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Niétotchka

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Conto do livro Contos do amor e da morte

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Niétotchka

Não tinha mais vergonha. Nem mesmo evitou a declaração de amor no final, como na adolescência fazia aos meninos. Não pensou se havia ou não alguma coisa em risco. Será assim? A expressão serena em meio aos pesados dilemas – ai, perduram. Desliga o celular e olha o aparelho com ironia, como se piscasse para a interlocutora. Os óculos embaçam de sono, é o que de melhor está agora a seu alcance. Mas e quanto à outra, pensou, tão castiça, inocente, insegura? Em algum momento terá a mesma sensação de liberdade? Uma aragem sinuosa sua voz, abrindo as silabas e derramando pacíficos lagos dentro delas. A tranqüilidade esperada ao longo de uma vida. Uma donzela para servir de amor. Fechou os olhos e não precisou esperar muito. Foi assim, disse à menina. O mar rumoreja em sinuosas movimentos cruzados, como a voz amada. Mas e o sonho?

De repente se deram conta no dia de onde estavam e por que estavam ali, e se fez dia, o silêncio exceto pelo mar rumorejando, a respiração de uma pela outra sentida, a mão acolhedora que rodeava quase atingindo o outro lado, a luz fosca do dia, a necessidade de pensar no dia seguinte. Tudo o sonho contemplara. Passado e futuro, o conhecimento que se segue à ingenuidade e logo será uma outra ignorância, a vida vivida e a vida esperada fazendo parte da mesma vida. É que não tenho coragem de dizer tudo, pensa, ou talvez não saiba o que é tudo e se há um tudo, se tem a ver com tudo esse

encontro na praia, combinado ao acordarem num sábado assim, cheio de presságios. Quase não é preciso contar o sonho, porque estão vivas no mesmo sentimento, ou simplesmente porque estão vivas, como não saber? Suas versaletes ainda fazem sentido num mundo pela internet conectado. Tudo é memória, tudo é o significado da flor num trecho da floresta em que ninguém jamais entrará.

Ah! Lembrança viva! Sentir-se viva, amada. Estrelas de cilício sob os pés. Vaguear na agonia e chegar ao descanso... Saber-se protegida, alimentada por um sol que sequer apareceu. E que ninguém exceto ela verá. O sol que passa pela moça a seu lado, a quem conta seus caminhos noturnos, escutando-lhe as feições. Nana e ela, sentadas, caminham por um azul que não existe. Uma ao lado da outra, abraçada à outra. Partilhando o sonho. Quem as visse do mar, quem sabe a sereia do sonho, veria que a outra olhou mais além quando Nana mencionou como se deve agir em relação à opinião das pessoas. Seu vestido quebrou-se à altura dos joelhos dela, mas a praia estava deserta para que se compusesse. Os passos na areia foram feitos na linha da força das ondas, mas quando? E nem por isso era possível dizer que ali não havia uma dose segura de precisão.

Os perfis se sobrepunham como se fossem uma só. Nana talvez já tenha se arrependido de ter dito acerca do que deve

ser feito, ou talvez tenha decidido não mais se arrepender de nada. O olhar da outra agora busca ainda mais longe, não vê nada para conseguir ter a clareza do olhar. A conversa mais e mais se nutre do silêncio, do toque, das certezas do que nunca será dito. A uma mar também nos olhares, cujas ondas se cruzam na capacidade de compreensão. O horizonte não é discernível, são dois céus, como no princípio, ou dois mares? Não. Uma coisa só.