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AS SEIS LIÇÕES

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  • AS SEIS LIES

  • Ludwig von Mises

    AS SEIS LIES

    Traduzido por Maria Luiza Borges

    7 Edio

  • Copyright Margit von Mises, 1979

    Ttulo do original em ingls:ECONOMIC POLICY: THOUGHTS FOR TODAY AND TOMORROW

    Esta obra foi editada por:Instituto Luwig von Mises Brasil

    Rua Iguatemi, 448, conj. 405 Itaim BibiSo Paulo SP

    Tel: (11) 3704-3782Impresso no Brasil / Printed in Brazil

    ISBN: 978-85-62816-01-77. Edio

    Traduzido por Maria Luiza Borges para o Instituto Liberal

    Reviso para nova ortografia: Nbia Tavares

    Imagens da capa:Dim Dimich/Shutterstock

    Capa:Neuen Design / Toledo Propaganda

    Projeto Grfico: Andr Martins

    Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca Ludwig von Mises do Instituto Liberal RJBibliotecrio Responsvel: Otvio Alexandre J. De Oliveira

    G994q Mises, Ludwig von 1881-1973

    As seis lies/Ludwig von Mises: traduo de Maria Luiza Borges 7 edio So Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2009.

    Traduo de: Economic policy: thoughts for today and tomorrow

    1. Poltica econmica 2. Economia de Mercado 3. Interveno do estado 4. Sistemas econmicos I. Borges, Maria Luiza II. Instituto Liberal III. Ttulo

    CDD 330.157

  • Sumrio

    Prefcio Por Margit von Mises . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

    caPtulo 1 PriMeira lio 1. O capitalismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

    caPtulo 2 segunda lio 1. O socialismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27

    caPtulo 3 terceira lio 1. O intervencionismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45

    caPtulo 4 Quarta lio 1. Ainflao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61

    caPtulo 5 Quinta lio 1. Investimento externo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77

    caPtulo 6 sexta lio 1. Poltica e ideias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91

    ndice reMissivo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105

  • Prefcio

    O presente livro reflete plenamente a posio fundamental do autor, que lhe valeu e ainda lhe vale a admirao dos discpulos e os insultos dos adversrios. Ao mesmo tempo que

    cada uma das seis lies pode figurar separadamente como um ensaio independente, a harmonia da srie proporciona um prazer esttico similar ao que se origina da contemplao da

    arquitetura de um edifcio bem concebido. Fritz Machlup, Princeton, 1979

    Em fins de 1958, meu marido foi convidado pelo Dr. Alberto Benegas Lynch para pronunciar uma srie de conferncias na Argentina, e eu o acompanhei. Este livro contm a transcrio das palavras dirigidas por ele nessas conferncias a centenas de estudantes argentinos.

    Chegamos a Argentina alguns meses depois. Pern fora fora-do a deixar o pas. Ele governara desastrosamente e destrura por completo as bases econmicas da Argentina. Seu sucessor, Eduardo Leonardi, no foi muito melhor. A nao estava pronta para no-vas ideias, e meu marido, igualmente, pronto a fornec-las. Suas conferncias foram proferidas em ingls, no enorme auditrio da Universidade de Buenos Aires. Em duas salas contguas, estudan-tes ouviam com fones de ouvido suas palavras que eram traduzidas simultaneamente para o espanhol. Ludwig von Mises falou sem nenhuma restrio sobre capitalismo, socialismo, intervencionis-mo, comunismo, fascismo, poltica econmica e sobre os perigos da ditadura. Aquela gente jovem que o ouvia no sabia muito acerca de liberdade de mercado ou de liberdade individual.

    Em meu livro My Years with Ludwig von Mises, escrevi, a propsito dessa ocasio: Se algum naquela poca tivesse ousado atacar o co-munismo e o fascismo como fez meu marido, a polcia teria interferi-do, prendendo-o imediatamente e a reunio teria sido suspensa.

  • 10 Ludwig von Mises

    O auditrio reagiu como se uma janela tivesse sido aberta e o ar fresco tivesse podido circular pelas salas. Ele falou sem se valer de quaisquer apontamentos. Como sempre, seus pensamentos foram guiados por umas poucas palavras escritas num pedao de papel. Sabia exatamente o que queria dizer e, empregando termos relati-vamente simples, conseguiu comunicar suas ideias a uma audincia pouco familiarizada com sua obra de um modo tal que todos pudes-sem compreender precisamente o que estava dizendo.

    As conferncias haviam sido gravadas, as fitas, posteriormente, foram transcritas. Encontrei este manuscrito datilografado entre os escritos pstumos de meu marido. Ao ler a transcrio, recordei vividamente o singular entusiasmo com que aqueles argentinos ti-nham reagido s palavras de meu marido. E, embora no seja econo-mista, achei que essas conferncias, pronunciadas para um pblico leigo na Amrica do Sul, eram de muito mais fcil compreenso que muitos dos escritos mais tericos de Ludwig von Mises. Pareceu-me que continham tanto material valioso, tantos pensamentos relevan-tes para a atualidade e para o futuro, que deviam ser publicados.

    Meu marido no havia feito uma reviso destas transcries no intuito de public-las em livro. Coube a mim esta tarefa. Tive mui-to cuidado em manter intacto o significado de cada frase, em nada alterar do contedo e em preservar todas as expresses que meu ma-rido costumava usar, to familiares a seus leitores. Minha nica contribuio foi reordenar as frases e retirar algumas das expresses prprias da linguagem oral informal. Se minha tentativa de con-verter essas conferncias num livro foi bem-sucedida, isto se deve apenas ao fato de que, a cada frase, eu ouvia a voz de meu marido, eu o ouvia falar. Ele estava vivo para mim, vivo na clareza com que demonstrava o mal e o perigo do excesso de governo; no modo compreensivo e lcido como descrevia as diferenas entre ditadura e intervencionismo; na extrema perspiccia com que falava sobre personalidades histricas; na capacidade de fazer reviver tempos passados com umas poucas observaes.

    Quero aproveitar esta oportunidade para agradecer ao meu ami-go George Koether pelo auxlio que me prestou nesta tarefa. Sua ex-

  • 11Prefcio

    perincia editorial e compreenso das teorias de meu marido foram de grande valia para este livro.

    Espero que estas conferncias sejam lidas no s por especialistas na rea, mas tambm pelos muitos admiradores de meu marido que no so economistas. E espero sinceramente que este livro venha a tornar-se acessvel a um pblico mais jovem, especialmente aos alunos dos cursos secundrios e universitrios de todo o mundo.

    Margit von Mises Nova YorkJunho, 1979

  • caPtulo i

    Primeira lio

    1

    o caPitaliSmo

    Certas expresses usadas pelo povo so, muitas vezes, inteira-mente equivocadas. Assim, atribuem-se a capites de indstria e a grandes empresrios de nossos dias eptetos como o rei do cho-colate, o rei do algodo ou o rei do automvel. Ao usar essas expresses, o povo demonstra no ver praticamente nenhuma di-ferena entre os industriais de hoje e os reis, duques ou lordes de outrora. Mas, na realidade, a diferena enorme, pois um rei do chocolate absolutamente no rege, ele serve. No reina sobre um territrio conquistado, independente do mercado, independente de seus compradores. O rei do chocolate ou do ao, ou do autom-vel, ou qualquer outro rei da indstria contempornea depende da indstria que administra e dos clientes a quem presta servios. Esse rei precisa se conservar nas boas graas dos seus sditos, os consumidores: perder seu reino assim que j no tiver condies de prestar aos seus clientes um servio melhor e de mais baixo custo que o oferecido por seus concorrentes.

    Duzentos anos atrs, antes do advento do capitalismo, o status social de um homem permanecia inalterado do princpio ao fim de sua existncia: era herdado dos seus ancestrais e nunca mudava. Se nascesse pobre, pobre seria para sempre; se rico lorde ou du-que , manteria seu ducado, e a propriedade que o acompanhava, pelo resto dos seus dias.

    No tocante manufatura, as primitivas indstrias de beneficia-mento da poca existiam quase exclusivamente em proveito dos ricos. A grande maioria do povo (90% ou mais da populao eu-ropeia) trabalhava na terra e no tinha contato com as indstrias de beneficiamento, voltadas para a cidade. Esse rgido sistema da

  • 14 Ludwig von Mises

    sociedade feudal imperou, por muitos sculos, nas mais desenvol-vidas regies da Europa.

    Contudo, a populao rural se expandiu e passou a haver um ex-cesso de gente no campo. Os membros dessa populao excedente, sem terras herdadas ou bens, careciam de ocupao. Tambm no lhes era possvel trabalhar nas indstrias de beneficiamento, cujo acesso lhes era vedado pelos reis das cidades. O nmero desses prias crescia incessantemente, sem que todavia ningum sou-besse o que fazer com eles. Eram, no pleno sentido da palavra, proletrios, e ao governo s restava intern-los em asilos ou ca-sas de correo. Em algumas regies da Europa, sobretudo nos Pases Baixos e na Inglaterra, essa populao tornou-se to nu-merosa que, no sculo XVIII, constitua uma verdadeira ameaa preservao do sistema social vigente.

    Hoje, ao discutir questes anlogas em lugares como a ndia ou outros pases em desenvolvimento, no devemos esquecer que, na Inglaterra do sculo XVIII, as condies eram muito piores. Na-quele tempo, a Inglaterra tinha uma populao de seis ou sete mi-lhes de habitantes, dos quais mais de um milho provavelmente dois no passavam de indigentes a quem o sistema social em vigor nada proporcionava. As medidas a tomar com relao a esses deser-dados constituam um dos maiores problemas da Inglaterra.

    Outro srio problema era a falta de matrias-primas. Os in-gleses eram obrigados a enfrentar a seguinte questo: que faremos, no futuro, quando nossas florestas j no nos derem a madeira de que necessitamos para nossas indstrias e para aquecer nossas ca-sas? Para as classes governantes, era uma situao desesperadora. Os estadistas no sabiam o que fazer e as autoridades em geral no tinham qualquer ideia sobre como melhorar as condies.

    Foi dessa grave situao social que emergiram os comeos do capitalismo moderno. Dentre aqueles prias, aqueles miserveis, surgiram pessoas que tentaram organizar grupos para estabelecer pequenos negcios, capazes de produzir alguma coisa. Foi uma inovao. Esses inovadores no produziam artigos caros, acess-veis apenas s classes mais altas: produziam bens mais baratos, que

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    pudessem satisfazer as necessidades de todos. E foi essa a origem do capitalismo tal como hoje funciona. Foi o comeo da produo em massa princpio bsico da indstria capitalista. Enquanto as antigas indstrias de beneficiamento funcionavam a servio da gente abastada das cidades, existindo quase que exclusivamente para corresponder s demandas dessas classes privilegiadas, as no-vas indstrias capitalistas comearam a produzir artigos acessveis a toda a populao. Era a produo em massa, para satisfazer s necessidades das massas.

    Este o princpio fundamental do capitalismo tal como existe hoje em todos os pases onde h um sistema de produo em massa extremamente desenvolvido: as empresas de grande porte, alvo dos mais fanticos ataques desfechados pelos pretensos esquerdistas, produzem quase exclusivamente para suprir a carncia das massas. As empresas dedicadas fabricao de artigos de luxo, para uso ape-nas dos abastados, jamais tm condies de alcanar a magnitude das grandes empresas. E, hoje, os empregados das grandes fbricas so, eles prprios, os maiores consumidores dos produtos que nelas se fabricam. Esta a diferena bsica entre os princpios capitalis-tas de produo e os princpios feudalistas de pocas anteriores.

    Quando se pressupe ou se afirma a existncia de uma diferen-a entre os produtores e os consumidores dos produtos da grande empresa, incorre-se em grave erro. Nas grandes lojas dos Estados Unidos, ouvimos o slogan: O cliente tem sempre razo. E esse cliente o mesmo homem que produz, na fbrica, os artigos venda naqueles estabelecimentos. Os que pensam que a grande empresa detm um enorme poder tambm se equivocam, uma vez que a em-presa de grande porte inteiramente dependente da preferncia dos que lhes compram os produtos; a mais poderosa empresa perderia seu poder e sua influncia se perdesse seus clientes.

    H cinquenta ou sessenta anos, era voz corrente em quase todos os pases capitalistas que as companhias de estradas de ferro eram por demais grandes e poderosas: sendo monopolistas, tornavam im-possvel a concorrncia. Alegava-se que, na rea dos transportes, o capitalismo j havia atingido um estgio no qual se destruira a si mesmo, pois que eliminara a concorrncia. O que se descurava era

    Primeira Lio

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    o fato de que o poder das ferrovias dependia de sua capacidade de oferecer populao um meio de transporte melhor que qualquer outro. Evidentemente teria sido absurdo concorrer com uma des-sas grandes estradas de ferro, atravs da implantao de uma nova ferrovia paralela anterior, porquanto a primeira era suficiente para atender s necessidades do momento. Mas outros concorrentes no tardaram a aparecer. A livre concorrncia no significa que se possa prosperar pela simples imitao ou cpia exata do que j foi feito por algum. A liberdade de imprensa no significa o direito de copiar o que outra pessoa escreveu, e assim alcanar o sucesso a que o ver-dadeiro autor fez jus por suas obras. Significa o direito de escrever outra coisa. A liberdade de concorrncia no tocante s ferrovias, por exemplo, significa liberdade para inventar alguma coisa, para fazer alguma coisa que desafie as ferrovias j existentes e as coloque em situao muito precria de competitividade.

    Nos Estados Unidos, a concorrncia que se estabeleceu atravs dos nibus, automveis, caminhes e avies imps s estradas de ferro grandes perdas e uma derrota quase absoluta no que diz res-peito ao transporte de passageiros.

    O desenvolvimento do capitalismo consiste em que cada ho-mem tem o direito de servir melhor e/ou mais barato o seu clien-te. E, num tempo relativamente curto, esse mtodo, esse princpio, transformou a face do mundo, possibilitando um crescimento sem precedentes da populao mundial.

    Na Inglaterra do sculo XVIII, o territrio s podia dar sustento a seis milhes de pessoas, num baixssimo padro de vida. Hoje, mais de cinquenta milhes de pessoas a desfrutam de um padro de vida que chega a ser superior ao que desfrutavam os ricos no sculo XVIII. E o padro de vida na Inglaterra de hoje seria provavelmen-te mais alto ainda, no tivessem os ingleses dissipado boa parte de sua energia no que, sob diversos pontos de vista, no foram mais que aventuras polticas e militares evitveis.

    Estes so os fatos acerca do capitalismo. Assim, se um ingls ou, no tocante a esta questo, qualquer homem de qualquer pas do

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    mundo afirmar hoje aos amigos ser contrrio ao capitalismo, h uma esplndida contestao a lhe fazer: Sabe que a populao des-te planeta hoje dez vezes maior que nos perodos precedentes ao capitalismo? Sabe que todos os homens usufruem hoje um padro de vida mais elevado que o de seus ancestrais antes do advento do capitalismo? E como voc pode ter certeza de que, se no fosse o capitalismo, voc estaria integrando a dcima parte da populao sobrevivente? Sua mera existncia uma prova do xito do capita-lismo, seja qual for o valor que voc atribua prpria vida.

    No obstante todos os seus benefcios, o capitalismo foi furiosa-mente atacado e criticado. preciso compreender a origem dessa averso. fato que o dio ao capitalismo nasceu no entre o povo, no entre os prprios trabalhadores, mas em meio aristocracia fundiria a pequena nobreza da Inglaterra e da Europa continen-tal. Culpavam o capitalismo por algo que no lhes era muito agra-dvel: no incio do sculo XIX, os salrios mais altos pagos pelas indstrias aos seus trabalhadores foraram a aristocracia agrria a pagar salrios igualmente altos aos seus trabalhadores agrcolas. A aristocracia atacava a indstria criticando o padro de vida das massas trabalhadoras.

    Obviamente, do nosso ponto de vista, o padro de vida dos tra-balhadores era extremamente baixo. Mas, se as condies de vida nos primrdios do capitalismo eram absolutamente escandalosas, no era porque as recm-criadas indstrias capitalistas estivessem prejudicando os trabalhadores: as pessoas contratadas pelas fbricas j subsistiam antes em condies praticamente subumanas.

    A velha histria, repetida centenas de vezes, de que as fbricas empregavam mulheres e crianas que, antes de trabalharem nes-sas fbricas, viviam em condies satisfatrias, um dos maiores embustes da histria. As mes que trabalhavam nas fbricas no tinham o que cozinhar: no abandonavam seus lares e suas cozi-nhas para se dirigir s fbricas corriam a elas porque no tinham cozinhas e, ainda que as tivessem, no tinham comida para nelas cozinharem. E as crianas no provinham de um ambiente con-fortvel: estavam famintas, estavam morrendo. E todo o to falado

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  • 18 Ludwig von Mises

    e indescritvel horror do capitalismo primitivo pode ser refutado por uma nica estatstica: precisamente nesses anos de expanso do capitalismo na Inglaterra, no chamado perodo da Revoluo In-dustrial inglesa, entre 1760 e 1830, a populao do pas dobrou, o que significa que centenas de milhares de crianas que em outros tempos teriam morrido sobreviveram e cresceram, tornando-se homens e mulheres.

    No h dvida de que as condies gerais de vida em pocas anteriores eram muito insatisfatrias. Foi o comrcio capitalista que as melhorou. Foram justamente aquelas primeiras fbricas que passaram a suprir, direta ou indiretamente, as necessidades de seus trabalhadores, atravs da exportao de manufaturados e da impor-tao de alimentos e matrias-primas de outros pases. Mais uma vez, os primeiros historiadores do capitalismo falsearam difcil usar uma palavra mais branda a histria.

    H uma anedota provavelmente inventada que se costuma contar a respeito de Benjamin Franklin: em visita a um cotoni-fcio na Inglaterra, Ben Franklin ouviu do proprietrio cheio de orgulho: Veja, temos aqui tecidos de algodo para a Hungria. Olhando sua volta e constatando que os trabalhadores estavam em andrajos, Franklin perguntou: E por que no produz tambm para os seus empregados?

    Mas as exportaes de que falava o dono do cotonifcio realmen-te significavam que ele de fato produzia para os prprios emprega-dos, visto que a Inglaterra tinha de importar toda a sua matria-prima. No possua nenhum algodo, como tambm ocorria com a Europa continental. A Inglaterra atravessava uma fase de escassez de alimentos: era necessria sua importao da Polnia, da Rssia, da Hungria. Assim, as exportaes como as de tecidos se cons-tituam no pagamento de importaes de alimentos necessrios sobrevivncia da populao inglesa. Muitos exemplos da histria dessa poca revelaro a atitude da pequena nobreza e da aristocracia com relao aos trabalhadores. Quero citar apenas dois. Um o famoso sistema ingls do seed and land. Por tal sistema, o governo ingls pagava a todos os trabalhadores que no chegavam a receber

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    um salrio mnimo (oficialmente fixado) a diferena entre o que re-cebiam e esse mnimo. Isso poupava aristocracia fundiria o dis-sabor de pagar salrios mais altos. A pequena nobreza continuaria pagando o tradicionalmente baixo salrio agrcola, suplementado pelo governo. Evitava-se, assim, que os trabalhadores abandonas-sem as atividades rurais em busca de emprego nas fbricas urbanas.

    Oitenta anos depois, aps a expanso do capitalismo da Ingla-terra para a Europa continental, mais uma vez verificou-se a rea-o da aristocracia rural contra o novo sistema de produo. Na Alemanha, os aristocratas prussianos tendo perdido muitos tra-balhadores para as indstrias capitalistas, que ofereciam melhor remunerao cunharam uma expresso especial para designar o problema: fuga do campo Landflucht. Discutiu-se, ento, no parlamento alemo, que tipo de medida se poderia tomar contra aquele mal e tratava-se indiscutivelmente de um mal, do pon-to de vista da aristocracia rural. O prncipe Bismarck, o famoso chanceler do Reich alemo, disse um dia num discurso: Encon-trei em Berlim um homem que havia trabalhado em minhas ter-ras. Perguntei-lhe: Por que deixou minhas terras? Por que deixou o campo? Por que vive agora em Berlim?

    E, segundo Bismarck, o homem respondeu: Na aldeia no se tem, como aqui em Berlim, um Biergarten to lindo, onde nos pode-mos sentar; tomar cerveja e ouvir msica. Esta , sem dvida, uma estria contada do ponto de vista do prncipe Bismarck, o emprega-dor. No seria o ponto de vista de todos os seus empregados. Estes acorriam indstria porque ela lhes pagava salrios mais altos e elevava seu padro de vida a nveis sem precedentes.

    Hoje, nos pases capitalistas, h relativamente pouca diferena entre a vida bsica das chamadas classes mais altas e a das mais bai-xas: ambas tm alimento, roupas e abrigo. Mas no sculo XVIII, e nos que o precederam, o que distinguia o homem da classe mdia do da classe baixa era o fato de o primeiro ter sapatos, e o segundo, no. Hoje, nos Estados Unidos, a diferena entre um rico e um pobre reduz-se muitas vezes diferena entre um Cadillac e um Chevrolet. O Chevrolet pode ser de segunda mo, mas presta a seu

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    dono basicamente os mesmos servios que o Cadillac poderia pres-tar, uma vez que tambm est apto a se deslocar de um local a outro. Mais de 50% da populao dos Estados Unidos vivem em casas e apartamentos prprios.

    As investidas contra o capitalismo especialmente no que se re-fere aos padres salariais mais altos tiveram por origem a falsa suposio de que os salrios so, em ltima anlise, pagos por pes-soas diferentes daquelas que trabalham nas fbricas. Certamente, nada impede que economistas e estudantes de teorias econmicas tracem uma distino entre trabalhador e consumidor. Mas o fato que todo consumidor tem de ganhar, de uma maneira ou de outra, o dinheiro que gasta, e a imensa maioria dos consumidores constitu-da precisamente por aquelas mesmas pessoas que trabalham como empregados nas empresas produtoras dos bens que consomem.

    No capitalismo, os padres salariais no so estipulados por pes-soas diferentes das que ganham os salrios: so essas mesmas pes-soas que os manipulam. No a companhia cinematogrfica de Hollywood que paga os salrios de um astro das telas, quem os paga o pblico que compra ingresso nas bilheterias dos cinemas. E no o empresrio de uma luta de boxe que cobre as enormes exigncias de lutadores laureados, mas sim a plateia, que compra entradas para a luta. A partir da distino entre empregado e empregador, traa-se, no plano da teoria econmica, uma distino que no existe na vida real. Nesta, empregador e empregado so, em ltima anlise, uma s e a mesma pessoa.

    Em muitos pases h quem considere injusto que um homem obrigado a sustentar uma famlia numerosa receba o mesmo sal-rio que outro, responsvel apenas pela prpria manuteno. No entanto, o problema no questionar se ao empresrio ou no que cabe assumir a responsabilidade pelo tamanho da famlia de um trabalhador.

    A pergunta que deve ser feita neste caso : voc, como indiv-duo, se disporia a pagar mais por alguma coisa, digamos, um po, se for informado de que o homem que o fabricou tem seis filhos?

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    Uma pessoa honesta por certo responderia negativamente, dizen-do: Em princpio, sim. Mas na prtica tenderia a comprar o po feito por um homem sem filho nenhum. O fato que o empre-gador a quem os compradores no pagam o suficiente para que ele possa pagar seus empregados se v na impossibilidade de levar adiante seus negcios.

    O capitalismo foi assim batizado no por um simpatizante do sistema, mas por algum que o tinha na conta do pior de todos os sistemas histricos, da mais grave calamidade que jamais se abatera sobre a humanidade. Esse homem foi Karl Marx. No h razo, contudo, para rejeitar a designao proposta por Marx, uma vez que ela indica claramente a origem dos grandes progressos sociais oca-sionados pelo capitalismo. Esses progressos so fruto da acumu-lao do capital; baseiam-se no fato de que as pessoas, por via de regra, no consomem tudo o que produzem e no fato de que elas poupam e investem parte desse montante.

    Reina um grande equvoco em torno desse problema. Ao longo destas seis palestras, terei oportunidade de abordar os principais mal-entendidos em voga, relacionados com a acumulao do capi-tal, com o uso do capital e com os benefcios universais auferidos a partir desse uso. Tratarei do capitalismo particularmente em mi-nhas palestras dedicadas ao investimento externo e a esse proble-ma extremamente crtico da poltica atual que a inflao. Todos sabem, claro, que a inflao no existe s neste pas. Constitui hoje um problema em todas as partes do mundo. O que muitas vezes no se compreende a respeito do capitalismo o seguinte: poupana significa benefcios para todos os que desejam produzir ou receber salrios.

    Quando algum acumula certa quantidade de dinheiro mil dlares, digamos e confia esses dlares, em vez de gast-los, a uma empresa de poupana ou a uma companhia de seguros, trans-fere esse dinheiro para um empresrio, um homem de negcios, o que vai permitir que esse empresrio possa expandir suas ativida-des e investir num projeto, que na vspera ainda era invivel, por falta do capital necessrio. Que far ento o empresrio com o

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    capital recm-obtido? Certamente a primeira coisa que far, o pri-meiro uso que dar a esse capital suplementar ser a contratao de trabalhadores e a compra de matrias-primas o que promove-r, por sua vez, o surgimento de uma demanda adicional de traba-lhadores e matrias-primas, bem como uma tendncia elevao dos salrios e dos preos dessas matrias-primas. Muito antes que o poupador ou o empresrio tenham obtido algum lucro em tudo isso, o trabalhador desempregado, o produtor de matrias-primas, o agricultor e o assalariado j estaro participando dos benefcios das poupanas adicionais.

    O que o empresrio vir ou no a ganhar com o projeto depende das condies futuras do mercado e de seu talento para prev-las corretamente. Mas os trabalhadores, assim como os produtores de matria-prima, auferem as vantagens de imediato. Muito se falou, trinta ou quarenta anos atrs, sobre a poltica salarial como a denominavam de Henry Ford. Uma das maiores faanhas do Sr. Ford consistia em pagar salrios mais altos que os oferecidos pelas demais indstrias ou fbricas. Sua poltica salarial foi descrita como uma inveno. No se pode, no entanto, dizer que essa nova poltica inventada seja simplesmente um fruto da liberali-dade do Sr. Ford. Um novo ramo industrial ou uma nova fbrica num ramo j existente precisa atrair trabalhadores de outros em-pregos, de outras regies do pas e at de outros pases. E no h outra maneira de faz-lo seno atravs do pagamento de salrios mais altos aos trabalhadores. Foi o que ocorreu nos primrdios do capitalismo, e o que ocorre at hoje.

    Na Gr-Bretanha, quando os fabricantes comearam a produ-zir artigos de algodo, eles passaram a pagar aos seus trabalhadores mais do que estes ganhavam antes. verdade que grande porcen-tagem desses novos trabalhadores jamais ganhara coisa alguma an-tes. Estavam, ento, dispostos a aceitar qualquer quantia que lhes fosse oferecida. Mas, pouco tempo depois, com a crescente acu-mulao do capital e a implantao de um nmero cada vez maior de novas empresas, os salrios se elevaram, e como consequncia houve aquele aumento sem precedentes da populao inglesa, ao qual j me referi. A reiterada caracterizao depreciativa do capi-

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    talismo como um sistema destinado a tornar os ricos mais ricos e os pobres mais pobres equivocada do comeo ao fim. A tese de Marx concernente ao advento do capitalismo baseou-se no pressu-posto de que os trabalhadores estavam ficando mais pobres, de que o povo estava ficando mais miservel, o que finalmente redundaria na concentrao de toda a riqueza de um pas em umas poucas mos, ou mesmo nas de um homem s. Como consequncia, as massas trabalhadoras empobrecidas se rebelariam e expropriariam os bens dos opulentos proprietrios.

    Segundo essa doutrina de Marx, impossvel, no sistema ca-pitalista, qualquer oportunidade, qualquer possibilidade de melho-ria das condies dos trabalhadores. Em 1865, falando perante a Associao Internacional dos Trabalhadores, na Inglaterra, Marx afirmou que a crena de que os sindicatos poderiam promover me-lhores condies para a populao trabalhadora era absolutamente errnea. Qualificou a poltica sindical voltada para a reivindica-o de melhores salrios e menor nmero de horas de trabalho de conservadora era este, evidentemente, o termo mais desabonador a que Marx podia recorrer. Sugeriu que os sindicatos adotassem uma nova meta revolucionria: a completa abolio do sistema de salrios, e a substituio do sistema de propriedade privada pelo socialismo a posse dos meios de produo pelo governo.

    Se consideramos a histria do mundo e em especial a histria da Inglaterra a partir de 1865 verificaremos que Marx estava erra-do sob todos os aspectos. No h um s pas capitalista em que as condies do povo no tenham melhorado de maneira indita. To-dos esses progressos ocorridos nos ltimos oitenta ou noventa anos produziram-se a despeito dos prognsticos de Karl Marx: os socialis-tas de orientao marxista acreditavam que as condies dos traba-lhadores jamais poderiam melhorar. Adotavam uma falsa teoria, a famosa lei de ferro dos salrios. Segundo esta lei, no capitalismo, os salrios de um trabalhador no excederiam a soma que lhe fosse estritamente necessria para manter-se vivo a servio da empresa.

    Os marxistas enunciaram sua teoria da seguinte forma: se os padres salariais dos trabalhadores sobem, com a elevao dos sal-

    Primeira Lio

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    rios, a um nvel superior ao necessrio para a subsistncia, eles tero mais filhos. Esses filhos, ao ingressarem na fora de trabalho, en-grossaro o nmero de trabalhadores at o ponto em que os padres salariais cairo, rebaixando novamente os salrios dos trabalhadores a um nvel mnimo necessrio para a subsistncia quele nvel mnimo de sustento, apenas suficiente para impedir a extino da populao trabalhadora.

    Mas essa ideia de Marx, e de muitos outros socialistas, envolve um conceito de trabalhador idntico ao adotado justificadamente pelos bilogos que estudam a vida dos animais. Dos camundon-gos, por exemplo. Se colocarmos maior quantidade de alimento disposio de organismos animais, ou de micrbios, maior nme-ro deles sobreviver. Se a restringirmos, restringiremos o nmero dos sobreviventes. Mas com o homem diferente. Mesmo o tra-balhador ainda que os marxistas no o admitam tem carncias humanas outras que as de alimento e de reproduo de sua espcie. Um aumento dos salrios reais resulta no s num aumento da po-pulao; resulta tambm, e antes de tudo, numa melhoria do padro de vida mdia. por isso que temos hoje, na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, um padro de vida superior ao das naes em desenvolvimento, s da frica, por exemplo. Devemos compreen-der, contudo, que esse padro de vida mais elevado fundamenta-se na disponibilidade de capital. Isso explica a diferena entre as condies reinantes nos Estados Unidos e as que encontramos na ndia. Neste pas foram introduzidos ao menos em certa medida modernos mtodos de combate a doenas contagiosas, cujo efei-to foi um aumento inaudito da populao. No entanto, como esse crescimento populacional no foi acompanhado de um aumento correspondente do montante de capital investido no pas, o resul-tado foi um agravamento da misria. Quanto mais se eleva o capital investido por indivduo, mais prspero se torna o pas.

    Mas preciso lembrar que nas polticas econmicas no ocor-rem milagres. Todos leram artigos de jornal e discursos sobre o chamado milagre econmico alemo a recuperao da Alema-nha depois de sua derrota e destruio na Segunda Guerra Mun-dial. Mas no houve milagre. Houve to somente a aplicao

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    dos princpios da economia do livre mercado, dos mtodos do capi-talismo, embora essa aplicao no tenha sido completa em todos os pontos. Todo pas pode experimentar o mesmo milagre de recuperao econmica, embora eu deva insistir em que esta no fruto de milagre: fruto da adoo de polticas econmicas s-lidas, pois que delas que resulta.

    Primeira Lio

  • caPtulo ii

    Segunda lio

    1 o SocialiSmo

    Estou em Buenos Aires a convite do Centro de Difusin de la Economia Libre. Que vem a ser economia livre? Que significa esse sistema de liberdade econmica? A resposta simples: a economia de mercado, o sistema em que a cooperao dos indivduos na diviso social do trabalho se realiza pelo mercado. E esse mercado no um lugar: um processo, a forma pela qual, ao vender e com-prar, ao produzir e consumir, as pessoas esto contribuindo para o funcionamento global da sociedade.

    Quando falamos desse sistema de organizao econmica a economia de mercado empregamos a expresso liberdade eco-nmica. Frequentemente as pessoas se equivocam quanto ao seu significado, supondo que liberdade econmica seja algo inteira-mente dissociado de outras liberdades, e que estas outras liber-dades que reputam mais importantes possam ser preservadas mesmo na ausncia de liberdade econmica. Mas liberdade eco-nmica significa, na verdade, que dado s pessoas que a possuem o poder de escolher o prprio modo de se integrar ao conjunto da sociedade. A pessoa tem o direito de escolher sua carreira, tem liberdade para fazer o que quer.

    bvio que no compreendemos liberdade no sentido que hoje tantos atribuem palavra. O que queremos dizer antes que, atra-vs da liberdade econmica, o homem libertado das condies naturais. Nada h, na natureza, que possa ser chamado de liber-dade; h apenas a regularidade das leis naturais, a que o homem obrigado a obedecer para alcanar qualquer coisa. Quando se trata de seres humanos, atribumos palavra liberdade o signi-ficado exclusivo de liberdade na sociedade. No obstante, muitos

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    consideram que as liberdades sociais so independentes umas das outras. Os que hoje se intitulam liberais tm reivindicado pro-gramas que so exatamente o oposto das polticas que os liberais do sculo XIX defendiam em seus programas liberais. Os preten-sos liberais de nossos dias sustentam a ideia muito difundida de que as liberdades de expresso, de pensamento, de imprensa, de culto, de encarceramento sem julgamento podem, todas elas, ser preservadas mesmo na ausncia do que se conhece como liberdade econmica. No se do conta de que, num sistema desprovido de mercado, em que o governo determina tudo, todas essas outras li-berdades so ilusrias, ainda que postas em forma de lei e inscritas na constituio.

    Tomemos como exemplo a liberdade de imprensa. Se for dono de todas as mquinas impressoras, o governo determinar o que deve e o que no deve ser impresso. Nesse caso, a possibilidade de se publicar qualquer tipo de crtica s ideias oficiais torna-se prati-camente nula. A liberdade de imprensa desaparece. E o mesmo se aplica a todas as demais liberdades.

    Quando h economia de mercado, o indivduo tem a liberda-de de escolher qualquer carreira que deseje seguir, de escolher seu prprio modo de insero na sociedade. Num sistema socialista diferente: as carreiras so decididas por decreto do governo. Este pode ordenar s pessoas que no lhe sejam gratas, quelas cuja pre-sena no lhe parea conveniente em determinadas regies, que se mudem para outras regies e outros lugares. E sempre h como jus-tificar e explicar semelhante procedimento: declara-se que o plano governamental exige a presena desse eminente cidado a cinco mil milhas de distncia do local onde ele estava sendo ou poderia ser incmodo aos detentores do poder.

    verdade que a liberdade possvel numa economia de mercado no uma liberdade perfeita no sentido metafsico. Mas a liberdade perfeita no existe. s no mbito da sociedade que a liberdade tem algum significado. Os pensadores que desenvolveram, no scu-lo XVIII, a ideia da lei natural sobretudo Jean-Jacques Rousseau acreditavam que um dia, num passado remoto, os homens haviam

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    desfrutado de algo chamado liberdade natural. Mas nesses tem-pos remotos os homens no eram livres estavam merc de todos os que fossem mais fortes que eles mesmos. As famosas palavras de Rousseau: O homem nasceu livre e se encontra acorrentado em toda parte, talvez soem bem, mas na verdade o homem no nasceu livre. Nasceu como uma frgil criana de peito. Sem a proteo dos pais, sem a proteo proporcionada a esses pais pela sociedade, no teria podido sobreviver.

    Liberdade na sociedade significa que um homem depende tanto dos demais como estes dependem dele. A sociedade, quando regida pela economia de mercado, pelas condies da economia livre, apre-senta uma situao em que todos prestam servios aos seus conci-dados e so, em contrapartida, por eles servidos. Acredita-se, que existem na economia de mercado chefes que no dependem da boa vontade e do apoio dos demais cidados. Os capites de indstria, os homens de negcios, os empresrios seriam os verdadeiros che-fes do sistema econmico. Mas isso uma iluso. Quem manda no sistema econmico so os consumidores. Se estes deixam de presti-giar um ramo de atividades, os empresrios deste ramo so compeli-dos ou a abandonar sua eminente posio no sistema econmico, ou a ajustar suas aes aos desejos e s ordens dos consumidores.

    Uma das mais notrias divulgadoras do comunismo foi Beatrice Potter, nome de solteira de Lady Passfield (tambem muito conhe-cida por conta de seu marido Sidney Webb). Essa senhora, filha de um rico empresrio, trabalhou quando jovem como secretria do pai. Em suas memrias, ela escreve: Nos negcios de meu pai, todos tinham de obedecer s ordens dadas por ele, o chefe. S a ele competia dar ordens, e a ele ningum dava ordem alguma. Esta uma viso muito acanhada. Seu pai recebia ordens: dos consumi-dores, dos compradores. Lamentavelmente, ela no foi capaz de perceber essas ordens; no foi capaz de perceber o que ocorre numa economia de mercado, exclusivamente voltada que estava para as ordens expedidas dentro dos escritrios ou da fbrica do pai.

    Diante de todos os problemas econmicos, devemos ter em mente as palavras que o grande economista francs Frdric Bas-

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    tiat usou como ttulo de um de seus brilhantes ensaios: Ce quon voit et ce quon ne voit pas (O que se v e o que no se v). Para compreender como funciona um sistema econmico, temos de le-var em conta no s o que pode ser visto, mas tambm o que no pode ser diretamente percebido. Por exemplo, uma ordem dada por um chefe a um contnuo pode ser ouvida por aqueles que este-jam na mesma sala. O que no se pode ouvir so as ordens dadas ao chefe por seus clientes.

    O fato que, no sistema capitalista, os chefes, em ltima ins-tncia, so os consumidores. No o estado, o povo que so-berano. Prova disto o fato de que lhe assiste o direito de ser tolo. Este o privilgio do soberano. Assiste-lhe o direito de cometer erros: ningum o pode impedir de comet-los, embora, obviamen-te, deva pagar por eles. Quando afirmamos que o consumidor supremo ou soberano, no estamos afirmando que est livre de erros, que sempre sabe o que melhor lhe conviria. Muitas vezes os consumidores compram ou consomem artigos que no deviam comprar ou consumir. Mas a ideia de que uma forma capitalista de governo pode impedir, atravs de um controle sobre o que as pessoas consomem, que elas se prejudiquem, falsa. A viso do governo como uma autoridade paternal, um guardio de todos, prpria dos adeptos do socialismo.

    Nos Estados Unidos, o governo empreendeu certa feita, h al-guns anos, uma experincia que foi qualificada de nobre. Essa nobre experincia consistiu numa lei que declarava ilegal o con-sumo de bebidas txicas. No h dvida de que muita gente se prejudica ao beber conhaque e whisky em excesso. Algumas au-toridades nos Estados Unidos so contrrias at mesmo ao fumo. Certamente h muitas pessoas que fumam demais, no obstante o fato de que no fumar seria melhor para elas. Isso suscita um pro-blema que transcende em muito a discusso econmica: pe a nu o verdadeiro significado da liberdade. Se admitirmos que bom impedir que as pessoas se prejudiquem bebendo ou fumando em excesso, haver quem pergunte: Ser que o corpo tudo? No se-ria a mente do homem muito mais importante? No seria a mente do homem o verdadeiro dom, o verdadeiro predicado humano? Se dermos ao governo o direito de determinar o que o corpo hu-

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    mano deve consumir, de determinar se algum deve ou no fumar, deve ou no beber, nada poderemos replicar a quem afirme: Mais importante ainda que o corpo a mente, a alma, e o homem se prejudica muito mais ao ler maus livros, ouvir msica ruim e assistir a maus filmes. , pois, dever do governo impedir que se cometam esses erros. E, como todos sabem, por centenas de anos os governos e as autoridades acreditaram que esse era de fato o seu dever. Nem isso aconteceu apenas em pocas remotas. No faz muito tempo, houve na Alemanha um governo que considerava seu dever discriminar as boas e as ms pinturas boas e ms, claro, do ponto de vista de um homem que, na juventude, fora reprovado no exame de admisso Academia de Arte, em Viena: era o bom e o mau segundo a tica de um pintor de carto-postal. E tornou-se ilegal expressar concepes sobre arte e pintura que divergissem daquelas do Fhrer supremo.

    A partir do momento em que comeamos a admitir que dever do governo controlar o consumo de lcool do cidado, que podemos responder a quem afirme ser o controle dos livros e das ideias muito mais importante? Liberdade significa realmente li-berdade para errar. Isso precisa ser bem compreendido. Podemos ser extremamente crticos com relao ao modo como nossos concidados gastam seu dinheiro e vivem sua vida. Podemos considerar o que fazem absolutamente insensato e mau. Numa sociedade livre, todos tm, no entanto, as mais diversas manei-ras de manifestar suas opinies sobre como seus concidados deveriam mudar seu modo de vida: eles podem escrever livros; escrever artigos; fazer conferncias. Podem at fazer pregaes nas esquinas, se quiserem e faz-se isso, em muitos pases. Mas ningum deve tentar policiar os outros no intuito de impedi-los de fazer determinadas coisas simplesmente porque no se quer que as pessoas tenham a liberdade de faz-las.

    essa a diferena entre escravido e liberdade. O escravo obrigado a fazer o que seu superior lhe ordena que faa, enquanto o cidado livre e isso que significa liberdade tem a possibilidade de escolher seu prprio modo de vida. Sem dvida esse sistema ca-pitalista pode ser e de fato mal usado por alguns. certamente possvel fazer coisas que no deveriam ser feitas. Mas se tais coisas

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    contam com a aprovao da maioria do povo, uma voz discordante ter sempre algum meio de tentar mudar as ideias de seus concida-dos. Pode tentar persuadi-los, convenc-los, mas no pode tentar constrang-los pela fora, pela fora policial do governo.

    Na economia de mercado, todos prestam servios aos seus concidados ao prestarem servios a si mesmos. Era isso o que tinham em mente os pensadores liberais do sculo XVIII, quan-do falavam da harmonia dos interesses corretamente compre-endidos de todos os grupos e indivduos que constituem a po-pulao. E foi a essa doutrina da harmonia de interesses que os socialistas se opuseram. Falaram de um conflito inconcilivel de interesses entre vrios grupos.

    Que significa isso? Quando Karl Marx no primeiro captulo do Manifesto Comunista, esse pequeno panfleto que inaugurou seu movimento socialista sustentou a existncia de um conflito inconcilivel entre as classes, s pode evocar, como ilustrao sua tese, exemplos tomados das condies da sociedade pr-capitalista. Nos estgios pr-capitalistas, a sociedade se dividia em grupos hereditrios de status, na ndia denominados castas. Numa sociedade de status, um homem no nascia, por exemplo, cidado francs; nascia na condio de membro da aristocracia francesa, ou da burguesia francesa, ou do campesinato francs. Durante a maior parte da Idade Mdia, era simplesmente um servo. E a servido, na Frana, ainda no havia sido inteiramen-te extinta mesmo depois da Revoluo Americana. Em outras regies da Europa, a sua extino ocorreu ainda mais tarde. Mas a pior forma de servido forma que continuou existindo mes-mo depois da abolio da escravatura era a que tinha lugar nas colnias inglesas. O indivduo herdava seu status dos pas e o conservava por toda a vida. Transferia-o aos filhos. Cada grupo tinha privilgios e desvantagens. Os de status mais elevado ti-nham apenas privilgios, os de status inferior, s desvantagens. E no restava ao homem nenhum outro meio de escapar s desvan-tagens legais impostas por seu status seno a luta poltica contra as outras classes. Nessas condies, pode-se dizer que havia um conflito inconcilivel de interesses entre senhores de escravos e escravos, porque o interesse dos escravos era livrar-se da es-

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    cravido, da qualidade de escravos. E sua liberdade significava, para os seus proprietrios, uma perda. Assim sendo, no h d-vida de que tinha de existir forosamente um conflito inconcili-vel de interesses entre os membros das vrias classes.

    No devemos esquecer que nesses perodos em que as socieda-des de status predominaram na Europa, bem como nas colnias que os europeus fundaram posteriormente na Amrica as pessoas no se consideravam ligadas de nenhuma forma especial s demais clas-ses de sua prpria nao; sentiam-se muito mais solidrias com os membros de suas classes nos outros pases. Um aristocrata francs no tinha os franceses das classes inferiores na conta de seus con-cidados: a seus olhos, eles no eram mais que a ral, que no lhes agradava. Seus iguais eram os aristocratas dos demais pases os da Itlia, Inglaterra e Alemanha, por exemplo.

    O efeito mais visvel desse estado de coisas era o fato de os aris-tocratas de toda a Europa falarem a mesma lngua, o francs, idioma no compreendido, fora da Frana, pelos demais grupos da popula-o. As classes mdias a burguesia tinham sua prpria lngua, enquanto as classes baixas o campesinato usavam dialetos locais, muitas vezes no compreendidos por outros grupos da populao. O mesmo se passava com relao aos trajes. Quem viajasse de um pas para outro em 1750 constataria que as classes mais elevadas, os aristocratas, se vestiam em geral de maneira idntica em toda a Europa; e que as classes baixas usavam roupas diferentes. Vendo algum na rua, era possvel perceber de imediato pelo modo como se vestia a sua classe, o seu status.

    difcil avaliar o quanto essa situao era diversa da atual. Se venho dos Estados Unidos para a Argentina e vejo um homem na rua, no posso dizer qual seu status. Concluo apenas que um cidado argentino, no pertencente a nenhum grupo sujeito a restri-es legais. Isto algo que o capitalismo nos trouxe. Sem dvida h tambm diferenas entre as pessoas no capitalismo. H diferenas em relao riqueza; diferenas estas que os marxistas, equivocada-mente, consideram equivalentes quelas antigas que separavam os homens na sociedade de status.

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    Numa sociedade capitalista, as diferenas entre os cidados no so como as que se verificam numa sociedade de status. Na Idade Mdia e mesmo bem depois, em muitos pases uma fa-mlia podia ser aristocrata e possuidora de grande fortuna, podia ser uma famlia de duques, ao longo de sculos e sculos, fossem quais fossem suas qualidades, talentos, carter ou moralidade. J nas modernas condies capitalistas, verifica-se o que foi tecni-camente denominado pelos socilogos de mobilidade social. O princpio segundo o qual a mobilidade social opera, nas pala-vras do socilogo e economista italiano Vilfredo Pareto, o da circulation des lites (circulao das elites). Isso significa que haver sempre no topo da escada social pessoas ricas, politica-mente importantes, mas essas pessoas essas elites esto em contnua mudana.

    Isto se aplica perfeitamente a uma sociedade capitalista. No se aplicaria a uma sociedade pr-capitalista de status. As famlias consideradas as grandes famlias aristocrticas da Europa perma-necem as mesmas at hoje, ou melhor, so formadas hoje pelos descendentes de famlias que constituam a nata na Europa, h oito, dez ou mais sculos. Os Capetos de Bourbon que por um longo perodo dominaram a Argentina j eram uma casa real desde o sculo X. Reinavam sobre o territrio hoje chamado Ile-de-France, ampliando seu reino a cada gerao. Mas numa sociedade capitalista h uma continua mobilidade pobres que enriquecem e descendentes de gente rica que perdem a fortuna e se tornam pobres.

    Vi hoje, numa livraria de uma rua do centro de Buenos Aires, a biografia de um homem que viveu na Europa do sculo XIX, e que foi to eminente, to importante, to representativo dos altos negcios europeus naquela poca, que at hoje, aqui neste pas to distante da Europa, encontram-se venda exemplares da histria de sua vida. Tive a oportunidade de conhecer o neto desse homem. Tem o mesmo nome do av e conserva o direito de usar o ttulo nobilirio que este que comeou a vida como ferreiro recebeu oi-tenta anos atrs. Hoje esse seu neto um fotgrafo pobre na cidade de Nova York. Outras pessoas, pobres poca em que o av desse fotgrafo se tornou um dos maiores industriais da Europa, so hoje

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    capites de indstria. Todos so livres para mudar seu status, isso que distingue o sistema de status do sistema capitalista de liberdade econmica, em que as pessoas s podem culpar a si mesmas se no chegam a alcanar a posio que almejam.

    O mais famoso industrial do sculo XX continua sendo Hen-ry Ford. Ele comeou com umas poucas centenas de dlares emprestados por amigos e, em muito pouco tempo, implantou um dos mais importantes empreendimentos de grande vulto do mundo. E podemos encontrar centenas de casos semelhantes to-dos os dias. Diariamente o New York Times publica longas notas sobre pessoas que faleceram. Lendo essas biografias, podemos deparar, por exemplo, com o nome de um eminente empresrio que tenha iniciado a vida como vendedor de jornais nas esquinas de Nova York. Ou com outro que tenha iniciado como contnuo e, por ocasio de sua morte, era o presidente da mesma institui-o bancria onde comeara no mais baixo degrau da hierarquia. Evidentemente, nem todos conseguem alcanar tais posies. Nem todos querem alcan-las. H pessoas mais interessadas em outras coisas: para elas, no entanto, h hoje certos caminhos que no estavam abertos nos tempos da sociedade feudal, na poca da sociedade de status.

    O sistema socialista, contudo, probe essa liberdade fundamental que a escolha da prpria carreira. Nas condies socialistas h uma nica autoridade econmica, e esta detm o poder de determi-nar todas as questes atinentes produo. Um dos traos caracte-rsticos de nossos dias o uso de muitos nomes para designar uma mesma coisa. Um sinnimo de socialismo e comunismo plane-jamento. Quando falam de planejamento, as pessoas se referem, evidentemente, a um planejamento central, o que significa um plano nico, feito pelo governo um plano que impede todo planejamen-to feito por outra pessoa.

    Uma senhora inglesa que tambm membro da Cmara Alta escreveu um livro intitulado Plan or no Plan, obra muito bem recebida no mundo inteiro. Que significa o ttulo desse livro? Ao falar de plano a autora se refere unicamente ao tipo de planeja-

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    mento concebido por Lenin, Stlin e seus sucessores, o tipo que determina todas as atividades de todo o povo de uma nao. Por conseguinte, essa senhora s leva em conta o planejamento cen-tral, que exclui todos os planos pessoais que os indivduos possam ter. Assim sendo, seu ttulo, Plan or no Plan, revela-se um logro, uma burla: a alternativa no est em plano central versus nenhum plano. Na verdade, a escolha est entre o planejamento total feito por uma autoridade governamental central e a liberdade de cada indivduo para traar os prprios planos, fazer o prprio planeja-mento. O indivduo planeja sua vida todos os dias, alterando seus planos dirios sempre que queira.

    O homem livre planeja diariamente, segundo suas necessida-des. Dizia, ontem, por exemplo: Planejo trabalhar pelo resto dos meus dias em Crdoba. Agora, informado de que as condies em Buenos Aires esto melhores, muda seus planos e diz: Em vez de trabalhar em Crdoba, quero ir para Buenos Aires. isso que significa liberdade. Pode ser que ele esteja enganado, pode ser que essa ida para Buenos Aires se revele um erro. Talvez as condies lhe tivessem sido mais propicias em Crdoba, mas ele foi o autor dos prprios planos.

    Submetido ao planejamento governamental, o homem como um soldado num exrcito. No cabe a um soldado o direito de esco-lher sua guarnio, a praa onde servir. Cabe-lhe cumprir ordens. E o sistema socialista como o sabiam e admitiam Karl Marx, Le-nin e todos os lderes socialistas consiste na transposio do regi-me militar a todo o sistema de produo. Marx falou de exrcitos industriais e Lenin imps a organizao de tudo o correio, as manufaturas e os demais ramos industriais segundo o modelo do exrcito. Portanto, no sistema socialista, tudo depende da sabe-doria, dos talentos e dos dons daqueles que constituem a autoridade suprema. O que o ditador supremo ou seu comit no sabe, no levado em conta. Mas o conhecimento acumulado pela humani-dade em sua longa histria no algo que uma s pessoa possa deter. Acumulamos, ao longo dos sculos, um volume to incomensurvel de conhecimentos cientficos e tecnolgicos, que se torna humana-mente impossvel a um indivduo o domnio de todo esse cabedal, por extremamente bem-dotado que ele seja.

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    Acresce que os homens so diferentes, desiguais. E sempre o sero. Alguns so mais dotados em determinado aspecto, menos em outro. E h os que tm o dom de descobrir novos caminhos, de mudar os rumos do conhecimento. Nas sociedades capitalis-tas, o progresso tecnolgico e econmico promovido por es-ses homens. Quando algum tem uma ideia, procura encontrar algumas outras pessoas argutas o suficiente para perceberem o valor de seu achado. Alguns capitalistas que ousam perscrutar o futuro, que se do conta das possveis consequncias dessa ideia, comearo a p-la em prtica. Outros, a princpio, podero di-zer: so uns loucos, mas deixaro de diz-lo quando consta-tarem que o empreendimento que qualificavam de absurdo ou loucura est florescendo, e que toda gente est feliz por comprar seus produtos.

    No sistema marxista, por outro lado, o corpo governamental supremo deve primeiro ser convencido do valor de uma ideia antes que ela possa ser levada adiante. Isso pode ser algo muito difcil, uma vez que o grupo detentor do comando ou o ditador supremo em pessoa tem o poder de decidir. E se essas pessoas por razes de indolncia, senilidade, falta de inteligncia ou de instruo forem incapazes de compreender o significado da nova ideia, o novo projeto no ser executado. Podemos evocar exemplos da histria militar. Napoleo era indubitavelmente um gnio em questes militares; no obstante, viu-se certa feita diante de um grave problema. Sua incapacidade para resolv-lo culminou na sua derrota e no subsequente exlio na solido de Santa Helena. O problema de Napoleo podia-se resumir a uma pergunta: Como conquistar a Inglaterra?. Para faz-lo, precisa-va de uma esquadra capaz de cruzar o canal da Mancha. Houve, ento, pessoas que lhe garantiram conhecer um meio seguro de levar a cabo aquela travessia; estas pessoas, numa poca de em-barcaes a vela, traziam a nova ideia de barcos movidos a vapor. Mas Napoleo no compreendeu sua proposta.

    Depois, houve o famoso Generalstab da Alemanha. Antes da Primeira Guerra Mundial, o estado-maior alemo era universal-mente considerado insupervel em cincia militar. Reputao an-loga tinha o estado-maior do general Foch, na Frana. Mas nem os

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    alemes nem os franceses que, sob o comando do general Foch, derrotaram posteriormente os alemes perceberam a importncia da aviao para fins militares. O estado-maior alemo declarava: A aviao um mero divertimento; voar bom para os desocupados. Do ponto de vista militar, s zepelins tm importncia. E os fran-ceses eram da mesma opinio.

    Mais tarde, no intervalo entre as duas Guerras Mundiais, nos Estados Unidos, um general se convenceu de que a aviao seria de extrema importncia na guerra que se aproximava. Mas todos os peritos do pas pensavam o contrrio. Ele no conseguiu convenc-los. Sempre que tentamos convencer um grupo de pessoas que no depende diretamente da soluo de um problema, o fracasso certo. Isso se aplica tambm aos problemas no econmicos.

    Muitos pintores, poetas, escritores e compositores j se queixa-ram de que o pblico no reconhecia sua obra, o que os obrigava a permanecerem na pobreza. No h dvida de que o pblico pode ter julgado mal; mas, quando promulgam que o governo deve subsidiar os grandes artistas, pintores e escritores, esses artistas esto completamente errados. A quem deveria o governo confiar a tarefa de decidir se determinado estreante ou no, de fato, um grande pintor? Teria de se valer da apreciao dos crticos e dos professores de histria da arte, que, sempre voltados para o passa-do, at hoje deram raras mostras de talento no que tange desco-berta de novos gnios. Essa a grande diferena entre um sistema de planejamento e um sistema em que dado a cada um planejar e agir por conta prpria.

    verdade, obviamente, que grandes pintores e grandes escrito-res suportaram, muitas vezes, situaes de extrema penria. Podem ter tido xito em sua arte, mas nem sempre em ganhar dinheiro. Van Gogh foi por certo um grande pintor. Teve de sofrer agruras insuportveis e acabou por se suicidar, aos 37 anos de idade. Em toda a sua existncia, vendeu apenas uma tela, comprada por um primo. Afora essa nica venda, viveu do dinheiro do irmo, que, apesar de no ser artista nem pintor, compreendia as necessidades de um pintor. Hoje, no se compra um Van Gogh por menos de cem ou duzentos mil dlares.

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    No sistema socialista, o destino de Van Gogh poderia ter sido diverso. Algum funcionrio do governo teria perguntado a alguns pintores famosos (a quem Van Gogh seguramente nem sequer teria considerado artistas) se aquele jovem, um tanto louco, ou comple-tamente louco, era de fato um pintor que valesse a pena subsidiar. E com toda certeza eles teriam respondido: No, no um pintor; no um artista; no passa de uma criatura que desperdia tinta, e o teriam enviado a trabalhar numa indstria de laticnios, ou para um hospcio. Todo esse entusiasmo pelo socialismo manifestado pelas novas geraes de pintores, poetas, msicos, jornalistas, ato-res, baseia-se, portanto, numa iluso.

    Refiro-me a isso porque esses grupos esto entre os mais fan-ticos defensores da concepo socialista. Quando se trata de es-colher entre o socialismo e o capitalismo como sistema econmi-co, o problema um tanto diferente. Os tericos do socialismo jamais suspeitaram que a indstria moderna juntamente com todos os processos do moderno mundo dos negcios se basearia no clculo. Os engenheiros no so, de maneira alguma, os ni-cos a planejarem com base em clculos; tambm os empresrios so obrigados a faz-lo. E os clculos do homem de negcios se baseiam todos no fato de que, na economia de mercado, os pre-os em dinheiro dos bens no s informam o consumidor, como fornecem ao negociante informaes de importncia vital sobre os fatores de produo, porquanto o mercado tem por funo pri-mordial determinar no s o custo da ltima parte do processo de produo, mas tambm o dos passos intermedirios. O sistema de mercado indissocivel do fato de que h uma diviso men-talmente calculada do trabalho entre os vrios empresrios que disputam entre si os fatores de produo as matrias-primas, as mquinas, os instrumentos e o fator humano de produo, ou seja, os salrios pagos mo-de-obra. Esse tipo de clculo que o empresrio realiza no pode ser feito se ele no tem os preos fornecidos pelo mercado.

    No instante mesmo em que se abolir o mercado e o que os socialistas gostariam de fazer ficariam inutilizados todos os cmputos e clculos feitos pelos engenheiros e tecnlogos. Os tecnlogos podem continuar fornecendo grande nmero de pro-

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    jetos que, do ponto de vista das cincias naturais, podem ser todos igualmente exequveis, mas so os clculos baseados no mercado realizados pelo homem de negcios que so indispensveis para se determinar qual desses projetos o mais vantajoso do ponto de vista econmico.

    O problema de que estou tratando a questo fundamental do clculo econmico capitalista em contraposio ao que se passa no socialismo. O fato que o clculo econmico e por conseguin-te todo planejamento tecnolgico s possvel quando existem preos em dinheiro, no s para bens de consumo, como para os fatores de produo. Isso significa que preciso haver um merca-do para todas as matrias-primas, todos os artigos semi-acabados, todos os instrumentos e mquinas, e todos os tipos de trabalho e de servio humanos. Quando se descobriu esse fato, os socialistas no souberam reagir adequadamente. Por 150 anos tinham afirmado: Todos os males do mundo advm da existncia de mercados e de preos de mercado. Queremos abolir o mercado e, com ele, claro, a economia de mercado, substituindo-a por um sistema sem preos e sem mercados. Queriam abolir o que Marx chamou de carter de mercadoria das mercadorias e do trabalho.

    Confrontados com esse novo problema, os tericos do socialis-mo, sem resposta, acabaram por concluir: no aboliremos o mer-cado por completo; faremos de conta que existe um mercado, como as crianas, quando brincam de escolinha. A questo que, todos sabem, as crianas quando brincam de escolinha no aprendem coisa alguma. s uma brincadeira, uma simulao, e se pode simu-lar muitas coisas. Este um problema muito difcil e complexo, e para analis-lo em toda a sua amplitude seria necessrio um pouco mais de tempo do que o que tenho aqui. Explanei-o em detalhes em meus escritos. Em seis palestras, no posso empreender uma anlise de todos os seus aspectos. Assim sendo, quero sugerir-lhes, caso estejam interessados no problema bsico de impossibilidade do clculo e do planejamento no socialismo, a leitura de meu livro Ao Humana, encontrvel em espanhol em excelente traduo.

    Mas leiam tambm outros livros, como o do economista no-ruegus Trygue Hoff, que escreveu sobre o clculo econmico. E,

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    se no quiserem ser unilaterais, recomendo a leitura do livro so-cialista mais respeitado sobre o assunto, da autoria do eminente economista polons Oscar Lange, que foi por algum tempo profes-sor numa universidade americana, tornou-se depois embaixador da Polnia, voltando, posteriormente, para o seu pas. Provavel-mente me perguntaro: E a Rssia? Como enfrentam os russos esse problema? Nesse caso, a questo muda de figura. Os rus-sos gerem seu sistema socialista no mbito de um mundo em que existem preos para todos os fatores de produo, para todas as matrias-primas, para tudo. Por conseguinte, podem utilizar, em seu planejamento, os preos do mercado mundial. E, visto que h certas diferenas entre as condies reinantes na Rssia e as reinantes nos Estados Unidos, frequentemente o resultado que, para os russos, parece justificvel e aconselhvel de seu ponto de vista econmico algo que, para os americanos, absolutamente no se justificaria economicamente.

    A experincia sovitica ou experimento, como foi cha-mada no prova coisa alguma. Nada revela sobre o problema fundamental do socialismo, o problema do clculo. Mas teramos razes para caracteriz-la como experincia? No creio que, no campo da ao humana e da economia, possamos ter algo que se assemelhe a um experimento cientfico. No se pode fazer experi-mentos de laboratrio no campo da ao humana, porque um ex-perimento cientfico requer a rplica de um mesmo procedimento sob diversas condies, ou a manuteno das mesmas condies acompanhada da criao de talvez um nico fator. Por exemplo, se injetarmos num animal canceroso um medicamento experimen-tal, o resultado pode ser o desaparecimento do cncer. Poderemos testar isso com vrios animais da mesma raa, portadores da mes-ma doena. Se tratarmos parte deles com o novo mtodo e no tratarmos outros, poderemos comparar os resultados. Ora, nada disso vivel no campo da ao humana. No h experimentos de laboratrio nesse plano.

    A chamada experincia sovitica mostra to somente que o pa-dro de vida na Rssia Sovitica incomparavelmente inferior ao padro alcanado pelo pas mundialmente reputado o paradigma do capitalismo: os Estados Unidos.

    Segunda Lio

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    Se dissermos isto a um socialista, ele certamente contestar: As coisas na Rssia esto correndo maravilhosamente bem. E ns res-ponderemos: Podem estar maravilhosas, mas o padro de vida , em mdia, muito baixo. Ento ele retrucar: Sim, mas lembre o quanto os russos sofreram com os czares, e a terrvel guerra que tivemos de enfrentar.

    No quero discutir se esta ou no uma explicao correta, mas quando se nega que as condies tenham sido as mesmas, nega-se ao mesmo tempo que tenha havido uma experincia. O que se deveria afirmar e seria muito mais correto : O socialismo na Rssia no ocasionou, em mdia, uma melhoria das condies do homem comparvel melhoria de condies verificada, no mesmo perodo, nos Estados Unidos.

    Nos Estados Unidos, quase toda semana tem-se notcia de um novo invento, de um aperfeioamento. Muitos aperfeioa-mentos foram gerados no mundo empresarial, porque milhares e milhares de industriais esto empenhados, noite e dia, em desco-brir algum novo produto que satisfaa o consumidor, ou seja de produo menos dispendiosa, ou seja melhor e menos oneroso que os produtos j existentes. No o altrusmo que os move; seu desejo de ganhar dinheiro. E o efeito foi que o padro de vida se elevou, nos Estados Unidos, a nveis quase miraculosos quando confrontados s condies reinantes h cinquenta ou cem anos atrs. Mas na Rssia Sovitica, onde esse sistema no vigora, no se verifica um desenvolvimento comparvel. Assim, os que nos recomendam a adoo do sistema sovitico esto in-teiramente equivocados.

    H mais uma coisa a ser mencionada. O consumidor ameri-cano, o indivduo, tanto um comprador como um patro. Ao sair de uma loja nos Estados Unidos, comum vermos um cartaz com os seguintes dizeres: Gratos pela preferncia. Volte sem-pre. Mas ao entrarmos numa loja de um pas totalitrio seja a Rssia de hoje, seja a Alemanha de Hitler , o gerente nos dir: Agradea ao grande lder, que lhe est proporcionando isso. Nos pases socialistas, ao invs de ser o vendedor, o comprador

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    que deve ficar agradecido. No o cidado quem manda; quem manda o Comit Central, o Gabinete Central. Estes comits, os lderes, os ditadores, so supremos; ao povo cabe simplesmente obedecer-lhes.

    Segunda Lio

  • caPtulo iii

    terceira lio

    1 o intervencioniSmo

    Diz uma frase famosa, muito citada: O melhor governo o que menos governa. Esta no me parece uma caracterizao adequada das funes de um bom governo. Compete a ele fazer todas as coi-sas para as quais ele necessrio e para as quais foi institudo. Tem o dever de proteger as pessoas dentro do pas contra as investidas violentas e fraudulentas de bandidos, bem como de defender o pas contra inimigos externos. So estas as funes do governo num sistema livre, no sistema da economia de mercado.

    No socialismo, obviamente, o governo totalitrio, nada escapan-do sua esfera e sua jurisdio. Mas na economia de mercado, a prin-cipal incumbncia do governo proteger o funcionamento harmnico desta economia contra a fraude ou a violncia originadas dentro ou fora do pas. Os que discordam desta definio das funes do gover-no podero dizer: Este homem abomina o governo. Nada poderia estar mais longe da verdade. Se digo que a gasolina um lquido de grande serventia, til para muitos propsitos, mas que, no obstante, eu no a beberia, por no me parecer esse o uso prprio para o produto, no me converto por isso num inimigo da gasolina, nem se poderia dizer que odeio a gasolina. Digo apenas que ela muito til para de-terminados fins, mas inadequada para outros. Se digo que dever do governo prender assassinos e demais criminosos, mas que no seu dever abrir estradas ou gastar dinheiro em inutilidades, no quer di-zer que eu odeie o governo apenas por afirmar que ele est qualificado para fazer determinadas coisas, mas no o est para outras.

    J se disse que, nas condies atuais, no temos mais uma econo-mia de mercado livre. O que temos nas condies presentes algo

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    a que se d o nome de economia mista. E como provas da efetivi-dade dessa nossa economia mista, apontam-se as muitas empre-sas de que o governo proprietrio e gestor. A economia mista, diz-se, porque, em muitos pases, determinadas instituies como as companhias de telefone e telgrafo, as estradas de ferro so de posse do governo e administradas por ele. No h dvida de que algumas dessas instituies e empresas so geridas pelo governo. Mas esse fato no suficiente para alterar o carter do nosso sis-tema econmico. Nem sequer significa que se tenha instalado um pequeno socialismo no mago do que seria no fosse a intruso dessas empresas de gesto governamental a economia de mercado livre e no socialista. Isto porque o governo, ao dirigir essas empre-sas, est subordinado supremacia do mercado, o que significa que est subordinado supremacia dos consumidores.

    Ao administrar, digamos, o correio ou as estradas de ferro, ele obrigado a contratar pessoal para trabalhar nessas empresas. Pre-cisa tambm comprar as matrias-primas e os demais produtos necessrios operao das mesmas. E, por outro lado, o governo vende esses servios e mercadorias para o pblico. Todavia, em-bora administre essas instituies utilizando os mtodos do sistema econmico livre, o resultado, via de regra, um dficit. O governo, contudo, tem condies de financiar esse dficit pelo menos esta a firme convico no s dos seus integrantes como tambm dos que se ligam ao partido no poder.

    A situao do indivduo bem diversa. Sua capacidade de gerir um empreendimento deficitrio muito restrita. Se o dficit no for logo eliminado, e se a empresa no se tomar lucrativa (ou pelo menos dar mostras de que no est incorrendo em dficits ou pre-juzos adicionais), o indivduo vai falncia e a empresa acaba. J o governo goza de condies diferentes. Pode ir em frente com um dficit, porque tem o poder de impor tributos populao. E se os contribuintes se dispuserem a pagar impostos mais elevados para permitir ao governo administrar uma empresa deficitria isto , administrar com menos eficincia do que o faria uma instituio privada , ou seja, se o pblico tolerar esse prejuzo, ento ob-viamente a empresa se manter em atividade. Nos ltimos anos,

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    na maioria dos pases, procedeu-se estatizao de um nmero crescente de instituies e empresas, a tal ponto que os dficits cresceram muito alm do montante possvel de ser arrecadado dos cidados atravs de impostos. O que acontece nesse caso no o tema da palestra de hoje. A consequncia a inflao, assunto que devo abordar amanh. Mencionei isso apenas porque a economia mista no deve ser confundida com o problema do intervencionis-mo, sobre o qual quero falar esta noite.

    Que o intervencionismo? O intervencionismo significa a no-restrio, por parte do governo, de sua atividade, em relao pre-servao da ordem, ou como se costumava dizer cem anos atrs em relao produo da segurana. O intervencionismo revela um governo desejoso de fazer mais. Desejoso de interferir nos fe-nmenos de mercado. Algum que discorde, afirmando que o go-verno no deveria intervir nos negcios, poder ouvir, com muita frequncia, a seguinte resposta: Mas o governo sempre interfere, necessariamente. Se h policiais nas ruas, o governo est interfe-rindo. Interfere quando um assaltante rouba uma loja ou quando evita que algum furte um automvel. Mas quando falamos de intervencionismo, e definimos o significado do termo, referimo-nos interferncia governamental no mercado. (Que o governo e a po-lcia se encarreguem de proteger os cidados, e entre eles os homens de negcio e, evidentemente, seus empregados, contra ataques de bandidos nacionais ou do exterior, efetivamente uma expectativa normal e necessria, algo a se esperar de qualquer governo. Essa proteo no constitui uma interveno, pois a nica funo legti-ma do governo , precisamente, produzir segurana.) Quando fala-mos de intervencionismo, referimo-nos ao desejo que experimenta o governo de fazer mais que impedir assaltos e fraudes. O interven-cionismo significa que o governo no somente fracassa em prote-ger o funcionamento harmonioso da economia de mercado, como tambm interfere em vrios fenmenos de mercado: interfere nos preos, nos padres salariais, nas taxas de juro e de lucro.

    O governo quer interferir com a finalidade de obrigar os ho-mens de negcio a conduzir suas atividades de maneira diversa da que escolheriam caso tivessem de obedecer apenas aos consu-

    Terceira Lio

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    midores. Assim, todas as medidas de intervencionismo governa-mental tm por objetivo restringir a supremacia do consumidor. O governo quer arrogar a si mesmo o poder ou pelo menos parte do poder que, na economia de mercado livre, pertence aos consumidores. Consideremos um exemplo de intervencionismo bastante conhecido em muitos pases e experimentado, vezes sem conta, por inmeros governos, especialmente em tempos de inflao. Refiro-me ao controle de preos. Em geral, os governos recorrem ao controle de preos depois de terem inflacionado a oferta de moeda e de a populao ter comeado a se queixar do decorrente aumento dos preos. H muitos e famosos exemplos histricos do fracasso de mtodos de controle dos preos, mas mencionarei apenas dois, porque em ambos os governos foram, de fato, extremamente enrgicos ao impor, ou tentar impor, seus controles de preo.

    O primeiro exemplo famoso o caso do imperador romano Diocleciano, notrio como o ltimo imperador romano a perse-guir os cristos. Na segunda metade do sculo III, os imperado-res romanos dispunham de um nico mtodo financeiro: des-valorizar a moeda corrente por meio de sua adulterao. Nessa poca primitiva, anterior inveno da mquina impressora, at a inflao era, por assim dizer, primitiva. Envolvia o enfraqueci-mento do teor da liga metlica com que se cunhavam as moedas, especialmente as de prata. O governo misturava prata quan-tidades cada vez maiores de cobre, at que a cor das moedas se alterou e o peso se reduziu consideravelmente. A consequncia dessa adulterao das moedas e do aumento associado da quanti-dade de dinheiro em circulao foi uma alta dos preos, seguida de um decreto destinado a control-los. E os imperadores roma-nos no primavam pela moderao no fazer cumprir suas leis: a morte no lhes parecia uma punio demasiado severa para quem ousasse cobrar preos mais elevados que os estipulados. Con-seguiram impor o controle de preos, mas foram incapazes de preservar a sociedade. A consequncia foi a desintegrao do Imprio Romano e do sistema da diviso do trabalho.

    Quinze sculos mais tarde, a mesma adulterao do dinhei-ro teve lugar durante a Revoluo Francesa. Mas desta vez uti-

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    lizou-se um mtodo diferente. A tecnologia para a produo de dinheiro fora consideravelmente aperfeioada. Os franceses j no precisavam recorrer adulterao da liga metlica empregada na cunhagem das moedas: tinham a mquina impressora. E esta era extremamente eficiente. Mais uma vez, o resultado foi uma elevao dos preos sem precedentes. Mas na Revoluo Fran-cesa os preos mximos no foram garantidos atravs do mesmo mtodo de aplicao da pena capital de que lanara mo o impe-rador Diocleciano. Produzira-se um aperfeioamento tambm na tcnica de matar cidados. Todos se lembram do famoso doutor J. I. Guillotin (1738-1814), o inventor da guilhotina. No entanto, apesar da guilhotina, os franceses tambm fracassaram com suas leis de preo mximo. Quando chegou a vez de Robespierre ser conduzido numa carroa rumo guilhotina, o povo gritava: L vai o bandido-mor!. Se menciono este fato porque comum ouvir: O que preciso para dar eficcia e eficincia ao controle de preos apenas maior implacabilidade e maior energia. Ora, Diocleciano foi indubitavelmente implacvel, como tambm o foi a Revoluo Francesa. No obstante, as medidas de controle de preo fracassaram por completo em ambos os casos.

    Analisemos agora as razes desse fracasso. O governo ouve as queixas do povo de que o preo do leite subiu. E o leite , sem dvida, muito importante, sobretudo para a gerao em crescimen-to, para as crianas. Por conseguinte, estabelece um preo mximo para esse produto, preo mximo que inferior ao que seria o preo potencial de mercado. Ento o governo diz: Estamos certos de que fizemos tudo o que era preciso para permitir aos pobres a compra de todo o leite de que necessitam para alimentar os filhos.

    Mas que acontece? Por um lado, o menor preo do leite provoca o aumento da demanda do produto; pessoas que no tinham meios de compr-lo a um preo mais alto, podem agora faz-lo ao preo reduzido por decreto oficial. Por outro lado, parte dos produtores de leite, aqueles que esto produzindo a custos mais elevados isto , os produtores marginais comeam a sofrer prejuzos, visto que o preo decretado pelo governo inferior aos custos do produto. Este o ponto crucial na economia de mercado. O empresrio privado, o produtor privado, no pode sofrer prejuzo no cmputo final de suas

    Terceira Lio

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    atividades. E como no pode ter prejuzos com o leite, restringe a venda deste produto para o mercado. Pode vender algumas de suas vacas para o matadouro; pode tambm, em vez de leite, fabricar e vender derivados do produto, como coalhada, manteiga ou queijo.

    A interferncia do governo no preo do leite redunda, pois, em menor quantidade do produto do que a que havia antes, redu-o que concomitante a uma ampliao da demanda. Algumas pessoas dispostas a pagar o preo decretado pelo governo no conseguiro comprar leite. Outro efeito a precipitao de pes-soas ansiosas por chegarem em primeiro lugar s lojas. So obri-gadas a esperar do lado de fora. As longas filas diante das lojas parecem sempre um fenmeno corriqueiro numa cidade em que o governo tenha decretado preos mximos para as mercadorias que lhe pareciam importantes.

    Foi o que se passou em todos os lugares onde o preo do leite foi controlado. Por outro lado, isso foi sempre prognosticado pe-los economistas obviamente apenas pelos economistas sensatos, que, alis, no so muito numerosos. Mas qual a consequncia do controle governamental de preos? O governo se frustra. Pretendia aumentar a satisfao dos consumidores de leite, mas na verdade, descontentou-os. Antes de sua interferncia, o leite era caro, mas era possvel compr-lo. Agora a quantidade disponvel insuficien-te. Com isso, o consumo total se reduz. As crianas passam a tomar menos leite, e chegam a no mais tom-lo. A medida a que o gover-no recorre em seguida o racionamento. Mas racionamento signi-fica to somente que algumas pessoas so privilegiadas e conseguem obter leite, enquanto outras ficam sem nenhum. Quem obtm e quem no obtm obviamente algo sempre determinado de forma muito arbitrria. Pode ser estipulado, por exemplo, que crianas com menos de quatro anos de idade devem tomar leite, e aquelas com mais de quatro, ou entre quatro e seis, devem receber apenas a metade da rao a que as menores fazem jus.

    Faa o governo o que fizer, permanece o fato de que s h disponvel uma menor quantidade de leite. Consequentemente, a populao est ainda mais insatisfeita que antes. O governo

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    pergunta, ento, aos produtores de leite (porque no tem ima-ginao suficiente para descobrir por si mesmo): Por que no produzem a mesma quantidade que antes?. Obtm a resposta: impossvel, uma vez que os custos de produo so superio-res ao preo mximo fixado pelo governo. As autoridades se pem em seguida a estudar os custos dos vrios fatores de pro-duo, vindo a descobrir que um deles a rao. Pois bem, diz o governo, o mesmo controle que impusemos ao leite, va-mos aplicar agora rao. Determinaremos um preo mximo para ela e os produtores de leite podero alimentar seu gado a preos mais baixos, com menor dispndio. Com isto, tudo se resolver: os produtores de leite tero condies de produ-zir em maior quantidade e vendero mais. Que acontece nesse caso? Repete-se, com a rao, a mesma histria acontecida com o leite, e, como fcil depreender, pelas mesmssimas razes. A produo de rao diminui e as autoridades se veem novamente diante de um dilema.

    Nessas circunstncias, providenciam novos interlocutores, no intuito de descobrir o que h de errado com a produo de rao. E recebem dos produtores de rao uma explicao idntica que lhes fora fornecida pelos produtores de leite. De sorte que o governo compelido a dar um outro passo, j que no quer abrir mo do princpio do controle de preos. Determina preos mximos para os bens de produo necessrios produo de rao. E a mesma histria, mais uma vez, se desenrola. Assim, o governo comea a controlar no mais apenas o leite, mas tam-bm os ovos, a carne e outros artigos essenciais. E todas as vezes alcana o mesmo resultado, por toda parte a consequncia a mesma. A partir do momento em que fixa preos mximos para bens de consumo, v-se obrigado a recuar no sentido dos bens de produo, e a limitar os preos dos bens de produo necessrios elaborao daqueles bens de consumo com preos tabelados. E assim o governo, que comeara com o controle de alguns poucos fatores, recua cada vez mais em direo base do processo produ-tivo, fixando preos mximos para todas as modalidades de bens de produo, incluindo-se ai, evidentemente, o preo da mo-de-obra, pois, sem controle salarial, o controle de custos efetuado pelo governo seria um contra-senso.

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    Ademais, o governo no tem como limitar sua interferncia no mercado apenas ao que se lhe afigura como bem de primeira ne-cessidade: leite, manteiga, ovos e carne. Precisa necessariamente incluir os bens de luxo, porquanto, se no limitasse seus preos, o capital e a mo-de-obra abandonariam a produo dos artigos de primeira necessidade e acorreriam produo dessas mercadorias que o governo reputa suprfluas. Portanto, a interferncia isolada no preo de um ou outro bem de consumo sempre gera efeitos e fundamental compreend-lo ainda menos satisfatrios que as condies que prevaleciam anteriormente: antes da interferncia, o leite e os ovos so caros; depois, comeam a sumir do mercado.

    O governo considerava esses artigos to importantes que interfe-riu; queria torn-los mais abundantes, ampliar sua oferta. O resulta-do foi o contrrio: a interferncia isolada deu origem a uma situao que do ponto de vista do governo ainda mais indesejvel que a anterior, que se pretendia alterar. E o governo acabar por chegar a um ponto em que todos os preos, padres salariais, taxas de juro, em suma, tudo o que compe o conjunto do sistema econmico, determinado por ele. E isso, obviamente, socialismo.

    O que lhes apresentei aqui, nesta explanao esquemtica e te-rica, foi precisamente o que ocorreu nos pases que tentaram impor preos mximos, pases cujos governos foram teimosos o bastante para avanarem passo a passo at a prpria derrocada. Foi o que aconteceu, na Primeira Guerra Mundial, com a Alemanha e a In-glaterra. Analisemos a situao que existia nos dois pases. Am-bos experimentavam a inflao. Como os preos subiam, os dois governos impuseram controles sobre eles. Tendo comeado com apenas alguns preos, nada mais que leite e ovos, foram forados a avanar cada vez mais. Mais a guerra se prolongava, maior se tor-nava a inflao. E aps trs anos de guerra, os alemes de maneira sistemtica, como de seu estilo elaboraram um grande plano. Chamaram-no Plano Hindenburg (naquela poca, tudo na Alema-nha que parecia bom ao governo era batizado de Hindenburg).

    O Plano Hindenburg estabelecia o controle governamental so-bre todo o sistema econmico do pas: preos, salrios, lucros..., tudo.

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    E a burocracia tratou imediatamente de pr em prtica este plano. Mas, antes de conclu-lo, veio a derrocada: o Imprio Alemo desin-tegrou-se, o aparelho burocrtico esfacelou-se, a revoluo produziu seus efeitos terrveis tudo chegou ao fim. Os fatos, na Inglaterra, inicialmente ocorreram dessa mesma maneira, mas, depois de algum tempo, na primavera de 1917, os Estados Unidos entraram na guer-ra e abasteceram os ingleses com quantidades suficientes de tudo. Dessa forma, o caminho do socialismo, o caminho da servido, foi obstado. Antes da ascenso de Hitler ao poder, o controle de preos foi mais uma vez introduzido na Alemanha pelo chanceler Brning, pelas razes de costume. O prprio Hitler aplicou-o antes mesmo do incio da guerra: na Alemanha de Hitler no havia empresa privada ou iniciativa privada. Na Alemanha de Hitler havia um sistema de socialismo que s diferia do sistema russo na medida em que ainda eram mantidos a terminologia e os rtulos do sistema de livre economia. Ainda existiam empresas privadas, como eram denominadas. Mas o proprietrio j no era um empresrio; chamavam-no gerente ou chefe de negcios (Betriebsfhrer).

    Todo o pas foi organizado numa hierarquia de fhrers; havia o Fhrer supremo, obviamente Hitler, e em seguida uma longa sucesso de fhrers, em ordem decrescente, at os fhrers do ltimo escalo. E, assim, o dirigente de uma empresa era o Betriebsfhrer. O conjunto de seus empregados, os trabalhadores da empresa, era chamado por uma palavra que, na Idade Mdia, designara o squito de um senhor feu-dal: o Gefolgschaft. E toda essa gente tinha de obedecer s ordens ex-pedidas por uma instituio que ostentava o nome assustadoramente longo de Reichsfhrerwirtschaftsministerium (Ministrio da Economia do Imprio), a cuja frente estava o conhecido gorducho Goering, en-feitado de joias e medalhas. E era desse corpo de ministros de nome to comprido que emanavam todas as ordens para todas as empresas: o que produzir, em que quantidade, onde comprar matrias-primas e quanto pagar por elas, a quem vender os produtos e a que preo. Os trabalhadores eram designados para determinadas fbricas e rece-biam salrios decretados pelo governo. Todo o sistema econmico era agora regulado, em seus mnimos detalhes, pelo governo.

    O Betriebsfhrer no tinha o direito de se apossar dos lucros; re-cebia o equivalente a um salrio e, se quisesse receber uma soma

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    maior, diria, por exemplo: Estou muito doente, preciso me sub-meter a uma operao imediatamente, e isso custar quinhentos marcos. Nesse caso, era obrigado a consultar o fhrers do distrito (o Gaufhrer ou Gauleiter), que o autorizaria ou no a fazer uma retirada superior ao salrio que lhe era destinado. Os preos j no eram preos, os salrios j no eram salrios no passavam de ex-presses quantitativas num sistema de socialismo.

    Permitam-me agora contar-lhes como esse sistema entrou em colapso. Um dia, aps anos de combate, os exrcitos estrangeiros chegaram Alemanha. Procuraram conservar esse sistema econ-mico de direo governamental; mas para isso teria sido necessria a brutalidade de Hitler. Sem ela, o sistema no funcionou. Enquan-to isso acontecia na Alemanha, durante a Segunda Guerra Mundial, a Gr-Bretanha fazia exatamente a mesma coisa: a partir do contro-le do preo de algumas mercadorias, o governo britnico comeou, passo a passo (assim como Hitler procedera em tempo de paz, antes mesmo de deflagrada a guerra), a controlar cada vez mais a econo-mia, at que, por ocasio do trmino da guerra, tinham chegado a algo muito prximo do puro socialismo.

    A Gr-Bretanha no foi conduzida ao socialismo pelo governo do Partido Trabalhista, estabelecido em 1945. Ela se tornou socia-lista durante a guerra,