome

que bern thecabe de "poliarquia"):0

poder e tanto maisdifuso quanto mais 0governo da sociedade e em todos os

niveis regulado por procedimentos que admitem a parti-

cipacac, 0 dissenso e, portanto, a proliferacao dos lu-

gares em que se tomam decisoes coletivas. Mais que di-

fuso, 0 poder numa sociedade democratic a tambem efragmentado e de dificil recomposicao. As conseqliencias

negativas dessa fragrnentacao do poder com respeito ao

problema da governabilidade sao logo reveladas: a frag-

mentacao cria coneorrencia entre poderes e termina por

criar urn conflito entre os proprios sujeitos que deveriam

resolver os conflitos, uma especie de conflito it segunda

potencia. Enquanto 0 conflito social e dentro de certos

limites fisiologico, 0 conflito entre poderes e patologico

etermina por tornar patologica, exasperando-a, tambem

a normal conflitualidade social.

A demincia da ingovernabilidade dos regimes demo-

craticos tende a sugerir solucoes autoritarias, que se mo-

vern ern duas direcoes: de urn lado, em reforcar 0Poder

Executivo e assim dar preferencia a sistemas de tipo pre-

sidencial ou semipresidencial em detrimento dos sis-

temas parlamentares classicos; de outro lado, ern ante-

por sempre novos limites it esfera das decisoes que po-

dem ser tomadas com base na regra tipica da demo-

cracia, a regra da maioria. Sea dificuldade em que caem

as democracias deriva da "sobrecarga", os remedies, de

fato, podem ser essencialmente dois: ou urn melhor fun-

cionamento dos orgaos decisionais (nessa direcao vai 0

acrescimo do podcr dogoverno com respeito ao do parla-

mento) ou uma drastica limitacao do seu poder (nessadirecao van as propostas de limitar 0poder da maioria).

 

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Todas as democracias reais, nao a ideal de Rousseau,

nasceram limitadas, no sentimento ja esclarecido de que

as decisoes que cabem a maioria foram subtraidas desde

o inicio todas as materias referentes aos direitos de liber-

dade, chamadas precisamente de "inviolaveis". Urna das

propostas avancadas por uma corrente de escritores neo-

liberais consiste em exigir que seja limitado constitucio-

nalmente inclusive 0 poder economico e fiscal do parla-

mento, de modo a impedir que a resposta politica a de-

manda social acabe por produzir urn excesso de despesa

publica com respeito aos recursos do pais. Ainda uma

vez 0 contraste entre liberalismo e democracia se resolve

na aceitacao, por parte da doutrina liberal, da demo-

cracia como rnetodo ou como conjunto de regras do jogo,

mas tambem, paralelamente, no estabelecimento perm a-nente dos limites em que podem ser usadas aquelas re-

gras.

Quando no seculo passado se manifestou 0 con-

traste entre liberais e democratas, a corrente democra-

tica levou a melhor, obtendo gradual mas inexoravel-

mente a eliminacao das discriminacoes politicas, a con-

cessao do sufragio universal. Hoje, a reacao democratic a

diante dos neoliberais consiste em exigir a extensao do

direito de participar na tomada das decisoes coletivas

para lugares diversos daqueles em que se tomam as de-

cisoes politicas, consiste em procurar conquistar novos

espacos para a participacao popular e, portanto, em pro-

ver a passagem - para usar a descricao das varias etapas

do processo de democratizacao feita por Macpherson -

da fase da democracia de equilibrio para a fase da demo-

cracia de participacao. 71

(71) C. B. Macpherson. tt...{,iii, find Time 0/ Liberal Democracy, os -ford University Press, 1977 (Ir.ul. il , 1 - : . Albertoni (org.), Milao, II Saggiatore,

1980). Segundo 0 autor, ," ' 1 " " ' 1 1> Ills",; do desenvolvimento da democracia

Para quem examina essa constante dialetica de libe-

ralismo e democraeia de um ponto de vista de teoria po-

litica geral, fica claro que 0 contraste continuo e jamais

definitivamente resolvido (ao contrario, sempre desti-

nado a se colocar ern niveis mais altos) entre a exigencia

dos liberais de urn Estado que governe 0men os possivel e

ados democratas de um Estado no qual 0 governo esteja

ornais possivel nas maos dos cidadaos, reflete 0contraste

entre do is modos de entender a liberdade, costumeira-

mente cham ados de liberdade negativa e de liberdade

positiva, e em relacao aos quais se dao, conforme as con-

dicoes historicas, mas sobretudo conforme 0 posto que

cada um ocupa na soeiedade, juizos de valor opostos: os

que estao no alto preferem habitualmente a primeira, os

que estao embaixo preferem habitualmente a segunda.Como em toda sociedade sempre existiram ate agora uns

e outros, 0 contraste benefice entre as duas liberdades

nao e do tipo das que podem ser resolvidas de uma vez

para sempre, com as solucoes POI' ele recebidas sendo

muitas vezes solucoes de compromisso, Infelizmente tal

contraste nem sempre e possivel: nao e possivel nos re-

gimes em que, no posto da primeira, ha um poder sem

limites; no posta da segunda, urn' poder aeima de qual-

quer controle. "Mas contra um e contra outro, liberalismoe democraeia se transformam necessariamente de irmaos

inimigos em aliados.

sao a democracia prorcrora, a democracia de desenvolvimento, a dernocracia

de equilibrio e, por [jIll (ainda nao realizada), a democracia participativa.