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noite danilo arnaldo briskievicz

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noite

danilo arnaldo briskievicz

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noite danilo arnaldo briskievicz

tipographia serrana serro - 2009

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para Caetano Veloso pelo lado

místico da lua

De manhã escureço De dia tardo De tarde anoiteço De noite ardo.

Vinícius de Moraes, Poética (I)

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ApresentaçãoApresentaçãoApresentaçãoApresentação Anoitecer: ir chegando a noite; fazer-se noite;

escurecer. Na noite a poesia escorre como

orvalho colhido pela emoção como gotas pelos

alquimistas medievais. Esse orvalho purifica a

alma. Tonifica a existência. Plenifica o estar-no-

mundo. A noite feita poesia é um culto

necessário aos ciclos da vida, da natureza e da

própria alma, aprendiz de tempos imemoriais.

Noite é o terceiro livro da trilogia Manhã, Tarde,

Noite. Com ele fechamos 24 horas de poesia de

um cotidiano vasto, amplo, aberto às mais

variadas metáforas e descrições. Acompanhe-nos

nessa poesia noturna cheia de lua, de bichos, de

memórias da infância, de um cotidiano que se

faz vida. Na vida, com a vida, pela vida

aprendemos os ciclos da existência.

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La nuit.William-Adolphe Bouguereau. 1883.

Nyx era a deusa grega da noite. Hesíodo afirma que a Noite era irmã do Caos, o que a torna uma das primeiras criaturas a emergir do vazio. Isso significa que Nyx deu origem a um número de crias. Algumas dessas crianças da Noite eram Éris (a Discórdia ou Altercação), as Moiras (Cloto, Lachesis e Atropos), Nêmesis, a Ética, as Queres, a Miséria, os Sonhos e os irmão gêmeos Hypnos (Deus do sono) e Thanatos (Deus da morte). Nyx percorre o céu, coberta por um manto negro, sobre um carro puxado por quatro cavalos negros e sempre acompanhada das Queres.

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chegada

a noite chega como notícia boa anunciada pelo silêncio dos pássaros acomodados em árvores e postes a noite chega na temperatura ideal nem mais nem menos apenas minha noite ser feliz plenamente de asas abertas no tempo ela vem como um véu sobre o dia mas longe de me esconder é na noite revelo-me mais de mim ao mundo chega e fica para sempre escura como outro lado da lua a vida agora é rua e sonho

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órbita

a lua serena desperta esperta e cheia devagar a liberdade está plena a lua rege o livre-arbítrio a lua vai chegando e acerta a órbita do sentimento a noite é porta aberta

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atividade noturna

os bichos da noite saem para a rotina de asas grandes e brancas a coruja mira de longe os gambás de ritmo lento sobem em árvores fruto fresco os morcegos nem precisam de luz a noite é feita de som a fruta de sabor os homens procuram outros corpos a noite tem um tempero próprio aquece a vontade de amar

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outro lado

de um lado sou plena luz outro lado sou luz que ainda não reluz de um lado sou plano que conduz outro lado sou abismo que ainda não seduz de um lado sou são jorge masculino outro lado sou mulher que ainda não reproduz de um lado sou clareza e distinção outro lado sou obscuro que ainda não deduz a lua me é homônima multifônica

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fogo

o asteróide feriu a terra fez uma vesga de luz é novidade em fogo espermatozóide astral desfez-se tão breve luz na boca da noite roçou fez o giro torto e caiu brilhou na boca do céu asteróide ana boli z ante

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fogueira

nada combina melhor com a noite do que a fogueira em volta dela nós cantando amando a fogueira liga o século de agora com um século inimaginável do tempo da pedra lascada rudimentar mas iluminado a primeira fogueira ainda queima outra agora e nós em volta teima o tempo se repete na noite reflete

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consolo

a noite esse farfalhar de lençol sobre o corpo se dois farfalhar duplo se um farfalhar puro a noite nesse leva e traz nas asas do morcego ou no brilho predominante da lua revirando as marés a noite nessa tríade do dia fechando o ciclo abrindo a boca em estrelas tantas me perco no universo interior a noite me inquieta para ser eu mesmo me salva para ser outro parado não se chega a noite me consola desde sempre

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chegada

a chegada em casa é som de cachorro latido lambida alegria plena a casa se ilumina trazer o mundo em casa objeto deixá-los quietos a casa recebe o dia acabado a casa percebe outro horário a noite enche cada casa novidade dia de trabalho

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pernas ao céu

as pernas para o alto depois do banho levar sangue ao cérebro as pernas para o ar esquecer o dia passos idos imagens as pernas para o céu pensar na lua lá fora cozinhar a noite na panela

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que necessidade

da noite dessa noite eu necessito mais que o ar que respiro que é cheio de sol do dia que passou e morto apodrece nas células mortas do corpo que agora vegeta e sente saudade de um ido tempo lindo da noite desse momento depois das dezoito horas eu preciso como abrigo que abrigue a paz dessa solidão e a ternura desse dizer ao mundo estou cansado de tudo que vai passando diante dos olhos em desesperança da noite meu espelho onírico eu desejo eu me perverto de tanto desejo em sumir dentro da face obscura da noite sem lua sem artifícios de luminosidade eu estou sem sela montado no cavalo da vida que corre corre corre na noite eu consigo encarar cara a cara meu espelho na artificialidade da luz elétrica que ilumina meu banheiro onde banho meu corpo cansado desse dia dia dia que se repete como que que que em frases que parecem que nada querem

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eu preciso dessa noite como ela se dá agora e não me roubem essa noite do jeito que ela está sem ligação telefônica sem televisão ligada sem ventilador no teto para amenizar minha mente girando girando girando a noite me devolvam a noite como ela é como ela se faz límpida pura como poema de alma poema de rima sentimental daqueles que a compreensão de séculos nada dirão pois o silêncio fechou o verso em sete palmos dou-me a noite pobre rota sem destino posta no meio de um caminho vago como onda fraca desabando no mar sem ninguém para lhe dar sentido que venha um mar de novidade para romper o dique dessa desencanto a noite eu me quero na noite desvairado como os lobos sem trégua diante de sua caça pequena e frágil e contagiados pela ferocidade da noite como sempre a natureza se mostra eu que sou natural me seja natural noite amada

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a noite eu deslizo por entre seus dedos e me amasse e me repasse em seus tempos de ontem de hoje de amanhã e me projete para o futuro distante de tão distante que seja agora como eu queria que a noite fosse apenas essa hipocrisia em dizer e nada falar em ouvir e nada entender em pestanejar os olhos e cair minha face pronta para mim mesmo onde está meu rosto próprio? onde está minha face de antes agora desfeita? a noite me rouba a noite me diz para calar a voz e mesmo assim roubo o silêncio infinito das linhas para deixar a saudade do som de um verso mesmo pobre caindo como chuva na linha aérea da poesia a noite sabe de mim mais que todos os olhos em meus olhos mais que as bocas em minha boca mais que eu mesmo sei de mim e nada sei sei que nada sei meu amigo sócrates me consola desde infinitos calendários a noite me dá o que tenho mais escondido se encontra é essa frieza na alma que se rompe de

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tempos em tempos e se torna se torna se torna isso isso isso dado sou um dado na noite jogado pelo destino sou um asno na noite amarrado e domesticado pela vida sou a página do livro já lido e relido e posto de lado preciso ser a próxima página que emoção ser a próxima linha na alça de mira eu preciso desatar os laços da prisão interior e deixar de lado o lado que me deixa sem lado e me põe em evidência eu preciso respirar os gases da noite para explodir em temperatura tanta que me faça fragmentos de novos sentidos eu preciso dessa noite como ela se dá agora para nunca esquecer dessa noite sem telefone sem televisão sem ventilador já estou resfriado demais já estou pleno demais já estou nauseado demais já sou muito no mundo eu preciso da noite como nunca pensei eu desejo a noite em libido existencial eu apenas preciso dessa noite e que ninguém nem eu mesmo me roube essa noite (por favor)

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noção

caiu a máscara o ás da manga inexiste saiu a lua uivo na rua persiste floriu o vaso às nove horas assiste choveu a nuvem ladeira abaixo desiste

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deus

se deus criou a partir da noite criou de fato o ato na noite vasto largo o tato da noite casto vário se deus criou na noite sonhou universo

per[feito]

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dia com noite

de dia fecho os olhos para fazer noite esperança de dia a sombra larga memória da noite refrescância de dia óculos escuros opor à luz a noite lembrança de dia perco de noite acho de dia morro de noite nasço

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dia/noite

não adianta acertar o passo benzer o sol na cabeça a lua desvira sentido o corpo atrapalhado desencontro da alma e corpo lua e sol a vida vai bem vai mal

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folha morta

o vento bate forte a noite se revolta a face gira e gira norte? a janela bate torta a noite acena chuva o pensamento cai folha morta?

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lição

de repente a noite somente ela me serve agora não somente a noite talvez o melhor dela me teste embora sei do sorriso disfarçado da hipocrisia deliberada me dói mas é sei da mentira escancarada da pouca fragilidade que é dada sei da noite para me encontrar apesar da face triste do outro que fere certo

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cama

a cama se desorganiza para abrigar o corpo volta à sua rotina

de manhã a cama se ajusta ao corpo para refletir calor ou frio depois levemente

es[vazia]

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metáfora

escondo debaixo do cobertor da noite defronto com o inimigo oculto no sonho a noite é deveras divertida metafórica

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travessia da noite

o travesseiro aconselha acredito nisso especialmente depois do dia longamente vivido o travesseiro desdenha permito isso cruelmente após o dia orgulhosamente tido a travessia da noite começa por ele travesseiro

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legado

deixo a noite para quem vive pois a noite é vida plena de plenitude iluminada eu não deixo a noite como herança pois a noite é um grande baú repleto de surpresas eu não deixo a noite por memória pois a noite é nada mais que a totalidade eu não

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infância

das noites vividas agarro-me no galho da infância para ser das noites várias ato-me aos primeiros dias da cidade velha para crer de lá me vejo por todas as outras noites vastas da vida vivenciando

de lá reflito em toda noite dada na rota da vida feito roda da fortuna

a infância é a noite mais bela da vida

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são jorge

a guia me guia da bahia a minas carmosina mãe de mim me guia de noite estrela no olho brilha a escuridão faz do grão estrela constelação

a guia azul da bahia ilumina

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frase de lua

a lua tem santo impresso cada montanha e abismo apresenta são jorge e dragão em mensagem de lua cheia a mensagem da lua é de fé e de pé leio a frase universal

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orquídea

a moça entrou no ônibus era noite e chovia era estranho mas trazia um embrulho celofane a orquídea agarrada ao vaso pedia a proteção das mãos a flor alta sabia do ditado medo de queda no ar a orquídea branca e rosa no vaso verde e preto no colo da moça morena a fragilidade está em toda parte

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alma nova

a lua nasce no morro do bicentenário corrige o rumo do tempo ido infância tola interior a lua cresce entre a montanha e os olhos se cheia clareia a mata se nova inspira a seiva se minguante me leva ao alto da santa rita a lua leva para o alto de lá sinto a cidade as pedras tantas as casas prontas refazimento da alma

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fragilidade

é na lua cheia somente nela o olho preso no céu tela

é na lua nova por que dela? saio no sono pela janela

é na lua crescente contrário da vela derreto a vida loucura repleta é na lua minguante a lua se deixa não sê-la olho a fotografia antiga vontade de refazê-la quando a lua se mexe em fases o movimento da vida é comum sempre frágil

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última ceia

a mesa ou o sofá ou um canto da casa a noite é hora da última ceia que seja a ceia pouca ou vária ou sem graça a noite é posta em xeque a última ceia um quadro retórico na parede

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mistério da meia noite

quando acordo de madrugada o silêncio invade os tímpanos o misterioso silêncio noturno do medo e da possibilidade quando acordo de madrugada tropeço em móveis pesados o misterioso objeto de tropeço está onde não deveria ficar quando acordo de madrugada sinto um arrepio na pele me lembro o universo humano é o dia dos homens sérios

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gatos

a janela dá para o quintal os gatos se dão na calada da madrugada uivos arranhões gemidos impaciência será? a lua fertiliza mais que o sol será? a madrugada é mais pura será? os gatos sabem do amor mais que nós?

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madrugada operária

não sei quem de fato dorme no mundo de hoje ou de muito tempo ido os homens fizeram da luz artificial um tempo outro um tempo tão outro madrugada é dia dia é dia mesmo hora é hora de qualquer coisa não sei se se dorme ou se se acorda quando os galos cantam no escuro só sei de um tempo outro dado olho vermelho no trabalho

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noite natural

a noite é da natureza o dia da impureza de noite o corpo nu de dia enclausurado na noite a vida é plena de dia é feia de noite o corpo saciado de dia rotinizado

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desdobramento

saio do corpo quando durmo percorro outro mundo sem muro saio do corpo porque fujo do corpo em descanso mudo saio do corpo em plenitude as cores são mais vivas do alto ou de dentro da cor maior ou porque vejo melhor sem tato ou por fora da órbita física ou porque caminho mais sem pés saio do corpo quando durmo o mundo de cabeça para baixo no escuro

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travesseiro de letras

as letras prenunciam o sonho abre-lhes caminho cada letra devagar compõe o divagar a leitura antes do sonho fertiliza a terra do nunca toda letra pulsa retórica cada frase rouba a lógica dormir sobre o livro é abençoado o travesseiro de letras é imaginário

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poste

o poste solitário segura centenas de velas braços forte e tesos estrutura de fios ligando a cidade o poste incansável abre os olhos na noite equilíbrio perfeito corpo de cimento pés no chão o poste vê quem perde a cabeça o poste vê quem desce a ladeira o poste é o vigia sóbrio da noite

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véspera de feriado

noite de véspera de feriado é vasta pois tem horizonte descanso de corpo e mente por vinte e quatro horas noite para dormir sem despertador programado

nada perturbe! noite para fugir sem medo para o à toa

nada marcado!

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ego

não sei da folha lançada ao chão nem mesmo do bicho falecido eu apenas sei do que vive dentro do mundo submerso do ego não sei da chuva fria saída da nuvem nem mesmo do vento que a janela abriu eu apenas sei do que se passa no interior do mundo próprio do eu

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vida noturna

enquanto durmo outra cidade acorda enquanto descanso outra idade passa vivaz feito o fogo sobre a brasa noite da música alta a música alta acorda as moléculas vibração em caixa acústica na noite alta o zumbido do ouvido se faz vida noturna

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noites geminadas

entre uma noite e outra era melhor ter ficado adormecido o dia com suas necessidades o seu apelo à atividade

neg[ócio] o dia é exposição forçada dos motivos de viver

im[posição] hoje era melhor duas noites uma seguida da outra

emendadas hoje é daquelas noites preferia geminadas

dia terrível

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mote

noite fria ia noturno quente ente noite mote oi noturno rígido turno

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a cidade sabe de mim

as pedras do pé-de-moleque sabem de mim mais que eu mesmo as marcas no caminho são tantas e as pisadas do chão da vida são vários a pedra no chão é lição de dois lados

as ruas íngremes as ladeiras incontornáveis os caminhos para o alto da cidade sabem de mim mais que eu mesmo por isso é bom repisar o passado para tirar do rumo incerto o certo rumo

as andorinhas da igreja de santa rita guardam em suas asas os sinais do tempo ido passado tido no alto da cidade montanhosa e traduzem o elevado melhor que os padres obcecados pelo pecado

a noite indevassável da cidade perdida no tempo ensinou que o tempo perdido também é útil para a vida a renovação é uma tela em branco esperando a tinta o pincel e o pintor os muros de pedra-sabão úmidos feito mulher em concepção sabem dos limites mais do que simbólico sonho de jung da psicanálise de freud ou do socialismo de marx

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a minha cidade é noite acolhedora na alma e dia frenético de perder a calma de perder a paz de perder a si mesmo a minha cidade me devolveu a mim mesmo na noite e de noite eu entendi a lição da cidade de interior lá se fazem almas prontas para o mundo tecidas por dona milude abençoadas por dona ermelinda das lages sem pedras no caminho por causa de luiz paletó e sua mania requintada de afastar as pedras para o canto da rua sem a sanidade infértil por causa dos loucos e das loucas mais divertidos do caminho de vida no interior o medo da loucura cura sem a fome bravia por causa da festa do rosário de mesa farta de almoço jantar e sobremesa de doces aprovados pelo ministério da saudade a cidade sabe de mim e me deu a vida

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bêbado

de um lado para o outro da rua vai ziguezague da alta hora da noite ponto cruz quase via sacra o bêbado costura os pés dão passos de dança clássica o equilíbrio é lição de vida toda a dança não acaba no chão passo em falso ele sabe de um rumo imaginário o bêbado tem bússola na alma norte no fundo do copo forte dom de rumo em casa a porta se abre no interior a tranca é só na alma não na casa

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joão suribim

ele subia na árvore com frutas sempre de madrugada um homem de quintal dos outros ele calava os cachorros com sua simpatia (no interior os cachorros conhecem a todos) as galinhas confundiam dedo com puleiro (no interior as galinhas são fáceis) joão surubim era uma figura de quintal de carnaval de rodoviária joão surubim morreu tão sem graça voltou a ser ninguém no interior o diverso é belo se controverso

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noite

a noite fria de lua cheia as torres demarcam o território em cada ponto da cidade

é de noite que os gatos saem assim como os gambás e nós

é de noite que o sonho basta assim como o cobertor para nós

a lua se encaixa em cada forma da cidade bela erguida nos morros a noite se esquadrinha em todo momento de uma amizade toda surgida no tempo

a noite fria congela os vegetais refrigera os peixes as aves os marsupiais devolve a vaga lembrança do uniforme vestido na noite anterior para a manhã seguinte de aula

a noite se põe estática nós caminhamos entre sombra e luz o quadro é amplo feito a vida toda

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ouvido

vivo puramente em lágrima convertida minto cada palavra pecaminosa crio esse sentido insignificante estou partido como ontem estou remexido como sempre estou parado para me enxergar

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húmus

estou cansado de me perseguir húmus a folha sobre o chão pode ficar murchando eu me vou passeando para dentro onde o húmus jamais aumenta ou diminui

inexiste a chuva sobre os carros pode escorrer para os rios eu me vou buscando na vida onde a correria pode existir mas não leva a nada a lua pode mudar suas formas aos olhos eu me vou refazendo fases onde bisturis não operam as horas que se passam em rugas várias

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escada

não desço a escada para subir de novo não sou mais criança e o fôlego acabou bem no meio da subida como a escada de jacó que sobe eternamente para outras dimensões fora da realidade física dos sem-fôlegos como deve ser viver sem o físico o corpo os sentidos numa esfera para acima da corporal? como deve ser respirar o ar rarefeito da quinta dimensão livre das amarras de um corpo gravitando em volta de si mesmo que se abram as prisões dos sentidos que se cortem os cordões da percepção violada que se cruzem as fronteiras da nova vida sempre renovada das outras percepções quero partir de vez em quando mas tenho medo de em outra dimensão o medo ainda fazer parte da mente sem corpo físico porque a prisão é um corpo cheio de sentido e cada sentido é uma cela própria pronta para ser aberta mas como abrir cada cela se estou violado por elas? como fazer essa volta essa viagem essa renovação essa despropositada volta ao que era antes? deus me criou para ser eterno e por isso cada estação menor é um suplício de novas escadas para subir para subir para subir!

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ar

preciso da vida em cada célula para viver todo o tempo de cada molécula preciso de sonho na mente para reviver todo o ontem no imaginário do agora eu preciso de ar para aromatizar de gás para borbulhar célula e molécula mente e imaginário

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benzedeira

eu virei meu vento ontem à noite ou foi ano passado não me lembro passei pela esquina de um beco ou numa encruzilhada do tempo

eu virei meu vento como papagaio solto no alto da santa rita por meninos de máquinas possantes e não mais deixei de sonhar

eu virei meu vento por causa das placas novas da estrada indicam rota diversa obrigam parada provisória e eu não sei torcer meu livre arbítrio

eu virei meu vento onde o vento faz curva deve ser no alto do morro da páscoa onde jesus anuncia seu novo tempo

eu virei meu vento e agora só mesmo benzedeira para terminar a obra do destino nas vias de dentro preciso me benzer com dona almerinda lá nas lajes

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ela conhece a rota dos ventos semeia brasas apagadas nos rios ela sabe que todo vento virado é destino que se faz lado a lado

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plenitude

não vou esperar a noite já sou dia tarde todo não vou esperar o duplo já sou guia caminho pleno não vou guardar as lembranças já sou futuro fé realizado

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último suspiro

o último suspiro da noite sou eu acordado o último escuro da noite sou eu abrindo os olhos a noite se vai sonho delírio sono a noite se foi com lua com luz com paz o último lapso da noite sou eu revigorado

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DANILO ARNALDO BRISKIEVICZ nasceu em Serro, Minas Gerais. Sua primeira publicação poética foi Identidade (1993), seguida de Tonel da memória (1994), Oratório de versos (2000), 300 (2002), Chão de poemas (2004), De tudo e de amor (2006), O cheiro sem cheiro da rosa sobre a mesa (2008), Transmutação (2009), Maresia (2009), Cotidiano (2009), Manhã(2009) e Tarde (2009). Interessado pela história serrana realizou diversas

pesquisas e registros, publicando o que pretende ser uma série histórica com outros temas que se encontram no prelo. Assim, surgiu A arte da tipografia e seus periódicos (2002) e A arte da crônica e suas anotações (2007). Reeditou o clássico serrano Memória sobre o Serro antigo (2008), de Dario Augusto Ferreira da Silva, de 1928, no qual fez, além do ensaio crítico sobre o poder no século XVIII, a adequação lingüística. Publicou no Serro três números da Revista de História do Serro, em 2002-2003.

Procurando novas formas de registro histórico, publicou Serro duas vezes (2008), trazendo uma visão poética e fotográfica da cidade do Serro. No enfoque fotográfico e histórico publicou Rostos 1998(2009). Foi redator do Jornal Livre Pensador e um dos criadores da Bolerata do Serro. Publica, desde 2006, O fóssil, jornal digital distribuído pela Internet. Publicou artigos de Filosofia no Recanto das Letras, entre eles Hannah Arendt e a violência política, Michel Foucault: violência, racismo biopoder, A noção de Gramática em Wittgenstein, Maquiavel: Estado, Política e sociedade civil, entre outros. É formado em Filosofia pela PUC-Minas, pós-graduado em Temas Filosóficos pela UFMG e mestre em Filosofia Social e Política, também pela UFMG. Os livros de poesia, história, fotografia e artigos de filosofia estão disponíveis no site do autor onde podem ser baixados gratuitamente.

Acesse o site do autor: http://recantodasletras.uol.com.br/autores/doserro

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Copyright by Danilo Arnaldo Briskievicz Todos os direitos reservados. Permitida a cópia/citação, reprodução,

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escrito.

FotografiasFotografiasFotografiasFotografias Capa: Pensão Silva, Rua do Corte, Serro.

Epígrafe: Gruta do Salitre, Extração, Minas Gerais. Lampião colonial no lusco-fusco, Serro, Minas Gerais.

Danilo Arnaldo Briskievicz, 2009.

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