nóica - as seis doenças

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BIBLIOTECA DE FILOSOFIA DO INSTITUTO BRASILEIRO DE HUMANIDADES

Biblioteca de Filosofia do Instituto Brasileiro de Humanidades

Constantin Nica

As Seis Doenasdo Esprito Humano

TraduoFernando Klabin e Elena Sburlea

Introduo e reviso tcnicaOlavo de Carvalho

Record/DAvila

1

Introduo4I. O quadro das seis doenas11[Doenas provenientes da carncia]12[1. Carncia do individual]13[2. Carncia do geral]13[3. Carncia de determinaes]13[Doenas provenientes da recusa]131. Dom Juan e a recusa do geral132. Tolsti e a recusa do individual133. Godot e a recusa das determinaes13As seis doenas13II. Catolite13III. Todetite13IV. Horetite13V. Ahoretia13VI. Atodetia13VII. Acatolia13VIII. O Equilbrio do Tempo e o Esprito Romeno13

210 Constantin Nica209As Seis Doenas do Esprito

AS Seis doenas do esprito

Causa imediataRecusaCarncia

Necessidade no atendida DoenaExemploDoenaExemplo

Generalidade1. AcatoliaD. Juan4. Catolite

Individualidade2. AtodeciaTolstoi5. Todetite

Determinaes3. AoreciaGodot6. Horetite

Introduo

Olavo de Carvalho

No desdeis la palabra, poeta. El mundo es ruidosoy mudo: slo Dios habla.Antonio Machado

H um humorismo sutil, meditativo e extravagante, na idia de nomear os mais sublimes padecimentos do esprito com neologismos tcnicos, de composio grega, que parecem diretamente extrados de um tratado de patologia clnica. Pois exatamente isso o que espera o leitor nas pginas que se seguem. Constantin Noca, o mais clebre dos filsofos romenos, empreende aqui uma patologia do esprito, no no sentido prtico e clnico com que enfrentou matria anloga o eminente psiquiatra Viktor Frankl, mas num sentido analtico e descritivo que subentende uma anatomia uma esquemtica estrutural do esprito humano, isto , uma antropologia filosfica, e se prolonga, quase que naturalmente, numa anatomia e patologia geral do ser: vale dizer, numa metafsica geral. muita coisa para um livro to breve, diro alguns. Mais estranho ainda que todo esse mundo de intuies fundamentais possa caber na simplicidade esquemtica da metfora mdica que resume a sua frmula: trs necessidades espirituais bsicas, duas orientaes possveis no modo de atend-las ou desatend-las, seis molstias essenciais possveis, resultando dessa multiplicao e combinando-se em dosagens infinitamente variadas como as seis linhas de um hexagrama do I Ching para produzir toda a trama da nossa desgraa e da nossa redeno. Tudo isso , de fato, muito extravagante. Mais que extravagante: romeno. O leitor talvez no saiba o que um romeno. um descendente de um antigo povo de camponeses orgulhosos e aristocrticos, fortemente apegados sua liberdade e sua f religiosa e constantemente obrigados a suportar o jugo de invasores estrangeiros -- romanos, turcos, russos, alemes que foravam para lhes impor uma f estranha e lnguas estranhas. Sua lngua traz as marcas das progressivas misturas. uma estrutura latina preenchida de sons eslavos, rabes, turcos e germnicos. Sob o taco do invasor sempre superior em nmero e em armas, esse povo aprendeu a astcia. proverbial a habilidade romena no comrcio, na publicidade, no jornalismo em tudo o que o homem pode fazer sem outra arma que no a palavra. Mas, enquanto desenvolvia as artes da adaptao a um mundo hostil, ele forava, por dentro, para conservar sua identidade, sua religio, seu estilo de viver. A variedade alucinante das situaes que atravessou no se reflete em nada, por exemplo, na sua arquitetura, de evoluo notavelmente contnua ao longo dos sculos, com os mesmos adornos mitolgicos e cristos das cabanas de pastores do sculo X a repetir-se nos palacetes da era burguesa, sob uma casca de estilo francs fingidamente copiado para agradar o visitante. No sculo XX, esse povo, como todos os demais do Leste Europeu, contaminou-se a fundo nos dois maiores pecados da nossa poca: o nazismo e o comunismo. Contaminou-se fora, levado por vizinhos poderosos, que o arrebataram na voragem dos grandes delrios. Mas, mesmo no meio desse turbilho sangrento, ele buscava, quase extenuado, continuar fiel a si mesmo, impor s idias estrangeiras, mediante os mais excntricos arranjos e improvisos, a marca da vontade nacional. Tentou cristianizar o fascismo, tentou nacionalizar o comunismo. Nas duas ocasies, foi derrotado. o que sempre acontece a quem se v forado a negociar com o mais forte. Quatro ditaduras num sculo, duas guerras, inumerveis revolues e golpes de Estado: a histria romena, um quebra-cabeas que leva o estudioso estrangeiro ao desespero, reflete os movimentos alucinados de um povo que se debate como um peixe fisgado para escapar de um anzol, sabendo que outro anzol o espera mais adiante. O romance romeno mais famoso no exterior ainda A Vigsima-Quinta Hora, de C. Virgil Gheorgiu: a odissia de um homem simples perdido no vendaval do mundo, obrigado a vestir todos os uniformes, a jurar falso a todas as bandeiras, lutando para preservar um fundo de sinceridade na dobra mais oculta da conscincia. Os romenos perderam tudo. No poderiam apelar consolao grandiloqente dos franceses: Tout est perdu, sauf lhonneur. Eles no vem, de fato, honra alguma nos feitos brbaros da Guarda de Ferro, na corrupo sangrenta dos vinte e cinco anos da ditadura Ceaucescu. Eles tm uma memria terrvel, conservam uma recordao deprimentemente exata de cada uma das vergonhas, de cada uma das farsas cruis que o obrigaram a encenar. Eles perderam tudo, menos essa exatido que se chama, precisamente, sinceridade consigo prprios, a coragem de dizer a si mesmos verdades terrveis que outros povos, em situao idntica, ocultariam em proveito da boa auto-imagem nacional. Mas ser sincero consigo o mais precioso dos bens. Quien habla slo espera hablar a Dios un da. Eles perderam territrio, independncia, riquezas e incontveis vidas humanas, tudo enfim, menos a nica coisa necessria a primeira que tantos outros trocaram por um prato de lentilhas. Este o segredo de duas caractersticas to marcantes, que no se esperaria encontrar num povo to sofrido e to realista: um sereno bom-humor e um fundo de altivez que no tem nada a ver com orgulho nacional, pois emana de uma luz que no deste mundo. a altivez humilde do pecador que, sabendo-se redimido por uma fora mais alta, no teme o olhar da malcia humana que busque acus-lo daquilo que Deus j lhe perdoou.Ora, no h neste mundo coisa que parea mais enigmtica do que a simplicidade. E os romenos, que so o que so e sabem o que so, enxergam com resignado humorismo o papel de esquisites que se reserva queles que no so compreendidos justamente porque falam as coisas como elas so. No h povo talvez no universo que tenha mais que ele o senso da incongruncia entre o exterior e o interior do homem, da impossibilidade de expressar a realidade nua e crua sem que ela acabe parecendo uma fantasia alucinada. O dadasmo, no convm esquecer, inveno romena. Tambm o o teatro do absurdo. No h coisa que um romeno considere mais divertida do que no ser compreendido quando est dizendo uma coisa perfeitamente bvia e verdadeira.S a um romeno, portanto, ocorreria a idia de expor a mais alta metafsica na forma literria de uma pardia da medicina. Esse povo tem o gnio da ambigidade aparente a encobrir uma sinceridade profunda, que os brasileiros tambm tm, mas que nele se mescla a um toque de gravidade tragicmica que nos falta quase por completo[footnoteRef:1]. Quem leu Ionesco ou Cioran sabe que em certos trechos de suas obras rigorosamente impossvel discernir se falam a srio ou brincando. E nessa faixa de indeciso e perplexidade que eles colocam o melhor, o mais profundo e o mais autntico de uma viso romena do mundo. [1: Quase, digo, porque o encontramos abundantemente em Machado de Assis. Mas muito falta para que a sutileza a um tempo amarga e resignada do maior dos nossos escritores se integre na conscincia comum, mesmo das classes letradas, e nos nossos usos e costumes literrios. [N.E.]]

Malgrado a comicidade quase alucingena de algumas de suas expresses, seria inexato dizer que essa viso irnica. A ironia pressupe uma frieza, um distanciamento cerebrino, que pode ser, conforme a ndole do escritor, natural ou defensiva. Mas nenhum dos grandes escritores romenos d o menor sinal de ser indiferente aos sofrimentos humanos ou de pretender defender-se deles mediante um artifcio intelectual, seja o da ironia, seja qualquer outro. Ao contrrio, eles no apenas assumem o sofrimento e o absurdo da vida com plena conscincia da fatuidade desses artifcios, como tambm procuram express-lo da maneira mais franca, direta e literal. precisamente desta franqueza que brota, quase paradoxalmente, o efeito cmico, quando o sofrimento descrito, chegando aos ltimos limites da opresso e do nonsense, ultrapassa o dom das lgrimas e se converte em riso. Mas seria igualmente inexato dizer que um riso sinistro, diablico. Pois a gargalhada de Satans a ltima palavra aps a sentena terrvel que condena o homem perda do dom da fala. Asura, demnio em lngua snscrita, quer dizer: criatura desprovida do dom da fala. natural, pois, que o Adversrio aspire, acima de tudo, a desprover sua vtima daquela capacidade de dar nome s coisas, que a fez com justo orgulho e exata modstia definir-se a si mesma como zoon logistikon, o bicho que fala. Entre os condenados, com efeito, no ouve Dante conversaes em lngua de gente, mas to somente orribile favelle, gritos e gemidos animalescos que expressam sem nomear, que quanto mais ressoam menos dizem, impotentes para, objetivando a dor, transfigur-la em conscincia, prenncio da liberdade. Mas, nos livros romenos, o homem recusa a mordaa diablica: ele continua falando e falando, muito alm do ponto em que o eterno Adversrio poderia julgar ter-lhe imposto, mediante sofrimentos e absurdidades indizveis, a impossibilidade de dizer. E o que que eles dizem? primeira audio, uma conversa estranha, um arrazoado fantstico de incongruncias e extravagncias. Ouvindo com mais ateno, notamos que esse jogo de enxadristas doidos tem um mtodo, um propsito, visa com maquiavlica premeditao a um alvo preciso e determinado: o que eles buscam expressar e no raro o conseguem justamente a idia, a estrutura interna, a equao lgica do absurdo, o qual, sem deixar de ser absurdo, jaz assim derrotado aos ps da inteligncia humana to logo formulado em todo o grotesco do seu contedo eidtico impossvel. Forse tu non pensavi chio loico fossi!, exclama o demnio ao perplexo visitante florentino: No imaginavas que eu tambm fosse lgico! Mas os romenos, estes sim, o imaginavam, e entregaram-se com apaixonado af mais improvvel das tarefas: decifrar a lgica demonaca, sistematizar em silogismos a frmula do jogo sujo universal, que, uma vez exposto luz do dia, jaz morto e se transfigura num monumentum aere perennius ao dom divino da linguagem humana. Eis por que os livros de Cioran, de Ionesco e este que se vai ler agora, tm esta paradoxal e inconfundivelmente romena propriedade de, justamente quando mais nos oprimem com a viso do intolervel, nos libertar de sbito, nos infundir uma luminosidade calma e soberana e nos elevar s portas de um reino anglico de contemplao e sabedoria. Eles celebram a vitria da linguagem sobre o mutismo ruidoso do mundo satnico. O jogo de excntricos amalucados revela assim sua verdadeira natureza, a misso secreta desses anjos disfarados em palhaos: o divinum opus da cura pela palavra. Se a metafsica de Noca aparece portanto em trajes de medicina, sabendo da comicidade da situao, porque por dentro est consciente de uma comicidade mais profunda ainda: o disfarce a realidade, a metafsica de Noca medicina no seu mais alto e autntico sentido. A coisa mais inacreditvel do mundo que as coisas sejam exatamente o que parecem.

As Seis Doenas do Esprito Humano

I. O quadro das seis doenas

Ao lado das doenas somticas, que conhecemos h sculos, e das doenas psquicas, identificadas mais recentemente, deve existir outras, de ordem superior, s quais chamaremos doenas do esprito. Nenhuma neurose poderia explicar o desespero do Eclesiastes, o sentimento do nosso exlio na terra ou da nossa alienao, o tdio metafsico, a conscincia do vazio e do absurdo, a hipertrofia do eu ou a revolta sem objetivo; nenhuma psicose poderia explicar o furor econmico ou poltico, a arte abstrata, o demonismo tcnico, ou talvez aquele formalismo extremo que hoje em dia, em todos os domnios da cultura, consagra o primado da exatido sobre a verdade.Incontestavelmente, de algumas dessas tendncias, se no de todas, nasceram e continuam a nascer grandes obras: nem por isso deixam de ser grandes desregramentos do esprito. No entanto, diversamente das doenas somticas, que so acidentais (a morte mesma, dizem, um acidente na ordem dos seres vivos), e das doenas psquicas, que de certo modo so contingentes e necessrias ao mesmo tempo, as doenas do esprito parecem revestir-se de uma natureza constitucional.

[Doenas provenientes da carncia]

Desejaramos, nas pginas que se seguem, mostrar que essas doenas do esprito so, na realidade, doenas do ser, doenas nticas e que isto mesmo que as torna, diferena das outras doenas citadas, doenas verdadeiramente constitutivas do homem: pois se o corpo e a alma tambm participam do ser, s o esprito pode, em contrapartida, refleti-lo plenamente e dar conta de sua fora ou de sua precariedade. E o ser tambm pode, ele mesmo, cair doente; se ento ele afetado nas coisas viventes ou inanimadas, estas permanecem secretamente bloqueadas por uma dessas doenas, que no entanto se dissimulam por trs da aparente estabilidade das coisas; mas se atingido no homem, este ltimo, graas sua instabilidade superior, revela sua doena plena luz do dia.Por outro lado, o ser pode ainda revelar-se falso. Suponhamos que um cientista descubra o meio de prolongar indefinidamente a vida e que ele ponha sua descoberta a servio da humanidade: aps render-lhe homenagem, deveramos lev-lo a julgamento. Seu crime seria o de ter falsificado um valor, isto , o ser. Com efeito, assim como o dinheiro tentao para os moedeiros falsos, outros valores o verdadeiro, o belo e, acima de tudo, o bem podem, eles tambm, ser uma tentao para os falsrios. (Neste sentido, alis, toda uma parte da tcnica poderia, hoje, ser acusada de falsificar, mediante bens inteis, a idia mesma do Bem.) Na medida em que o ser um valor seno o valor no seio do real, ele pode portanto ser falsificado. Tal como um moedeiro falso a forjar sua moeda falsa, nosso cientista nos teria proposto o falso ser.Mas altamente improvvel suspeitarmos da falsidade do ser como da de uma moeda , e nosso falsrio teria todas as chances de permanecer impune. Ao contrrio, apressar-nos-amos em tirar proveito dessa contrafao, na esperana de dar enfim sentido e plenitude ntica nossa existncia, a qual, dentro de seus limites humanos, no realiza seno imperfeitamente o seu ser. Em outros termos: mediante essa contrafao que no deixa de nos recordar a existncia da ameba, cuja durao de vida ultrapassa a de todas as existncias terrestres , desejaramos compensar todo a nossa carncia de ser.Mas pode ser tambm que essa dilatao da nossa vida no tempo nos permita enfim, pela primeira vez, tomar conscincia de nossa carncia de ser. No temos (como o diz to bem E. Ionesco em Le roi se meurt) o direito de pedir o prolongamento de uma existncia to irremediavelmente afetada de anemia crnica, talvez de verdadeira hemofilia espiritual; no nos lcito receber o dom desse prolongamento. Em contrapartida, quando tivssemos compreendido que a eternidade no condio suficiente para realizar o ser e ser ela alis condio necessria? , poderamos enfim nos perguntar se mesmo na conscincia de sua natureza perecvel (to incriminada) que se deve buscar a causa que faz do homem esse animal doente por excelncia que nele j se reconheceu. Veramos ento, para alm de sua doena crnica se que chega a ser uma doena o fato de ter sua quota medida no tempo , perfilarem-se as verdadeiras doenas do homem, ser nascido no tempo e que no encontra sua medida no tempo.

[1. Carncia do individual]

Embora esteja bem claro que o prolongamento indefinido da vida no foi seno um exemplo extremo, destinado a pr em evidncia as carncias do ser no homem, escolheremos agora um outro, menos estranho, que poder nos concernir a todos, no futuro. Algumas doenas nticas, que no homem se traduzem por doenas do esprito, se manifestaro bem mais claramente assim que o homem tiver permanecido por um tempo suficientemente longo em estaes espaciais, como j se previu que o far. Faltar a esse novo homem algo que nos aparece logo de entrada como um elemento essencial na realizao do nosso ser: a individualidade. Esse homem ir, como todos, respirar, mas o ar que ele ir respirar ser condicionado e geral, no este determinado ar da sua terra, cujo odor ele to bem sabia reconhecer; ele se alimentar, por certo, mas, a tambm, de substncias gerais; ele se esforar, como sempre, na via do conhecimento, mas se interessar antes pelas essncias do que pelas realidades particulares; e se alguma planta ainda o puder deslumbrar, ela ter certamente brotado numa estufa. Em parte alguma do cosmos ele reencontrar aquela realidade individual, o sabor particular de esta coisa aqui, o tode-ti do filsofo grego, cuja ausncia nos faz sofrer bem mais do que a imperfeio. Nem ele nem as coisas que o rodeiam tero mais realidade particular. Por isto ele dever, de tempos em tempos, voltar Terra para curar sua todetite.

[2. Carncia do geral]

Mas doentes afetados de todetite j podem ser encontrados, e alis sempre se encontraram, entre as grandes naturezas teorticas: os heris de Dostoivski, em Os Demnios, por exemplo ou certos heris de Thomas Mann , dos quais a sociedade real fornece generosamente os modelos. Mesmo Plato sofria disso, de tempos em tempos, em sua obstinao que se pervertia em obsesso de querer plantar o cenrio de sua sociedade ideal naquela pobre cidade de Siracusa. Pode ser, no entanto, que, medida que a viso terica e a programao venham a impor seu primado num futuro prximo, a todetite (a necessidade de encontrar o individual autntico) se dissemine cada vez mais no nosso mundo. No momento, ainda mais freqente a doena que de certo modo lhe oposta; doena na qual o sofrimento no vem da carncia do individual, mas, ao contrrio, da do geral. Se apelarmos de novo lngua grega, o geral, kathalou, lhe dar seu nome: catolite.Num certo sentido, a catolite mesmo a doena espiritual tpica do ser humano, to atormentado pela obsesso de se elevar a uma forma de universalidade. Quando, por um gesto elementar de lucidez, o homem desperta da hipnose dos sentidos comuns que ordinariamente o manobram no interesse, alis, da espcie e da sociedade , ele busca por todos os meios curar, de sua amargura de ser, uma simples existncia individual sem qualquer significao de ordem geral. Ento ele busca, mediante a maior parte de seus engajamentos deliberados, apoderar-se dos sentidos gerais. Com muita freqncia ele cai na armadilha dos sentidos prontos (como as ideologias do seu tempo) que no so seno falsos remdios, impotentes para curar seu mal em profundidade. Por isto, desde que o homem mesmo o mais medocre prolongue seu gesto de lucidez por tempo suficientemente longo para perceber a futilidade do geral ao qual se devotou, sua catolite retoma toda a sua virulncia. A literatura traduza-se: a vida , ainda desta vez, rica em exemplos. Em seu Journal de Salavin, Georges Duhamel descreve a confuso de um homem comum, incapaz de encontrar, em sua mediocridade, recursos suficientes para elevar-se a um sentido geral, e que decide ento se tornar simplesmente um santo. A catolite, latente em cada um de ns, aqui deliberadamente ativada e apresenta, no corao mesmo do desastre que ela acarreta, uma evoluo excepcionalmente rigorosa e serena: progressivamente, o heri se afasta da sociedade, da famlia, da vida cotidiana, enfim da vida tout court, sob a plcida alucinao daquela ordem geral que essas realidades no poderiam conter. A mesma doena, em contrapartida, assume uma forma histrica em Csar Birotteau, o heri balzaquiano que ela precipita nas convulses patticas da sua confrontao ilusria na sua escala de homem comum com Napoleo. ( por essa confrontao com um destino que lhe parece da mais alta generalidade que o heri espera, na realidade, chegar por sua vez a um nvel de afirmao mais geral.) Temos a como que dois extremos patolgicos da catolite, mas que parecem enquadrar toda uma gradao de formas, variadas e nuanadas, dessa doena que nos espreita a todos, seres desprovidos do geral.

[3. Carncia de determinaes]

E, ao lado da catolite e da todetite, vem ainda nos atormentar uma terceira doena, tambm ela proveniente das profundezas do nosso ser espiritual. A ausncia de um sentido geral adequado, na catolite, e a de uma realidade individual, na todetite, no podem, por si, dar conta de todas as crises espirituais do homem. Alm de um geral e de um individual, o ser tem tambm, para se realizar, necessidade de determinaes adequadas, isto , de manifestaes que possam se harmonizar tanto com sua realidade individual como com o sentido geral a que tende. E, j que a doena provocada pela impossibilidade de obter tais determinaes, poder-se-ia denomin-la horetite, tendo em mente o grego horos, que significa termo, determinao. Esta doena exprimiria ento os tormentos e a exasperao do homem por no poder agir de acordo com seu prprio pensamento e suas convices. O caso mais extraordinrio de horetite, na cultura europia, Dom Quixote. Toda a busca pattica do heri espanhol, que com tanta pertinncia escolheu a funo de cavaleiro errante, uma busca de determinaes; estas lhe sero recusadas, primeiro, em sua verdade, quando ele as inventa por si mesmo na primeira parte da narrativa (no so seno moinhos de vento e rebanhos de carneiros); depois, em sua realidade, na segunda parte, onde tudo fingimento e fabulao maliciosa de outrm.Mas, como a catolite, a horetite pode, ela tambm, revestir formas menos violentas e manifestar-se por uma serena e intil espera das determinaes adequadas. semelhante existncia que nos pinta um autor contemporneo, Dino Buzzati, no seu romance O Deserto dos Trtaros: seu heri vai se deixar, ao longo dos anos, literalmente cair doente de horetite, instalando-se como oficial na espera passiva de um incerto combate, em algum lugar num posto de fronteira, contra um inimigo desconhecido. Por fim, seu nico verdadeiro inimigo ser a morte, essa ltima determinao que se apodera da vida dos homens, desprovida, como to freqentemente acontece, de determinaes significativas. E aqui tambm, entre esses dois extremos patolgicos do mal, podem-se escalonar todas as formas da horetite, a terceira doena espiritual do homem.Acreditamos ter podido identificar, nas pginas precedentes, trs doenas espirituais, que refletem, no homem, as carncias possveis dos termos do ser: geral, individual, determinaes. Tal como numa outra medicina e no sem sorrir , foi-nos preciso dar-lhes nomes. Mas como no lhes dar nomes, se elas se manifestam to claramente no homem e, mui certamente enquanto situaes do ser , tambm nas coisas?

[Doenas provenientes da recusa]

Todavia, a lista das doenas de ordem superior no est ainda encerrada. Trs outros grandes desregramentos se nos apresentam, segundo nos parece, provenientes j no da carncia, mas da recusa, no homem sinnimo de inaptido, nas coisas , de um dos trs termos do ser. E, j que as trs primeiras doenas receberam nomes, no iremos privar deles estas trs recm-chegadas no repertrio patolgico do ser e do esprito. Tendo em conta o seu aspecto privativo, vamos cham-las: acatolia, atodecia e aorecia. Comparadas s primeiras, elas parecero, primeira vista, um pouco mais estranhas: por isto, vamos deix-las vontade para que se apresentem por si mesmas, atravs de suas manifestaes no homem. E como a cultura o espelho ampliador da nossa vida espiritual, escolheremos, tambm desta vez, ilustr-las por meio de trs criaes literrias.

1. Dom Juan e a recusa do geral

Tomemos o caso de Dom Juan: no h talvez um melhor para ilustrar a acatolia. Com Dom Juan, estamos ante um destino-limite, ante um ser que rejeita categoricamente o geral, at que este se apresente a ele como uma simples esttua de pedra. Em tal destino parece-nos poder ler, num livro aberto, os sintomas dessa primeira doena do esprito.Dom Juan encarna plenamente o primeiro termo do ser, o individual, pois ele uma individualidade no sentido forte do termo, isto , um ser humano que conseguiu se destacar da inrcia das generalidades comuns. E, no o esqueamos, os homens, como as coisas, no so na maioria seno realidades particulares e no individuais : simples casos particulares da espcie e da sociedade.Dom Juan soube, portanto, libertar-se da inrcia de uma ordem estabelecida e forjar seu prprio destino. Ele pretende no mais deixar-se comandar pelas verdades (pelos preconceitos) da sociedade e da religio. Ele libertino e libertrio, ele age como bem lhe parece. neste sentido que ele adquiriu j sua individualidade, o que no quer dizer sua personalidade: pois, se ele se libertou de uma ordem imposta, deveria agora abrir-se a uma ordem diferente e que lhe fosse prpria. Mas Dom Juan no se abre deliberadamente a nada. Ele permanece um individual absoluto, o homem do diabo, como no-lo diz Sganarello na verso de Molire, isto , aquele que est condenado recusa do geral.Destacado e como que suspenso acima dos fluxos da existncia comum, o individual absoluto no se deixa, no entanto, flutuar ao acaso; ele mesmo quem se d doravante suas prprias determinaes, ele s quem tem a iniciativa dos acontecimentos que vo modelar seu destino. Um libertino como Dom Juan, em conseqncia, coloca igualmente em jogo o segundo termo do ser, pois o libertino aquele que se d a si mesmo determinaes livres.Mesmo se o Dom Juan de Molire no se atm, na verdade, conta das mille e tr determinaes as mil e trs conquistas amorosas , ele todavia coloca em jogo uma infinitude potencial delas e faz, diante de Sganarello, uma sutil exposio da teoria da necessria infidelidade a todo amor terrestre. verdade que, bem antes de Molire, um outro j tinha feito essa teoria: Plato. S que, enquanto no filsofo a infidelidade a uma s ou a uma multido de encarnaes do belo era uma ascenso Idia do Belo, isto , a um geral que conteria todas as determinaes doravante ultrapassadas, em Dom Juan a infidelidade permanece cega e fechada a toda ultrapassagem. O heri quer simplesmente fazer justia beleza particular de cada uma das mulheres que encontra; ele no sabe fazer justia beleza tout court, isto , ao geral. Ele ama a conquista amorosa em si mesma, pelo s prazer dos pequenos progressos que a cada dia ele faz no empenho de forar as resistncias, e isto lhe basta para se julgar altura dos grandes conquistadores. Ele sente orgulho em subjugar, sua maneira, a Terra inteira... e deixa escapar a frase que trai seu desequilbrio: ele desejaria, como Alexandre, que houvesse outros mundos, o que diz para poder l estender suas conquistas at o infinito.Estando, portanto, de posse dos dois primeiros termos do ser, Dom Juan recusa o terceiro: o geral. S que, da sua recusa, eis que surge o mau infinito de que fala Hegel: o infinito do de novo e de novo. ele que vai aniquilar o heri, pois ele que aniquila tudo o que simples repetio de si e retorno do mesmo. No fundo, no h nenhuma necessidade da condenao moral nem do castigo celeste que evocam Sganarello, Dom Lus e Elvira. A queda no mau infinito das determinaes , em si, punio suficiente.Mas se essa desventura do ser cair no mau infinito a sorte tanto dos humanos quanto do resto dos viventes, o que, em contrapartida, est reservado somente ao homem no destino de Dom Juan seu sentimento de culpabilidade; no tanto a culpabilidade de contravir s leis terrestres ou celestes, isto , a um geral determinado, quanto a de ter recusado o geral enquanto tal. interessante notar que, diversamente de seus precursores espanhis ou italianos, que acentuam o castigo divino, Molire parece propor-nos ele mesmo essa outra interpretao: com efeito, logo de incio desde a entrada do heri em cena , a pea concentra-se em torno da confrontao com o geral inerte que o Convidado de pedra. Dom Juan vive seus ltimos dias: o mecanismo das determinaes j comeou a se desarranjar, por falta de um sentido geral. O heri no parece mais regozijar-se com seus pequenos progressos dos quais no entanto continua a se gabar ; ele no exerce mais sua arte sutil sobre vtimas de eleio, e j no usa seno da seduo rasa do pedido de casamento. Com meios mais sutis, Dom Juan teria talvez continuado a fascinar um criado como Sganarello; por sua desordem, que nenhum refinamento, talvez nenhum gozo mesmo frusto vm compensar, ele j no consegue seno exasper-lo. A desordem engendrada por Dom Juan reflete-se alis fielmente na desordem do discurso de Sganarello, que, agora, quer desesperadamente reconduzir seu patro ao bom caminho. aqui, no meio da pea em campo aberto, ou, em suma, no importa onde , que surge a esttua do Comandante, o pai de Elvira, que Dom Juan havia matado, tanto verdade que a generalidade inerte pode aparecer em qualquer lugar. desordem vem assim opor-se a ordem mais baixa, a ordem do inanimado. Ela, ao menos, deveria acalmar a fria das manifestaes donjuanescas desprovidas de sentido. Os apelos ao arrependimento, renovados por todos os outros personagens Dom Lus, Elvira, o irmo dela quando Dom Juan lhe salva por acaso a vida , parecem ser outras tantas advertncias enviadas pela esttua. Quanto a Sganarello, no sente ele mesmo a evidente advertncia do geral, ao perguntar a seu patro: No vos rendeis surpreendente maravilha dessa esttua movente e falante? Mas Dom Juan responde: H realmente alguma coisa a dentro que eu no compreendo; mas, o que quer que seja, no capaz nem de convencer meu esprito, nem de abalar minha alma. Que o nada possa falar em nome da ordem, quando no se soube encontrar uma melhor, eis, na verdade, o que Dom Juan no soube compreender.No entanto, a desordem absoluta no aparece no prprio Dom Juan, pois o heri sabe se dominar e bravatear: ela aparece, em contrapartida, no ltimo ato, na cena II, no esprito de Sganarello, cujo pensamento agora se perde num delrio argumentativo: O homem est neste mundo como o pssaro no galho; o galho est ligado rvore; quem fica ligado rvore segue bons preceitos e assim continua, loucamente, at a concluso, que no entanto justa, ainda que sem relao com o raciocnio: Em conseqencia, sereis danado por todos os diabos. neste momento preciso que faz sua apario final o Comandante o sentido geral exterior; ele est l para trazer o no-ser a um mundo que se recusou to obstinadamente a se abrir ao ser. Ele assume de incio a forma de um espectro de mulher velada, smbolo anunciador da morte: Dom Juan j no tem mais que um momento, diz a apario. Em seguida, o espectro muda de aparncia, como para se aproximar da imagem da inrcia ltima: ele o Tempo vazio com sua foice, e no diz mais nada. Surge enfim o Convidado de pedra, a esttua mesma do Comandante, que toma o heri pela mo. Ao contato da pedra, Dom Juan sente enfim o fogo devastador que o aniquilar.Nas verses anteriores, espanholas ou italianas, a pea era intitulada O Convidado de Pedra. certo que, de um ponto de vista artstico, a verso de Molire lhes superior; mas esse no talvez o caso do ttulo; pois o Convidado encerra, com efeito, o admirvel pensamento do geral que o homem se empenha por vezes em enfrentar e que ele no tolera seno como simples conviva, quando seu verdadeiro lugar seria o do dono da casa.A acatolia a doena do escravo humano que ignora todos os seus mestres, inclusive seu mestre interior.

2. Tolsti e a recusa do individual

Comparada acatolia, que, com suas recusas provocadoras, exacerba a individualidade, a atodecia manifesta-se com menos violncia, pois pe frente o geral, cujas resistncias so mais discretas. Doravante, ser em nome do geral, isto , em nome de uma entidade ou de uma lei, que vir a recusa; estranha ao desafio que em Dom Juan se confundia com a revolta , a recusa atodcica toma ora a forma da compaixo para com o mundo inteiro, ora a da indiferena para com tudo o que humano e individual. Se nos permitido ver na acatolia o mal caracterstico do nosso mundo europeu, onde primam as individualidades, a atodecia ser, por sua vez, caracterstica do mundo asitico. Em todo caso, o autor que se encarregou de descrev-la, talvez de viver em si mesmo a recusa do individual, tinha algo de ambos: trata-se de Tolsti. O comum dos mortais, diz Tolsti, ignora que todo ato e toda manifestao dependem de leis que desprezam as individualidades, ainda que da estatura de um Napoleo. Na acatolia, era o retorno do geral aviltado que arrastava o indivduo perdio; na atodecia o individual que desprezado e a ele que cabe, na sua terrvel vingana, a tarefa de desprover o homem atodcico de seu lugar, de sua identidade e de seus fundamentos. Mas nem a atodecia nem a acatolia poderiam trazer dano qualidade das obras literrias que as refletem. Tanto Dom Juan quanto Guerra e Paz, o romance de Tolstoi que ilustra to bem, a nosso ver, esta segunda doena, parecem, ao contrrio, ter obtido do mal do homem um acrscimo de sua tenso interna, e semelhantes nisto a todas as criaes artsticas se expandem ao contato das paixes e dos desregramentos humanos. Tolstoi, ele prprio e s ele prprio pessoalmente, sofreu do seu mal, pois a atodecia o impediu de realizar sua vida e seu ideal. Sua obra, em contrapartida, teoriza a atodecia, e isto a despeito de que, enquanto obra, venha necessariamente a desmenti-la.A recusa do individual domina todo o romance, e isto desde a primeira cena, a recepo nos sales de Anna Pavlovna Scherer. Todos os personagens que a fazem sua entrada com a exceo de Pedro Bezukhov, cuja autenticidade indispensvel ao autor, como eixo central da narrativa trazem no seu ser a marca de uma sociedade bem estabelecida em suas modalidades gerais e que no pretende mais fazer concesses s autenticidades individuais de uns e outros. Tolstoi, o artista, se probe, certamente, de reduzir sistematicamente seus personagens a simples figuras tpicas: em contrapartida, o atodcico nele saber coloc-los em situaes tpicas, ou quando ameaam escapar, em sua verdade vivente, ao controle do geral e transformar-se em sedutoras individualidades , reduzi-los ao silncio. Os grandes e os humildes sofrem com isso, lado a lado: Napoleo e o tzar russo, pelos primeiros, Plato Karataev, o tipo do campons russo, pelos segundos. Entre esses dois extremos, todos os personagens deixam ouvir o ronco surdo de suas pulsaes de vida e de autenticidade reprimidas; mas, a cada vez, o discurso de um sentido geral procura e consegue, com muita freqncia deter sua ecloso[footnoteRef:2]. [2: Nota-se hoje em dia a mesma coisa nos personagens de Soljentsin, em O Pavilho dos Cancerosos, por exemplo. No instante mesmo em que parecem ao ponto de se abrir autenticidade e vida, o autor, sob a presso de suas intenes demonstrativas de ordem geral, os impede de faz-lo. Como Tolstoi, Soljentsin parece-nos sofrer de atodecia. [N.A.]]

Para esse efeito, uma das funes-chave dos heri, e em geral de todos os personagens lcidos, a de ressentir a vaidade dos seres, a deles prprios como a dos outros. Em Austerlitz, Andrei Bolkonski, gravemente ferido no campo de batalha, percebe Napoleo a contemplar o teatro da sua vitria e se diz que o Imperador no seno um nada em face da imensido do cu. No dia seguinte, quando transportado entre os feridos de uma certa patente, e rev o Imperador, tem de novo a mesma revelao da vaidade das grandezas. A vaga, ou antes, o refluxo do geral varre assim, impiedosamente, tudo aquilo que ao longo das pginas tentara obter um contorno individual. E como se, apesar de tudo, a obra arriscasse ainda desmentir a atodecia do autor, Tolsti, num apndice, se d uma vez mais o trabalho de afirmar a vaidade do individual.O que que verdadeiramente ?, pergunta-se ele. Qual realmente o ser da histria, ou, em termos mais claros, qual a fora que faz com que na histria e, em conseqncia, na narrao histrica as coisas tenham um sentido e uma consistncia, tal a questo essencial que coloca, sem nenhuma ambigidade, o Posfcio do romance. Com muita freqncia, a nosso ver, as ambies tericas de Tolsti foram encaradas com aquela espcie de indulgncia que s uma fraqueza da obra poderia merecer, e o foram mesmo quando se reconhecia que o visionrio e enfim o profeta que ele se tornou tinham sido, nele, solidrios do artista. no entanto difcil no ver em todas essas digresses tericas a probidade profunda do autor; e ainda mais difcil, na perspectiva da atodecia, a qual, enquanto doena constitucional do homem, aparece de maneira to flagrante na sua viso de profeta, no sentir que sua teoria tem algo de to perturbador quanto sua obra mesma.No vamos insistir no fato de que, por definio, a arte pe em jogo o individual; de que ela talvez represente, no fundo, a converso das determinaes do individual no sentido do geral; nem de que sua virtude de arrarcar s coisas sua cat-strofe e de salv-las, por uma espcie de an-strofe, da queda e do aniquilamento: natural, a, que Tolsti no tenha podido se impedir de salv-las, a despeito de seus discursos sobre a vaidade delas. Em contrapartida, faremos observar que sua lucidez terica pde ser, s vezes, to surpreendente e to sedutora quanto sua inspirao artstica, mesmo se, por outros aspectos, parece ir de encontro a esta ltima.Apreender diretamente a vida escreve Tolsti no Posfcio , ainda que fosse a de um s povo, a fim de descrev-la, eis algo impossvel. Ningum poderia, com efeito, encontrar todas as determinaes dessa imensa realidade individual que um povo, como ningum poderia dizer qual a fora que pe os povos em marcha. Com efeito, qual a fora, qual a lei, qual a razo interna que cria a histria? No se pode mais, doravante, invocar a vontade divina, dizem; a vontade das massas tambm no, pois no encontra jamais sua expresso justa. Quanto obra dos heris e das grandes personalidades que os novos historiadores pem frente, em lugar da vontade divina, no poderia ser o caso uma vez que se viu neles o humano, demasiado humano, tal como ele, Tolsti, fez com o o tzar Alexandre ou com Napoleo. Sob o impulso de sua alma aberta humanidade inteira, Tolsti v a histria como um produto de todos. Cada homem , sua maneira, um agente da liberdade, liberdade forjada conforme aquilo que lhe sugere sua prpria conscincia. Mas, ao mesmo tempo, cada homem sente que sua vontade entravada por leis e a razo as descobre no seio mesmo da histria: as leis estatsticas, ou as do determinismo poltico-econmico, por exemplo. No fundo, diz-nos Tolsti, acontece com a histria o que se d com todas as outras cincias: l como c, certas foras se manifestam sob a forma de leis. A fora da humanidade a liberdade; as da natureza, a fora de gravitao, a inrcia, a eletricidade ou a vitalidade. Mas qu sabemos, de exato, sobre todas essas foras? Exatamente to pouco quanto sabemos da essncia da liberdade. Sabemos, em contrapartida, uma coisa: se houvesse um s corpo que pudesse se mover a despeito das leis mecnicas, toda a cincia da natureza se tornaria, no mesmo instante, v. Tal tambm o caso da liberdade: ela encontra necessariamente, em suas fronteiras, a necessidade. Censurou-se em Tolsti o afundar no fatalismo. Poder-se-ia dizer, ao contrrio, que ele condece demasiada importncia s massas e a cada um em particular, e que isto o leva ao infinitesimal da liberdade segundo suas prprias palavras , obrigando-o, no fim das contas, a sacrificar a personalidade humana. No se poder fazer verdadeiramente histria, diz ele, enquanto se buscar a causa dos acontecimentos na livre vontade dos grandes homens, pois assim se deve, obrigatoriamente, chegar liberdade infinitesimal de cada indivduo, que permanece todavia inacessvel.Mas com a histria d-se o mesmo que com a cincia: sem conhecer a essncia da gravitao pode-se compreender as suas leis, e sem saber qual a necessidade histrica ltima, reconhecemos suas leis, integrando nela os elementos infinitesimais, eles tambm desconhecidos. A marcha dos acontecimentos no mundo depende da coincidncia de todas as vontades, eis o comentrio do romancista ante o inexplicvel na histria, que culminava, na poca, com a batalha de Borodino.Refletindo bem, Tolsti exprime essa verdade admirvel, incessantemente confirmada depois pela cincia: a relao de duas sries de desconhecidos pode ser algo de conhecido. No sabemos o que a liberdade, nem o que a necessidade, mas conhecemos no entanto sua relao. O individual d a si mesmo determinaes diversas, que no podemos conhecer na sua totalidade e, menos ainda, prever; o geral coloca, ele tambm, sua infinidade de determinaes possveis e, desta vez, organizadas; igualmente desconhecidas. Mas o ser o ser histrico, no caso nasce, no entanto, dessa relao entre determinaes que, fora da sua converso a um sentido geral, no so seno nada e esse mesmo sentido geral, do qual jamais saberemos se outra coisa seno nada. Tal como no clculo infinitesimal, dois nadas engendram algo de determinado. Pode-se, ento, encontrar o individual verdadeiro? Tolsti quis nos dissuadir disso ao menos em Guerra e Paz , e sua grandeza precisamente a de ter tentado o impossvel: completar sua viso artstica a despeito da precariedade do ser histrico que ele havia posto em jogo. Na verdade, para alm dos destinos individuais, aos quais Tolsti, enquanto artista, devia no obstante dar um contorno, para alm mesmo do sucesso, desta vez consentido, de um personagem, Pedro Bezukhov, a obra vive da extraordinria enfatizao de uma outra realidade individual: a poca. Esta, nenhuma das leis da histria na escala humana pode esmagar, nem reduzir ao papel de elemento infinitesimal. Em contrapartida, o fracasso, que Tolsti encontra na pintura daquele que deveria ter sido malgrado sua apario episdica o personagem-chave do romance, o campons Plato Karataev, , este sim, profundamente revelador da atodecia do escritor. O autor no podia pint-lo de maneira viva, mas somente como um esteretipo o campons russo que ele esmaga sob o peso das vs declamaes generalizantes. E ainda a recusa do individual que acaba sendo denunciada por essa outra obra-chave que deveria ter sido a prpria vida de Tolsti, com seu profetismo, e que terminou por desencaminh-lo, tanto no mundo histrico quanto no mundo ntimo, at o paroxismo da sua fuga de casa, isto , da mais elementar ordem humana. Se a atodecia no fosse, precisamente, a doena tpica dos profetas de toda sorte, teramos podido dizer, dele, que fra, como Fausto, der Unbehauste[footnoteRef:3]. [3: Em alemo no original: o sem morada. [N. E.] ]

3. Godot e a recusa das determinaes

Aps a recusa do geral e do individual, chega a vez das determinaes, com a ahorecia, doena evidente do nosso mundo decadente (pensamos, por exemplo, na ahorecia dos hippies), embora seja constitutiva do homem e em conseqncia, de certo modo, eterna.No de maneira alguma absurdo ao menos no que diz respeito s conseqncias prticas do gesto negar, com Dom Juan, a divindade, as leis ou a existncia de um sentido geral. No o , igualmente, dizer com Tolsti que o indivduo, como tal, no existe na histria, que ele est sempre imerso em algo de mais vasto, que ele , talvez, evanescente. No ser, em contrapartida, absurdo sustentar que as manifestaes do indivduo, suas mensagens, em particular, quando se trata do homem, e em geral todas as determinaes das situaes e dos seres no so nada, no significam nada, ou, no mximo, so intercambiveis? Nada a fazer so as primeiras palavras da pea de Samuel Beckett, Esperando Godot. As seis doenas

II. Catolite

Chamei ento catolite de katholou, que significa em geral, mas que mesmo em grego se usa como substantivo s anomalias produzidas pela carncia do geral, tanto nas coisas como nos homens. Na verdade, a nada faltam sentidos gerais e, assim como qualquer realidade do presente, viva ou morta, tem atrs de si alguns bilhes de anos, ela tambm encruzilhada de inumerveis sentidos gerais. Mas o que pode faltar ou ser incerto o seu geral uma situao que o homem s vezes sente de maneira aguda. como se lhe fosse necessrio um outro geral, um s, sua medida individual, a despeito de j ter todos os outros. E ainda mais: como se esse geral no se encontrasse num lugar, num depsito de gerais prontos, do qual se pudesse invocar o geral adequado, mas como se lhe fosse preciso a cada vez adquirir uma nova face, simultnea s manifestaes do individual.Mediante a investidura do geral, o homem quer ser. Quer ser para os outros, para si, no absoluto, na histria, quer ser no sentido em que so uma esttua, uma fama, uma justeza, uma verdade, um criador, um destruidor apenas ser. O tormento do homem , de maneira discreta ou exasperada, o do real, que tambm aspira a ser, pelo menos no sentido elementar de persistir. Que boa criatura! Ens et Bonum convertuntur, diziam os medievais. E enquanto a placidez corrente das coisas, em comparao com o ser humano, est ligada ao fato de que no podem ter por si mesmas um outro geral, o sofrimento do homem reside em que ele pode ter um outro mas na verdade no o obtm. Ele se reposiciona o tempo todo ao longo de sua vida, assim como as coisas s se reposicionam ao longo da vasta evoluo; mas nem sempre ele . A este desequilbrio, em busca de algo de ordem geral, d-se o nome de catolite.A maneira de existir em desequilbrio surge justamente da inconsistncia das maneiras de se manifestar, nas coisas e nos homens. H no mundo processos em liberdade: todos os tipos de ondas do espectro eletromagntico correm por todas as partes; fatos da vida e atos humanos pulsam, sem se finalizar em nada. So manifestaes cegas. No seriam cegas por no lhes percebermos as leis e a consistncia? Mas so cegas em si mesmas, assim como acontecem as coisas no movimento browniano das partculas de matria de um lqido.

Um exemplo espantoso deste primeiro modo de existir em precariedade, nascido das manifestaes cegas, oferecido pela biologia. Dentro dela fez-se distino, como parece, entre protenides e protenas. As primeiras possuem muitos dos elementos de que se constituem as segundas, fora que suas letras, do cdigo gentico, so casuais. Elas representam, assim, um modo de existir perfeitamente garantido, mas que no pde chegar a uma plenitude das sortes de existir. S as protenas, em que h ordem das letras, conseguem dar vida, conseguem conduzir ao ser da vida. As protenides tm letras, tm at mesmo palavras, mas que no constituem uma linguagem, isto , algo de ordem geral.

Protenides existem por toda a parte. A realidade tem de estar plena de substncias ou de processos que possuam os elementos da ordem, mas que no tenham obtido ordem, ou seja, que tenham permanecido caticos. Portanto, houve, talvez, muitos modos de o homem se comunicar e mesmo falar que no formaram uma gramtica, no se fixaram num sistema de regras gerais, e como tais no se constituram numa lngua. Mas no seriam tambm assim os homens? Tambm eles no reeditam, em seu plano, uma aproximao ontolgica?

Poder-se-ia dizer que Napoleo foi uma simples protenide da histria: deu manifestaes, ou suscitou todo tipo de manifestaes, mas a ordem no estava nelas. A ordem - significado de natureza geral dos atos, sua justificao histrica - haveria de ser provada pelo Memorial de Santa Helena. S que era tarde demais, e a protenide Napoleo no mais podia tornar-se uma protena. No muito, foi aproveitada por outras protenas, estas verdadeiras, da histria.

Mas assim como as protenides representam tambm elas um modo de existir da vida, as manifestaes cegas do seio do real so, por sua vez, um simples modo de existir. Elas no permanecem suspensas no vazio. So mantidas juntas por algo individual, ao qual do a expresso, por exemplo, de um destino humano (Napoleo), de uma determinada matria, ou de uma determinada situao. Tais realidades individuais se desprenderam da inrcia geral e do a si mesmas determinaes especficas, sem obter, contudo, o cdigo do ser. So um mao de manifestaes presas por um plo, o individual, sem que haja um segundo plo, o geral, atravs do qual se pudesse obter o pleno equilbrio do ser.

O que a catolite elucidava desde o incio era o fato de que, pelo menos no caso do homem, no qualquer geral ligado ao individual que conduz ao equilbrio. Por que voc no se contenta com o que tem? Voc no v que est em ordem? dizem os outros para um homem e sua alma toda poderia diz-lo ao prprio homem. Ele no est em ordem. O geral apresenta no homem esta condio especial, de ser especfico; de at mesmo parecer ser individual, prprio, de qualquer modo. necessrio sair da condio individual e confirm-la ao mesmo tempo. necessrio encontrar o geral certo. A tenso da catolite nasce daqui, da necessidade do geral certo. Mas tambm daqui que nasce o risco de no saber da falta do geral, tendo em vista que ele ainda no-identificado.

Surgida da carncia do geral, a catolite a nica doena espiritual em que justamente o geral pode ser ignorado. Todas as outras vo surgir graas sua presena ou, como no caso da acatolia, atravs de sua recusa consciente. Aqui, no caso da catolite, pode no existir conscincia dele, e ento surgem manifestaes de um tipo das doenas, enquanto que a conscincia do geral, ou de sua carncia, vai produzir, sempre no caso da catolite, manifestaes de outro tipo. H portanto dois tipos de catolite. Em Salavin e Csar Birotteau encontrvamos manifestaes da doena que se deviam conscincia do geral, carecendo dela; em Bonaparte, poder-se-ia dizer, encontramos o caso contrrio, em que, a doena catolite aparece sem a conscincia de que falta o significado geral. Com ele podemos, portanto, iniciar a descrio do primeiro aspecto clnico da catolite.

1) Este homem, em que a prpria pessoa era completamente hipertrofiada, no negava os gerais, como Don Juan. Nem parecia sentir a falta deles, atribuindo-os todos, misturados, a si mesmo: sentidos revolucionrios, destino histrico da Frana, a idia europia, at mesmo a Igreja. Mas justamente por atribu-los a si, ou seja, subordinando-os sua pessoa, ele provava que no tinha verdadeiramente conscincia deles, no demonstrando nenhuma forma de submisso a algo alm deles. Abandonou rapidamente a idia revolucionria; no pde oferecer Frana nada alm de uma boa administrao (incluindo uma v soberba); e a idia europia ele a comprometeu, no importa quantas conseqncias tenha tido, por isso, a sua aventura histrica. As nicas determinaes efetivas que se lhe puderam atribuir foram as campanhas militares - simples desempenhos. A carncia do geral, no seu caso, conduziu sndrome da catolite tpica de todos os grandes lderes: a necessidade cega de ao. E, de fato, sob esta forma a catolite a doena dos tiranos, cujas manifestaes, na falta dos sentidos, se exacerbam. Atormentado por aes, o doente de catolite pode chegar, ento, at mesmo a chacoalhar a histria com os seus calafrios. Sobre aqueles tomados por tais tremores, pde-se dizer o seguinte: piti pour les forts.

Mas o exemplo das maiores mutilaes do esprito, como Napoleo, arrisca desfigurar, finalmente, as coisas. Privado da conscincia do geral, pode sofrer de catolite tambm o homem comum, cujo caso annimo revela a primeira forma da doena qui melhor que a exasperao dos grandes. A ignorncia do geral mesmo a lei, no caso desse homem e, quando jovem, o fato de que lhe falta geral e de que lhe falta mesmo a conscincia dessa falta assume formas to encantadoras que a gente se pergunta, num primeiro momento, se ainda se pode falar nesse caso de uma doena espiritual. Desse modo, o homem jovem comea por se abrir naturalmente a fatos e determinaes, sem nada para alm deles. Assim como na criana existe a simples sede de nome, ou seja, a necessidade de fixar as coisas denominando-as; assim como mais tarde surge e se desenvolve at gratuidade a necessidade de entrar em contacto direto com as coisas, apalpando-as a fim de ver como so feitas e de poder manej-las, da mesma maneira surge, como uma primeira idade do homem - de fato como sua primeira precariedade -, a idade em que o ser individual se atribui determinaes e se satisfaz na riqueza delas, independente de qualquer temor ou rumor de geral.

A criana invocada por Goethe no poema Prometheus no sabe de Deus, ou seja, de nada de ordem geral, mas est contente com a vida ferindo a chicotadas os cardos do campo. Goethe, da mesma maneira, se atribui, nos primeiros anos da juventude, as determinaes mais livres, dos espetculos teatrais que cria sozinho e as estrias que conta aos outros inventando-as no mesmo momento, at ao primeiro encontro com aquilo que finalmente mais tarde lhe parecer generalidade, sob o nome de eterno feminino, o encontro com Annette de Leipzig. E Agostinho - tambm ele exemplar de homem representativo, nos anos da juventude - prolonga at tarde, at ao confronto com o maniquesmo, como uma primeira entrada na ordem que se lhe oferece, os anos em que o nico modo de vida a plenitude ou a variedade das determinaes que a gente se atribui, sem relacionar com outra coisa.

Nos homens que no se aprofundam nunca no humano, a vida permanece nessa idade primeira, a das determinaes e manifestaes livres - na caa de que falava Pascal, na distrao em todos os sentidos, mesmo naquela de levar a vida a srio, com a demncia dos seus fatos vazios - de modo que uma vida de homem pode ser um simples desenrolamento de determinaes cujos acontecimentos representem, para eles, consumo de vida. Neles, com a sua febrilidade, comea a ser ntido um incio de adoentamento do esprito. Pois uma forma branda de catolite se encontra por detrs de qualquer vida desenrolada em perfeita inocncia e aparente sade. E mesmo a distrao, uma grande conquista do homem sobre as necessidades cegas, pode representar na verdade uma punio sobre ele. O inferno foi descrito por alguns telogos como uma festa que comea, continua, prolonga-se, e que no acaba mais, desvelando, dessa maneira dilatada, o seu vcio oculto.

Existe algo bem oculto, por detrs de tudo o que fazemos, nesse nvel. Nem podemos saber de uma falta, no momento dos primeiros entusiasmos, quando se vive debaixo da magia dos verbos: que flutuemos, que viajemos, que sonhemos, ou que destruamos, que construamos, que faamos um mundo nosso, que ergamos um mundo para todos, melhor. Um verbo atrs do outro traz a solicitao, oferecendo tanto espao de ao que nenhum corretivo pode mais frear as devoes. O verbo ainda puro, sem advrbios; ele no tem outros limites a no ser os que um outro verbo lhe traz, que surge com a mesma rigidez, relacionando-se somente com a sua ao. Algo poderia, entretanto, despertar inquietude, nesta condio singular do verbo, mas agora ainda no momento para outra inquietude que no seja a mais distante portadora do verbo puro.

No podemos parar para ver se a ao tem sentido e significado, visto que parece que ela nos enriquece. Tudo o que me engrandece verdadeiro, dizia Goethe, em sua grande inocncia. Acumulamos fatos assim como juntaramos haveres, sob a crena oculta de que a acumulao pode significar por si s existncia. Todas as formas de acumulao, terminando com a de enriquecimento dos conhecimentos, ou hoje a de acumulao de produtos tcnicos desejados ou indesejados, solicitaram do homem, como se tivessem uma verdade sua no simples fato de que so obtidas, assim como talvez no passado, com os seus mitos, o homem acreditasse que as coisas existem porque ele fala delas. De certo modo, continuamos acreditando nisso, exatamente como o homem das culturas que tm por base os mitos. Em sua criao literria, o homem cr que existe tudo aquilo que destino individual ou coletivo desenrolado de maneira segura e artstica, num plano de realidade das culturas e do pensamento. Na sua pintura, acreditava que tudo o que pintava com maestria, at ao mais humilde rosto humano ou canto de realidade e paisagem, hoje at estrutura mais abstrata, obtinha ou possua carga ontolgica. Em sua criao musical, acreditava e acredita que pode elevar harmonia qualquer caos sonoro, dando-lhe assim o direito de existir. Existir, onde e como? No sabemos bem, nem se esse enriquecimento est na medida adequada ao mundo, ao homem. Mas sou rico em fatos e criaes, logo existo, este o raciocnio de quem esconde a doena.

Mas seria isso aqui uma forma de adoentamento, ou talvez efetivamente uma forma de sade do homem? Num primeiro momento, no uma nem outra. Se a sade espiritual do homem significa a conexo do indivduo com um geral, nas manifestaes descritas acima trata-se sempre de uma conexo, do individual com um possvel. Por que no poderamos dizer - pensamos ento - que o possvel mesmo a forma de realidade do geral ou que, pelo menos, o aumenta e enriquece? Em todo caso h algo de inocente no possvel (seria a inocncia do devir), no primeiro momento em que ele suscita vida, e o senso geral forosamente ainda no precisa surgir. Aqui est em jogo o direito criao de que o homem se encarregou, ou seja, o direito de enriquecer a natureza no seio da natureza, direito que, segundo Schiller, pertence s ao gnio. Qualquer criao inocente parece ter nela algo de puro.

Numa primeira tentativa de criao, ainda prxima do estado de natureza, atribuem-se por exemplo determinaes novas a uma certa realidade individual. Um tronco de rvore ou um bloco de pedra podem se tornar uma mesa com cadeiras, como uma Mesa do Silncio[footnoteRef:4], assim como uma pedra polida pela gua pode ser polida ainda mais, at formar um corpo humano, ou assim como se pode imaginar um destino individual, na criao literria, surpreendido por todo o gnero de situaes e acontecimentos da vida, como os de Ulisses. Num certo nvel, aparentemente mais alto, mas onde a natureza e a cultura se encontram igualmente bem como nos primeiros exemplos, Balzac deu em seus romances - at o momento em que se tornou consciente do geral sob o qual se encontravam todos eles: A Comdia Humana - um exemplo extraordinrio da conexo do individual com o possvel, exprimindo no s a riqueza da sociedade ou da selva social de seu tempo, mas efetivamente enriquecendo a natureza no seio da natureza, ou seja, as listas do estado civil, como se disse. E, definitivamente, se Balzac no houvesse chegado idia (ao geral) da Comdia Humana, teria isso ento significado que os seus romances haviam sido uma simples acumulao de sucessos artsticos, neles escondendo um adoentamento do esprito, uma espcie de cncer da criatividade? [4: N. do T.: Escultura que compe, juntamente com o Porto do Beijo e a Coluna sem Fim, o complexo estaturio da cidade de Trgu Jiu, executado por Constantin Brancusi (1876-1957), escultor romeno estabelecido em Paris, considerado um dos maiores escultores modernos.]

Pode ser que nas manifestaes artsticas seja uma inverdade falar to rpida e sumariamente sobre o adoentamento, no caso em que elas no ocupem lugar sob o signo de um sentido de ordem geral. Na realidade, um primeiro senso geral deve existir nessas manifestaes, de momento em que os outros gostam delas; elas exprimem assim o pensamento e o ideal deles, erguendo-se aos sensos de uma comunidade inteira. A obra de arte se justifica por si mesma, assim como os romances de Balzac se justificavam por si mesmos, independentemente de seu significado ulterior; as obras tambm podem acumular o quanto for - at que uma insatisfao de sucesso, uma desorientao na maestria obtida, assim como um certo cansao do artista e do espectador comece a se desvelar. Se no for a falta do geral, talvez seja ento a falta de um outro geral. A pintura flamenga pde dar por vezes a sensao de falar bem demais uma mesma coisa; assim como, por outro lado, a msica de hoje fala maravilhosamente bem qualquer coisa, at esse taedium culturae, esse tdio por qualquer coisa. Picasso por vezes pareceu ser um fenmeno de cansao, justamente na sua extraordinria prolificidade, assim como na cultura antiga o nmero limitado de assuntos, aqueles 110 temas de tragdia sobre que falava Goethe, conduzia ao impasse da criatividade simultaneamente proliferao das criaes. Uma certa exuberncia criadora, junto com um primado do possvel vazio, assim como com outro da maestria vazia (sobre que se falou sempre em pocas de decadncia), seguida hoje pela maestria da execuo e da direo, parece solidria com aquela perda de si em ao que traa ao esprito o estgio de adoentamento da catolite. Existe, assim, um indcio de sutil misria no momento de aparente glria de qualquer cultura artstica plena.

Mas no momento em que no se pode falar de onde ou quando a arte trai uma forma de adoentamento do esprito - assim como no se pode dizer hoje de onde e de quando a tcnica comeou a ser uma proliferao doentia -, por outro lado, para a vida moral do indivduo, assim como para a vida histrica das comunidades, as coisas so mais simples e o diagnstico faz-se mais facilmente, pelo menos quando o caso da catolite: ela surge no momento em que se sai, legalmente ou no, de debaixo da tirania de uma ordem geral e ainda no se entrou na ordem prpria. Duas lmpidas ilustraes esto nossa disposio: o filho prdigo para a vida moral do indivduo e a histria em si para a vida das comunidades. Talvez o filho prdigo, de um lado, e a histria, de outro, sejam verdadeiros paradigmas da catolite, em sua forma primeira.

Fao o que gosto, diz o filho prdigo, e parte para o mundo, saindo de debaixo do senso geral da famlia e da sociedade para obter os sensos que deseja e que ignora como sendo sensos gerais; pois justamente isto o exaspera, a tirania da generalidade. Agora libertou-se. Se gosta do encanto da natureza, vai se aprofundar na natureza; se quer conhecer pases, vai rodar o mundo; quando quiser a ordem ou a desordem do amor, vai procurar o amor. Vai se perder, assim, sem perceber, de um geral para outro, demonstrando explcita ou implicitamente que a sua liberdade , de fato, a de procurar pelo prprio geral. O filho prdigo e, em geral, o homem de aventura no , entretanto, consciente nem desse, nem de nenhum outro geral, acreditando que a sua liberdade significa aventura pura. Mas o geral no precisa a todo preo ser invocado a fim de ser ativo, na desordem aparente da aventura, com sua presena ou mesmo com sua ausncia. Qualquer andar e qualquer perder-se representa um caminho e possui uma transcrio segura no mapa do corao humano, assim como toda curva traada casualmente num papel corresponde nas matemticas a uma equao. Se o agente finalmente no se der conta disso, vai terminar por ferir-se na ordem mais baixa, a da necessidade cega, assim como as manifestaes livres de Don Juan terminavam, em sua exasperao, na necessidade mais comum, a morte.

O filho prdigo, o homem fao o que gosto, no obtm mais que um momento do rosto de Don Juan. Ele tem sua frente gerais muito mais variados que o eros, que no recusa mas nem transforma, como o outro, desafiando a sociedade. A sua arma outra que no a contestao: a infidelidade. Mais profunda que a infidelidade daquele, a qual no existe seno diante das mulheres - portanto dentro de um s geral -, a infidelidade do filho significa liberao diante de quaisquer gerais existentes.

Resta-lhe dar-se um, mas ele se acostumou demais a fugir de tudo para chegar a pensar em tal coisa. A sua doena a falta, da qual no nem mesmo consciente, do geral, catolite de primeiro tipo. Se houvesse sabido de um geral atravs do qual pudesse se realizar, poderia ter permanecido em casa, ou teria partido em busca de si mesmo; e mesmo se no o houvesse encontrado, teria pelo menos sabido por que acabou tomando conta de porcos. Mas ele no sabe, em matria de geral, seno da casa, que abandonou e, por isso, no momento em que precisa da proteo de algum, ele volta para os seus. Teria sido possvel acontecer de viver em palcios, ao invs de tomar conta de porcos; mas de qualquer modo ele teria voltado, se tivesse sido honesto consigo mesmo. Porque ele est doente, em plena juventude e energia. Levou consigo a doena por todas as partes do mundo, e agora volta para continuar sofrendo, mas pelo menos debaixo do mimo dos pais. Entretanto, o pai (a generalidade da famlia) no poder dar nem a ele, nem ao seu irmo, que sofre de outra doena, mais do que mimos.

So comunidades histricas que no tm, infelizmente, essa ltima carcia e esse refgio num em casa. Quando o seu destino ou aventura histrica as conduziu situao de tomar conta dos porcos dos outros, muitas delas se apagam efetivamente como guardies de porcos; ou se, sob circunstncias favorveis e com a prpria rebelio, algumas saem da escravido, outras acabam por se perder na histria, como o filho prdigo pelo mundo.

Na verdade, a maioria das comunidades, assim como a maioria dos homens, atribuem-se - sem ter em vista, muito freqentemente, um senso geral - determinaes de todo tipo, cuja lenta acumulao pretende um dia tornar-se histria. Mas o que histria, sob tal perspectiva? E como ela pode ser exibida? estria, nada mais que isso - no histria. Goethe no aceitava a histria como disciplina distinta da cultura humana e nem compreendia a histria real como elevao a algo com o sentido do devir humano. Para ele, a histria real era o inteiro devir coletivo, sem restar nada, de tal maneira que a nica histria escrita poderia ter sido a transcrio e a biografia dos eventos. E apesar de no poderem fazer justamente isso, muitos historiadores, dentre os quais os que no vem o geral e a idia na histria real, permanecem realmente na simples biografia dos eventos. Perdemo-nos em crnicas e documentos, ou na histria das famlias principescas da Renascena, assim como se perderam elas mesmas nas areias da histria. No tm sentido as coisas? No se vertebram elas atravs de nada geral?

O exemplo mais espantoso na histria, de incapacidade de sair da precariedade das manifestaes cegas e de obter um senso geral (at mesmo um estado), oferecido por um povo como os Celtas, que, alguns sculos antes de nossa era e at hoje, no espao que haver de se ter tornado o romeno, e depois na Frana, Espanha, Inglaterra, estiveram continuamente - como j se disse - minando tudo o que era estado constitudo, mas sem terem podido eles mesmos chegar idia e realidade de ordem mais geral de estado. A histria plena de grandes anonimatos, graas no-elevao aos sensos gerais, mas um insucesso to persistente provavelmente no possui equivalente, pelo menos no espao europeu. Se se pode falar de catolite nos povos, ou seja, de sofrimento provocado pela falta do geral e de sua conscincia, nem um dos povos conhecidos padeceu tanto quanto os Celtas.

Mas, de uma maneira ou de outra, a catolite de primeiro tipo (sem a conscincia do geral) persegue todos os povos, pois at aqueles que se alaram idia geral de estado, imbuindo-se mesmo, depois, de um senso geral como misso histrica, sofrem de certo modo de sua falta e navegam apenas debaixo de seu pavilho e veleidade. So como caravelas bbadas da histria. Mas quando algumas delas tm a felicidade de alcanar um porto, as outras, ainda tomadas pelos calafrios da catolite, tm o cuidado de espant-las dali, como se nada pudesse descansar na ordem do geral, dentre as que flutuam no oceano da histria.

Se reunirmos agora num lugar os traos principais que os casos mencionados de catolite trouxeram luz, vemos que todos eles so como uma rplica do esprito diante da falta, sentida de maneira indefinida, do geral, que pode modelar os destinos e as tentativas do indivduo ou da comunidade. A rplica do esprito tem, no incio, algo de positivo nela. Traz consigo, nos anos da inocncia, a seduo do verbo puro, livre com suas aberturas e de qualquer trajeto. Com a sua reao como se diante de um vazio (o vazio da vida), o esprito desperta a riqueza do possvel, mas sem resolv-lo num real, at mesmo quando o leva realizao, realizando-o como uma reao em cadeia, possvel aps possvel. Entrado dessa maneira em exuberncia, o esprito poderia perder logo, se no olhasse para trs, as acumulaes da experincia vivida e, s vezes, da criao, em casos privilegiados. Mas as acumulaes so um simples acmulo, assim como era apenas um acmulo de vitrias vazias a srie de guerras de Napoleo; e o homem, indomesticado de um senso mais largo de seus fatos, v-se obrigado a suscitar fatos novos, deixando-se narcotizar pela ao. Assim como a proliferao excessiva de clulas num organismo trai a carncia de controle gentico, a pluralidade para ela mesma , no esprito, sempre prova de carncia do Uno. As determinaes, no submetidas a um geral, no podem tornar-se seno pletricas, de tal modo que, em plena aparente sade, a abundncia pode revelar justamente as vicissitudes que o esprito encontra.

Por que vocs se agitam tanto?, dizia um indiano aos europeus, e todos o podem dizer, de sua perspectiva. O primado do verbo, da ao, do possvel, das acumulaes, da proliferao acaba por ser a sndrome de uma perda e prodigalidade de si. O filho melhor denominado prdigo que peregrino; porque ele se prodigaliza o ser ao invs de junt-lo sob um senso geral, como o prodigalizam os povos na histria. significativo que a cincia da histria tenha nascido no continente europeu, onde mais incide a catolite. Os povos que se encontram sob o signo do geral - como alguns dos asiticos - no tm necessidade de histria. Eles sofrem, porm, de outras doenas do esprito.

2) Uma primeira forma de catolite, aquela em que no s falta o geral mas falta tambm a conscincia dele, foi por ns assim examinada. A segunda forma vai possuir manifestaes diferentes, apesar de solidrias, ao limite, com as primeiras. Por estarmos agora falando da doena espiritual daquele que tem conscincia de que lhe falta o geral adequado, a atmosfera ser mais refinada, mas tambm a morbidez ser mais acusada. Nesta verso, a catolite uma doena do homem erguido ao nvel da cultura e, em todo caso, daquele que busca a lucidez.

De modo especial, o homem de cincia, no momento em que sai da segurana da especialidade e sente a necessidade de filosofar, arrisca-se a ser tomado por essa segunda forma de doena espiritual que estamos analisando. Na verdade, ele adoece espiritualmente de fato - como aconteceu em nossos dias, no caso do bilogo francs Monod - sob o espetculo de um mundo em que deveriam, sobretudo para ele como homem de cincia, aparecer leis e sensos gerais, recusando-se porm a aparecer a no ser sob a forma de necessidades evidentes. O homem de cincia tem, assim, a conscincia do geral, mas no o podendo identificar em lugar algum, proclama categoricamente, apesar de ele mesmo vacilar dentro de si, que o mundo no seno um encadeamento cego, visto da perspectiva de sua cincia. Uma semelhante viso freqente na histria, de Epicuro e Lucrcio a Jacques Monod, mas este a ps em evidncia de maneira to provocatria que bastaria s ele ser invocado.

Que o mistrio da vida se reduza converso do acaso em necessidade; que a vida seja um acidente no universo e que o homem seja um nmade no mundo, uma criatura sem razo e sem motivo - quantos sbios desabusados e cnicos no o disseram? Se as coisas so repetidas agora por Monod em Le Hasard et la Ncessit, luz das grandes descobertas cientficas e em particular do cdigo gentico (em cuja elucidao contribuiu o prprio autor), isso nos interessa menos como viso filosfica, visto que ela concebida antes, do que como sintoma de uma doena espiritual que no pra de tentar homens de cincia e os homens lcidos em especial.

Quanta objeo no se fez e quanta mais objeo no se faria a semelhante viso? Poder-se-ia dizer, por exemplo, que o acaso que se transforma em necessidade (hasard capt, conserv, reproduit et converti en ncessit, op. cit., p. 112) pareceria perfeitamente, num outro momento da cincia, como sendo completamente outra coisa que no um simples acaso; que, em todo caso, a forma mais trivial de acaso, no nvel de quem brinca com a sorte, que em modo correspondente tem, como se sabe, uma idia igualmente trivial da necessidade, de tal maneira que pode s vezes acabar na superstio da necessidade; e que - se devemos mesmo falar de acaso e necessidade - bom dizer, da perspectiva do pensamento filosfico, que existem tambm outros tipos, algo mais refinado, tanto de acaso como de necessidade, assim como vo justamente demonstrar as outras cinco doenas espirituais cuja descrio vir a seguir. Mas o essencial que em plena glria da pesquisa cientfica, como hoje, pde-se reativar uma doena, constitucional do homem, no perfeito estilo clssico do pensamento cientfico. Perguntemo-nos mesmo se semelhantes doenas espirituais, sendo constitucionais, no seriam elas as que do o impulso e depois o timbre de nossas vises sobre o mundo. De quando em quando, a catolite poderia pr no mundo sistemas de conhecimento, em que o geral seria nada mais que necessidade cega e casual, como em Epicuro e Monod.

Mas, se est em jogo a carncia do geral e a conscincia dessa carncia, ento, ainda melhor que as vises com base de cincia, aquelas com base de reflexo filosfica podem dar expresso ao desajuste produzido pela catolite. Assim ocorreu em nossos dias, de modo exemplar, com o existencialismo. Se algum quiser ver, no nvel da cultura, o que exatamente significa uma doena espiritual (com o seu positivo e sua criatividade), ento o existencialismo lhe est disposio.

Desde o incio, o existencialismo, ou os seus precursores, reconheceram, s vezes pateticamente, o adoentamento do esprito humano, com a tortura deste de saber que tem de buscar uma ordem geral, que entretanto no encontra. No importando quanta aparente segurana existisse em seu engajamento religioso, um Agostinho no final da Antigidade e depois um Pascal viveram e pensaram dramaticamente, na falta daquilo que declaravam ter. Mas enquanto neles a busca ainda era equilibrada por uma clara abertura para o geral, num Kierkegaard e depois no existencialismo ateu dos nossos dias (sobretudo o francs), onde o individual, e no o geral, tem primazia, aparecem: a exasperao, as contores do esprito e o desespero.

Kierkegaard , sem dvida, o grande doente de catolite da histria de nossa cultura. Ele sabe do geral, sente-lhe a presena, no caso de seu pai, como uma blasfmia, percebe-o e o reinvoca por conta prpria constantemente, mas ao mesmo tempo ele o contorna e se enterra em seu destino individual. Em termos especficos ele se pergunta, no perodo bom de seu amor por Reghina Olsen, se se realiza ou no o geral, o qual poderia agora tomar a forma, aparentemente comum, de casamento e submisso lei religioso-social. Mas no se realiza o geral e ele se retrai tanto em sua experincia individual, que chega a declarar que tudo o que escreveu (tudo o que pensou, portanto, sobre o seu geral) tinha sido escrito para a glria da amada. Se verdade, como se disse, que ele tenha proclamado o direito subjetividade, contra Hegel e todos os agentes do geral, e que tenha sonhado com homens como indivduos autnticos, ento com a sua pessoa ele conseguiu. Mas se ao mesmo tempo queria, como j se disse de novo, buscar o geral num indviduo, ele no o encontrou. Pde evitar o pantesmo - porque sem a categoria do individual pode-se cair facilmente no pantesmo -, mas no pde evitar o primado do individualismo, e igualmente o da desolao.

Como Kierkegaard, existem pensadores que permanecem bloqueados no individual e em determinaes, mas de uma outra maneira que no a experincia imediata e normal, onde o geral ignorado; neles isso se explica atravs da impotncia de encontrar acesso a um geral, cuja conscincia entretanto tm. Tm primazia ento as determinaes de existncia (daqui existencialismo) sobre a essncia, assim como surge declarado sobretudo no existencialismo francs, com Sartre. O movimento do individual, atravs de determinaes, para o geral, to harmonioso em Plato, torna-se aqui torturado, porque o individual se enterra finalmente em determinaes, ao invs de se abrir atravs delas; o prprio encontro com o geral, se ocorre, torna-se um terremoto, segundo o filsofo dinamarqus, e no um entrar em ordem. Quando no teve mais a cobertura, fosse at mesmo ilusria, da essncia ou do geral divino, o existencialismo teve de reconhecer os seus limites, terminando, fosse no calar-se, como em Heidegger, fosse - o que inacreditvel para uma filosofia - na confisso de que deriva de outra filosofia, como fez Sartre com o marxismo. Permanecendo sozinho, o existencialismo conduz o ser humano conscincia do exlio, como na viso com base na cincia, ou exasperao, terremoto e angstia.

Na verdade, o que nos parece comandar o existencialismo, assim como a lucidez dos modernos, uma compreenso equivocada da inexistncia e, geralmente, um pavor precipitado diante do nada.

Nele mesmo, o nada no perturbador, numa certa rea da realidade, e nem deveria passar o sentimento da inexistncia: um nada, ou seja, um lugar vazio, no plano da qumica, da biologia ou do esprito, coexiste perfeitamente com o pleno, como se viu na tabela dos elementos qumicos de Mendeleiev, ou quem sabe em que tabelas da realidade; por outro lado, os tipos de nada obtidos da perspectiva da conscincia no so mais do que calmas inteiraes lgicas ou epistemolgicas do real positivo atravs de um negativo, como no caso das quatro formas de nada de Kant (nihil privativum, ens rationis, ens imaginarium e nihil negativum). No se pode falar de inexistncia qumica, ou fsica, nem inexistncia lgica. S as formas de nada do interior do ser desequilibram o real. Se s vezes elas trazem a direo da realizao necessria, com o que lhes falta, outras vezes elas do o senso de bloqueio a uma coisa. E este vazio de ser, que pode ser frtil, mas que pode s vezes despertar, com os seus bloqueios, o sentimento da inexistncia, tem como objetivo termos do ser: o geral, as determinaes e o individual. O existencialismo no sabia, talvez, que se encontrava diante de uma determinada inexistncia e mais nada que isso.

Dessa maneira, no lugar que deveria ocupar, na economia do ser, o geral pode no ser nada. Vivemos a vida tranqilamente com as suas acumulaes, na qual podemos tentar ver seja a nossa liberdade e as restries do mundo, seja outras vezes a nossa necessidade interior e a contingncia do mundo; de qualquer modo, vivemos uma vida plena de determinaes variadas. Assistimos depois ao espetculo da realidade, onde as coisas e os seres, presas pelas situaes do individual, se manifestam tambm eles de todos os modos, preenchendo o palco do mundo com a sua exuberncia. Poder-se-ia dizer que no se pode tratar de vazio, nos momentos em que as coisas ou o homem produzem tanta riqueza de manifestaes. E, na verdade, vazio no existe, mas pode existir inexistncia (ou seja, sentimento do vazio) se falta a boa converso para um senso geral que d consistncia riqueza daquela. A inexistncia uma irrealidade mais sutil que o vazio; no meio de uma plenitude aparente, ela pode nos fazer dizer: aqui no h nada, de fato. o que ns tambm s vezes dizemos, com a sabedoria dos anos tardios.

Essa inexistncia de destramao (porque existem outros tipos de inexistncia) tambm a mais freqente, sendo percebida por qualquer um sob a existncia to comum do que passa ou do cerceamento da vida e das coisas, mesmo se no lmpido para qualquer um que justamente a falta do geral o que faz com que tudo se destrame. Porm a conscincia da falta do geral d, naturalmente, um sentimento mais profundo da inexistncia: sabemos bem que aqui deve haver algo - e no h nada. O desabamento do individual e das determinaes acumuladas so, pois, pouco demais e algo comum demais diante da carncia de geral. Deus morreu, exclama Nietzsche, inflamado tambm ele de catolite. Como substituir, conforme o seu pensamento, atravs da simples vontade de poder do homem, ou com o eterno retorno daqueles que tornam, a presena do geral? No se pode nada mais que enfrentar o geral, e a trgica coliso em que se entra dessa maneira (Dionsio contra Cristo, do delrio de Nietzsche nas vsperas da loucura) ser a experincia extrema da catolite.

uma das formas do trgico (das seis formas do trgico) esta em que culmina a doena catolite: o trgico da coliso entre duas ordens gerais. Porque tendo a falta de geral, mas consciente da gravidade de semelhante falta, o homem pode atribuir ele a si mesmo semelhantes gerais e confrontar aqueles que no soube reconhecer. Antgona invoca as leis no-escritas para afrontar as da cidadela; El Cid veste a lei da honra para afrontar a prpria lei; assim como Nietzsche se declara deus, para afrontar o divino. A forma clssica do trgico assim apenas o final do caminho da catolite: a sua providncia extrema, a inimizade dos gerais em sujeito consciente.

Enquanto a catolite, no sujeito carente de conscincia do geral, tem como manifestaes, em sua forma primeira: a perda em ato, o excesso de aes, a exuberncia do possvel, a obsesso das acumulaes, a pluralidade cega, a proliferao, agora sob a conscincia do geral, ou da falta dele, em sua forma segunda surgem experincias espirituais em que do o tom: o evento passado em necessidade cega, o sentimento de perda de si e do exlio, a angstia, a exasperao e a coliso trgica entre sujeito, doentiamente adequado ao nvel do geral, e o geral ele-mesmo. O mundo deveria ter um sentido, mas para semelhante assunto no o tem. O homem tenta dar ele um sentido, se esfora e luta por ele, mas no o pode impor. Est sofrendo. - Mas a sua doena foi muitas vezes benfazeja para o mundo.

III. Todetite

a doena causada pela carncia do individual, uma carncia que chega efetivamente at a falta desta coisa mesma (tode ti, em grego arcaico), atravs da qual se realizam tanto o senso geral como as suas determinaes. Enquanto a catolite era a doena espiritual da imperfeio, justamente a de no poder obter o geral adequado, a todetite de certa maneira a doena da perfeio, ou, no caso do homem, da disposio terica em que ele pe o seu confiscar-se por um senso geral, fazendo com que no se ache no individual adequado.

Poder-se-ia imaginar a prpria natureza s vezes sofrendo desta doena; em todo caso, o divino sofre dela. A conscincia religiosa do homem por vezes sentiu, no pensamento de perfeio do divino, o sofrimento de o no ver corporificado em nada, buscando-o em meteoritos cados do cu ou nas realidades que lhe pareciam milagrosas sobre a terra. Se criou tambm uma situao histrica especial entre as religies, o cristianismo o deve tambm ao fato de que teve o poder de sustentar at o fim a corporificao individual do divino. Poder-se-ia dizer que a corporificao no representa um dom do divino feito ao mundo, mas ele mesmo: o ser divino saa desta maneira do nada e da falta de identidade da perfeio.

Antes, ento, de atingir a doena do homem instalado no geral, pode-se falar da doena das realidades gerais elas mesmas. O tempo absoluto, imaginado com bom-senso muito antes de haver sido concebido por Newton, o mesmo com o espao absoluto, ou com o ser de Parmnides, eram efetivamente doentes de perfeio. Nada individual no os vinha macular, levando-os a uma realizao sua, assim como nada individual no resistia diante deles. O tempo parecia uma vasta ironia metafsica; afirmava-se - nessa concepo - atravs do presente, para desmentir-se sozinho; ou punha continuamente no mundo filhos do momento, a fim de os suprimir, como Cronos. Tambm o espao era ao mesmo tempo o princpio de individualizao (hic et nunc), atravs da determinao local, mas tambm o de dissoluo de toda localizao. Diante dos tempos reais e individualizados de acordo com a espacialidade em que se encontram, das cincias de hoje (outro o tempo terrestre, em face do csmico), o tempo absoluto parecia, com a sua necessidade, tudo o que mais poderoso e tudo o que mais fraco, como dizia Hegel. Diante do espao-campo das cincias novas, o conceito de espao absoluto denominava o prprio vcuo.

Os princpios que lhes correspondiam em lgica eram igualmente doentios: diante da identidade real da coisa modificadora (ou do eu, que o mesmo, apesar de o homem se modificar todo o tempo), o princpio da identidade expresso como A = A representa uma verdadeira alucinao lgica; assim como, diante das contradies efetivas do seio do real, o velho princpio da contradio reclamava, para as coisas, algo to perfeito que, graas ao seu regime, nem mesmo s matemticas faltavam graves contradies.

Se a doena das entidades gerais e de suas reflexes lgicas pode a algum parecer uma simples metfora, o homem de qualquer modo efetivamente sofreu por sua causa e graas a sua conscincia. Sua perfeio, com a falta de qualquer acesso ao individual - para o qual as entidades deveriam de qualquer modo ser enviadas, porque elas so aquelas que o enquadram e sustentam -, deu ao homem a forma mais nobre de todetite, mas tambm a mais difcil de suportar, no s como homem religioso mas tambm como ser pensante e conhecedor; pois a todetite est associada a processos superiores, em primeiro lugar os do conhecimento. Poder-se-ia haver dito que o mundo moderno, com a degradao que levou s instncias supremas (divino, ser puro, tempo, espao absoluto) e com a relativizao atravs do conhecimento de qualquer entidade geral, escapou da obsesso da perfeio e, assim, de uma das formas de todetite. Mas ocorreu, de novo, algo totalmente inesperado: se atravs do conhecimento exato desfez-se a nvoa de todo absoluto de fora, permaneceu no homem conhecedor o absoluto da exatido. Todas as perfeies se dissolveram pelo conhecimento, mas ficou a exigncia da perfeio do conhecimento.

A necessidade da exatido absoluta encontrou uma expresso extraordinria na lgica simblica, cujo ideal de rigor de tal natureza que ela detecta graves imperfeies em tudo o que foi pensamento organizado e em tudo o que afirmao do logos, em primeiro lugar nas lnguas naturais, desvelando mesmo contradies e paradoxos, como dizia, at nas matemticas. Uma tal exigncia de rigor absoluto no pode deixar de reativar a doena espiritual da todetite, sob a forma do sofrimento de no poder encontrar realidades individuais sua medida e de as dever inventar ou propor com modelos ideais.

Aliada mquina, ao maquinismo e at mesmo automatizao, a cuja medida e servio se encontra, a lgica simblica exprime em estado puro o primado do geral sobre tudo o que pode ser individual e, assim, o primado do rigor, da exatido, da perfeio mecanicista-racional, graas ao qual o ser do homem, todo natural, arrisca atingir um desajuste atravs de um excesso de regulagem. Aquilo que poderia despertar a doena espiritual no homem antigo, mais exatamente o sentimento e a convico de que existe um mundo incorruptvel, diante do qual o mundo dele no era seno um mundo do individual e do corruptvel; aquilo que contudo no fez os gregos antigos adoecer, graas quem sabe a que tipo de bom instinto de sua sade, agora arrisca adoecer a ns, no momento de todas as descrenas e desmitificaes. Mas se a lgica e a mquina exprimem em estado puro a forma de incorruptvel do homem moderno, a sua exigncia de rigor e de reao segura em cadeia se manifesta, concretamente, em toda a cultura cientfica, no importa o quo deficitria seja ela ainda sob o relatrio da exatido absoluta em muitos setores, conduzindo desta maneira no s a uma tenso dramtica do conhecimento, mas - como ainda vou tratar - a uma outra forma de trgico que no aquela em que a catolite poderia culminar: ao trgico do conhecimento suspenso, deteno de um geral perfeito, destacado de individual.

Nas cincias, de fato, o homem ou tem de ser uma ausncia, assim como tudo o que individual. Qualquer cincia a reduo de uma diversidade a uma unidade, portanto, de algumas determinaes a um geral. O problema principal foi fazer com que a variedade de determinaes da natureza - enriquecida pelo homem de cincia com determinaes novas, da experimentao - encontrasse aquelas leis que levassem a todas as partes a ordem e a verdade do geral. A indiferena com relao ao individual no leva em considerao s aquele que conhece tambm o seu mundo (o sujeito no deve contar), mas leva tambm em considerao o objeto individual do conhecimento. Pois, na medida em que conhece, a conscincia come o seu objeto, assim como j se disse; ela o desfaz como tal, reduzindo-o lei, e ainda muito mais, reduzindo-o a uma simples expresso de ordem matemtica.

Que tudo o que seja natureza vacile desta maneira? Mas fiat scientia, pereat mundus. O individual como tal, at mesmo o Grande indivduo que este nosso astro, so colocados em parntesis diante da verdade de conhecimento. Se se dissesse que no passasse aqui de uma aparncia de trgico, para o destino de conhecimento do homem - na medida em que ele quer conhecer algo, e permanece diante de si somente com um espectro, ou com a pura matemtica de algo -, seguramente um verdadeiro senso trgico nas aplicaes tcnicas desse conhecimento, que, no momento em que acaba por tentar reaver uma realidade individual, ameaa aquelas efetivas ou pe no seu lugar outras, simplesmente explosivas.

Assim como mais tarde, para o impasse trgico da cultura de alta doena espiritual, escolheremos a arte da msica, no se pode escolher agora, para o impasse da cultura cientfica, nem a fsica, sobre cujos terrveis riscos hoje qualquer um sabe, nem a qumica com a sua poluio, nem a biologia com o seu intervencionismo deformador possvel, mas simplesmente a medicina, que chegou situao de no poder deixar de salvar a progenitura da humanidade, porm sabendo perfeitamente que, agindo assim, apressa a exploso demogrfica, ou seja, ameaa ela mesma a vida humana, assim como, prolongando infindavelmente e conduzindo hebetude a velhice do homem, ameaa mais uma vez a prpria vida com a sua prpria degradao[footnoteRef:5]. [5: O detentor do prmio Nobel de Biologia, Krick, props que, aps os 80 anos, o homem no mais tomasse remdios.]

De novo surge, com esse trgico cuja conscincia atinge o homem que sofre de todetite, uma de suas formas culminantes, assim como encontrvamos no caso da catolite. Ilustremos ento a t