nicola abbagnano - história da filosofia vol. 7

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  • 8/9/2019 Nicola Abbagnano - Histria Da Filosofia Vol. 7

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    HistrIa da FilosofiaVolume seteNicola Abbagnano

    DIGITALIZAO E ARRANJOS:ngelo Miguel Abrantes(segunda-feira, 30 de Dezembro de 2002)

    HISTRIA DA FILOSOFIA

    VOLUME VII

    TRADUO DE: ANTNIO RAMOS ROSA ANTNIO BORGES COELHO

    CAPA DE: J. C.

    COMPOSIO E IMPRESSO

    TIPOGRAFIA NUNESR. Jos Falco, 57-Porto

    EDITORIAL PRESENA * Lisboa 1970

    TITULO ORiGINAL STORIA DELLA FILOSOFIA

    Copyright by NICOLA ABBAGNANO

    Reservados todos os direitos para a lngua portuguesa EDITORIAL PRESENA,LDA. - R. Augusto Gil, 2 cIE. - Lisboa

    vi

    LEIBNIZ

    436. LEIBNIZ: VIDA E ESCRITOS

    Se a filosofia de Espinosa uma doutrina da ordem necessria do mundo, afilosofia de Leibniz pode ser descrita como sendo uma doutrina da ordem livredo mundo. A diferena entre as duas filosofias tem o seu fundamento na diferenaentre dois conceitos de razo: a razo para Espinosa a

    faculdade que estabelece ou reconhece relaes necessrias, ao passo que para Leibniz a simples possibilidade de estabelecer relaes.

    Gotfried Wilhelm Leibniz nasceu a 21 de Junho de 1646 em Leibniz. Foi um garotoprecoce: aprendeu sozinho o latim e muito cedo conseguiu dar solues pessoaisaos problemas que se debatiam nas escolas. Estudou jurisprudncia em Leipzig

    e em

    Altdorf (perto de Nuremberga), onde se licenciou

    em 1666. Os seus primeiros escritos so precisamente teses para a obtenode ttulos acadmicos: uma

    discusso intitulada De principio individui, vrios escritos jurdicos e aArs combnatoria em que se anuncia j a sua ideia de um "alfabeto dos pensamentoshumanos" e de uma lgica organizada matematicamente.

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    Em Nuremberga, Leibniz trava conhecimento com o baro de Boineburgo, um dosmais eminentes homens polticos alemes da poca, que o levou a Francofortee o apresentou ao Eleitor de Mogncia. Leibniz escreve ento o Novo nwthodusdiscende docendaeque jurisprudentiae (1667), que o mais importante dos seusensaios jurdicos. Em Mogncia obtm o cargo de conselheiro do Eleitor edesempenha vrios cargos cientficos e polticos. Comeava assim a actividade

    poltica, que ocupou grande parte, da sua vida e que, embora sendo inspiradapor circunstncias ocasionais e pelo interesse das pessoas que se valeram dele,obedece no seu conjunto a um grandioso desgnio: o de uma organizao polticauniversal ao servio da civiliza o e da cincia. Entretanto, a sua actividadefilosfica incide sobre problemas de ordem teolgica, lgica e sobretudofsica. Em 1671 compe a Hypothesis physica nova. Inicia tambm neste perodoa correspondncia com os maiores cientistas do tempo, na qual se encontraconsignada boa parte da sua actividade de escritor.

    Em 1762, Leibniz foi enviado a Paris com uma misso diplomtica destinada adissuadir Lus XIV da sua projectada invaso da Holanda inspirando-lhe

    o desejo de conquistar o Egipto. O projecto gorou-se e foi declarada guerra

    Holanda. Leibniz foi autorizado a permanecer em Paris, onde estreitourelaes com os homens mais importantes da poca. A permaneceu quatro anosque foram decisivos para a sua formao cientfica. Em Frana dominava entoo cartesianismo, mas Leibnizinteressou-se sobretudo pelas descobertas matemticas e fsicas. Em 1676,descobriu o clculo integral que no entanto s tornou pblico em 1684 nos "Actacruditorum". O clculo integral havia sido descoberto por Newton uma dezenade anos antes; mas Leibniz fez a sua descoberta independentemente eformulou-a de modo a torn-la mais fecunda, possibilitando uma mais rpidae cmoda aplicao. Em 1676, regressou Alemanha, onde aceitou ocargo de bibliotecrio junto do duque de Hannover, Joo Federico deBraunchweig-Luneburg. Na viagem de Paris a Hannover, travou conhecimento comEspinosa em Haia e com ele teve longas conversaes. Espinosa havia ento jterminado a sua tica e por isso, provavelmente, nada lhe trouxe oconhecimento de Leibniz. Mas Leibniz viu-se, neste encontro com ele, peranteuma doutrina que era directa e simtricamente oposta sua. E esta doutrinatornou-se, nos seus escritos filosficos e especialmente na Teodiceia, o seuponto de referncia polmico constante. Leibniz acabou por ver nela a expressotpica do atesmo, do naturalismo e especialmente daquela necessidade cegaque nega a liberdade humana e a providncia divina.

    Leibniz permaneceu durante a vida inteira ao servio dos Duques de Hannover.Primeiro bibliotecrio, depois historigrafo da casa, foi incumbido pelosprncipes de Hannover dos mais variados encargos e foi o defensor terico dasua poltica. Numerosos escritos polticos foram com esse intuito compostospor ele. A sua obra maior neste campo a pesquisa histrica que empreendeusobre as origens da casa de Braunschweig, que pretendia descender do prprio

    tronco dos Estc.,di. A fim de demonstrar com documentos a exactido destagenealogia, Leibniz viajou durante trs anos (1687-90) pela Alemanha e Itliapara consultar arquivos e descobrir documentos; mas essa viagemproporcionou-lhe tambm o ensejo de abordar cientistas e homens vrios e denutrir a sua insacivel curiosidade cientfica. Mais conforme aos seus ideaisfoi o projecto, em que trabalhou longamente, de reunir a Igreja catlica protestante. Tambm este projecto lhe foi sugerido pelo interesse dos Duquesde Hannover que, sendo catlicos, governavam no entanto um pas protestante.Leibniz manteve numerosa correspondncia com muitos homens da poca, eespecialmente com Bossuet, que defendia o ponto de vista catlico. O projecto

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    falhou, mas as tentativas feitas por Leibniz nesta ocasio revelavam oaspecto fundamental do seu pensamento, que o de tender a uma ordem universalna qual encontrem lugar e se harmonizem espontneamente os mais diversos pontosde vista.

    Esta mesma tendncia se revela nas suas tentativas de organizar na Europa umaespcie de

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    Repblica das cincias em que participassem, atravs das academias nacionais,os homens de cincia de toda a Europa. Em 1700, fundou em Berlim, segundo omodelo da sociedade de Paris e de Londres, uma sociedade das cincias que setornou depois a Academia Prussiana. Em seguida, tendo sabido, atravs de padresmissionrios e especialmente Grimaldi, do grande interesse que o imperadorchins mostrava pelas cincias, bem como das tentativas realizadas porcientistas chineses, pensou tambm estabelecer contactos culturais com aChina. Quando Pedro o Grande empreendeu a renovao cultural da Rssia, Leibniztornou-se seu conselheiro e fez projectos para as instituies que deviam levara Rssia a participar daquela organizao universal das cincias que Leibniz

    patrocinava.

    A pesquisa cientfica e filosfica constitua a actividade privada de Leibniz.Ela est quase toda consignada na sua vastssima correspondncia e em

    breves ensaios publicados nas revistas do tempo. Em 1684 publicava nos "Actacruditorum" o Nova methodus pro maximis et minimis em que tornava conhecidaa sua descoberta do clculo integral. Entretanto perseguia o seu ideal de umacincia que contivesse os princpios e os fundamentos de todas as outras edeterminasse os caracteres fundamentais comuns a todas as cincias e as regrasda combinao delas. Os resultados que Leibniz alcanou restas tentativasencontram-se em vrios manuscritos, tais como Mathesis universalis, Iitiamathenwtica, etc.

    Quase todos os escritos de Leibniz tm carcter circunstancial. Em 1681 compso Discurso de metafsica, um breve ensaio, que todavia um

    documento importante do seu pensamento. Seguiram-se-lhe o Novo sistema danatureza e da comunicao das substncias (1695); os Princpios da naturezae da graa fundados na razo (1714); a Monadologia (1714), dedicada ao PrncipeEugnio de Sabia, que ele conhecera em Viena; os Novos ensaios sobre ointelecto humano (1705), que uma crtica da obra de Locke. O nico livropublicado (em 1710) por Leibniz foi o Ensaio de teodiceia que teve o seu pontode partida nas crticas expostas por Bayle no artigo Rorarius do seu Dicionriohistrico e crtico da filosofia. Leibniz nunca escreveu uma exposiocompleta e sistemtica do seu pensamento.

    Os seus ltimos anos foram os mais infelizes. Acumulara uma quantidade decargos que lhe valiam lautas prebendas mas o distraam do trabalho dehistorigrafo a que o prncipe gostaria de o ver dedicar-se. Quando morreramas suas protectoras (a Rainha Sofia Carlota e sua me Sofia), impediram-node sair de Hannover e procuraram humilh-lo de todos os modos. Quando morreu,a14 de Novembro de 1716, era j uma figura esquecida. E no entanto conhece-seo local onde foi sepultado,

    Embora Leibniz tenha sido um filsofo de profisso, demonstrou nas mltiplas

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    manifestaes da sua actividade um esprito sistemtico e universalista, que de natureza genuinamente filosfica.

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    Qualquer que fosse o problema particular considerado, logo ele o reconduziaa um princpio geral e reconhecido corno o elemento ou a expresso de um sistema

    universal. A sua filosofia no mais

    do que a tentativa de fundar e justificar a possibilidade de um tal sistema.

    437. LEIBNIZ: A ORDEM CONTINGENTE E A RAZO ]PROBLEMTICA

    Todas as manifestaes da personalidade de Leibniz, tanto as cientficas efilosficas como as polticas e religiosas, deixam-se reconduzir a um

    nico pensamento central: o de uma ordem, no geometricamente determinada epor isso necessria, mas espontaneamente organizada e portanto livre. A ordemuniversal que Leibniz quer reconhecer e

    fazer valer em todos os campos no necessria (como a que constitua o idealde Espinosa), mas

    susceptvel de se organizar e desenvolver-se do melhor modo, segundo umaregra no necessria. E, todavia, , como a de Espinosa, uma ordem matemticaou geomtrica cujo contedo Leibniz exprimiu com toda a clareza no Discursode metafsica ( 6): "Nada ocorre no mundo que seja absolutamente irregularnem se pode imaginar nada de semelhante. Suponhamos que algum marque por acasonum mapa uma quantidade de pontos: digo que possvel encontrar uma linhageomtrica cuja noo seja constante e uniforme segundo uma regra determinadae tal que passe por todos estes

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    pontos precisamente na ordem em que a mo a traou. E se algum traar um linhacontnua, ora recta, ora circular, ora de outra natureza, possvel encontraruma noo ou regra ou equao comum

    a todos os pontos desta linha, em virtude da qual as mutaes mesmas da linhavm a ser explicadas... Assim se pode dizer que fosse de que forma Deus tivessecriado o mundo, o mundo seria sempre regular e provido de uma ordem geral".Um conceito de ordem assim formulado exclui toda a rigidez e necessidade einclui a possibilidade da liberdade, isto , da escolha entre vrias ordenspossveis. Mas escolha no significa arbtrio, segundo Leibniz. Entre asvrias ordens possveis, Deus escolheu a

    mais perfeita, isto , a que ao mesmo tempo a

    mais simples e a mais rica de fenmenos. A escolha, portanto, regulada peloprincpio do melhor, isto , por uma regra moral e finalstica. Uma ordem queinclua a possibilidade de uma escolha livre e que seja susceptvel de serdeterminada pela melhor escolha a ordem que Leibniz procurou reconhecer erealizar em todos os campos da realidade. As suas tentativas de criar umaorganizao universal das cincias, como as de conciliar protestantismo ecatolicismo, obedecem exigncia de tal ordem. A sua busca de uma cinciageral, de uma espcie de clculo que servisse para descobrir a verdade em todosos ramos do saber, nasce da exigncia de criar um rgo, um instrumento que

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    permita descobrir e estabelecer aquela ordem em todos os campos. A prpriarealidade fsica deve revelar tal ordem. "So precisos, diz Leibniz, fil14

    sofos naturais que no s introduzam a geometria no campo das cincias fsicas(dado que a geometria carece de causas finais) mas tornem tambm manifestanas cincias naturais uma organizao por assim dizer civil" (Lett. alThonjasius, in Gerhadt, 1, p. 33). A prpria realidade fsica uma "grande

    repblica" organizada e nascida de um princpio de liberdade. A ordem, a razodo mundo, liberdade, segundo Leibniz.

    Deste ponto de vista evidente que para Leibniz a categoria fundamental paraa interpretao Ja realidade no a necessidade, mas a possibilidade. Tudoo que existe uma possibilidade que se

    realizou: e realizou-se no em virtude de uma regra necessria ou sem qualquerregra, mas em virtude de uma regra no necessria e livremente aceite.O que quer dizer que nem tudo o que possvel se realizou ou se realiza eque o mundo dos possveis bastante mais vasto do que o mundo do real. Deuspodia realizar uma infinidade de mundos possveis; realizou o melhor atravsde uma escolha livre, isto , segundo uma regra que ele prprio se imps pela

    sua sabedoria. O que existe no , portanto, como na doutrina de Espinosa,uma necessria manifestao da essncia de Deus, que deriva ,geometricamentede tal essncia, mas apenas o produto de uma escolha livre de Deus. Estaescolha, todavia, no arbitrria mas racional: tem a sua

    razo no facto de que a escolha melhor entre todas as possveis.

    Toda a filosofia de Leibniz tende a justificar estes princpios fundamentais.Ela portanto a pri15

    meira grande tentativa para definir a razo como

    razo problemtica e estabelecer como norma da razo, no a necessidadegeomtrica, mas a obrigao moral. S no mbito da razo problemtica e dacategoria da possibilidade se pode resolver o

    contraste que a crtica moderna ps em relevo na obra de Leibniz. Leibniz,por um lado, contraps o princpio de razo suficiente como princpio da ordemreal livre ao princpio, de identidade que regula a ordem necessria dasverdades eternas; por outro lado, efectuou repetidas vezes a tentativa dereconduzir o prprio princpio de razo suficiente ao princpio de identidade.Esta ltima tentativa parece primeira vista negar a aspirao fundamentalde Leibniz, porquanto visa aparentemente a

    concluir que a ordem contingente e livre urna manifestao provisria eincompleta da ordem necessria. Leibniz seria assim, mau grado seu,reconduzido a Espinosa. Mas, na realidade, quando Leibniz diz que nas

    proposies idnticas o predicado imediatamente inerente ao sujeito ao passoque nas verdades contingentes esta inferncia s pode ser alcanada edemonstrada com uma anlise continuada at ao infinito (Couturat, p. 16), eleno pretende dizer outra coisa seno que a anlise das proposies contingentes(que concernem ordem real) pode ser prosseguida at ao infinito sem alcanarjamais a identidade. Como em geometria duas rectas se dizem paralelas quandose encontram no

    infinito, porque podem ser indefinidamente prolongadas sem nunca seencontrarem, assim as verdades contingentes dizem-se idnticas no infinito,

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    porque

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    podem ser indefinidamente analisadas sem que se possa alguma vez demonstr-las-idnticas. O endereamento teolgico da sua doutrina conduzir Leibniz asustentar que em Deus tal possibilidade se actualizou e que por isso lhe

    dado compreender a

    identidade analtica das verdades contingentes E, na verdade, a razoproblemtica no pode ser

    seno humana, e no atribuvel a Deus. Uma das suas menos despiciendasvantagens , pelo contrrio, a de estabelecer uma diferena radical entre oconhecimento humano e o conhecimento divino; o esta diferena firmementefundamentada pela filosofia de Leibniz

    438. LEIBNIZ: VERDADE DE RAZO

    E VERDADE DE FACTO

    A obra de Leibniz visa portanto a justificar a

    possibilidade de uma ordem espontnea e de regras no necessitantes. O primeiroaspecto desta justificao a demonstrao de que ordem no significanecessidade. A necessidade, segundo Leibniz encontra-se no mundo da lgica,no no mundo da realidade. Uma ordem real nunca necessria. Tal osignificado da distino leibniziana entre verdade de razo e verdade de facto.As verdades de razo so necessrias, mas no respeitam realidade. Soidnticas, no sentido de que no fazem seno repetir a mesma coisa sem dizernada de novo. Quando so afirmativas fundam-se no princpio de identidade (cadacoisa aquilo que );

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    quando so negativas fundam-se no princpio de contradio (uma proposio verdadeira ou falsa). Este ltimo, por seu turno, implica duas enunciaes:a primeira que uma proposio no pode ser ao mesmo tempo verdadeira e falsa;a segunda, que impossvel que uma proposio no seja nem

    verdadeira nem falsa (princpio do terceiro excludo).O prprio princpio de contradio rege, segundo Leibniz, as proposiesdisjuntas, as quais dizem que o objecto de uma ideia no o objecto de outraideia (,por exemplo, homem e animal no so a mesma coisa). Todas as verdadesfundadas nestes princpios so necessrias e infalveis mas

    nada dizem acerca da realidade existente de facto (Novos ensaios, IV, 2).

    Estas verdades no podem derivar da experincia e so portanto inatas. Leibnizope-se negao total de todas as ideias ou princpios inatos, como o

    faz Locke ( 454). Decerto que as ideias inatas no so ideias claras edistintas, isto , plenamente conscientes: so antes ideias confusas eobscuras, pequenas percepes, possibilidades ou tendncias. So semelhantesaos veios que num bloco de mrmore delineiam, por exemplo, a figura de Hrcules,de modo que bastam algumas marteladas para arrancar o mrmore suprfluo e fazersurgir a esttua. A experincia realiza precisamente a funo de martelo: torna

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    actuais, isto , plenamente claras e distintas, as ideias que na alma eramsimples possibilidades ou tendncias. Mas as ideias inatas no puderam derivarda experincia porque tm uma necessidade absoluta que os conhecimentos

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    empricos no possuem. As verdades de razo delineiam o mundo da pura

    possibilidade que bastante mais vasto e extenso do que o da realidade. Porexemplo, muitos mundos seriam em geral possveis desde que a sua noo noimplique nenhuma contradio: mas s um mundo real. E, evidentemente, nemtodas as coisas possveis se realizam: se assim fosse, no haveria seno anecessidade e no haveria escolha nem providncia (Gerhardt. IV, p. 341).

    As verdades de facto so, ao invs, contingentes e concernem realidadeefectiva. Elas delimitam, no

    vastssimo domnio do possvel, o campo bastante mais restrito da realidadeem acto. Tais verdades no se fundam no princpio de contradio: o que querdizer que o contrrio delas possvel. Fundam-se, ao invs, no princpio derazo suficiente. Este princpio significa que "nada se verifica sem uma razo

    suficiente, isto , sem que seja possvel, quele que conhece suficientementeas coisas, dar uma razo que baste para determinar que assim e no de outromodo" (Gerhardt, VI, p. 602). Mas tal razo no uma causa necessria: umprincpio de ordem ou de concatenao pelo qual as

    coisas que ocorrem se ligam umas s outras sem todavia formarem uma cadeianecessria. um princpio de inteligibilidade que garante a liberdade oucontingncia das coisas reais. o princpio prprio daquela ordem que Leibnizse esforou constantemente por encontrar em todos os aspectos do universo:uma ordem que torne possvel a liberdade

    de escolha.

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    Este princpio postula imediatamente uma causa livre do universo. De facto,convida-nos a formular esta pergunta: porque que h algo em vez de nada?Desde o momento em que as coisas contingentes no encontram em si prpriasa sua razo de ser, necessrio que tal razo esteja fora delas e se encontrenuma substncia que no seja, por sua vez, contingente mas necessria, isto, que tenha em si mesma a razo da sua existncia. E tal substncia Deus.Mas se alm disso se pergunta por que que Deus criou, entre todos os mundospossveis, este que assim e assim determinado, necessrio encontrar a razosuficiente da realidade do mundo na escolha que Deus fez dele e a razode tal escolha ser que elo o

    melhor de todos os mundos possveis e que Deus devia escolh-lo. Mas este devia

    no significa aqui uma necessidade absoluta, mas o prprio acto da vontadede Deus que livremente escolheu em conformidade com a sua natureza perfeita.A razo suficiente, diz Leibniz, inclina, sem obrigar: ela explica o queacontece de modo infalvel e certo e todavia sem necessidade, porque ocontrrio daquilo que acontece sempre possvel.

    O princpio de razo suficiente implica a causa

    final; e sobre este ponto Leibniz afasta-se decisivamente de Descartes e deEspinosa para se voltar para a metafsica aristotlico-escolstica. Se Deus

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    criou este mundo por ser o melhor, agiu em vista de um fim e este fim averdadeira causa da sua escolha. E se a ordem do universo uma ordemcontingente e livre, deve fundar-se no fim que as

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    actividades contingentes e livros tendem a realizar. Mesmo o mecanismo da

    natureza deve por fim resolver-se no finalismo.

    439. LEIBNIZ: A SUBSTNCIA INDIVIDUAL

    O princpio e razo suficiente conduz Leibniz a formular o conceito centralda sua metafsica, o de substncia individual. Uma verdade de razo aquelaem que o sujeito e o predicado so em realidade idnticos, onde no se podenegar o predicado sem contradio. No se pode dizer, por exemplo, que umtringulo no tenha trs lados e no tenha os

    ngulos internos iguais a dois rectos: tais proposies so contraditrias,portanto impossveis. Mas nas verdades de facto o predicado no idnticoao sujeito e pode mesmo ser negado sem contradio. O contrrio de uma verdade

    de facto no por isso contraditrio, nem impossvel. O sujeito dela deveportanto conter a razo suficiente do seu predicado.

    Ora um sujeito deste gnero sempre um sujeito real, uma substncia (desdeo momento que se trate de verdades de facto). Ele aquilo que Leibniz denominauma substncia individual. "A natureza de uma substncia individual ou de umser completo tal que a sua noo to completa que basta para compreendere fazer deduzir dela todos os predicados do sujeito a que ela atribuda"(Disc. de met., 8). A noo individual de Alexandre Magno, inclui, porexemplo, a razo suficiente de todos

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    os predicados que se lhe possam atribuir com verdade, por exemplo, que venceuDario e Poro, e at o conhecer a priori se ele morreu de morte natural ouenvenenado. Naturalmente, o homem no pode ter uma noo to completa dasubstncia individual e por isso deduz da histria ou da experincia osatributos que se lhe referem. Mas Deus, cujo conhecimento perfeito, tem acapacidade de descobrir na noo de uma qualquer substncia individual a razosuficiente de todos os seus predicados, e por isso pode descobrir na alma deAlexandre os resduos de tudo o que lhe aconteceu, os sinais de tudo o quelhe acontecer e tambm os vestgios de tudo o que acontece no universo.

    Isto no quer dizer que uma substncia individual seja obrigada a agir de umcerto modo, que por exemplo, Alexandre no possa deixar de vencer Dario e Poro;Csar, de passar o Rubico, etc. Estas aces podiam no acontecer, porqueo contrrio delas no implica contradio. Mas era na

    realidade certssimo que teriam acontecido, dada a natureza das substnciasindividuais que as realizaram, porquanto tal natureza a razo suficientedelas. E, por seu turno, a natureza dessas substncias individuais tem a suarazo suficiente na ordem geral do universo querido por Deus. Tanto a escolhapor parte de Deus daquela particular ordem do universo que requer substnciascomo Alexandre ou Csar, como as aces ou as escolhas de Alexandre, so livres:mas a escolha por parte de Deus de que as substncias individuais tenhamem si mesmas a sua razo suficiente que as explica

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    e as torna inteligveis. Deus poderia ter escolhido um mundo diferente e Csarpoderia no ter cometido aquela aco, mas a perfeio do universo teria sidoafectada; e assim as coisas deviam passar-se tal como se passaram.

    Toda a doutrina de Leibniz sobre este ponto se apoia sobre a diversidade e

    contraste entre a conexo necessria que tem lugar nas verdades de razo (comoas geomtricas), e a conexo contingente que estabelecida pelo princpiode razo suficiente e implica uma necessidade que s ex hypotesis (segundoa expresso de Leibniz), isto , puramente problemtica. "Se bem queseguramente Deus faa sempre a melhor escolha, isso no impede que algo menosperfeito seja e se mantenha possvel em si mesmo, embora no se verifique;porque no a sua impossibilidade mas a sua imperfeio que o faz serrejeitado. Ora nada de que seja possvel o oposto, necessrio (Ib., 13).

    E no entanto evidente que esta doutrina, se justifica plenamente a liberdadeda escolha de Deus, no justifica de igual modo a liberdade do homem. No Ensaiode teodiceia e em numerosas cartas, Leibniz defendeu longamente o seu conceitoda liberdade negando que ele ponha termo necessidade. Decerto que ele exclui

    aquela liberdade de indiferena que poria o homem em equilbrio frente apossibilidades diversas e opostas. A ordem do universo exige que toda asubstncia tenha uma natureza determinada e que esta natureza determinada sejaa razo suficiente de todas as aces. E, na realidade, para Leibniz, asubstncia indivi23

    dual no mais que a razo suficiente na sua realidade. Mas o que torna incertaou duvidosa a liberdade humana a certeza e a infalibilidade da previsodivina. Por que razo, pergunta-se Leibniz, tal homem cometer necessariamentetal pecado? A resposta fcil: que, de contrrio, no seria o

    homem que . Assim Deus prev infalivelmente a

    traio de Judas porque v, desde toda a eternidade, que haver um certo Judascuja noo ou ideia contm aquela aco futura livre. Subsiste, portanto, oproblema seguinte: porque que Deus criou o

    universo de cuja ordem faz parte integrante aquela determinada substncia,problema este que, segundo Leibniz, se deve resolver sustentando que o universocriado , apesar disso, o melhor possvel (Ib., 30). Ele remete assim oproblema para o terreno puramente teolgico; e a um dos seus correspondentes,Jaquelot, que apertava com ele sobre este ponto, acabou por responder que assuas objeces eram dirigidas a todos os telogos, "j que o decreto de Deusno s para mim a causa eficaz e antecedente das aces, mas para todos eles".E acrescentava: "Tal como eu, todos responderam que a

    criao das substncias e o concurso de Deus para a realidade da aco humana,

    que so os efeitos do seu decreto, no constituem uma determinao necessria"(Gerhadt, VI, p. 568).

    Na realidade, sobre este ponto Leibniz fazia uma

    clara distino entre o ponto de vista de Deus e o

    ponto de vista dos homens. Do ponto de vista de Deus, certo e infalvel quetodas as escolhas e aces humanas procedem da substncia individual,

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    LEibniz

    mas do ponto de vista do homem no existe tal certeza. As determinaes deDeus nesta matria so imprevisveis e nenhuma alma sabe que determinadaa pecar seno quando peca efectivamente. As queixas post factum, diz Leibniz,

    so injustas, ao passo que teriam sido justas ante factum. "Talvez estejafixado desde toda a eternidade que eu peque? Respondeis vs: talvez no. Esem pensar no que no podeis conhecer e que no pode dar-vos nenhuma luz, agissegundo o vosso dever, que conheceis" (Disc. de met., 30). Por outros termos,o homem no possui a noo suficiente e completa da sua

    prpria substncia individual e portanto no pode descobrir nela a razosuficiente das suas aces seno depois de as ter praticado; de sorte que eleno pode ter qualquer certeza antecipada sobre elas. Para Deus que vplenamente a substncia individual, as aces futuras desta so certas, mascertas

    apenas em virtude de um decreto seu, portanto no necessrias. A garantia da

    liberdade humana est, segundo Leibniz, na diversidade e incomunicabilidadedo ponto de vista humano com o ponto de vista divino; e, conquanto Leibnizqueira ser ao

    mesmo tempo filsofo e telogo e parta da filosofia para chegar teologia,a soluo que ele apresenta no oferece teologicamente nada de novorelativamente por exemplo ao tomismo, mas nova a sua interpretao doprincpio de razo suficiente. Em virtude deste princpio, a escolha que ohomem faz de uma aco qualquer no arbitrria porque tem a sua razo nanatureza mesma do homem, mas no determinada, porque essa razo no neces25

    sria. A fora da soluo de Leibniz reside na energia com que contraps ordem geomtrica a ordem moral e ao determinismo da razo cartesiana eespinosana a problematicidade e a obrigatoriedade moral da razo suficiente.

    440. LEIBNIZ: FORA E NONISMO

    A natureza no constitui para Leibniz uma excepo ao carcter contingentee livre da ordem universal. Esta convico que dominou sempre o esprito deLeibniz levou-o a modificar pouco a pouco as doutrinas fsicas que expuserano seu escrito juvenil intitulado Hypothesis physica nova. Neste escrito aindaadmitia a diferena que Descartes estabelecera entre a extenso e o movimentoe bem assim, tal como Gassendi, a constituio atmica da matria quando chegoua formular uma das suas grandes mximas, como ele lhe chama, ou seja, a leide continuidade, o princpio de que "a natureza nunca d saltos". Segundo esteprincpio, deve admitir-se que, para passar do pequeno ao grande ou vice-versa, necessrio passar atravs de infinitos graus intermdios e que, por

    consequncia, o processo de diviso da matria no pode deter-se em elementosindivisveis, como seriam os tomos, mas tem de progredir at ao infinito.Em seguida, deixou de ver na extenso e no movimento, que eram os elementosda fsica cartesiana, os elementos originrios do mundo fsico e viu, ao invs,o elemento originrio na fora. Aconteceu isto quando se con26

    venceu de que o princpio cartesiano da imutabilidade da quantidade demovimento era falso e que era necessrio substitu-lo pelo princpio daconservao da fora ou aco motora. Aquilo que permanece constante nos corposque se encontram num sistema fechado no a quantidade de movimento mas a

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    quantidade de aco motora que igual ao produto da massa pelo quadrado davelocidade. A aco motora ou fora viva representa a possibilidade de produzirum determinado efeito, por exemplo levantar um peso, e isso implica umaactividade ou produtividade, a qual se exclui do movimento que a simplestranslaco no espao. Leibniz considera por isso a fora como bastante maisreal do que o movimento. O movimento no real por si mesmo, como no sopor si mesmos reais o espao e o tempo, que devem antes ser considerados entes

    de razo. O movimento relativo aos fenmenos uma simples relao, a fora a realidade deles (Specimen dynamicum, Escritos matemticos, VII, p. 247).Nos seres corpreos, diz Leibniz, h algo para alm da extenso, e mesmoanterior extenso: a fora da natureza, colocada em toda a parte pelo autorsupremo, e que no consiste apenas numa simples faculdade, como diziam osescolsticos, mas tambm num conatus ou esforo, o qual ter o seu pleno efeitose no for impedido por um conatus contrrio... O agir o carcter essencialdas substncias, e a extenso no determina a substncia mesma, seno queindica a continuao ou difuso de uma substncia j dada, a qual tende e seope, ou seja, resiste" (Ib., VI, p. 325).

    77

    Deste modo, o nico elemento real do mundo natural a fora. A extenso eo movimento, que

    eram os princpios fundamentais da fsica cartesiana so por Leibniz, se nonegados, reduzidos a um princpio ltimo que ao mesmo tempo fsico emetafsico: a fora. Leibniz aceita o mecanismo cartesiano apenas comoexplicao provisria, que necessita ser integrada por uma explicaofsico-metafsica mais alta. "Devo declarar inicialmente, diz ele (Gerhardt,IV, p. 472), que, em meu parecer, tudo acontece mecanicamente na natureza eque para dar uma explicao exacta e completa de qualquer fenmeno particular(como por exemplo do peso ou da elasticidade), bastam as noes de figura oude movimento. Mas os princpios fundamentais da mecnica e as leis do movimentonascem, a meu

    ver, de algo de superior, que depende mais da metafsica do que da geometriae que no se pode atingir com a imaginao, se bem que o esprito o possaconceber perfeitamente". A fora precisamente aquele superior princpiometafsico que funda as prprias leis do mecanismo. Leibniz distingue a forapassiva que constitui a massa de um corpo e a resistncia que o corpo ope penetrao e

    ao movimento, e a fora activa, a verdadeira e genuna fora, que conatusou tendncia para a aco. Esta fora activa compara-a Leibniz entelquiaaristotlica. Mas evidente que a prpria massa material, reduzida a forapassiva, j no nada de corpreo. De modo que o ltimo resultado dasindagaes fsicas de Leibniz a resoluo do mundo fsico num princpio quenada tem de

    28

    corpreo. A interpretao leibniziana do mecanismo anula o prprio mecanismo.O elemento constitutivo do mecanismo, reconhecido na fora, revela-se-lhe denatureza espiritual. O dualismo cartesiano de substncia extensa e desubstncia pensante negado e o universo totalmente interpretado em

    termos de substncia espiritual. No h verdadeiramente extenso,corporeidade, matria no universo:

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    tudo esprito e vida, porque tudo fora. Assim, para Leibniz, o mundo dafsica, embora reconhecido nas suas leis mecnicas, transforma-se num

    mundo espiritual, e, portanto, numa ordem contingente e livre.

    441. LEIBNIZ: A MNADA

    Leibniz devia portanto chegar a reconhecer que o nico o elemento ltimoque entra na composio tanto do mundo do esprito como do mundo da extenso.No Discurso de metafsica de 1686 elaborara o conceito de substncia individualreferindo-se sobretudo individualidade humana. Como se disse, a substnciaindividual o prprio princpio lgico da razo suficiente elevado a entidademetafsica, ou seja, a elemento constitutivo de uma ordem contingente e livre.Nesse escrito ( 12) Leibniz tinha, na verdade, atentado na exigncia de quetambm os corpos fsicos possuam em si mesmos uma "forma substancial" quecorrespondia substncia individual humana, mas no tinha levado mais longea sua analogia. Cerca de 1696, comea a

    introduzir a palavra e conceito de mnada. A aqui29

    sio deste termo assinala o momento em que Leibniz teve a possibilidade deestender ao mundo fsico o seu conceito de ordem contingente e unificarportanto o mundo fsico com o mundo espiritual numa ordem universal livre

    A mnada um tomo universal, uma substncia simples, sem partes, e por issoprivada de extenso e de figura, e indivisvel. Como tal, no se pode desagregare eterna; s Deus pode cri-la ou anul-la. Todas as mnadas so diferentesentre si: no h na natureza dois seres perfeitamente iguais que no sejamcaracterizados por uma diferena interior. Leibniz insiste neste princpioque ele denomina da identidade dos indiscernveis. Duas coisas no podemdiferir s local ou temporalmente, mas necessrio que exista entre elas umadiferena interna. Dois cubos iguais s existem em matemtica, no narealidade. Os seres reais diversificam-se pelas qualidades interiores; e mesmoque a diversidade deles consistisse apenas nas diferentes posies que ocupamno espao, esta diversidade de posio transformar-se-ia imediatamente numadiferena de qualidades internas e portanto deixaria de haver uma simplesdiferena extrnseca (Couturat, p. 8-10).

    Na sua individualidade irredutvel, a mnada implica tambm a mximauniversalidade. Toda a mnada constitui de facto um ponto de vista sobre omundo e por isso todo o mundo de um determinado ponto de vista. Este carcterde universalidade que no Discurso de metafsica ( 14) foi j

    30

    esclarecido pelo que respeita substncia individual humana, agora

    extensivo a todas as mnadas. Nenhuma mnada todavia comunica directamentecom as outras: ela no tem janelas atravs das quais qualquer coisa possa sairou entrar. As mutaes naturais das mnadas derivam apenas de um princpiointerno. E uma vez que todas as mutaes se do gradualmente, na mnada qualquercoisa muda e qualquer coisa permanece. H portanto nela uma

    pluralidade de estados ou de relaes, embora no haja partes. Cada um destesestados, que representa uma multiplicidade como unidade, uma percepo,termo que Leibniz distingue da apercepo ou conscincia que prpria da almaracional. O princpio interno que opera a passagem de uma percepo a outra

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    a apetio (Mon., 11-15).

    Os graus de perfeio das mnadas so determinados pelos graus das suaspercepes. H uma

    diferena fundamental entre Deus (que tambm uma mnada) e os mundos criados,pois estes representam o mundo apenas de um determinado ponto de vista,

    enquanto que Deus o representa de todos os possveis pontos de vista e nestesentido a mnada das mnadas. Mas entre Deus e as mnadas criadas, que o sopela sua natureza finita, h uma diferena ulterior e que as mnadas criadasno concebem a totalidade do universo com o mesmo grau de clareza. As percepesdas mnadas so sempre de algum modo confusas, semelhantes s que se tm quandose cai num estado de delquio ou de sono. As mnadas puras e simples so as

    31

    que possuem apenas percepes confusas deste gnero, ao passo que as mnadasdotadas de memria so as que constituem as almas dos animais e as providasde razo constituem os espritos humanos. Leibniz admite por isso, ao contrriode Descartes e dos cartesianistas, que os animais tm uma alma, se bem que

    no idntica dos homens e capaz apenas de estabelecer entre as percepesuma conCatenao que imita a razo, mas que permanece distinta dela. (Ib., 26).

    Mas tambm a matria constituda de mnadas. Ela no verdadeiramente nemsubstncia corprea nem substncia espiritual mas antes um agregado desubstncias espirituais, como um rebanho de ovelhas ou um monte de vermes.Precisamente por isso infinitamente divisvel. Mas os seus elementos ltimosnada tm de corpreo, so tomos de substncia ou pontos metafsicos, comose poderiam chamar as mnadas (Gerhardt, IV, p. 483). "Cada poro de matriapode ser concebida como um jardim de plantas ou como um lago cheio de peixes.Mas cada ramo de planta, cada membro de animal e todas as gotas dos seus humoresso ainda um jardim ou um lago do mesmo gnero" (Mon., 67). Leibniz chamaMatria segunda matria entendida deste modo, como agregado de mnadas,enquanto que chama matria prima potncia passiva (fora de inrcia ou deresistncia) que existe nas mnadas e que constitui a mnada juntamente coma potncia activa ou entelquia (Gerhardt, 111, p. 260-61). Nas mnadassuperiores,

    32

    que so os espritos ou almas humanas, a potncia passiva ou matria prima o conjunto das percepes confusas, que constituem aquilo que h depropriamente finito, isto de imperfeito, nas mnadas espirituais criadas.Leibniz observa a propsito que, de um ponto de vista rigorosamente metafsico,considerando como aco o que sucede substncia espontaneamente e a partirdo seu prprio fundo, cada substncia no faz seno agir, dado que nela tudo

    provm de si mesma depois de se ter originado em Deus e ela na realidadeno sofre a aco de nenhuma outra substncia. Mas acrescenta que,considerando como aco um exerccio de perfeio e como paixo ocontrrio, no h aco nas substncias seno quando a percepo delasse desenvolve e se torna. mais distinta; e no h paixo se no quando setorna mais confusa (Novos Ensaios,11, 21). De sorte que nas mnadas espirituais as

    percepes confusas correspondem ao que inrcia ou impenetrabilidade dasmnadas corpreas, isto , aquilo que Leibniz chama matria prima. As

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    percepes confusas indicam, diz Leibniz, a nossa

    imperfeio, as nossas afeces, a nossa dependncia para com o conjunto dascoisas externas ou da matria, enquanto a perfeio, a fora, o domnio, aliberdade e a aco da alma consistem nos

    nossos pensamentos distintos. Todavia, no fundo, os pensamentos confusos

    no so mais que uma

    multiplicidade de pensamentos em si mesmos iguais e distintos, mas topequenos que cada um separadamente no excita a nossa ateno nem dis33

    tinguvel (Gehrardt., IV, p. 574). Assim as percepes confusas soreconduzidas quelas pequenas percepes de que Leibniz se servira parajustificar a presena inata no esprito de verdade daquilo de que ele no plenamente consciente.

    O corpo dos homens e dos animais , segundo Leibniz, matria segunda, isto, agregado de mnadas. Este agregado mantido e dominado por uma mnadasuperior e que a verdadeira alma (mnada dominante.) Mas, no obstante no

    haver entre o corpo, que agregado de mnadas, e a

    alma, que a mnada dominante, diversidade substancial ou metafsica porqueentre umas e as outras

    existe apenas uma diferena nos graus de distino das respectivas percepes,Leibniz admite todavia que o corpo e a alma seguem leis independentes. Oscorpos, diz Leibniz, actuam entre si segundo leis mecnicas, ao passo que asalmas actuam segundo as leis da finalidade. E no h modo de conceber a acoda alma sobre o corpo ou do corpo sobre a alma, uma vez que no se pode explicarde nenhum modo como as variaes corpreas, isto , as leis mecnicas, fazemnascer uma

    percepo ou como da percepo pode derivar uma

    mudana de velocidade ou de direco dos corpos. Cumpre concluir, portanto,que a alma e o corpo seguem cada um as suas leis separadamente, sem que asleis corporais sejam perturbadas pelas aces da alma ou que os corposencontrem janelas para introduzir na alma o influxo deles (Gerhardt, HI, p.340-41. Surge ento o problema de entender o

    acordo da alma com o corpo.

    34

    442. LEIBNIZ: A HARMONIA PREESTABELECIDA

    Neste problema se resolve o problema mais geral da comunicao recproca entreas mnadas que constituem o universo. Todas as mnadas, de facto, soperfeitamente fechadas em si mesmas, sem janelas, isto , sem possibilidadede comunicarem directamente umas com as outras. Ao mesmo tempo cada uma estligada outra, pois cada uma

    um aspecto do mundo, isto , uma representao mais ou menos clara de todasas outras mnadas. As mnadas so como diversas vistas de uma mesma cidadee como tais se conjugam para constituir a vista total e complexa do universo,que plenamente expressa e reassumida na mnada suprema que Deus. Mas, embora

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    e os princpios lgicos em que ela assenta so inatos, mas tambm as verdadesde facto e mesmo as sensaes nascem somente do fundo das mnadas: do seu fundoobscuro, constitudo pelas pequenas percepes que se tornam gradualmente,pelo menos em parte, distintas (1b., V. p. 16). A mnada sai assim das mosde Deus completa na sua

    natureza e determinada, posto que no necessariamente, em todos os seus

    pensamentos e em todas as suas aces. Leibniz chama s mnadas fulguraescontnuas da divindade, limitadas, a cada momento, pela receptividade dacriatura, qual essencial o ser limitada.

    37

    443. LEIBNIZ: DEUS E OS PROBLEMAS DA TEODICEIA

    A filosofia de Leibniz, rematando no sistema da harmonia preestabelecida,torna-se neste ponto especulao teolgica. E em tal especulao, Leibnizacolhe os temas tradicionais da teologia, a

    comear pelas provas da existncia de Deus, que ele elabora a seu modo, e

    concluindo com um estudo dos problemas inerentes a toda a teologia: o problemada liberdade e da prodeterminao, e o problema do mal.

    Em primeiro lugar, Leibniz elabora uma das provas tradicionais da experinciade Deus, prova que ele define a posteriori. Ela a terceira entre as enumeradaspor Toms de Aquino na Summa theologica e precisamente deduzida da razo entreo possvel e o necessrio. Leibniz formula esta prova recorrendo ao princpiode razo suficiente. Deus, diz ele, a primeira razo das coisas, visto queas coisas limitadas, como so todas as que vemos e experimentamos, socontingentes e no tm em si nada que torne necessria a sua existncia. Cumpreportanto procurar a razo da existncia do mundo; e h que procur-la nasubstncia que traz em si a razo da sua existncia e que por isso necessriae eterna. Se existe s um mundo entre inmeros mundos todos igualmentepossveis e todos com uma pretenso existncia, a razo suficiente de talno pode ser seno um intelecto que tem as ideias de todos os mundos possveise uma vontade que escolhe um deles; o intelecto

    38

    e a vontade de Deus. A potncia da substncia divina torna portanto eficaza vontade (Teod., 1, 7*, Mon. 37-39). Deus ao mesmo tempo a razo suficientedo mundo que existe de facto e a razo suficiente de todos os mundos possveis.Mesmo as puras possibilidades devem de algum modo assentar em algo de realou de actual: assentam na existncia do ser necessrio, cuja essncia implicaa existncia ou a que basta ser possvel para ser

    actual. Deus deste modo no s a fonte de toda a realidade, mas tambm a

    das essncias e das verdades eternas (Mon., 43-44). Estas ltimas todaviano dependem da vontade divina, como Descartes sustentara, mas apenas dointelecto divino de que so o objecto interno. As verdades de facto, queconcernem s existncias reais, dependem pelo contrrio da vontade divina(lb., 46).

    Em segundo lugar, Leibniz elaborou o argumento ontolgico de Sto. Anselmo,utilizando o seu

    conceito de possvel. forma cartesiana do argumento ontolgico, Leibniz ope

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    que possvel deduzir a existncia (como perfeio) do conceito de um serque possua todas as perfeies, s depois que se demonstrou que o conceitodeste ser possvel (isto , privado de contradies internas) (Gerhardt,IV, p. 274 segs.). De sorte que, na realidade, aquele argumento no pode inferirda perfeio de Deus a sua existncia mas deve inferir da possibilidade deDeus a sua existncia. E esta a forma verdadeira do argumento, segundoLeibniz. "S Deus, ou o ser necessrio, tem este privilgio: que, se possvel,

    necessrio que exista.

    39

    E, visto que nada pode impedir a possibilidade daquilo que no implique algumlimite, alguma negao, portanto alguma contradio, isso s basta parareconhecer a priori a existncia de Deus" (Mon., 45). Em Deus portantopossibilidade e realidade coincidem: tal , segundo Leibniz, o significadoda necessidade da sua natureza. Desde que seja reconhecido possvel, deve serreconhecido existente; e no h dvida de que pode e deve ser reconhecidopossvel, dada a total ausncia de limitaes intrnsecas que o caracterizam.

    Os problemas da teodiceia so considerados por Leibniz luz daquela regra

    do melhor que ele considera como a norma fundamental da aco divina e porisso da ordem do mundo. Leibniz distingue em Deus uma vontade antecedente quequer o bem em si e uma vontade consequente que quer o melhor. Como efeito destavontade consequente, Deus quer aquilo que em si no bem nem mal, e at omal fsico como meio para alcanar o melhor, e permite o pecado com o mesmofim. A vontade permissiva de Deus com respeito ao pecado por conseguinteuma consequncia da sua vontade consequente, quer dizer da sua escolha domelhor. Por outros termos, Deus escolheu o melhor entre todos os mundospossveis, o que contm a mnima parte de mal. A sua vontade a causa positivadas perfeies que este mundo contm, mas no quer positivamente o pecado.Desde o momento em que o pecado faz parte da ordem do mundo, ele permite-o;mas esta vontade

    40

    permissiva no o torna responsvel por ele (Teod.,1, 25).

    Viu-se j como Leibniz no sustenta que a predeterminao divina, e aprescincia que condio dela, anulem a liberdade humana. Os motivostradicionais que por tal razo retoma, assumem

    ressonncias novas s em virtude do princpio fundamental que inspira todaa sua especulao: o de que a ordem do universo contingente e livre. Criadapor um acto livre da divindade, a ordem do universo conservada e desenvolvidapela liberdade das mnadas espirituais nas quais melhor se ,reflecte ereconhece a substncia divina. O princpio de razo suficiente, sobre o qual

    assenta a

    ordem do mundo, conduz Leibniz a ver esta ordem orientada segundo o melhor,que o fim da vontade divina e da humana. A prodeterminao divina, agindopor meio da vontade que tende para o melhor, no por isso necessitante maspropendente; e a escolha do melhor por parte das criaturas permanece livree responsvel.

    So sem dvida reais as dificuldades que Bayle, Jaquelot e outroscontemporneos, e depois deles inmeros crticos, encontraram na teologia de

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    Leibniz. Mas a teologia, se ponto de chegada da especulao de Leibniz, no toda a sua filosofia. E, indubitavelmente, o princpio inspirador da suafilosofia, como de toda a sua obra poltica, histrica, jurdica e de todaa sua vida, a liberdade da ordem universal. Leibniz procurou realizar nasua filosofia a justificao da atitude que assumiu constantemente frente aosproblemas de todo o

    41

    gnero que teve de defrontar no curso da sua vida: a atitude de quem querpromover e fundar no

    mundo humano, semelhana do que reconhece em

    todo o universo, um conjunto de actividades que livremente se encontrem, selimitem e acabem por encontrar uma pacfica coordenao.

    NOTA BIBLIOGRFICA

    436. A primeira grande edio das obras de Leibniz a Opera omnia ao cuidado

    de L. Dutens,6 vol., Genebra, 1768.-So fundamentais: Die philosophische Schriften,editados por G. J. Gerhardt, 7 vol., Berlim, 1875 (cit. no texto: Gerhardt)e Die mathematische Schrifen, ao cuidado do mesmo Gerhardt,7 vol., Berlim e Halle, 1848-63 (cit. no texto: Escritos matemticos). Sonotveis os fragmentos publicados por L. COUTURAT, Opuscules et fragmentsindits, Paris,1903 (Cit. no texto: Couturat). Obras polticas: Historisch-politische undstaatswissenschaftlichen Schrifen, ao cuidado de O. Mopp, 11 vol., Hannover,1864-84. A Academia Prussiana das Cincias iniciara a publicao completa dosescritos de Leibniz; saram seis vol. desta edio, os quais compreendem: oepistolrio geral at 1680 (Srie I, vol. 1.1-3.1): o epistol&rlo filosficoat 1685 (S5,rie II, vol. 1.o); os escritos polticos at 1685 (Srie IV, vol.l.,); parte dos escritos filosficos at 1672 (Srie VI, vol. 1.o).

    Entre as edi. parciais, so notveis: La Monadologie, ao cuidado de E.Boutroux, 13.a ed., Paris,1930; Discours de mthaphysique, ao cuidado de IL Lestienne, Paris, 1929. trad.it. da Monad. por E. Colorni, Florena, 1935 (contm tambm uma boa antologialeibniziana); Lettres de L. a Arnauld, ed.

    42

    G. Lewis, 1952; Correspondance L.-Clarke, ed. Rbinet, Paris, 1957.

    Outras trad. italianas: Nuovi Saggi, de E. Cecchi,2 vol., Bari, 1910-11; Discorso di metafisica, de G. E. Bari, 1938; Scritti

    poltici e di diritto naturale, de V. Mathieu, Turim, 1951; Saggi filosoficie jettere, de V. Mathicu, Bari, 1963.

    437. Sobre a formao de Leibniz: W. Y.ABITZ, Die philosophie des jungenL., Heide51berg, 1909.

    Sobre a actividade poltico-religiosa de Leibniz: BARUzi, L. e rorganizationreligieuse de Ia terre, Paris,1.907. Sobre a obra histrica: DAVILL. L. historien, Paris, 1909; W. CONZE,L. aIs historiker, Berlim, 1951. Sobre as relaes com Espinosa: STEIN, L.

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    und Spinoza, Berlim, 1830; G. FRIEDMANN, L. et Spinoza, Paris, 1946. Sobreas relaes com Malebranche: A. RoBINET, L. et Malebranche. Relationspersonnelles, Paris, 1955.

    Monografias fundamentais: G. E. GUMANER, G. W. Freiherr von L., 2.1 ed.,Breslvia, 1846; K. nsCHER, Gesc. der neuren Phil., IU, L. ed., Heidelberg,1920; B. Rij.SSFL, A critical exposition of the Phil. of L., Cambridge, 1900,

    1937; Cagsirer, L. s System in seinen ~senschaftlichen GrundIagen, Marburg,1902; COUTURAT, La logique de L., Paris, 1901; 1. PAPE, L., Stocearda, 1949;R. M. YOST, L. and Philosophical AnaIysis, Berkeley and Los Angeles, 1954.

    Entre os escritos italianos: CARLOTT, Il sistema di L., Messina, 1923; OLGIATI,Il significato storico di L.,1929; BARIR, La spiritualit dellIessere e L., Pdua,1933; DEL BoCA, Finalismo e necessit in L., Morena,1936; GALIMBERTI, L., Contro Spinoza, Benevagienna,1941, G. GALLI, Studi sulla fi7. di L., Pdua, 1948; A. CORSANo, L., Npoles,1952, G. PRETI, 11 cristianosimo universale di L., Milo, 1953.

    440. Sobr.- as relaes entre matemtica e

    filosofia; MOHNKE; Leibnizens Synthese von Universalmathematik undIndividualmetaphysic, Halle, 1925.

    43

    VIII

    VICO

    444. VICO: VIDA E OBRA

    Depois de Leibniz, Vico representa a segunda grande afirmao da razoproblemtica no mundo moderno. Leibniz explicara e interpretara em termos derazo problemtica toda a realidade fsica e metafsica; Vico interpreta emtermos de razo problemtica o mundo da histria. As personalidades e asdoutrinas dos dois filsofos so diferentes e independentes uma da outra, masa inspirao fundamental delas comum e as obras de ambos so complementares,de modo que se torna historicamente significante a sua vizinhana cronolgica.

    Joo Baptista Vico nasceu em Npoles a 24 de Junho de 1668. Estudou filosofiaescolstica e direito. Durante nove anos (1689-95) foi preceptor dos filhosdo marqus Rocca no castelo de Vatolla

    45

    no Cilento, onde, utilizando a rica biblioteca do marqus, adquiriu a maior

    parte da sua cultura. Regressado a Npoles em 1699, obtm a cadeira de retricanaquela universidade; mas em seguida (1723) aspirou debalde a obter uma ctedrade jurisprudncia, que teria melhorado muito a sua situao e teria sido maisconsoante com a natureza dos seus estudos. Viveu assim uma vida pobre e

    obscura entre as restries financeiras e o ambiente familiar, pouco propcioao recolhimento e ao estudo. Assente em 1720 a primeira ideia da sua

    obra fundamental nela trabalhou tenazmente at morte, fazendo-lheincessantemente correces e

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    acrescentos. Teve, durante a sua vida, escassos e raros reconhecimentos; aoriginalidade e complexidade do seu pensamento em relao cultura italianado seu tempo, a pesada e catica erudio com que sobrecarregou a sua obra,fizeram que s numa poca relativamente recente lhe fosse conferido o lugarque lhe est reservado na

    histria do pensamento. Morreu em Npoles a 23 de Janeiro de 1744.

    Com o seu ensino se prendem as cinco Oraes inaugurais, das quais a maisimportante a intitulada De nostri temporis studiorum ratione de 1708. Em1710 prepara-se para dar expresso sistemtica ao

    seu pensamento numa obra intitulada De antiquissima Italorum sap@*entia exfinguae latinae originibus eruenda. Esta obra que devia resultar de trslivros, respectivamente dedicados metafsica, fsica e moral, resultoude facto apenas do primeiro porque os outros no chegaram a ser escritos. NelaVico

    46

    procura remontar, atravs da histria de algumas palavras latinas, sdoutrinas dos primeiros povos itlicos (os Jnios e os Etruscos), povos estesque transmitiram essas palavras lngua latina. E apresenta por isso a suametafsica como a verdadeira metafsica daquelas antiqussimas populaesitlicas. A um artigo crtico aparecido no "Giornale dei letterati", Vicoresponde com um opsculo polmico intitulado Risposta al giornale deiletterati (1711); e resposta do jornal replicou com umaSeconda risposta (1712). Em 1716 Vico publicou uma obra histrica De rebusgestis Antonii Caraphei, escrita a pedido do duque Adriano Carafa. E em 1720deu estampa o escrito que a primeira formulao das ideias da cincia nova:De uno universi juris principio et fine uno, qual fez seguir De constantiajurisprudentis. Em 1725 publicava a primeira edio da sua obra fundamentalPrincipi di una scienza nuova intorno alla comune natura dele nazioni e aAutobiografia. Em seguida reescrevia inteiramente a Cincia Nova (1730) edesta segunda edio no difere substancialmente a outra que viu a luz em 1744,alguns meses depois da sua morte.

    445. VICO

    ENTRE OS SCULOS XVII E XVIII O ponto de partida explcito de Vico a crticada filosofia cartesiana; mas, na realidade, a obra de Vico encontra as suasrazes na cultura filosfica do sculo XVII, que ele conheceu atravs das

    47

    derivaes e discusses que suscitava no ambiente napolitano do seu tempo.

    Na Autobiografia, Vico indicava os quatro grandes autores que inspiraram oseu pensamento. Em primeiro lugar, Plato e

    Tcito porque "com uma mente metafsica incomparvel, Tcito contempla o homemtal qual como , Plato tal qual deve sem, de modo que ambos lhe deram a primeiraideia de uma "histria ideal eterna de acordo com a qual decorresse a histriauniversal de todos os tempos". Depois, Francisco Bacon que lhe teria dado aideia da complexidade e riqueza do universo cultural e da exigncia dedescobrir as leis deste universo. E enfim Grcio, que o levara a compreenderas leis desse mundo dos homens que permanecera estranho a Bacon. Mas estes

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    quatro autores constituem sobretudo pontos de referncia simtrica do quadroda filosofia de Vico na sua plena maturidade, nada dizem sobre as fontes queinspiraram os traos caractersticos desta filosofia ou que contriburam paraos formar. Ora precisamente por estes traos que a obra de Vico se liga cultura filosfica do sculo XVII. O conceito de uma razo experimentadorae problemtica cujo domnio seja o provvel e no s o necessrio encontrava-seem Gassendi ( 417) e encontrou a sua codificao na obra de Locke. A

    contraposio do engenho, como faculdade inventiva, lgica um temahumanstico renascentista vivssimo no sculo XVII e que se pode reencontrarnos prprios pensadores de Port-Royal. A identidade do verdadeiro e do factocomo critrio do conhecimento autntico uma noo

    48

    extrada de Hobbes ( 405), que, por sua vez, a tinha provavelmente extradode Gassendi. A metafsica de De antiquissima, que Vico refere a Zeno de Eleia,inspira-se em certas formas do neoplatonismo do sculo XV11; e a noo de Deuscomo

    motor da mente humana, que surge repetidas vezes

    na mesma obra, claramente extrada de Malebranche.

    Por outro lado, embora imerso na cultura do sculo XVII, Vico chega a algunsresultados fundamentais que o ligam ao sculo seguinte. Ele no tem decertonada da audcia inovadora dos iluministas. O seu pensamento poltico-religiosoest ancorado no passado e apresenta-se com um intento declaradamenteconservador. A mesma caracterstica teortica da sua filosofia que quer o

    certo, isto , o peso da autoridade da tradio, mostra-nos que nele h a buscade um equilbrio que estranho ao pensamento iluminista. Mas liga-o todaviaa este pensamento em primeiro lugar o

    carcter limitativo da sua gnoseologia, e a prpria polmica contra a razocartesiana, que recusava ou parecia recusar toda a limitao, um temafundamental do iluminismo. A reconduo da poesia o do mito esfera dasemoes; a declarada irredutibilidade desta esfera do pensamento, a

    importncia dela na determinao dos caracteres humanos e das formas docostume, so elementos de doutrina que, no sculo XVII, por obra dosiluministas, deviam levar ao reconhecimento do sentimento como forma autnomada vida espiritual

    49

    e do gosto como critrio de juzo dos objectos inerentes a esta forma.

    Finalmente, o conceito da histria de Vico, como curso progressivo de eventosque conduz, ou

    deve conduzir, "razo completamente esclarecida", liga-se estreitamente concepo histrica do iluminismo, se bem que Vico, diversamente deste, norenuncie linguagem teolgica.

    446. VICO: O VERDADEIRO E O FALSO

    O ponto de partida de Vico a polmica contra Descartes. Descartes tinha a

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    pretenso de reduzir todo o conhecimento evidncia racional, isto , razonecessria ou geomtrica. Vico considera tal pretenso impossvel. H certezashumanas fundamentais que no se deixam reconduzir evidncia e demonstrao.Descartes resolve todas ascertezas vlidas na necessidade da razo geomtrica. Vico defende a autonomiae a validez do certo frente ao verdadeiro.

    E, de facto, manifestaes humanas fundamentais como a retrica, a poesia,a histria e a prpria prudncia que rege a vida, no se fundam nas verdadesgeomtricas, mas s no verosmil. O verosmil a verdade problemtica, aquiloque est no meio entre o verdadeiro e o falso: o mais das vezes verdadeiro,excepcionalmente falso: mas

    a sua caracterstica que no implica uma garantia infalvel de verdade (Denostri temp., 3). Esta problematicidade faz do verosmil a verdade

    50

    humana por excelncia. Ser um vo empreendimento querer introduzir medianteo mtodo geomtrico uma garantia infalvel de verdade no domnio dos

    conhecimentos respeitantes ao

    homem. Afora os nmeros e as medidas, diz Vico, todas as outras matrias soinsusceptveis de mtodo geomtrico. O prprio pedantismo do mtodo que,quando aplicado no seu domnio particular, opera sem se fazer sentir,demonstra a sua ineficincia. Conhecer clara e distintamente mais vcio doque virtude do intelecto humano quando se passa do campo das matemticas parao campo da metafsica (Prima risp. al Giorn. dei Lett., 3). O fundamentodesta ltima o provvel. Porque a filosofia nunca serviu seno para fazeras naes "geis, vigilantes, capazes, agudas e reflexivas, onde os homensfossem nas aces dceis, pontos, magnnimos, engenhosos e avisados"; e istono o pode ela conseguir se no se valer do provvel, que o fundamento "detodas as artes e disciplinas do honesto, do cmodo e do prazer humano". Porisso o "apangio dos filsofos" o provvel, como o dos matemticos overdadeiro; e o ter querido inverter esta obra e

    reconduzir a filosofia verdade demonstrativa das matemticas foi s causade dvida e de desordem (Seconda risp. al Giorn. dei Lett., 4). razocartesiana, rgo da verdade demonstrativa, contraps Vico o engenho, que a faculdade de descobrir o novo; e crtica, a nova arte cartesiana fundadana razo, contrape Vico a tpica, que a arte que disciplina e dirige oprocedimento inventivo do

    51

    engenho. O engenho tem tanto mais fora produtiva e inventiva em relao razo quanto menos capacidade demonstrativa e certeza apodctica possui

    relativamente a ela (De ratione, 5; De antiquissiina, 4).

    A exposio da gnoseologia no De antiquissima assenta inteiramente na antteseentre conhecimento divino e conhecimento humano. A Deus pertence o entender(intelligere) que o conhecimento perfeito de todos os elementos queconstituem o objecto. Ao homem pertence o pensar (cogitare), o ir recolhendofora de si alguns dos elementos constitutivos do objecto. A razo, que orgo do entender, pertence verdadeiramente a Deus; o homem apenas participedela. Deus e o homem s podem conhecer com verdade aquilo que fazem: porqueas palavras verum e factum tm em latim o mesmo significado. Mas o fazer de

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    Deus criao de um objecto real; o fazer humano criao de um objectofictcio, que o homem engendra recolhendo do mundo, @por meio da abstraco,os elementos do seu conhecer. Em Deus as coisas vivem, no homem perecem (Deantiq., 1, 1). O conhecimento humano nasce assim de um defeito da mente humana,isto , do facto de que ela no contm em si os elementos de que as coisasprocedem e no os contm porque as coisas esto fora dela. Este defeitoconverte-se todavia em vantagem, pois o homem procura mediante a abstraco

    os elementos das coisas que originariamente no possui e dos quais depois se

    serve para reconstruir as prprias coisas em imagem.

    O princpio de que o verdadeiro e o facto se

    52

    identificam e que se pode conhecer tanto quanto se

    faz, portanto um princpio que, segundo Vico, restringe o conhecimento humanoa Emites assaz estreitos. O homem no pode conhecer o mundo da natureza que,sendo criado por Deus, s pode ser objecto do conhecimento divino. Pode

    conhecer, pelo contrrio, com verdade o mundo da matemtica, que um mundode abstraces por ele prprio criado. O homem nem sequer pode conhecer o seu

    prprio ser, a sua prpria realidade metafsica.O erro de Descartes est em t-lo considerado possvel. O cogito a conscinciado prprio ser, no a

    cincia dele. A conscincia pode tambm pertencer ao ignorante: a cincia o conhecimento verdadeiro fundado nas causas. Ora, o homem no conhece a causado seu prprio ser porque ele prprio no essa causa: ele no se cria a simesmo. O cogito cartesiano seria princpio de cincia s no caso em

    que o meu pensamento fosse a causa da minha existncia: o que no , vistoque eu sou composto de esprito e corpo e o pensamento no causa do corpo.E nem sequer causa da mente. Se eu fosse apenas corpo, no pensaria; se fosseapenas mente, tambm no pensaria porque teria, como Deus, a inteligncia:a unio do corpo e da mente portanto a causa do pensamento. E o pensamento apenas um sinal e no a causa do facto de que eu

    sou mente (lb., 1, 3). Descartes quis por outros termos erigir em verdaderacional e em princpio de todas as outras verdades um puro facto de conscinciano susceptvel de ser transformado em verdade. O intuito que move Vico nestacrtica

    53

    negativo e limitativo: tende a restringir o conhecimento humano aos limites

    que lhe so prprios e a reconhecer-lhes aquela validez que em tais limiteslhe cabe. Por isso Vico observa que Descartes deveria ter dito no j "eu penso,logo sou", mas

    "eu penso, logo existo 1". A existncia o modo de ser prprio da criatura:significa estar a ou ter surgido ou estar sobre e supe a substncia, isto, tudo o que a sustm e encerra a sua essncia (Prinia @isp. al Giorn. deiLett., 3). Entre o conhecimento do homem e o conhecimento de Deus h portantoo mesmo desvio que entre a existncia e a substncia que a rege.

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    447. VICO: A NOVA CINCIA

    Reconduzida pelo princpio da identidade do verdadeiro e do real aos seuslimites prprios, o conhecimento humano revela-se capaz de investigaruma certa ordem de realidade e incapaz frente a

    outras ordens. Ele impotente ante o mundo da natureza e ante o prprio

    homem como parte deste mundo, porque a natureza obra divina. Mas est-lheaberto o mundo das criaes humanas. Em De antiquissinw Vico restringira omundo da criao humana s abstraces da matemtica, apresentando

    1 Uma vez que esta a traduo corrente do clebre Bilogismo cartesiano, aobservao de Vico parece no ter sentido em portugus. O leitor no entantorestituir imediatamente esse sentido abstraindo dessa evidncia curiosa. (N.do T.).

    54

    uma tese j exposta por Hobbes no De homine (1658). Mas na Cincia nova elereconhece como objecto prprio do conhecimento humano, enquanto obra humana,

    o mundo da histria. No mundo da histria o homem no substncia fsica emetafsica, mas produto e criao da sua prpria aco, de modo que este mundo o mundo humano por excelncia, aquele que decerto foi feito pelos homense cujos princpios eles podem e devem procurar no

    prprio homem.

    Mas considerada a esta luz a histria no uma desligada sucesso de eventos:deve ter em si uma ordem fundamental, qual o desenrolar dos acontecimentostende ou aponta como ao seu significado final. A tentativa que o homem temvisto sempre frustrar-se, a de descobrir a ordem e as leis da natureza, spode ser efectuada com xito no mundo da histria, uma vez que s este verdadeiramente obra humana. Vico quer ser o Bacon do mundo da histria eefectuar relativamente a este mundo a obra que Bacon realizara com respeitoao mundo da natureza. A cincia nova de Vico nova precisamente no sentidoem que instaura uma indagao do mundo histrico que tem por objecto revelara ordem e as leis deste mundo. Mas nova apenas como reflexo sobre a histria,visto que a reflexo nasce apenas de um certo ponto e um post factumrelativamente histria. Num outro sentido, ela antiqussima e nasceu como homem e com a sua vida social "As doutrinas, diz Vico (S. N., degn.,106) devem comear a partir do momento em que comeam as matrias de quetratam." Ela comeou

    55

    de facto a partir do momento em que os homens comearam a pensar humanamente,e no quando os filsofos comearam a reflectir sobre as ideias humanas (1b.,

    p. 186). Como humano pensar, a

    cincia que Vico chamou nova a sabedoria originria da qual derivam todasas cincias e artes que formam a humanidade e o homem mesmo no prprio serdo homem. (lb., p. 198). Nesse sentido, acompanha ela toda a histria humanae constitui-a essencialmente: de sorte que se verifica nela do modo maisrigoroso a identidade do verdadeiro e do real: o prprio homem, que pensaa histria, que a faz. As fases da histria so intrinsecamente caracterizadaspela menor ou maior clareza daquele humano pensar que a acompanha e que passaa constituir as suas manifestaes mais salientes: os

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    costumes e o direito, o governo, a lngua, etc.

    448. VICO: A Histria IDEAL ETERNA

    O ponto de partida da histria e da meditao histrica de Vico a situaooriginria do homem: "0 homem desesperado de todos os socorros da natureza,

    deseja uma coisa superior que o venha salvar" (S. N., p. 182). Vico assumeassim o ponto de partida do pensamento religioso. De superior natureza eao homem s existe Deus. O homem tendo por isso a sair do seu estado de quedapara s-. dirigir para uma ordem divina: ele efectua um conato, um esforo,para se subtrair desordem dos impulsos primitivos. Ora a filosofia deve aju56

    d-lo neste esforo mostrando-lhe como ele deve ser: indicando-lhe como metaa "repblica. de Plato" e impedindo-o de cair na "degradao de Rmulo", isto, no estado bestial. Vico indicou assim o marco inicial e o marco final daexistncia histrica do homem.

    Ao considerar o termo final, a cincia da histria surge a Vico como "teologiacivil e racional da providncia divina", isto , a demonstrao de uma

    ordem providencial que vai actuando na sociedade humana medida que o homemse subtrai sua queda e sua misria primitiva. A histria move-se

    no tempo, mas tende a uma ordem que universal e eterna. Os homens deixamde ser movidos pelos seus impulsos primitivos para buscarem as suas

    convenincias particulares; mas mesmo sem o pretenderem explicitamente ou atcontra a sua vontade, a "grande cidade do gnero humano" vai-se definindo comometa geral da histria. A grande cidade do gnero humano a comunidade humanana sua ordem ideal, aquilo que a vida associada do homem deve ser na suarealizao final. luz dela a sucesso temporal adquire o seu verdadeirosignificado. Ao mero reconhecimento do facto substitui-se a valorizao; aofoi, , ser sucede-se o devia, deve, dever; sucede-se a necessidade idealpela qual, entre as muitas direces que o curso cronolgico dos factos podiaassumir, uma s a que ele devia assumir para realizar a ordem da comunidadeideal. s uma, na srie dos possveis, a alternativa que deve verificar-se(1b., p. 185). Mas esta necessidade ideal no uma necessidade de facto queanule

    57

    a possibilidade das outras alternativas. A histria ideal eterna, que a ordeme o significado universal da histria, no se identifica nunca com a histriano tempo. Esta decorre segundo aquela. "Segundo a histria ideal eterna, dizVico, decorrem no tempo as histrias de todas as naes nos seus surtos,progressos, estados, decadncias e fins". Ela a substncia que rege a

    histria temporal, a norma que permite ajuizar. Neste sentido o dever serda histria no tempo; mas um dever ser que no anula a problematicidade detal histria, a qual pode tambm no adequar-se a ela e no alcanar o termoque ela indica.

    Isto quer dizer que a histria ideal eterna transcendente relativamente histria particular das naes. Esta transcendncia no exclui a relao,antes a implica; mas trata-se da relao entre a condio e o condicionado,entre o dever ser e o ser,

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    entre a norma e aquilo que se deve erigir em norma.

    Por isso Vico reconhece o antecedente do seu pensamento na obra de Plato.A repblica platnica a norma para a constituio de um estado ideal, otermo final a que a histria deve tender. Vico exproba a Plato o ter ignoradoo estado de queda dos homens e o "ter elevado as brbaras e rudes origens dahumanidade pag ao estado perfeito das suas sublimes cogitaes". Reprova,

    assim, a Plato o ter fixado a sua ateno na meta final da histria humana,no seu trmino transcendente, e no j no seu ponto inicial, na realidade defacto da qual ela parte. Por isso pretende aliar o ensinamento de Plato aode Tcito e pode considerar todo o

    58

    desenvolvimento ideal da histria como o projecto que vai da humanidade decadae dispersa humanidade restituda ordem da "razo inteiramenteesclarecida".

    Pondo o vinho novo em velhas pipas, Vico descreve este curso progressivovalendo-se da velha ideia de uma sucesso de idades e fala de uma idade dos

    deuses, de uma idade dos heris e de uma idade dos homens. Vico atribui estadiviso das idades humanas ao erudito romano Marco Terncio Varro, que a teriaexposto na sua grande obra Rerum divinarum et humanarum libri, que se perdeu;na realidade, porm, foi exposta pela primeira vez por Plato no Crtias (109b segs.), que reduzira assim a diviso das cinco idades estabelecidas porHesodo. Em Vico, todavia, este velho conceito apresenta-se com o sinal mudado:para os antigos a sucesso das idades constitua a ordem da decadncia ou doregresso, estando a perfeio no princpio; para Vico, essa sucesso umaordem progressiva. Alm disso, a diferena entre as diversas idades no temum fundamento histrico-mtico, como para os antigos, mas sim antropolgico:cada idade marcada, segundo Vico, pela prevalncia de uma particularfaculdade humana sobre as outras. Neste sentido, a cincia nova, como doutrinada histria ideal eterna, considerada tambm por Vico como "uma histriadas ideias humanas sobre a qual parece haver de prosseguir a metafisica damente humana": ela vem a ser a determinao do desenvolvimento intelectualhumano desde as rudes origens at "razo inteiramente esclarecida" e, incluiuma

    59

    "crtica filosfica" que mostra a origem das ideias humanas e a sua sucesso.

    Este um dos pontos-chave da doutrina de Vico. De facto, a histria no tempopode correr sobre a linha da histria ideal porque tem em si, como fundamentoe norma de todas as suas fases, uma relao com ela: com a totalidade delae no apenas com aquela parte que se refere ou corresponde fase em acto.Por isso, seja qual for a fase de desenvolvimento da histria temporal, seja

    a divina da humanidade rude e bestial, seja a herica, seja a humana da reflexointeiramente esclarecida, o que impede a imobilidade, a disperso e a morteda comunidade humana a relao com a ordem total da histria eterna. Histriaque, precisamente por ser

    eterna, no tem partes no se distribui na sucesso cronolgica de um modotal que a um perodo desta sucesso corresponda uma fase s dela. Ela umaordem transcendente, uma norma divina, que sustm o homem desde osprimeiros passos incertos da sua vida temporal. O que constitui a

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    diferena entre as vrias fases desta vida temporal portanto apenas amodalidade da relao, ou seja, a forma espiritual por que o homem se apercebedela. E a este propsito Vico estabelece o seu aforismo fundamental: "Os homensprimeiro sentem sem se aperceberem, depois apercebem-se com

    nimo conturbado e comovido, finalmente reflectem com a mente pura". De sorteque os homens comeam por se dar conta daquela histria ideal eterna, que

    a norma e o dever ser da sua histria, sob a forma de um obscuro sentir; tm,assim, um con60

    fuso pressentimento dela e s por ltimo chegam a pens-la distintamente.

    449. VICO: AS TRS IDADES

    DA HISTORIA E A SABEDORIA POTICA

    O que provocou a sada do homem do estado bestial e portanto o incio da vidacivilizada e da histria o obscuro sentimento da ordem providencial dahistria eterna. A sabedoria primitiva dos homens no tem nada de racional,no tem a clareza da verdade demonstrada: uma simples certeza obtida sem

    nenhuma reflexo. um juzo comummente sentido por toda uma ordem, por todoum

    povo, por toda uma nao ou por todo o gnero humano, juzo que o senso comumdas naes (S. N., 12). Antes que a ordem providencial resplandecesseclaramente como verdade na reflexo dos filsofos, ela foi uma certeza humana,testemunhada pelo senso comum e garantida pela autoridade. Assim a cincianova tambm uma filosofia da autoridade, a qual esclarece a conscincia queo

    homem tem da ordem providencial antes de alcanar a cincia dela. Comofilosofia da autoridade, a

    cincia nova no pode prescindir do auxlio da filologia, que precisamentea considerao da autoridade e da cincia do certo (lb., 10). Reconhecido osenso comum como guia da existncia social anteriormente ao nascimento dareflexo filosfica, deve admitir-se que o que julgado justo por todos

    61

    ou pela maioria dos homens deve ser a regra da vida social. Este critrio valecomo um limite s pretenses da reflexo filosfica, da filosofia em

    sentido estrito. Estes devem ser, adverte Vico (1b., p. 191-192), os confinsda razo humana. "E quem queira fugir a eles, veja se no foge a toda ahumanidade".

    A primitiva sabedoria do gnero humano foi uma sabedoria potica. Os homensque fundaram a sociedade humana eram "estpidos, insensatos e

    horrveis bichos" sem nenhum poder de reflexo, mas dotados de fortes sentidose de robustssima fantasia. Eles imaginaram e sentiram nas foras naturaisque os ameaavam divindades terrveis e

    punidoras, por temor das quais comearam a

    refrear os impulsos bestiais, criando as famlias e as primeiras disposies

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    civis. Constituram-se assim as repblicas monsticas, como Vico lheschama, dominadas pela potestade paterna e fundadas no temor de Deus. Foi estaa idade dos deuses. Iniciada a vida das cidades, as repblicas passaram a serdominadas pela classe aristocrtica, que cultivava as virtudes hericas daPiedade, da prudncia, da temperana, da bravura e da magnanimidade. Os homensainda faziam derivar a sua nobreza de Deus, a fantasia prevalecia ainda sobrea reflexo. esta a idade herica. Em seguida, da metafsica sentida ou

    fantasiada passa-se metafsica reflectida. A relao com a ordemprovidencial da histria eterna assume a forma da reflexo, que visa a buscara ideia do bem que deve servir de base a um acordo entre todos os homens. a

    62

    fase em que nasce a filosofia platnica, empenhada em encontrar no mundo dasideias a conciliao dos interesses privados e o critrio de uma justia comum(lb., p. 949, 1042-43). A filosofia nasce

    assim na idade dos homens e a ltima e mais madura manifestao daquelasabedoria originria, daquele humano pensar, daquela metafsica natural que

    a estrutura mesma da existncia histrica. evidente que para Vico a histriaideal no um modelo que as comunidades humanas adoptam para todo o sempre,piorando-o, mas sim uma ordem que se revela na sua clareza medida que asprprias comunidades evoluem e cuja revelao antes a norma do seudesenvolvimento. Por isso as anlises de Vico no versam nem sobre a histriaideal eterna, nem sobre a histria no tempo, consideradas separadamente, massobre a relao entre uma e outra, visto que na relao apenas a primeira serevela e vale como ordem providencial e a

    segunda se afirma e realiza como histria propriamente humana.

    Vico deu a mxima extenso na Cincia Nova ao estudo da sabedoria potica,que o produto da sensibilidade e da fantasia dos homens primitivos. Eleafirmou a independncia da sabedoria potica em relao reflexo, isto , razo ou ao

    intelecto. Visto ser a sua base a fantasia, a sabedoria potica essencialmente poesia: poesia divina porque o transcendente, visto atravsda fantasia, toma corpo em todas as coisas e em toda a parte faz ver a divindade.Poesia que criao, e criao sublime, porque perturbadora em excesso,e, por conse-63

    guinte, fonte de emoes violentas; mas criao de imagens corpreas, no comoa divina, de coisas reais. Elemento primeiro e fundamental de tal criao a linguagem que nada tem de arbitrrio porque nasceu naturalmente daexigncia que tm os

    homens de se entenderem entre si: exigncia que primeiro se satisfaz com"actos mudos", isto , com gestos, depois com objectos simblicos, depois comsons, e, finalmente, com palavras articuladas. A poesia exprime portanto anatureza do primitivo mundo humano. Ela no "sabedoria restabelecida", nocontm verdades intelectuais revestidas ou camufladas por imagens, uma vezque um modo primitivo, sim, mas autnomo, de entender a verdade, detestemunhar o transcendente. Ela procura entender a realidade dando vida esentido s coisas inanimadas, procura testemunhar o transcendente escolhendocomo matria prpria o "impossvel crvel" e cantando os prodgios e as magias;

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    procura reportar-se ordem providencial "representando o verdadeiro na suaideia ptima" e assim supondo completa aquela justia, que nem sempre ahistria realiza, por obra de uma divindade que atribui prmios ou castigossegundo os mritos.

    Assim Vico reconheceu o valor autnomo da poesia e a sua independncia emrelao a toda actividade intelectual ou raciocinante. Esta tese devia

    revelar-se fecunda com o desenvolvimento do pensamento esttico setecentistaque a far sua. Na maior poesia de todos os tempos, a de Homero, viu Vico aobra annima e colectiva do povo grego na idade herica, quando todos os homenseram

    64

    poetas pela robustez da sua fantasia e exprimiam nos mitos e nos contosfabulosos as verdades que eram incapazes de pr a claro pela reflexofilosfica. Mas a poesia extingue-se e decai, segundo Vico, medida que areflexo prevalece nos homens, porquanto a fantasia, que lhe d origem, tantomais robusta quanto mais dbil o raciocnio e os homens se afastam daquiloque sensvel e

    corpreo medida que se tornam capazes de formular conceitos universais. Istoacontece tanto no desenvolvimento do homem particular como na

    histria da humanidade. Dante, que criou a maior poesia da nao italiana,pertence, ele tambm a

    uma poca de barbrie e precisamente de "barbrie restabelecida", como o foia Idade Mdia.

    Mas para Vico a sabedoria potica no seno um modo de testemunhar, emborade uma forma obscura e fantstica, aquela ordem providencial, aquela histriaideal eterna, que a norma da existncia histrica. A reflexo filosficatransforma o modo de testemunhar aquela ordem: f-lo resplandecer como verdaderacional e com isso torna-o objecto de filosofia. Mas a filosofia no podesuplantar por completo a religio porque as suas mximas racionais sobre avirtude tm bastante menor eficcia sobre o homem do que a religio, a qualfaz sentir imediatamente ao homem a realidade da ordem eterna e o empenho emagir em conformidade com ela. "As religies, diz Vico, s o so verdadeiramentequando mediante elas os povos realizam obras virtuosas por meio dos sentidos,os

    quais eficazmente levam os homens a agir.

    65

    450. VICO: A Providncia

    O "primeiro princpio incontestado" da cincia nova o de que os homens apenascriaram o mundo das naes. Por outro lado, este mundo no se

    pode entender seno em relao ordem providencial, histria ideal eterna.Vico chama monsticos ou solitrios os filsofos que tornam impossvelentender o mundo da Histria. Tais so Epicuro, Hobbes e Maquiavel, segundoos quais as

    aces humanas se verificam ao acaso; e tais so os Esticos e Espinosa que

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    admitem o facto. Tanto* acaso como o facto tornam impossvel a Histria:

    * acaso exclui a ordem, o facto a liberdade. A ordem providencial garante,segundo Vico, uma

    e outra coisa. O mundo das naes, diz ele, "saiu de uma mente amide diferente,

    por vezes totalmente contrria e sempre superior a esses fins particularesque esses homens se tinham proposto; * esses fins restritos, tornados meiospara servirem * fins mais amplos, sempre os empregou para conservar a geraohumana nesta terra" (S. N., p. 1048). Assim, do impulso da libido nasceramos matrimnios e as famlias; da ambio imoderada dos chefes nasceram ascidades; do abuso da liberdade dos nobres para com os plebeus nasceram as leise a liberdade popular. A providncia dirige para os fins da conservao e dajustia da sociedade humana as

    aces e os impulsos aparentemente mais ruinosos.

    Mas a aco d providncia no uma interveno externa, com vista a corrigirmiraculosamente as aberraes e os erros dos homens. Se

    66

    assim fosse, o nico verdadeiro agente da histria seria a providncia, isto, Deus mesmo, no o

    homem. A doutrina de Vico exclui decerto que a

    histria ideal com a sua ordem providencial seja transcendenterelativamente histria temporal no

    sentido de lhe ser externa e estranha e de a dirigir de fora. Por outro lado,exclui igualmente, que a

    histria ideal eterna seja imanente histria temporal humana e que a ordemdesta seja garantida em todos casos por aquela. Se assim fosse, o curso

    dos acontecimentos humanos deveria necessariamente modelar-se pela sucessoideal das idades; e uma

    vez mais, a nica verdadeira protagonista da histria humana seria aprovidncia divina. Tal providncia no pode pois ser entendida como umanecessidade racional intrnseca aos acontecimentos histricos, como uma razoimpessoal que age em

    cada homem, promovendo as suas aces. Neste caso, o reproduzir-se da histriaideal eterna na

    histria particular de cada nao seria necessrio e uniforme; nenhumahistria particular poderia afastar-se de uma linha da sucesso providencialdas idades que prpria daquela. O prprio Vico condenou tal hiptese: ela o facto racional dos Esticos e de Espinosa. Na realidade, se Vico negoua transcendncia como miraculosa interveno da providncia nos eventoshistricos, afirmou e defendeu todavia a transcendncia no sentido em que osignificado ltimo da histria (a sua substncia e a sua norma) estcontinuamente para alm dos eventos particulares, de que os homens so osautores. A providncia transcendente como substanciali67

  • 8/9/2019 Nicola Abbagnano - Histria Da Filosofia Vol. 7

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    dade de valores que sustm os eventos no seu curso ordenado, portanto comonorma ideal a que o curso dos acontecimentos nunca se adequa perfeitamente.Mas a providncia transcendente todavia presente ao homem, que s pelarelao com

    ela logra subtrair-se sua queda, fundar o mundo da Histria e conserv-lo.

    E presente ao homem

    primeiro sob a forma da sabedoria potica, isto , de um obscuro mas certeiropressentimento, depois sob a forma da sabedoria reflexa, isto , da verdaderacional e filosfica. Mas quer como sabedoria potica, quer como sabedoriareflexa, a sabedoria humana essencialmente religiosa, porque se

    refere a uma ordem transcendente e divina; e assim se explica a apaixonadadefesa que, na concluso da Cincia nova, Vico faz da funo civil da religio.Se enquanto tem por objecto a transcendncia da ordem providencial, a cincianova uma "teologia civil e racional da providncia divina", enquanto tempor objecto a presena normativa daquela ordem na histria humana, ela uma"histria das ideias humanas, atravs da qual parece dever prosseguir a

    metafsica da mente humana."

    451. VICO: A PROBLEMATICIDADE DA Histria

    A doutrina de Vico da relao entre a histria ,ideal eterna e a histriatemporal e a dos recursos so imediatos corolrios, do seu conceito deprovidncia.

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    A presena da ordem providencial na conscincia dos homens serve para dirigiresta conscincia mas no a determina. Os homens permanecem livres emboraconhecendo, obscura ou claramente, o termo para que se dirige o devir da suahistria. Por isso a histria temporal de cada nao pode tambm no seguiro curso normal da histria ideal. E Vico admite que existem naes que seficaram pela idade brbara, outras que pararam na herica, no alcanando nuncao seu desenvolvimento completo; e at no mundo do seu tempo, que, segundo eleafirma, atingira a sua completude, assinala a

    existncia de naes brbaras ou precariamente, civilizadas, o que quer dizerque a humanidade se ficou aqui e ali nos seus estdios primitivos. Emcompensao, a histria doutros povos chegou de golpe idade ltima, comosucedeu Amrica, pela descoberta que dela fez a Europa. S os

    Romanos "caminharam com justos passos, deixando-se regular pela Providncia"e tiveram todos os trs estdios segundo a sua ordem natural.

    Nem mesmo o refluxo da histria, isto , o voltar a um perodo anterior, necessrio. Atingido o estdio perfeito, a ameaa