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Tradução de Clóvis Marques 2ª edição Rio de Janeiro 2016

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Page 1: New Introdução · 2020. 3. 3. · Introdução O mercado e a moral Há coisas que o dinheiro não compra, mas, atualmente, não muitas. Hoje, quase tudo está à venda. Alguns exemplos:

TraduçãodeClóvisMarques

2ªedição

RiodeJaneiro2016

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Introdução

Omercadoeamoral

Hácoisasqueodinheironãocompra,mas,atualmente,nãomuitas.Hoje,quasetudoestáàvenda.Algunsexemplos:

Upgradena cela carcerária: US$ 82 por noite. Em Santa Ana, Califórnia, e algumasoutras cidades, os infratores não violentos podempagar por acomodaçõesmelhores—umacelalimpaetranquilanaprisão,longedascelasdosprisioneirosnãopagantes.1Acessoàspistasdetransportesolidário:US$8nashorasdorush.Paratentardiminuirocongestionamento do trânsito, Minneapolis e outras cidades estão permitindo quemotoristasdesacompanhadosusemaspistasreservadasaotransportesolidário,ataxasquevariamdeacordocomaintensidadedotráfego.2Barrigadealuguel indiana:US$6.250.Os casais ocidentais embuscadeumamãedealuguelrecorremcadavezmaisàterceirizaçãonaÍndia,ondeapráticaélegaleopreçocorrespondeamenosdeumterçodastaxasemvigornosEstadosUnidos.3DireitodeserimigrantenosEstadosUnidos:US$500.000.OsestrangeirosqueinvestemUS$ 500.000 e geram pelo menos dez empregos numa região de alto nível dedesempregorecebemumgreencardquelhesdádireitoderesidênciapermanente.4Direitodeabaterumrinocerontenegroameaçadodeextinção:US$150.000.AÁfricadoSul passou a autorizar fazendeiros a vender a caçadores o direito de matar umaquantidade limitada de rinocerontes para incentivá-los a criar e proteger a espécie,ameaçadadeextinção.5O celular do seumédico:US$ 1.500 oumais por ano. Um número cada vezmaior demédicos“debutique”ofereceacessoaoseu telefonecelulareconsultasparaomesmodiaapacientesdispostosapagartaxasanuaisquevariamdeUS$1.500aUS$25.000.6O direito de lançar uma tonelada métrica de gás carbônico na atmosfera: € 13(aproximadamenteUS$18).AUniãoEuropeiamantémummercadodeemissõesdegáscarbônicoquepermiteàsempresascomprarevenderodireitodepoluir.7Matrícula do seu filho numa universidade de prestígio? Embora o preço não sejadivulgado,funcionáriosdecertasuniversidadesdeprimeiralinhadisseramaoWallStreetJournal que aceitam alunos não propriamente brilhantes cujos pais sejam ricos esuscetíveisdefazerdoaçõesfinanceirassubstanciais.8

Nemtodomundopodepagarporessasbenesses.Mashojenãofaltammaneirasdeganhardinheiro. Se você está precisando ganhar algum a mais, aqui vão algumas possibilidadesinovadoras:

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Alugar espaço na testa (ou emoutra parte do corpo) para publicidade comercial:US$777. A Air New Zeland contratou trinta pessoas para rasparem a cabeça e usaremtatuagenstemporáriascomoslogan“Precisandomudar?VáparaaNovaZelândia”.9Servir de cobaia humana em testes de laboratórios farmacêuticos para novasmedicações: US$ 7.500. A remuneração pode ser maior ou menor; depende daagressividadedoprocedimentousadoparatestaroefeitodanovadroga,assimcomododesconfortoenvolvido.10CombaternaSomáliaounoAfeganistãonumcontingentemilitarprivado:US$250pormêsaUS$1.000pordia.Opagamentovariadeacordocomaqualificação,aexperiênciaeanacionalidade.11Fazer filaduranteanoitenoCongressoamericanoparaguardar lugarparaum lobistaquepretendacompareceraumaaudiêncianodiaseguinte:US$15-US$20porhora.Oslobistaspagamaempresascontratantes,querecorremapessoassemtetoeoutrosparaentrarnasfilas.12Ler um livro, no caso de um aluno do 2° ano do ensino fundamental numa escola deDallas com baixo desempenho: US$ 2. Para estimular a leitura, as escolas pagam àscriançasporcadalivroqueleem.13Perder seis quilos em quatro meses, no caso de um obeso: US$ 378. Empresas eseguradoras oferecem incentivos financeiros à perda de peso e outros tipos decomportamentosaudável.14Compraraapólicedesegurodeumapessoa idosaoudoente,pagarosprêmiosanuaisenquantoelaestávivaereceberaindenizaçãoquandomorrer:potencialmente,milhõesde dólares (dependendo da apólice). Esse tipo de aposta na vida de estranhostransformou-senumaindústriadeUS$30bilhões.Quantomaiscedooestranhomorrer,maisoinvestidorganhará.15

Vivemosnumaépocaemquequase tudopode ser compradoevendido.Nas trêsúltimasdécadas, osmercados—eos valoresdemercado—passaramagovernarnossavidacomonunca.Nãochegamosaessasituaçãoporescolhadeliberada.Équasecomoseacoisativesseseabatidosobrenós.Quandoaguerrafriaacabou,osmercadoseopensamentopautadopelomercadopassaram

a desfrutar de um prestígio sem igual, e muito compreensivelmente. Nenhum outromecanismo de organização da produção e distribuição de bens tinha se revelado tão bem-sucedidonageraçãodeafluênciaeprosperidade.Mas,enquantoumnúmerocadavezmaiorde países em todo omundo adotavamecanismos demercado na gestão da economia, algomaistambémacontecia.Osvaloresdemercadopassavamadesempenharumpapelcadavezmaiornavidasocial.Aeconomiatornava-seumdomínioimperial.Hoje,alógicadacompraevendanãoseaplicamaisapenasabensmateriais:governacrescentementeavidacomoumtodo.Estánahoradeperguntarmossequeremosviverassim.

Aeradotriunfalismodemercado

Os anos anteriores à crise financeira de 2008 foram um período temerário de aposta nomercadoenadesregulamentação—umaeradetriunfalismodemercado.Essaeracomeçouno iníciodadécadade1980,quandoRonaldReaganeMargaretThatcherproclamaramsuaconvicçãodequeosmercados,enãoogoverno,équedetinhamachavedaprosperidadeedaverdade. E prosseguiu na década de 1990, com o liberalismo favorável aomercado de BillClinton e Tony Blair, que moderou, porém consolidou a convicção de que os mercadosconstituemoprincipalmeioparaaconsecuçãodobempúblico.

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Hoje,essaconvicçãoestáemdúvida.Aerado triunfalismodemercadochegouao fim.Acrisefinanceiranãoserviuapenasparapôremdúvidaacapacidadedosmercadosdegerirosriscoscomeficiência.Generalizoutambémaimpressãodequeosmercadosdesvincularam-sedamoral e de quede alguma formaprecisamos restabelecer esse vínculo.Mas não pareceevidenteparaninguémoqueissopodesignificarnemcomodevemosproceder.Háquemdigaqueafalhamoralnocernedotriunfalismodemercadoeraaganância,que

levou a assumir riscos de maneira irresponsável. A solução, segundo esse ponto de vista,consisteemcoibiraganância,insistiremmaiorintegridadeeresponsabilidadedapartedosbanqueiroseexecutivosdeWallStreeteadotarnormassensatasparaimpedirqueumacrisesemelhantevolteaocorrer.Trata-se, na melhor das hipóteses, de um diagnóstico parcial. Embora certamente seja

verdadequeaganânciadesempenhouumpapelnacrisefinanceira,oqueestáemquestãoéalgomaior.Amudançamaisdecisivaocorridanastrêsúltimasdécadasnãofoioaumentodaganância,masaextensãodosmercados,edevaloresdemercado,aesferasdavidacomasquaisnadatêmaver.Paraenfrentaressasituação,nãobastainvectivaraganância;devemosrepensaropapela

ser desempenhado pelos mercados em nossa sociedade. Precisamos de um debate públicosobreoquesignificamanterosmercadosnoseudevidolugar.Paraqueocorraessedebate,precisamos analisar os limites morais do mercado. Precisamos perguntar se não existemcertascoisasqueodinheironãopodecomprar.Achegadadomercadoedopensamentocentradoneleaaspectosdavidatradicionalmente

governadosporoutrasnormaséumdosacontecimentosmaissignificativosdanossaépoca.Veja-se,porexemplo,aproliferaçãodeescolas,hospitaiseprisõesinseridosnosistemada

buscade lucro,assimcomoa terceirizaçãodaguerraaempresáriosmilitaresprivados. (NoIraqueenoAfeganistão,asforçasdefornecedoresprivadostornaram-semaisnumerosasdoqueastropasmilitaresamericanas.16)Veja-se o eclipse das forças policiais públicas por empresas de segurança privada —

especialmentenosEstadosUnidosenaGrã-Bretanha,ondeonúmerodeguardasparticulareschegouamaisdoqueodobrodonúmerodepoliciaisdaforçapública.17Veja-se, ainda, o agressivo marketing adotado pelos laboratórios farmacêuticos para a

venda de remédios aos consumidores nos países ricos. (Se alguma vez você assistiu àpublicidadedetelevisãoduranteonoticiárionoturnonosEstadosUnidos,seriacompreensívelseficouachandoqueomaiorproblemadesaúdedomundonãoéamalária,aoncocercoseouadoençadosono,masumagraveepidemiadedisfunçãoerétil.)Ouentãovejam-sea invasãodasescolaspúblicaspelapublicidadecomercial;avendade

“direitosdenome”aparqueseespaçoscívicos;acomercializaçãodeóvuloseesperma“degrife”paraareproduçãoassistida;aterceirizaçãodagravidezdamãedealuguelnomundodesenvolvido; a compra e venda, por parte de empresas e países, do direito de poluir; umsistemade financiamentode campanhas eleitorais que chegapertodepermitir a compra evendadaseleições.Essas formasdeutilizaçãodomercadopara fornecimentodesaúde,educação,segurança

pública,segurançanacional,justiçapenal,proteçãoambiental,recreação,procriaçãoeoutrosbenssociaispraticamenteeramdesconhecidashátrintaanos.Hoje,praticamentepassaramafazerpartedapaisagem.

Tudoàvenda

Porque ficar preocupado como fato de estarmos caminhandoparauma sociedade emquetudoestáàvenda?Por dois motivos: um tem a ver com desigualdade; o outro, com corrupção. Veja-se a

questãodadesigualdade.Numasociedadeemquetudoestáàvenda,avidaficamaisdifícil

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para os que dispõem de recursos modestos. Quanto mais o dinheiro pode comprar, maisimportanteéaafluência(ouasuafalta).Seaúnicavantagemdaafluênciafosseacapacidadedecomprariates,carrosesportivose

fériasnoexterior,asdesigualdadesderendaeriquezanãoteriamgrandeimportância.Mas,àmedidaqueodinheiropassaacomprarcadavezmais—influênciapolítica,bomatendimentomédico,umacasanumbairroseguro,enãonumazonadealtoíndicedecriminalidade,acessoaescolasdeelite,enãoàsqueapresentammausresultados—,aquestãodadistribuiçãodarendaedariquezaadquireimportânciamuitomaior.Quandotodasascoisasboaspodemsercompradasevendidas,terdinheiropassaafazertodaadiferençadomundo.Porissoéqueasúltimasdécadassetêmreveladoparticularmentedifíceisparaasfamílias

pobres e de classe média. Não só se agravou a defasagem entre ricos e pobres como amercantilizaçãodetudoaguçouadesigualdadeeaumentouaimportânciadodinheiro.O segundomotivo quenos deveria levar a hesitar empôr tudo à venda émais difícil de

descrever. Não se trata mais de desigualdade e injustiça, mas da tendência corrosiva dosmercados.Elespodemsercorrompidosporessapráticadeestabelecerpreçoparaascoisasboas da vida. E isso porque os mercados não se limitam a distribuir bens; eles tambémexpressamepromovemcertasatitudesemrelaçãoaosprodutostrocados.Aremuneraçãodecriançasparaque leiam livrospode levá-lasa lermais,mas tambémfazcomquepassemaencararaleituracomoumestorvo,enãocomofontedesatisfaçãoemsimesma.Oleilãodevagasnumainstituiçãodeensinopodeaumentarsuarenda,mastambémcorróiaintegridadedoestabelecimentoeovalordeseudiploma.Acontrataçãodemercenáriosestrangeirosemguerrastalvezsirvaparapouparavidadosnossoscidadãos,mascorrompeosignificadodacidadania.Oseconomistascostumampartirdoprincípiodequeosmercadossãoinertes,dequenão

afetamosbensnelestrocados.Masnãoéverdade.Osmercadosdeixamsuamarca.Àsvezes,osvaloresdemercadosãoresponsáveispelodescartedeprincípiosque,nãovinculadosaosmercados,devemserrespeitados.Naturalmente, pode haver discordância em torno dos princípios que valem a pena e das

motivaçõesarespeito.Assim,paradecidiroqueodinheiropode—enãopode—comprar,precisamos saber quais valores governarão as diferentes áreas da vida cívica e social. Aanálisedessaquestãoéotemadestelivro.Eis aqui uma prévia das respostas que pretendo propor: quando decidimos que

determinados bens podem ser comprados e vendidos, estamos decidindo, pelo menosimplicitamente,quepodemsertratadoscomomercadorias,comoinstrumentosdelucroeuso.Masnemtodososbenspodemseravaliadosdessamaneira.18Oexemplomaisóbviosãoosseres humanos. A escravidão era ultrajante por tratar seres humanos como mercadorias,postas à venda em leilão. Esse tratamento não leva em conta os seres humanos de formaadequada — como pessoas que merecem respeito e tratamento condigno, e não comoinstrumentosdelucroeobjetosdeuso.Algo semelhante pode ser dito a respeito dos bens e práticas que nos são valiosos.Não

colocamos crianças à venda no mercado. Ainda que os compradores não maltratassem ascrianças compradas, a existência de um mercado de crianças estaria expressando epromovendo umamaneira errada de tratá-las. As crianças não são bens de consumo, masseres que merecem amor e cuidados. Ou, então, vejamos a questão dos direitos e dasobrigaçõesdacidadania.Sevocêforconvocadoaparticipardeumjúri,nãopoderácontratarumsubstituto.Eoscidadãostampoucotêmodireitodevenderseusvotos,emboranãofaltequem esteja ansioso por comprá-los. Por que não? Porque consideramos que os deverescívicosnãodevemserencaradoscomopropriedadeprivada,mascomoumaresponsabilidadepública.Terceirizá-lossignificaaviltá-los,tratá-losdemaneiraerrada.Esses exemplos ilustram uma questãomais ampla: algumas das boas coisas da vida são

corrompidasoudegradadasquandotransformadasemmercadoria.Dessemodo,paradecidiremquecircunstânciasomercadofazsentidoequaisaquelasemquedeveriasermantidoadistância,temosdedecidirquevaloratribuiraosbensemquestão—saúde,educação,vidafamiliar,natureza,arte,deverescívicoseassimpordiante.Sãoquestõesdeordemmorale

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política, e não apenas econômicas. Para resolvê-las, precisamos debater, caso a caso, osignificadomoraldessesbensesuacorretavalorização.Éumdebatequenãoocorreuduranteaeradotriunfalismodemercado.Emconsequência,

sem que nos déssemos conta, sem mesmo chegar a tomar uma decisão a respeito, fomosresvalando da situação de ter uma economia demercado para a de ser uma sociedade demercado.Adiferençaéesta:umaeconomiademercadoéumaferramenta—valiosaeeficaz—de

organizaçãodeumaatividadeprodutiva.Umasociedadedemercadoéummododevidaemqueosvaloresdemercadopermeiamcadaaspectodaatividadehumana.Éumlugaremqueasrelaçõessociaissãoreformatadasàimagemdomercado.Ograndedebateque está faltandonapolítica contemporâneadiz respeito aopapel e ao

alcancedosmercados.Queremosumaeconomiademercadoouumasociedadedemercado?Quepapelosmercadosdevemdesempenharnavidapúblicaenasrelaçõespessoais?Comodecidirquebenspodemserpostosàvendaequaisdelesdevemsergovernadosporoutrosvaloresquenãoosdemercado?Ondenãopodeprevaleceraleidodinheiro?Sãoasquestõesdequeestelivroprocurarátratar.Comoelasenvolvemvisõespolêmicasda

sociedade ideal e da vida ideal, não posso prometer respostas definitivas.Mas pelomenosesperoprovocarumdebatepúblicoarespeitoeestabelecerumcontexto filosóficoparasuaanálise.

Opapeldosmercados

Aindaqueconcordemoscomofatodequeprecisamosenfrentarasgrandesquestõesrelativasàmoralidade domercado, você pode ter lá suas dúvidas quanto à capacidade do discursopúbliconessaesfera.Eadúvidaprocede.Qualquertentativaderepensaropapeleoalcancedomercadodevecomeçarpeloreconhecimentodedoissériosobstáculos.Umdelessãoospersistentespodereprestígiodopensamentodemercado,mesmodepois

domaisgravefracassodeleemoitentaanos.Ooutroéaanimosidadeeovaziododiscursopúblico.Essasduassituaçõesnãosãototalmentealheiasentreelas.Oprimeiroobstáculoédesafiador.Naépoca,acrisefinanceirade2008foiconsideradaum

autêntico vereditomoral sobre a adoção acrítica dosmercados que prevalecera em todo oespectro político durante três décadas. O quase colapso de instituições financeiras outrorapoderosas de Wall Street e a necessidade de socorro maciço à custa dos contribuintespareciamindicarqueviriaumaprontareavaliaçãodosmercados.AtéAlanGreenspan,quenaqualidadedepresidentedoFederalReserve,obancocentralamericano,oficiavacomogrão-sacerdote da religião triunfalista de mercado, admitiu estar em “estado de choque edescrença”pelofatodesuaconfiançanacapacidadedeautocorreçãodolivremercadoter-sereveladoequivocada.19NacapadaEconomist,osemanáriobritânicocampeãodaideologiademercado,via-seummanualdeeconomiadesfazendo-senumlodaçal,sobotítulo:“Oquedeuerradonaeconomia”.20Aerado triunfalismodemercado tiveraum fimdevastador.Certamente viria, então, um

momentodereavaliaçãomoral,umperíododesensatoreexamedareligiãodemercado.Masnãofoiassimqueascoisasseencaminharam.O espetacular fracasso dos mercados financeiros não amorteceu muito a confiança nos

mercados de maneira geral. Na verdade, a crise financeira deixou mais desacreditados osgovernosdoqueosbancos.Em2011, certaspesquisas indicavamqueopúblico americanoculpava antes o governo federal do que as instituições financeiras de Wall Street pelosproblemaseconômicosenfrentadospelopaís—comumamargemdemaisdedoisparaum.21A crise financeira projetara os Estados Unidos e boa parte da economia global na mais

gravecriseeconômicadesdeaGrandeDepressãodo iníciodadécadade1930e lançaranodesempregomilhõesdepessoas.Masnãolevouaumafundamentalreavaliaçãodosmercados.

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Pelocontrário,suaconsequênciapolíticamaissalientenosEstadosUnidosfoiaascensãodomovimentoTeaParty,cujasideiasdehostilidadeaogovernoetotaladesãoaolivremercadodeixariamRonaldReagan ruborizado.Nooutonode2011,omovimentoOccupyWallStreetoriginoumanifestações de protesto em cidades de todo o território americano e em váriaspartes do mundo. Seu alvo eram os grandes bancos e o poder corporativo, assim como acrescentedesigualdadedarendaedariqueza.Apesardadiferençadeorientaçãoideológica,osmilitantesdoTeaPartyedoOccupyWallStreetdavamigualmentevozaumaindignaçãopopulistacontraosocorroàsinstituiçõesfinanceirasemcrise.22Apesar dessas vozes de protesto, nossa vida política continua basicamente infensa a um

debatesériosobreopapeleoalcancedosmercados.Democrataserepublicanoscontinuamdiscutindo,comosemprefizeram,sobreimpostos,gastosedéficitsorçamentários,sóquecomespíritoaindamaispartidárioemuitopoucacapacidadedeinspirarouconvencer.Adesilusãocomapolíticaaumentaentrecidadãoscadavezmaisfrustradoscomumsistemaincapazdeatenderaobempúblicoouenfrentarasquestõesquerealmenteimportam.Essaperigosasituaçãododiscursopúblicoéosegundoobstáculoaumdebatearespeito

doslimitesmoraisdomercado.Numaépocaemqueodebatepolíticoconsisteessencialmenteempugilatoverbalnatelevisãoacabo,acusaçõespartidáriasnorádioerefregasideológicasnoplenáriodoCongresso,seriadifícilimaginarumdebatepúblicoponderadosobrequestõesmorais polêmicas, como amaneira correta de atribuir valor a procriação, filhos, educação,saúde,meioambiente,cidadaniaeoutrosbens.Mascreioqueessedebateépossívelequehaveriaderevigoraravidapública.Háquemvejanaanimosidadedenossapolíticaumexcessodeconvicçãomoral:sãomuitos

aqueles que acreditam demais, demaneira por demais agressiva, nas próprias convicções,querendo impô-las aos outros. Tenho paramim que se trata de uma leitura equivocada dotranse em que nos encontramos. O problema na nossa política não é uma questão deconvicçõesmorais demais,mas demenos.Nossa política é tão exaltada por causa do seuessencial vazio, em conteúdomoral ou espiritual. Ela não é capaz de enfrentar as grandesquestõesqueimportamatodos.Ovaziomoraldapolíticacontemporâneatemalgumasexplicações.Umadelaséatentativa

de banir do discurso público a questão dos ideais. Na esperança de evitar confrontossectários, muitas vezes insistimos em que os cidadãos deixem suas convicções morais eespirituaisparatrásaoentrarnaarenapública.Apesardaboaintenção,contudo,arelutânciaemaceitarnapolíticaargumentossobreosideaisdevidaabriucaminhoparaotriunfalismodemercadoeaconstanteascendênciadoraciocíniomercadológico.Àsuamaneira,opensamentomercadológicotambémprivaavidapúblicadefundomoral.

Ointeressedomercadodecorreempartedofatodenãojulgaraspreferênciasaqueatende.Elenãoquersabersedeterminadasmaneirasdeavaliarosbenssãopreferíveisaoutrasoumaiscondignas.Sealguémestiverdispostoapagarporsexoouporumrimeumadultosedispuser a vendê-lo, a únicaperguntaque o economista faz é: “Quanto?”Osmercadosnãoapontamopolegarparacimaouparabaixo.Nãodiscriminamentrepreferênciaslouváveisoucondenáveis. Cada parte envolvida num trato decide por si mesma que valor atribuir aosobjetostrocados.Essaoposição isentade julgamentoemrelaçãoaosvaloresestánocernedopensamento

mercadológicoeexplicaboapartedoseu interesse.Masnossa relutânciaemconsiderarosargumentosmorais e espirituais, nessemovimento de adoção da lógica demercado, veio acobrarumpreçoalto:privouodiscursopúblicodeenergiamoralecívica,econtribuiuparaapolíticatecnocráticaegerencialquehojeafligemuitassociedades.Umdebatesobreolimitemoraldomercadonospermitiriadecidir,comosociedade,emque

circunstânciasosmercadosatendemaobempúblicoequaisaquelasemqueelessãointrusos.Também contribuiria para revigorar a política e abrir espaço para ideais concorrentes naarenapública.Poisdequeoutramaneirapoderia ter cursoesse tipodedebate?Casovocêconcorde que a compra e a venda de certos bens os corrompem ou degradam, seráforçosamenteporqueacreditaquecertasmaneirasdelhesatribuirvalorsãomaisadequadasdoqueoutras.Nãofariasentidofalardacorrupçãodedeterminadaatividade—acriaçãode

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filhos,porexemplo,ouacidadania—senãoacreditarmosquecertasmaneirasdeserumpaiouumcidadãosãomelhoresdoqueoutras.Sãoavaliaçõesmoraisdessanaturezaqueestãoportrásdaspoucaslimitaçõesaomercado

que ainda podemos constatar. Não permitimos que os pais vendam os filhos ou que oscidadãosvendamosvotos.Eumdosmotivosdisso,paraserfranco,comportanadamaisnadamenos do que um julgamento moral: acreditamos que vender essas coisas significa umamaneiraerradadelhesatribuirvalor,cultivandoatitudesnegativas.A análise dos limitesmorais domercado torna inevitáveis tais questões. Ela requer que

pensemos juntos, em público, como atribuir valor aos bens sociais que prezamos. Seriaabsurdo esperar que um discurso público de maior robustez moral fosse capaz de levar,mesmonasmelhorescondições,aalgumconsensoemtornodecadaquestãopolêmica.Mascertamente teríamos aí uma vida públicamais saudável. E estaríamosmais conscientes dopreçoquepagamosporvivernumasociedadeemquetudoestáàvenda.Aopensarnamoralidadedomercado, pensamosantesdemaisnadanosbancosdeWall

Streeteseusimprudentesdesmandos,emhedgefunds,operaçõesdesalvamentofinanceiroereformanormativa.Masodesafiomoralepolíticoquehojeenfrentamosémaiscapilarizadoemais prosaico: repensar o papel e o alcance do mercado em nossas práticas sociais, nasrelaçõeshumanasenavidacotidiana.

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1.Furandoafila

Ninguémgostadeesperarnumafila.Àsvezeséatépossívelpagarparafurá-la.Hámuitosesabe que nos restaurantes damoda uma bela gorjeta aomaître pode abrir caminho numanoitemuitoconcorrida.Essasgorjetassãoquaseformasdesuborno,passadasdiscretamente.Não há nenhum cartaz que avise da disponibilidade imediata de uma mesa para quem sedispuser a molhar a mão da recepcionista com uma nota de US$ 50. Nos últimos anos,contudo, a venda do direito de furar fila saltou para a luz do dia e tornou-se uma práticahabitual.

Pistalivre

As longas filas nos pontos de verificação de segurança dos aeroportos transformam umaviagemnumaprovação.Osque comprampassagensdeprimeira classe ou classe executivapodemusarcorredoresprioritáriosparapularàfrentedafiladechecagem.ABritishAirwaysdá a esse sistema o nome de Fast Track, ou Pista Livre, serviço que também permite aospassageirosmaisabonadosfurarafilanoscontrolesdepassaporteseimigração.1

Mas a maioria das pessoas não pode voar de primeira classe e, assim, as empresas deaviação começaram a oferecer aos passageiros a oportunidade de comprar o privilégio defurarfila,comoumbenefícioàlacarte.PorUS$39amais,aUnitedAirlinesvendeodireitodeembarqueprioritárionovoodeDenveraBoston,juntamentecomodireitodefurarafilanocontroledesegurança.NaGrã-Bretanha,oaeroportolondrinodeLutonofereceumaopçãodepistalivreaindamaisacessível:esperarnalongafiladachecagemdesegurançaoupagar£3(US$5)epassaràfrentedetodomundo.2

Oscríticosqueixam-sedequenãosedeveriapôràvendaumfasttracknasegurançadosaeroportos.Lembramqueaverificaçãodesegurançaéumaquestãodedefesanacional,enãoum mero conforto, como certos privilégios no ato de embarque ou maior espaço paradescansar as pernas; o preço para impedir a entrada de terroristas nos aviões deveria serpago igualmenteportodosospassageiros.Asempresasretrucamquetodossãosubmetidosaomesmoníveldechecagem;aúnicacoisaquevariacomopreçoéotempodeespera.Desdequetodostenhamocorpoigualmenteescaneado,afirmamelas,umtempomenordeesperanafilaéumaconveniênciaquepodemperfeitamentevender.3

Os parques de diversão também começaram a vender o direito de furar a fila.Normalmente, os visitantes podempassar horas na fila de espera pelos brinquedos e pelasatrações mais concorridos. Mas agora a Universal Studios Hollywood e outros parquestemáticos oferecem uma maneira de contornar a espera: por cerca do dobro do preço deentrada, vendem um passe que leva o freguês diretamente à frente da fila. O acessomaisrápidoàsemoçõesdaVingançadaMúmiapodesermoralmentemenoscondenáveldoqueo

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acessoprivilegiadoàverificaçãodesegurançanumaeroporto,mascertosobservadoresaindaassim lastimam a prática, pois consideram que solapa um saudável hábito cívico: “Foi-se aépoca em que a fila do parque temático era o lugar da igualdade de todos”, escreveu umobservador,“aqueleondecadafamíliadefériasesperavasuavezdemocraticamente”.4

Curiosamente,osparquesdediversãomuitasvezesparecemquereresconderosprivilégiosque vendem. Para não ofender os clientes normais, alguns deles encaminham os clientesespeciais por saídas nos fundos e portas separadas; outros fornecem uma escolta paraacompanharosclientesVIPquefuramafila.Essanecessidadedediscriçãopareceindicarqueapráticadefurarfilamediantepagamento—mesmonumparquedediversão—esbarranaincômoda sensação de que o justo é esperar a vez.Mas é o tipo de preocupação que nãovamosencontrarnositedevendadeentradasdaUniversal,queofereceoPasseFrentedaFilaaUS$149combrutal franqueza: “PuleparaaFRENTEemtodosospasseios, showseatrações!”5

Senãosesentiràvontadeemfurarafilaemparquesdediversão,talvezvocêpossaoptarporumpasseio turístico tradicional,comooEmpireStateBuilding.PorUS$22 (US$16nocasodascrianças),épossívelpegaroelevadorparaomirantedo86°andareapreciarumavistaespetaculardeNovaYork.Infelizmente,olocalatraimilhõesdevisitantesporano,eaespera do elevador pode às vezes levar horas. O Empire State Building passou então aoferecer uma pista livre. PorUS$ 45 por pessoa, pode-se comprar um Passe Expresso quepermitefurarafila—tantodachecagemdesegurançaquantodoelevador.DesembolsarUS$180nocasodeuma famíliadequatropessoaspodeparecerumpreçosalgadoparachegarmaisrapidamenteaotopo.Mas,comolembraositedevendadeentradas,oPasseExpressoé“umaoportunidadefantástica”de“aproveitarmelhorseutempoemNovaYork—enoEmpireStateBuilding—evitandofilaseindodiretamenteàsmelhoresvistas”.6

PistasLexus*

AtendênciadapistalivretambémpodeserencontradaemautoestradasdetodooterritóriodosEstadosUnidos.Cadavezmaisosusuáriospodempagarparaabrircaminho,livrar-sedocongestionamentoesairporumaviaexpressaondetudoflui.Acoisateveinícionadécadade1980, com as pistas destinadas ao transporte solidário. Muitos Estados, na esperança dereduzir os congestionamentos e a poluição do ar, criaram vias expressas para os usuáriosdispostosacompartilharaviagem.Osmotoristassozinhosqueeramapanhadosnessasviasamargavammultasbemsalgadas.Haviaquempusessebonecasinfláveisnoassentodocaronanaesperançade ludibriaraspatrulhas.Numdosepisódiosdacomédia televisivaCurbYourEnthusiasm, Larry David inventa uma maneira engenhosa de comprar acesso à viapreferencial do transporte solidário: diante de um tráfego pesado numa autoestrada, acaminhodeumjogodebeiseboldosLosAngelesDodgers,elecontrataumaprostituta—nãopara fazer sexo, mas para acompanhá-lo no carro a caminho do estádio. E com certeza aviagem pela pista do transporte solidário permite-lhe chegar a tempo para as primeirasjogadas.7

Hoje,muitosusuáriospodemfazeromesmo—semprecisardeajudaremunerada.Ataxasque chegam aUS$ 10 na hora do rush, osmotoristas desacompanhados podem comprar odireito de usar as vias de transporte solidário. San Diego, Minneapolis, Houston, Denver,Miami,SeattleeSanFranciscoestãoentreascidadesquepassaramavenderodireitoaousodaspistasmaisrápidas.Ocustocostumavariardeacordocoma intensidadedo trânsito—quanto mais pesado, maior a taxa. (Na maioria dos casos, os carros com dois ou maisocupantesaindapodemusarasviasexpressasdegraça.)NaRiversideFreeway,alestedeLosAngeles, o trânsito na hora do rush costuma arrasta-se emmédia a 20-30 quilômetros porhoranaspistaslivres,aopassoqueosusuáriosquepagamparausaraviaexpressazarpama95-100porhora.8

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Háquemfaçaobjeçãoàideiadevenderodireitodefurarfila.Essaspessoassustentamqueaproliferaçãode esquemasdepista livre aumenta as vantagensda afluência e condena ospobresaficarsemprenofimdafila.Osqueseopõemàsviasexpressascostumamchamá-lasde“pistasLexus”,considerado-asinjustascomosusuáriosdepoucosrecursos.Masháquemdiscorde. Esses sustentam que não há nada errado em cobrar mais por um serviço maisrápido. A Federal Express cobra uma taxa extra por entregas em prazo de 24 horas. Alavanderia local cobraamaisparaentreganomesmodia.EnoentantoninguémconsiderainjustoqueaFedExoualavanderiaentregueasuaencomendaoulaveasuaroupaantesdeatenderoutrosclientes.

Do ponto de vista de um economista, as longas filas de espera por bens ou serviçossignificamdesperdícioe ineficiência,umsinaldequeo sistemadepreçosnão foi capazdealinharofertaedemanda.Ofatodeaspessoaspoderempagarporserviçosmaisrápidosnosaeroportos, nos parques de diversão e nas autoestradas aumenta a eficiência econômica epermitequecadaumestabeleçaopreçodoseuprópriotempo.

Onegóciodasfilas

Mesmosempoderpagarparaabrircaminhoatéafrentedafila,vocêpodeàsvezescontrataralguémparaentrarnafilanoseulugar.Noverão,acompanhiadeTeatroPúblicodacidadedeNova York apresenta gratuitamente encenações de peças de Shakespeare ao ar livre, noCentralPark.Assenhasparaasrécitasnoturnascomeçamaserdistribuídasàs13hehorasantesjáseformaumafila.Em2010,quandoAlPacinodesempenhouopapeldeShylockemOmercadordeVeneza,aprocuradeentradasfoiparticularmenteintensa.

Muitosnova-iorquinosestavamansiososporverapeça,masnãotinhamtempoparaentrarnafila.SegundooNewYorkDailyNews,essasituaçãodeuorigemaumaindústriaartesanal:pessoas que se oferecem para entrar na fila e conseguir senhas para quem se dispuser apagar pelo conforto. Os profissionais da fila apregoavam seus serviços em sites comoCraigslist.Paraentrarnafilaeaguentaraespera,eleschegavamacobrardeseusocupadosclientesatéUS$125porentradaparaastrêsrécitas.9

Acompanhiatentouimpedirosintermediáriosdeexerceressaatividadesobaalegaçãodeque “foge ao espírito do programa Shakespeare no Parque”. O objetivo do Teatro Público,iniciativasemfinslucrativossubsidiadapelogoverno,étornaroteatrodequalidadeacessívela um amplo público de todas as camadas da sociedade. Andrew Cuomo, na época oprocurador-geraldejustiçaemNovaYork,pressionouCraigslistasuspenderapublicaçãodeanúnciosdeserviçosdeintermediaçãoparacompradeingressos.“Avendadeingressosquedeveriam ser gratuitos”, argumentou ele, “impede que os nova-iorquinos desfrutem dasvantagensproporcionadasporumainstituiçãosustentadapeloscontribuintes”10

O Central Park não é o único lugar onde se pode ganhar dinheiro para ficar plantadoesperando.EmWashington,acapital,onegóciodafilavai-serapidamentetransformandoemalgo normal nas esferas governamentais. Quando as comissões do Congresso fazemaudiências para debater a legislação que está sendo elaborada, costumam reservar algunsassentos para jornalistas e outros para o público em geral, a serem ocupados pelos quechegaremprimeiro.Dependendodotemaedotamanhodasala,asfilasparacomparecimentoa essas audiências podemcomeçar a se formar umdia oumais antes, às vezes debaixo dechuva ou no frio inclemente do inverno. Os lobistas das empresas estão sempre altamenteinteressadosemcompareceraessasaudiências,parapuxarconversacomosparlamentaresnos intervalose acompanharoandamentodas leisqueafetamsuas indústrias.Masé claroque detestam passar horas na fila para garantir um lugar. A solução: pagar milhares dedólaresaempresasquecontratampessoasparaentrarnafilaporeles.

Essas empresas recrutam aposentados, mensageiros e, cada vez mais, pessoasdesabrigadasparaenfrentarasintempérieseguardarumlugarnafila.Elasesperamdolado

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deforadoprédioeàmedidaqueafilaandaseencaminhampeloscorredoresdosprédiosdoCongressoparaficaremfrenteàssalasdeaudiência.Poucoantesdeter inícioaaudiência,chegam os prósperos lobistas, que trocam de lugar com seusmaltrajados substitutos paraocuparseusassentosnasala.11

AsempresasdeformaçãodefilacobramdoslobistasentreUS$36eUS$60porhorapeloserviço, o que significa que conseguir um assento em audiência de uma dessas comissõespodecustarUS$1.000oumais.AspessoasquedefatoentramnafilarecebementreUS$10eUS$20porhora.OWashingtonPostpublicouumeditorialcontraaprática,considerando-a“desmoralizante”paraoCongressoe“insultuosaparaopúblico”.AsenadoraClaireMcCaskill(democrata-Missouri) tentou proibi-la, sem sucesso. “Para mim, a ideia de que grupos deinteresses possam comprar assentos em audiências do Congresso como se comprassementradasparaumconcertoouumjogodefuteboléultrajante”,declarouela.12

Essenegócio expandiu-se recentementedoCongressopara aSupremaCorte.Quandoosjuízesouvemaexposiçãodeargumentosoraisemgrandescasosconstitucionais,nãoé fácilentrar.Masseapessoaestiverdispostaapagarpodecontrataralguémpara ficarna filaeconseguirumlugarprivilegiadonomaisaltotribunaldopaís.13

A empresa LineStanding.com apresenta-se como “líder no ramo de formação de filas noCongresso”.Quandoa senadoraMcCaskil tentouapresentaruma lei paraproibir aprática,MarkGross,odonodafirma,defendeu-aecomparouaformaçãocomercialdefilasàdivisãodotrabalhonalinhademontagemdeHenryFord:“Nalinhademontagem,cadaoperárioeraresponsável por uma tarefa específica.” Assim como os lobistas estão preparados paracompareceràsaudiênciase“analisarosdepoimentos”,assimcomoossenadoresedeputadossãocapazesde“tomarumadecisãobem-informada”,osprofissionaisdafilasãoperfeitamentecapazes de… esperar. “A divisão do trabalho faz da América um lugar excelente para setrabalhar”,afirmavaGross.“Aformaçãodefilaspodeparecerumapráticaestranha,masemúltimaanáliseéumempregoperfeitamentehonestonumaeconomiadelivremercado”14

OliverGomes,umdessesprofissionaisdaformaçãodefila,concorda.Elevivianumabrigopara sem-teto ao ser recrutado para esse trabalho e foi entrevistado pelaCNN ao guardarlugarparaumlobistacomvistasaumaaudiênciasobremudançasclimáticas.“Ficarsentadonos corredores do Congresso me fez sentir um pouco melhor”, disse Gomes à CNN. “Mereconfortouemedeuasensação…sabecomoé,deserútil,depodercontribuirdealgumaforma,aindaquehumildemente.”15

MasaoportunidadedeGomessignificavafrustraçãoparacertosambientalistas.Umgrupodeles tentoucompareceràaudiênciasobremudançasclimáticas,masnãoconseguiuentrar.Osprepostosremuneradospeloslobistasjáhaviamocupadotodososassentosdisponíveisnasaladeaudiência.16Naturalmente,caberiaargumentarque,seosambientalistasestivessemrealmente preocupados em comparecer à audiência, também poderiam ter formado filaduranteanoite.Ou,então,contratadodesabrigadosparafazê-loemseulugar.

Cambistasdeconsultasmédicas

Ganharparaentrarnafilanãoéumfenômenoexclusivamenteamericano.Recentemente,aovisitaraChina, soubequeonegócioda formaçãode filas tornou-se rotineironosprincipaishospitaisdePequim.Asreformasdemercadodasduasúltimasdécadasocasionaramcortesdeverbasparaasclínicaseoshospitaispúblicos,especialmentenasregiõesrurais.Assiméqueagoraospacientesdointeriorprecisamviajaratéacapitalembuscadehospitaispúblicos,oqueoriginalongasfilasnasrecepções.Essasfilassãoformadasjáduranteanoite,àsvezesaolongodediasinteiros,paraconseguirumasenhadeconsultamédica.17

Assenhasdeconsultasãomuitobaratas—apenas14iuans(cercadeUS$2).Masnãoéfácil consegui-las. Em vez de acampar dias e noites inteiros na fila, alguns pacientes,desesperados por uma consulta, compram entradas de cambistas. Esses cambistas

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aproveitam-se do abismo instaurado entre a oferta e a procura. Contratam pessoas paraentrarnafiladedistribuiçãodesenhaseasrevendemporcentenasdedólares—maisdoqueum camponês costuma ganhar em meses de trabalho. As consultas com especialistasrenomadossãoparticularmentevalorizadas—enegociadaspeloscambistascomosefossementradasparaumafinaldecampeonato.OLosAngelesTimesdescreveuumacenadetráficodesenhasemfrenteaosaguãoderecepçãodeumhospitaldePequim:“Dr.Tang!Dr.Tang!QuemquerumasenhaparaoDr.Tang?Reumatologiaeimunologia”.18

Há algo de revoltante no tráfico de senhas para consultas médicas. Para começo deconversa,osistemarecompensaintermediários,enãoaquelesquefornecemoatendimento.ODr.Tangbemquepoderiaperguntarporquediabos,seumaconsultadereumatologistavaleUS$100,amaiorpartedodinheirovaipararnasmãosdoscambistas,enãonassuas—nemnas do hospital. Os economistas talvez concordassem e recomendassem aos hospitais umaumentodepreços.Naverdade,algunshospitaisdePequimabriramnovaspossibilidadesdemarcaçãodeconsultas,apreçosmaiselevadosecomfilasmuitomenores.19Esseguichêdepreçosmais altos é o correspondente, nos hospitais, do passe especial livre de espera nosparquesdediversãooudofasttracknosaeroportos—umaoportunidadedepagarparafurarafila.

Independentementedesaberquemembolsaodinheirodademandaemexcesso,sejamoscambistas ou o hospital, a pista livre para o consultório do reumatologista levanta umaquestão mais fundamental: tem cabimento que determinados pacientes furem a fila doatendimentomédicosimplesmenteporquepodempagarporfora?

OscambistaseosguichêsespeciaisdoshospitaisdePequimpõemaquestãonaordemdodia.Masamesmaperguntapode ser feita a respeitodeuma formamais sutil de furar filacadavezmaispraticadanosEUA:aascensãodosmédicos“debutique”.

Médicosdebutique

Emboraoshospitaisamericanosnãosejamassaltadosporcambistas,oatendimentomédicomuitasvezeséquestãodelongaespera.Asconsultasprecisamsermarcadassemanasantes,àsvezesmeses.Nodiadaconsulta,opacientepodeterdemofarumbocadonasaladeesperaparaconseguirafinalapressadosdezou15minutoscomomédico.Motivo:ascompanhiasdeseguros e as empresas de planosmédicos não remunerambemosmédicos pelas consultasrotineiras.Assim,paraconseguiremumaremuneraçãodecente,osmédicostêmemgeralumfichário de trêsmil pacientes oumais, que com frequência enfileira 25 a 30 consultas pordia.20

Muitos pacientes e médicos sentem-se frustrados com tal sistema, que mal permite aosmédicosconhecerefetivamenteospacientesouresponderasuasperguntas.Assiméqueumnúmero crescente de profissionais passou a oferecer uma forma de atendimento maiscuidadosa,conhecidacomoconciergemedicine,oumedicinadebutique.Comooconcierge,ouporteiro,deumhotelcincoestrelas,omédicodebutiqueestádeplantão24horaspordia.PorumataxaanualquepodevariardeUS$1.500aUS$25.000,ospacientestêmgarantiadeatendimento no mesmo dia ou no máximo no dia seguinte, sem espera, e de desfrutar deconsultastranquilasecomacessoaomédicopore-mailoucelular24horaspordia.E,sefornecessárioconsultarumespecialista,omédicodebutiquedaráascoordenadas.21

Paraforneceremessetipodeatendimento,osmédicosdebutiquereduzemdrasticamenteonúmero de pacientes de que cuidam. Aqueles que decidem transformar sua prática numserviço “de butique” mandam uma carta aos pacientes do seu fichário e oferecem umaalternativa:contrataronovoserviçoqueisentadeespera,aumataxaanual,ouacharoutromédico.22

Uma das primeiras práticas desse tipo, também uma das mais caras, é a MD2 (“MDSquared”), fundadaemSeattleem1996.AumataxaanualdeUS$15.000porcabeça(US$

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25.000paraumafamília),aempresapromete“acessoabsoluto, ilimitadoeexclusivoaoseumédicoparticular”.23Cadamédicoatendeapenascinquentafamílias.Emseusite,aempresaexplicaque“adisponibilidadeeaqualidadedoserviçoquefornecemosexigemquelimitemosoatendimentoaalgunspoucos”.24Umartigopublicadona revistaTown&Country informaqueasaladeesperadaMD2“maissepareceosaguãodoRitz-Carltondoqueoconsultóriodeummédico”.Masnaverdadesãopoucososqueaparecemporali.Emsuamaioria,osclientessão“diretoresexecutivoseempresáriosquenãoqueremperderumahoradoseudiaparairao consultório médico e preferem ser atendidos na privacidade de sua casa ou de seuescritório”.25

Outrosdessesserviços“debutique”voltam-separaaclassemédiaalta.AMDVIP,rededeatendimento diferenciado sediada naFlórida, oferece consultas para omesmodia e prontoatendimento(atendeaotelefonemanosegundotoque)porUS$1.500aUS$1.800anuaiseaceita pagamento pelos planos de saúde para os procedimentos médicos rotineiros. Osmédicos envolvidos reduzem a seiscentos os pacientes em seu fichário, o que lhes permitepassarmaistempocomcadaumdeles.26Aempresagaranteaosclientesque“aesperanãofará parte da sua experiência de atendimento médico”. Segundo oNew York Times, umaclínica da MDVIP em Boca Raton oferece salada de frutas e bolo na sala de espera.Entretanto,comoaesperaépoucaounenhuma,acomidamuitasvezesnemétocada.27

Paraosmédicosdebutiqueeseusclientesabonados,oatendimentopreferencialémesmooqueamedicinadeveriaser.Osmédicospodematenderoitoa12pacientespordia,enão30,eaindaassimsair-sebemfinanceiramente.OsmédicosfiliadosàMDVIPembolsamdoisterçosdataxaanual(umterçovaiparaaempresa),oquesignificaqueumaclínicacomseiscentospacientes tem um rendimento anual de US$ 600.000 apenas com as taxas, sem contar osreembolsos dos planos de saúde. Para os pacientes que têm condições, as consultas sematropeloseoacessoaummédico24horaspordiasãoluxospelosquaisvaleapenapagar.28

Adesvantagem,naturalmente,équeoatendimentopreferencialdealgunspoucosimplicarelegar os demais às salas de espera abarrotadas dos outrosmédicos.29 Levanta, assim, amesma objeção suscitada por qualquer esquema de pista livre: é algo injusto para os quemarcampassonapistaengarrafada.

Masamedicinadebutiquecertamentediferedosistemachinêsdeguichêsdeatendimentoprivilegiadoeconsultastraficadasporcambistas.Osquenãopodempagarporummédicodebutiquegeralmenteencontramoutrasformasdeatendimentocondigno,aopassoqueosquenãotêmcondiçõesdecomprardeumcambistaemPequimestãofadadosadiasenoitesdeespera.

Osdoissistemas,contudo,têmalgoemcomum:ambospermitemqueosabastadosfuremafiladoatendimentomédico.Ofura-filasémaisdescaradoemPequimdoqueemBocaRaton.A diferença é brutal entre o alarido do saguãode recepção apinhado e a calmada sala deespera com a salada de frutas intocada. Mas isso só acontece porque, quando o clientepreferencialchegaparaaconsultacomummédicodebutique,atriagemnafila jáfoi feita,semqueninguémvisse,atravésdacobrançadeumataxa.

Lógicademercado

Asrealidadesqueacabamosderepassarsãosinaisdostempos.Nosaeroportosenosparquesdediversão,noscorredoresdoCongressoenassalasdeesperadosconsultóriosmédicos,aéticadafila—“quemchegaprimeiroéatendidoprimeiro”—vemsendosubstituídaporumaéticadomercado—“pagou,levou”.

Eessamudançarefletealgoaindamaior:aentradacadavezmaisintensadodinheiroedomercadoemesferasdavidaoutroragovernadaspornormasalheiasaomercado.

Avendadodireitodefurarfilanãoéocasomaisgravenessatendência.Masaanálisedosaspectospositivosenegativosdasfilasdealuguel,dotráficodesenhasedeoutrasformasde

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fura-fila pode ajudar-nos a entender a força moral — e os limites morais — da lógica demercado.

Haveria algo de errado em contratar pessoas para ficarem na fila ou com o tráfico deformas de acesso? A maioria dos economistas considera que não. Eles não se identificammuito com a ética da fila. Se eu quiser contratar um sem-teto para ficar na fila por mim,perguntam,porquealguémhaveriadesequeixar?Sepreferirvenderomeuacessoemvezdeusá-lo,porqueseriaimpedido?

Osargumentosemfavordosmercadosdepreferêncianasfilassãodedoistipos.Oprimeiroé uma questão de respeito à liberdade individual; o outro, demaximizar o bem-estar ou autilidade social. No primeiro caso, um argumento libertário. Ele sustenta que as pessoasdevem ter liberdade de comprar e vender o que bem quiserem, desde que não violem osdireitos de ninguém. Os libertários opõem-se a leis contra o tráfico de acesso pelomesmomotivo que os leva a que se oponham a leis contra a prostituição ou a venda de órgãoshumanos:consideramqueessas leisviolama liberdade individual, interferindonasescolhasdeadultosdonosdopróprionariz.

Osegundoargumentoemfavordaaçãodomercado,maisconhecidodoseconomistas,édecaráter utilitário. Afirma que as trocas no mercado beneficiam compradores e vendedoresigualmente, contribuindo para o bem-estar coletivo ou a utilidade social. O fato de eu e apessoaqueponhopara esperar na fila estarmos firmandoumcontrato significa que ambosteremosalucrar.PagarUS$125paraassistiràpeçadeShakespearesemesperarnafiladeveserbomparamim;casocontrário,eunãoteriacontratadooutrapessoaparafazê-lonomeulugar.EganharUS$125parapassarhorasnumafiladeveserconveniente;casocontrário,apessoanãoteriaaceitadoatarefa.Ambostemosalucrarcomatrocafeita,poisexistedefatouma utilidade. É o que os economistas querem dizer quando afirmam que o livremercadodistribui comeficiência os bens. Ao permitir que as pessoas façamacertos vantajosos paratodososenvolvidos,omercadodistribuiosbensparaaquelesquelhesdãomaisvalor,oqueémedidopelasuadisposiçãodepagar.

Meu colega Greg Mankiw, economista, escreveu um dos mais consultados manuais deeconomia dos Estados Unidos. Ele usa o exemplo do tráfico de entradas para ilustrar asvirtudesdolivremercado.Emprimeirolugar,explicaqueeficiênciaeconômicaéumaquestãode distribuir os bens de uma forma que maximize “o bem-estar econômico de todos nasociedade”.Observaemseguidaqueolivremercadocontribuiparaesseobjetivoaopropiciar“o fornecimentodebensaoscompradoresque lhesdãomaisvalor,oqueémedidoporsuadisposiçãodepagar”.30Veja-seocasodoscambistas:

Paraqueumaeconomiadistribuademaneiraeficienterecursosescassos,osbensdevemchegaràsmãosdosconsumidoresquelhesdãomaisvalor.Aaçãodoscambistaséumexemplodamaneiracomoomercadoalcançaresultadoseficazes(…).Aocobraremopreçomaisaltocomportadopelomercado,oscambistascontribuemparaqueosconsumidoresmaisdispostosapagarpelasentradasdefatoasconsigam.31

Sealógicadolivremercadoestivercerta,oscambistaseasempresasquecontratamgenteparaentraremfilasnãodevemseracusadosporestarviolandoa integridadeda fila,esimhonradosporaumentaroníveldeutilidadesocial,ao fazercomquebenssubvalorizadossetornemdisponíveisparaosquemaissedispõemapagarporeles.

Mercadosversusfilas

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Qualseria,então,aargumentaçãoemfavordaéticadafila?Porquetentarproibirocupantesremunerados em filas e cambistas no Central Park ou no Congresso? Um porta-voz doShakespearenoParqueapresentouaseguintejustificativa:“Essaspessoasestãoprivandodeum lugar ou de uma entrada alguém que quer estar ali, ansioso por ver uma produção doShakespearenoParque.Queremosqueaspessoastenhamessaexperiênciagratuitamente”32

Aprimeirapartedoargumentoéfalha.Osprestadorescontratadosparaentrarnafilanãoreduzemonúmerodepessoasquetêmacessoàrécita;sãoapenasoutraspessoas.Éverdade,como sustenta esse porta-voz, que os prestadores apoderaram-se de entradas que de outramaneiraestariamnasmãosdepessoasque,maisatrásnafila,defatoestãoansiosasporverapeça.Masasentradasvãopararnasmãosdepessoasquetambémestãoansiosasporvê-la.PorissoéquedesembolsamUS$125paracontrataralguémquefiquenafila.

Oqueoporta-vozprovavelmentequis dizer éque apráticados cambistas é injusta comquemnãopuderpagarUS$125.Deixaaspessoascomunsemdesvantagem, tornandomaisdifícil o acesso às entradas. Trata-se de um argumento de mais peso. Quando alguémcontratadopara ficarna fila ouumcambista consegueumaentrada, alguémqueestámaisatrássaiperdendo,umapessoaquetalveznãopossapagaropreçocobradopelocambista.

Os defensores do livre mercado poderiam responder da seguinte maneira: se o teatrorealmente quiser ocupar os assentos com pessoas ansiosas por ver a peça e maximizar oprazer proporcionado por suas récitas, deveria querer que as entradas cheguem às mãosdaquelesquerealmentelhesdãomaisvalor.Eessassãoaspessoasquepagammaiscaroporumaentrada.Demodoqueamelhormaneiradeencheracasacomumpúblicomaiscapazdedesfrutar da peça é permitir que o livremercado funcione— seja ao vender entradas pelopreçoqueomercadocomportaroupermitirqueosprofissionaisdafilaeoscambistasvendamaquempagarmais.Conseguirentradasparaquemestiverdispostoapagaropreçomaisaltoé a melhor maneira de determinar quem é que dá mais valor à récita de uma peça deShakespeare.

Masoargumentonãoéconvincente.Aindaqueoobjetivosejamaximizarautilidadesocial,o livremercadonãotemnenhumamaneiramaisconfiáveldefazê-losenãocomasfilas.Eomotivodissoéqueadisposiçãodepagarporumbemnãomostrarealmentequeméquelheatribuimaisvalor.Issoocorreporqueospreçosdemercadorefletemnãosóadisposição,mastambémapossibilidadedepagar.AspessoasquemaisdesejamverShakespeare,ouumafinaldocampeonatodebeisebol,talveznãopossampagarpelaentrada.Eemcertoscasosaquelesquepagammaiscarotalveznãodeemtantovalorassimàexperiência.

Pude notar, por exemplo, que as pessoas que ocupam assentos no setor mais caro dosestádiosmuitasvezeschegamatrasadasesaemantesdofim.Oquemelevaameperguntaroquanto gostam realmente de beisebol. Sua disposição de pagar por assentos nos lugaresprivilegiadospodetermaisavercomaprofundidadedobolsodoquecomapaixãopelojogo.Elascertamentenãoapreciamtantoquantocertostorcedores,especialmentejovens,quenãopodempagarporlugarescaros,massãocapazesdedescrevercomdetalhesodesempenhodecada jogador da equipe. Como os preços de mercado refletem não só a disposição, mastambémapossibilidadedepagar,passama constituir indicadores imperfeitosdaquelesquemaisvalorizamdeterminadobem.

Trata-sedeumargumentobemconhecido,emesmoóbvio.Masele lançadúvidasobreaalegação dos economistas de que os mercados são sempre mais indicados do que as filasquandosetratadefazercomqueosbenscheguemàsmãosdaquelesquelhesdãomaisvalor.Emcertos casos, adisposiçãode ficarna fila— sejapor entradasde teatrooude jogos—pode indicarcommais clarezaquemquer realmenteestarpresentedoqueadisposiçãodepagar.

Os defensores da ação dos cambistas queixam-se de que a fila “discrimina em favor depessoasquedispõemdemaistempolivre”.33Oqueéverdade,masapenasnosentidodequeosmercadostambém“discriminam”emfavordepessoasquetêmmaisdinheiro.Assimcomoosmercadosdistribuemosbenscombasenapossibilidadeenadisposiçãodepagar,asfilasosdistribuemcombasenapossibilidadeenadisposiçãodeesperar.Enãotemosmotivosparapresumirqueadisposiçãodepagarporumbemconstituimelhormedidadoseuvalorparaalguémdoqueadisposiçãodeesperar.

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Demodo que o argumento utilitário em favor dosmercados, em detrimento das filas, émuitorelativo.Àsvezes,omercadodefatoencaminhaosbensparaaquelesquelhesdãomaisvalor; outras vezes, isso será feitopelas filas.Saber seemdeterminadocasoa função serámaisbemdesempenhadapelomercadooupelasfilaséumaquestãoempírica,nãosuscetíveldeserresolvidadeantemãoporumraciocínioeconômicoabstrato.

Mercadosecorrupção

Mas o argumento utilitário que dá preferência aos mercados sobre as filas enfrenta umaobjeção aindamais essencial: as considerações de ordem utilitária não são as únicas a serlevadasemconta.Certosbenstêmumvalorquetranscendeautilidadeparaoscompradoreseosvendedores.Amaneiracomodeterminadobemédistribuídopode serumelementodasuaessência.

Voltemosaocasodas récitasgratuitasdepeçasdeShakespearemontadasnoverãopeloTeatroPúblico. “Queremosqueaspessoas tenhamessaexperiênciagratuitamente”,disseoporta-voz,aoexplicaraoposiçãodoteatroàcontrataçãodepessoasparaentrarnafila.Masporquê?Emqueaexperiênciaperderiaseasentradasfossempostasàvenda?Elaperderia,naturalmente,paraaquelesquegostariamdeverapeçamasnãotêmcondiçõesdecomprarumaentrada.Masaequanimidadenãoéaúnicacoisaemquestãoaqui.Algoseperdequandoo teatropúblicoegratuitoé transformadoemmercadoria,algoque transcendeadecepçãodosquesãoimpedidosdecomparecerporfaltadedinheiro.

O Teatro Público encara suas apresentações gratuitas ao ar livre como um festival comacesso para todos, uma espécie de celebração cívica. Trata-se, por assim dizer, de umpresente que a cidade se dá. Naturalmente, o número de assentos não é ilimitado; não épossívelocomparecimentodacidadeinteiraaumarécita.MasaideiaétornarShakespearegratuitamenteacessível a todos, independentementedapossibilidadedepagar.Cobrarpelaentrada ou permitir que cambistas lucrem com algo que deveria ser um presente vai deencontro a essa finalidade. Transforma-se um festival para todos num negócio, numaferramentadabuscadelucroprivado.Seriacomoseacidadecobrasseparaqueapopulaçãoassistisseaosfogosdeartifíciodadatanacionaldo4deJulho.

ConsideraçõesdessamesmaordemexplicamoquehádeerradocomafilaremuneradanoCongresso.Umadasobjeçõestemavercomaequanimidade:éinjustoqueoslobistasricosaçambarquem o mercado das audiências parlamentares e privem os cidadãos comuns dapossibilidadedecomparecer.Masadesigualdadenoacessonãoéoúnicoaspectoinquietantedessaprática.Suponhamosqueos lobistas tivessemdepagarumataxapelacontrataçãodeempresas fornecedoras de ocupantes de filas e os valores arrecadados fossem usados parapermitiracessodoscidadãoscomunsaserviçosremuneradosdeocupaçãodelugaremfilas.Os subsídios poderiam assumir a forma, por exemplo, de vales dando direito a preçosreduzidosnessasempresas.Umesquemaassimpoderiacompensara faltadeequanimidadedoatual sistema.Mas continuariadepéumaoutra objeção: oCongresso édesvalorizadoedegradadocomatransformaçãodoacessoasuasaudiênciasnumprodutopostoàvenda.

Dopontode vista econômico, o livre acesso às audiências parlamentares “subvaloriza” obemedáorigema filas.A indústriadas filas compensaessa ineficiênciaestabelecendoumpreço demercado. Distribui assentos na sala de audiência aos que se dispuserem a pagarmais. Isso, no entanto, é uma forma equivocada de atribuir valor ao bem que é o governorepresentativo.

Poderemos entender melhor se perguntarmos, para começo de conversa, por que oCongresso“subvaloriza”aadmissãoasuasdeliberações.SuponhamosqueoCongresso,emluta hercúlea para reduzir a dívidanacional, decida cobrar entradas em suas audiências—US$ 1.000, digamos, por um assento na primeira fila da Comissão de Orçamento. Muitaspessoas levantariam objeções, não só pelo fato de a cobrança ser injusta com os que não

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puderem pagar, mas também porque cobrar para que o público possa comparecer a umaaudiênciaparlamentaréumaformadecorrupção.

Costumamosassociaroconceitodecorrupçãoa lucros indébitos.Masacorrupçãonãoéapenas uma questão de suborno e pagamentos ilícitos. Corromper umbemou uma práticasocial significa degradá-lo, atribuir-lhe uma valoração inferior à adequada. Nesse sentido,cobrar entradas em audiências parlamentares é uma forma de corrupção. Trata-se assim oCongressocomosefosseumnegócio,enãoumainstituiçãodogovernorepresentativo.

Os cínicos poderiam retrucar que o Congresso já é um negócio, na medida em queconstantementetraficainfluênciasevendefavoresainteressesparticulares.Nessecaso,porquenãoreconhecê-loabertamenteecobrarpelaentrada?Arespostaéqueaaçãodosgruposdepressão,otráficodeinfluênciaseoautofavorecimentoquejáconspurcamoCongressosãoem si mesmos formas de corrupção. Representam a degradação do governo na esfera dointeresse público. Em qualquer acusação de corrupção está implícita a concepção dosobjetivos e das finalidades legitimamente perseguidos por uma instituição (no caso, oCongresso).AindústriadafilaemCapitolHill,umaextensãodaindústriadolobby,écorruptanesse sentido. Ela não é ilegal e os pagamentos são feitos abertamente. Mas degrada oCongresso ao tratá-lo como fonte de lucro privado, e não como um instrumento do bempúblico.

Oquehádeerradocomoscambistas?

Porqueseráquecertoscasosderemuneraçãoparaentraremfilasoufurá-lasedetráficodeacesso nos parecem condenáveis e outros não?Omotivo é que os valores demercado sãoprejudiciaisparacertosbens,masadequadosparaoutros.Paradecidirsedeterminadobemdeveserdistribuídopelomercado,pelasfilasoudealgumaoutramaneira,precisamosdecidirdequetipodebemsetrataecomodeveservalorado.

Nem sempre é fácil. Vejamos três exemplos de bens “subvalorizados” que passaramrecentemente a ser objeto de tráfico por parte de cambistas: áreas de acampamento noParque Nacional Yosemite, missas do papa Bento XVI ao ar livre e shows de BruceSpringsteen.

Cambistasnoacampamento

OParqueNacionalYosemite,naCalifórnia,atraimaisdequatromilhõesdevisitantesporano.Cerca de novecentas de suas melhores áreas de acampamento podem ser reservadasantecipadamente,aumcustonominaldeUS$20pornoite.Asreservaspodemserfeitasportelefoneouonlineapartirdas7hdodia15decadamês,comantecipaçãodeatécincomeses.Masnãoéfácilconseguirumareserva.Ademandaétãogrande,especialmentenoverão,queasáreasdeacampamentojáestãoocupadasminutosdepoisdeiniciadooperíododereservas.

Em2011,todavia,oSacramentoBee informouquecambistasestavamvendendoáreasdeacampamentonesseparquenositeCraigslistporUS$100aUS$150pornoite.OServiçodeParques Nacionais, que proíbe a revenda de reservas, foi inundado de reclamações, quetentavam impedir o comércio ilegal, contra os cambistas.34 Pela lógicanormaldemercado,nãoparecemuitoevidenteporquedeveriafazê-lo:seoServiçodeParquesNacionaisdesejarmaximizar os benefícios a serem obtidos pela sociedade com o uso do Yosemite, deveriaquererqueasáreasdeacampamentofossemusadaspelosquemaisdãovaloràexperiência,deacordocomsuadisposiçãodepagar.Emvezde tentarbarraro caminhodos cambistas,devia abrir-lhes os braços. Ou então aumentar o preço das reservas das áreas deacampamento,pelosvaloresdemercado,eeliminarademandaemexcesso.

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MasaindignaçãopúblicacomaaçãodoscambistasnosacampamentosdeYosemiterejeitaessa lógicademercado.O jornalquedeuanotíciapublicouumeditorialquecondenavaoscambistas com o título “Cambistas atacam no Parque Yosemite: nada mais é sagrado?” Otráficodeacessoeravistocomoumgolpeaserprevenido,enãocomoumserviçodeutilidadesocial.“AsmaravilhasdoYosemitepertencematodosnós”,diziaoeditorial,“enãoapenasaosquepodemdesembolsardinheiroamaisparaumcambista.”35

Por trás da hostilidade à ação dos cambistas nas áreas de acampamento em Yosemiteencontram-se na verdade duas objeções— uma na esfera da equanimidade, a outra na damaneiraadequadadevalorarumparquenacional.Aprimeiraobjeçãoexpressaapreocupaçãode que a ação dos cambistas é injusta com pessoas de recursosmodestos, que não podempagar US$ 150 por noite para acampar. A segunda, subentendida na pergunta retórica doeditorial(“Nadamaisésagrado?”),baseia-senaideiadequecertascoisasnãoestãoàvenda.Por esse raciocínio, os parques nacionais não são apenas objetos de uso ou entidadesgeradoras de utilidade social. São lugares de beleza e mistério natural, dignos de serapreciadosemesmodeadoração.Otráficodoacessoalugaresassimporpartedecambistaséquaseumsacrilégio.

Missaspapaisàvenda

Eisumoutroexemplodecolisãodosvaloresdemercadocomumbemsagrado:quandoopapaBentoXVIveiopelaprimeiravezaosEstadosUnidos,aprocuradeentradasparaasmissasquerezariaemestádiosdeNovaYorkeWashingtonsuperouemmuitoadisponibilidadedeassentos — até mesmo no Yankee Stadium. As entradas gratuitas eram distribuídas pelasdioceses e pelas paróquias católicas.Quando começouo inevitável tráficodos cambistas—umaentradavendidaonlinepormaisdeUS$200—representantesdaIgrejacondenaramaprática,sobaalegaçãodequeoacessoaumritualreligiosonãopodeserpostoàvenda.“Nãopode haver venda de entradas”, disse uma porta-voz da Igreja. “Não se pode pagar parareceberumsacramento.”36

Mas os que compraram entradas nas mãos dos cambistas provavelmente discordariam.Conseguiram pagar para receber um sacramento.Mas o que a porta-voz da Igreja tentavadizer era algo diferente: embora seja possível comprar entradas de um cambista para teracessoaumamissadopapa,oespíritodosacramentoficacomprometidoseaexperiênciaforpostaàvenda.Tratarrituais religiososoumaravilhasdanaturezacomomercadoriaséumafaltaderespeito.Transformarbenssagradosemobjetosdelucrosignificavalorá-losdeformaequivocada.

OmercadodeSpringsteen

Eoquepensardeumeventoqueéempartecomercialeempartealgodiferente?Em2009,BruceSpringsteendeudoisespetáculosnoseuestadonatal,NovaJersey.EstabeleceucomopreçomaisaltoUS$95,emborapudessetercobradomuitomaiseaindaassimseapresentadocom lotação esgotada. A limitação do preço levou a um frenesi de cambistas, privandoSpringsteendemuitodinheiro.PoucoantesosRollingStonestinhamcobradoUS$450pelosmelhoreslugaresemsuaturnê.Economistasqueexaminaramosvalorescobradosnumshowanterior de Springsteen chegaram à conclusão de que, ao cobrar um preço inferior ao demercado,eleabriramãonaquelanoitedealgoemtornodeUS$4milhões.37

Por que então não cobrar o preço demercado? Para Springsteen,manter os preços dasentradasempatamarrelativamenteacessíveléumamaneiradesemantervinculadocomosfãsdaclassetrabalhadora.Etambémdeexpressarumacertaconcepçãodosprópriosshows.Trata-se certamente de empreendimentos visando ao lucro, mas apenas em parte. São

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igualmente eventos de celebração, cujo sucesso depende do caráter e da composição dopúblico.Aperformancenãoestáapenasnascanções,mastambémnarelaçãoentreoartistaeopúblico,assimcomonoespíritoqueosreúne.

EmartigosobreaeconomiadosconcertosderockpublicadonarevistaNewYorker, JohnSeabrookfrisaqueessesespetáculosnãosãomercadorias,naestritaacepçãodotermo,nembens de mercado; tratá-los como se fossem é reduzir seu significado: “Os discos sãomercadorias;osconcertossãoeventossociaisetentartransformaraexperiênciaaovivonumamercadoriaécorreroriscodeestragarcompletamenteaexperiência.”ElecitaAlanKrueger,umeconomistaqueanalisouapolíticadepreçosdosshowsdeSpringsteen:“Existesemprenosconcertosderockalgoqueosaproximamaisdeumafestadoquedomercadodeprodutosde consumo.” Uma entrada para um show de Springsteen, argumentava Krueger, não éapenasumbemdemercado.Ésobcertosaspectosumpresente.SeSpringsteencobrasseoqueomercadocomportasse,comprometeriaessarelaçãodedoaçãocomosfãs.38

Haverá quem veja nisso apenas uma questão de relações-públicas, uma estratégiadestinada a abrir mão de um pouco de rendimento hoje para preservar a boa vontade emaximizarosganhosa longoprazo.Masnãoéaúnicamaneiradeentendê-lo.Springsteentalvezacredite,epodeestarcerto,que tratarsuasapresentaçõesaovivocomoumsimplesprodutodemercadoseriadesvalorizá-las,dar-lhesumavaloraçãoequivocada.Pelomenossobesseaspecto,elepodeteralgoemcomumcomopapaBentoXVI.

Aéticadafila

Vimosaquiváriasmaneirasdepagarparafurarafila:contratarprepostos,comprarentradascom cambistas ou adquirir direitos preferenciais diretamente, por exemplo, de umacompanhiaaéreaoudeumparquedediversão.Cadaumadessastransaçõessuplantaaéticada fila (esperar pela vez) com a ética domercado (aceitar um preço por um serviçomaisrápido).

Mercadosefilas—pagareesperar—sãoduasmaneirasdiferentesdedistribuirascoisas,cadaumadelasadequadaparaatividadesdiferentes.Aéticadafila,“chegarprimeiroparaseratendidoprimeiro”, temumapelo igualitário. Incita-nosa ignoraroprivilégio, opodereosbolsosprofundos—pelomenosparacertasfinalidades.“Espereasuavez”,éramosadvertidosnainfância.“Nãofureafila.”

Oprincípiopareceadequadoemplaygrounds,pontosdeônibusequandoseformaumafilaparaobanheiropúbliconumteatroouestádio.Nãogostamosquandoalguémpassaàfrentedenós.Sealguémcomumanecessidadeurgentepedeparafurarafila,amaioriadaspessoasconcorda.Mas pareceriamuito estranho se alguém no fim da fila oferecesse US$ 10 paratrocar de lugar — ou se a gerência colocasse banheiros pagos ao lado dos gratuitos paraatenderaclientesabastados(oudesesperados).

Masaéticadafilanãoprevaleceemtodasasocasiões.Seeupuserminhacasaàvenda,nãotenhoqualquerobrigaçãodeaceitaraprimeiraofertasimplesmenteporseraprimeira.Vender a casa e esperar o ônibus são atividades diferentes, muito adequadamenteregulamentadaspornormasdiferentes.Nãoháqualquermotivoparapresumirqueumúnicoprincípio—entrarnafilaoupagar—devadeterminaradistribuiçãodetodososbens.

Às vezes as normas são alteradas e não fica claro que princípio deve prevalecer. Bastalembraramensagemgravadaqueouvimos,infindáveisvezes,quandoligamosparaobanco,ofornecedor de TV a cabo ou o plano de saúde: “Sua chamada será atendida pela ordem.”Temosaíaessênciadaéticadafila.Écomoseaempresatentasseaplacarnossaimpaciênciacomobálsamodaequanimidade.

Masnãolevemuitoasérioamensagemgravada.Hoje,algunstelefonemassãoatendidoscommais rapidezdoqueoutros.Podemos falaraquidepularna fila telefônica.Écadavezmaioronúmerodebancos, companhiasaérease cartõesdecréditoque fornecemnúmeros

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especiais aos melhores clientes ou transferem suas chamadas para centrais telefônicas deeliteparaummaisprontoatendimento.A tecnologiadecentrais telefônicaspermitequeasempresas“classifiquem”ostelefonemaseforneçamumserviçomaisrápidoaosprovenientesde lugares afluentes. A Delta Airlines dispôs-se recentemente a proporcionar aos clienteshabituais uma polêmica vantagem: a possibilidade de pagar US$ 5 a mais para serematendidos por um funcionário nos próprios Estados Unidos em vez de ter suas chamadastransferidasparaumacentraltelefônicanaÍndia.AdesaprovaçãogeralencontradapelaideialevouaDeltaaabandoná-la.39

Haveria algo de errado em atender primeiro aos telefonemas dos melhores (ou maispromissores) clientes?Dependedo tipodeprodutoqueévendido.Ochamadoé sobreumacobrançaamaisouumacirurgiadeapêndice?

Naturalmente, osmercadoseas filasnão sãoasúnicasmaneirasdedistribuir as coisas.Certosbenssãodistribuídospormérito,outrospornecessidadeeoutrosaindaporsorteiooupeloacaso.Asuniversidadescostumamadmitiralunoscommaiorpotencialoutalento,enãoosqueseinscrevemprimeironosconcursosouoferecemmaisdinheiroporumamatrículanoprimeiroano.Asemergênciasdoshospitaistratamospacientesemfunçãodaurgênciadoseuestado,enãopelaordemdechegadaoudeacordocomsuadisposiçãodepagarporforaparaseratendidoprimeiro.Osmembrosdeumjúrisãosorteadospelosistemajudicial;sevocêforconvocado,nãopoderácontrataralguémparaocuparoseulugar.

Atendênciadosmercadosparatomarolugardasfilaseoutrasformasnãomercadológicasdedistribuiçãodebensdetalmaneirapermeiaavidamodernaquejánemanotamosmais.Nãodeixadechamaraatençãoqueamaioriadosesquemasfura-filasaquiexaminados—emaeroportos e parques de diversão, nos festivais shakespearianos e nas audiênciasparlamentares, nas centrais telefônicas de atendimento e nas clínicas médicas, nasautoestradasenosparquesnacionais—tenhacomeçadoasemanifestarrecentementeemalseria concebível três décadas atrás. O fim da ideia da fila nesses terrenos pode parecerestranho.Masnãosãoosúnicoslugaresinvadidospelomercado.

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Nota

*ModelodecarrodeluxodaToyota.(N.doT.)