negros, indígenas e educação superior

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texto sobre racismo

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  • Conselho EditorialAhyas Siss (UFRRJ), Aloisio Jorge de Jesus Monteiro (UFRRJ),

    Glaucio Pereira (Quartet Ed.) e Mariluce Bittar (UCDB).

    LeafroLaboratrio de Estudos Afrobrasileiros (Neabi/UFRRJ)

    [email protected]

  • Rio de Janeiro2010

  • Copyright 2010 by Ahyas Siss, Alosio Monteiro, A. H. Aguilera Urquiza, Adir Casaro Nascimento, Ana Paula da Silva, ngela Ferreira Pace, Antonio J. Brand, Fernando Resende Nbrega, Joliene do Nascimento Leal, Jos Ribamar Bessa Freire, Leila Dupret, Lygia Fernandes, Maria Alice Rezende Gonalves, Mariluce Bittar, Wanilda Coelho Soares de Moraes

    Todos os direitos desta edio reservados Quartet Editora & Comunicao Ltda.

    proibida a duplicao ou reproduo deste volume, ou de partes do mesmo, sob quaisquer meios, sem a autorizao expressa da Editora.

    Capa: Glaucio Pereira

    Diagramao: Policarpo Servios Editoriais Ltda.

    Reviso: Renate Scheele

    Quartet EditoraTels.: (21) 2556.5828 | [email protected]

    Editora associada

    Editora da Universidade Federal Rural do Rio de JaneiroRodovia BR 465, Km 7, Centro, Seropdica, RJUFRRJ/DPPG/EDUR/Pav. Central, sala 102Tels.: (21) 2682.1210 r. 3302 - Fax: (21) [email protected]/editora.htm

    _______________________________________________________________

    Negros, indgenas e a educao superior / Ahyass Siss, Aloisio Jorge de Jesus Monteiro (orgs.): Aguilera Urquiza... [et al.]. - Rio de Janeiro : Quartet : EDUR, 2010

    176p.; 14cm

    Inclui bibliografi a

    ISBN 978-85-7812-046-7

    1. Negros - Educao - Brasil. 2. Indgenas - Educao - Brasil. 3. Educao Superior - Brasil. 4. Igualdade na educao - Brasil 5. Programas de ao afi rmativa 6. Afrodescendentes I. Siss, Ahyas. II. Monteiro, Aloisio Jorge de Jesus_______________________________________________________________

  • Diversidade e multiculturalismo: novos rumos para a Universidade brasileiraMarcelo Paixo1

    Porque vocs no sabem, do lixo ocidental (Para Lennon e McCartney L Borges, Marcio Borges e

    Fernando Brandt)

    Apresentao

    O mundo que conhecemos foi desenhado imagem e se-melhana do mundo europeu. Por incrvel que possa parecer, tal formato no foi sempre assim na histria da humanidade. Tal pa-dro foi se realizando, ora mais lenta, ora mais celeremente, pelas mos do colonizador de pele branca proveniente do Velho Mundo a partir das chamadas Grandes Navegaes dos sculos XV e XVI. Navegar preciso, viver no preciso... cedo saberiam dos valores mais profundos desta sentena as vtimas deste sonho. Ou seja, os povos amerndios e africanos.

    O ocidente branco produziu a sua longa dominao do mundo com o uso intensivo da cincia aplicada ao mundo prtico da vida e dos negcios. J dizia o velho fi lsofo ingls Francis Ba-con, saber poder. Ou seja, a pretensa absoluta distino entre o sujeito e o objeto do conhecimento transformava o conhecimento

    1 Professor do Instituto de Economia da UFRJ, coordenador do Laeser e Pesquisador do CNPq.

  • 6 Negros, indgenas e educao superior

    cientfi co como meio da dominao. Seja do meio ambiente. Seja dos povos portadores de outras formas e culturas. Em ambos os casos sua reduo mera condio de natureza, ou paisagem, os tornava passveis do controle. De seus ritmos, fl uxos e movimen-tos, no primeiro caso. De seus corpos, alma e desejos, no segundo.

    Portando tal compreenso sobre a natureza no difcil entender o motivo pelo qual a universidade, neste mundo ocidental, foi entendida como um espao to impenetrvel s raas inferiores. Recuperando o conceito do psiclogo francs Levy Bruhl to ao gosto do antroplogo brasileiro Arthur Ramos tais povos, inge-nitamente, seriam portadores de uma mentalidade pr-lgica; inca-pazes de pensar e refl etir de maneira cartesiana, cientfi ca e moder-na. Elegante forma de justifi car sua dominao, por outras gentes, pretensas portadoras destes saberes em seu sentido absoluto. Mas, para fi ns do que trata a questo, a prpria quinta-essncia do moti-vo pelo qual o meio acadmico no era lugar para pessoas que na compreenso dominante identifi cadas como incorrigveis para a apreenso do raciocnio complexo, e como tal condenveis eco-nmica, social e eticamente aos baixos escales da sociedade.

    A razo ocidental que forjou semelhante compreenso, fa-lando francamente, ainda alimenta o modo padro de entendimento sobre o papel e contedo da universidade em nosso perodo atual. Ao menos no Brasil (daqui pr frente, por razes prticas, deixemos o ocidente de lado, o Brasil me basta). Na verdade, mesmo nos nveis mais elementares do sistema de ensino afrodescendentes e povos indgenas seguem postos margem. At vinte anos atrs as taxas de analfabetismo destes contingentes beirava, ou fi cava acima de um em cada quatro habitantes adultos. O baixo acesso s univer-sidades por parte dos integrantes destes grupos era apenas o coro-lrio de uma prtica social, e de um modelo de racismo de Estado, que apenas consagrava na prtica aquilo que o senso comum e o pensamento cientifi camente dominante considerava; misto bvio, misto desejvel.

  • Apresentao 7

    E assim, de ingressantes a ingressantes; de turma em tur-ma, de formandos em formandos; enfi m, o meio acadmico bra-sileiro seguiu tornando normal a sua tara tnica inicial. Ou seja, foi se forjando como um espao para homens (malgrado as mudanas recentes neste sentido, mas que no alteraram fundamentalmente o perfi l de gnero dos cursos mais prestigiados); brancos, alm de outras caractersticas fsicas, familiares e de naturalidade, que fa-voreciam a tal boa aparncia, passaporte por excelncia em uma sociedade racista como nossa para formas de insero mais bem-sucedidas no mercado de trabalho e na vida.

    Falando de uma forma geral, parece ntido que a supera-o deste quadro seja to esperada quanto premente. Todavia, o problema que esta questo no defi nida por critrios puramente lgicos ou morais. O fato que a ideologia comentada acima sobre-vive porque interessante que assim o seja. Se o Brasil se caracteri-za por ser uma das naes mais desiguais do mundo, j est mais do que na hora de vermos tal perfi l como uma obra denodadamente confi gurada por parte daqueles que se benefi ciam desta ordem de coisas. Lutar contra esta realidade, em muitos momentos, o mes-mo que tentar defi nir a quarta dimenso, a origem do universo ou a quadratura do crculo.

    Ousando contribuir para viabilizar este novo amanh que iremos encontrar o livro organizado pelos professores Ahyas Siss e Alosio Monteiro, ambos vinculados ao Leafro Laboratrio de Es-tudos Afro-Brasileiros e Indgenas (NEABi) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ, doravante apenas Rural).

    Ao longo dos oito captulos que compe a coletnea sero encontrados testemunhos de iniciativas prticas e correlatas refl e-xes sobre o processo de construo de polticas pblicas que fa-voream o ingresso, permanncia e concluso dos cursos de gradu-ao em diversas Universidades brasileiras que adotaram o sistema das aes afi rmativas para ingresso discente de afrodescendentes e indgenas.

  • 8 Negros, indgenas e educao superior

    No primeiro captulo o professor Ahyas Siss e ngela Fer-reira Pace, Fernando Resende Nbrega e Lygia Fernandes analisam a trajetria institucional da Rural, incluindo sua ampliao recente para outros Campi fora de Seropdica, bem como dialogam com as primeiras, e decerto tmidas, iniciativas de adoo de aes afi r-mativas para ingresso discente naquela Universidade. Os autores tambm contam a histria do prprio Leafro da Rural. No seu fi nal, Ahyas, ngela e Lygia apontam a perspectiva futura de adoo, por parte da Rural, de cotas para estudantes afrodescendentes, realidade ainda inexistente naquela Universidade.

    No segundo captulo a professora Leila Dupret analisa a matriz religiosa Afro-Brasileira na educao superior, colocando em questo a formatao eurocntrica inclusive no plano das sub-jetividades e prticas religiosas que rege o ambiente acadmico e universitrio brasileiro e seus mltiplos prejuzos para a totalidade de atores sociais que frequentam aquele meio.

    A professora Maria Alice Rezende Gonalves discorre, no terceiro captulo, em sua contribuio sobre a experincia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) no que tange introduo das aes afi rmativas. Neste caso, talvez desnecessrio seja dizer que esta Universidade, em sendo a pioneira nas polticas de ingresso diferenciado para negros e pobres nos bancos escola-res, acabou sendo uma das fontes pioneiras para aes semelhan-tes adotadas por outras Universidades pblicas desde ento. Em sendo, a autora, uma pessoa bastante engajada em termos de suas refl exes e militncia sobre o assunto, sua interpretao daquela experincia recomendvel a todos e todas que se interessam pelo tema das aes afi rmativas.

    No quarto captulo a professora Mariluce Bittar e Wanilda Coelho Soares de Moraes se debruam sobre a experincia do Ins-tituto Martin Luther King, instituio preparatria de vestibulandos afrodescendentes para os exames preparatrios. Vale apontar que este Instituto se localiza no estado do Mato Grosso do Sul. Assim,

  • Apresentao 9

    nunca ser demais o levantamento das tantas experincias ocorridas pelo Brasil afora em termos daquilo que se pode classifi car como uma verdadeira revoluo silenciosa da preparao de negros, pobres e carentes para o enfrentamento dos exames vestibulares. Deste modo, para alm de leituras apressadas que tentam entender tais iniciativas como a prpria consagrao dos tradicionais exa-mes vestibulares neles mesmos (assim supostamente legitimando tal mecanismos seletivo e excludente de seleo para ingresso s vagas discentes nas universidades pblicas), as autoras denotam toda uma preocupao com o desenvolvimento de uma conscincia crtica e cidad no seu plano social e tnico-racial junto a estes e estas jovens.

    Os demais quatro captulos que formam o livro falam da experincia das aes afi rmativas para populaes indgenas, espe-cialmente os do estado do Mato Grosso do Sul. Nunca demais apontar que aquela Unidade da Federao abriga o segundo maior contingente indgena no Brasil. E mais, num ponto do territrio onde as relaes sociais capitalistas j se encontram plenamente consolidadas. Tal diviso do livro igualmente coerente com a pr-pria institucionalidade do Leafro NEABi que, conforme mencio-nado, alm dos afrodescendentes, tambm abriga em seu escopo a preocupao com a temtica indgena. O que pode ser mesmo con-siderado concomitantemente um mrito e um desafi o para aquele Laboratrio e Ncleo de estudos.

    Desta parte, a primeira contribuio contida no quinto captulo nos dada por Adir Nascimento, Aguilera Urquiza e Antonio Brand que refl etem sobre o importante tema das relaes intertnicas e a educao de indgenas no ensino superior. Assim, os professores recolhem as experincias vividas neste sentido pela Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS - que possui cotas para indgenas); a Universidade Catlica Dom Bosco (UCDB); a Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD que possui licenciatura para os Guarani e Kaiows) e a Universidade Federal

  • 10 Negros, indgenas e educao superior

    do Mato Grosso do Sul (UFMS). Na medida em que este tipo de re-fl exo combina as dimenses tnicas, com as raciais, e dentro de um espao tipicamente eurocntrica como a Universidade, realmente o relato dos autores termina sendo uma contribuio especialmente interessante aos que se debruam sobre o assunto.

    O grupo de docentes e pesquisadores formado por Ana Paula da Silva; Alosio Monteiro e Jos Ribamar Freire tm por eixo de refl exo a educao indgena e os etno-saberes tupinamb. Segun-do seus autores o estudo objetiva analisar o lugar da memria e da cultura tradicional indgena nos cursos de formao universitria no Brasil, especifi camente os Formao Intercultural de Educadores Indgenas da Universidade Federal de Minas Gerais-FIEI (UFMG); o Programa Rede de saberes: Permanncia de indgenas no Ensino Superior da Universi-dade Catlica Dom Bosco (UCDB/MS), como tambm o curso de Licenciatura do Campo da Universidade Federal Rural do Rio de Janei-ro (UFRRJ). Apesar destes espaos acadmicos atuarem junto aos grupos camponeses, quilombolas e indgenas; o texto dos autores se centra mais especifi camente sobre este ltimo contingente, mais especifi camente, como mencionado, o grupo tnico tupinamb.

    O stimo captulo do livro foi escrito pela dupla de pes-quisadores Alosio Monteiro e Joliene Leal. O seu tema central gira sobre a formao de professores indgenas e a questo do currcu-lo dentro de sua dimenso tnico-racial. O material emprico do documento o mesmo que do artigo anterior, todavia tendo na questo dos currculos o seu ponto central de refl exo. E, de fato, se a questo da educao fundada no princpio da diversidade j por si mesma complexa ao se tratar dos afrodescendentes cuja maioria das pessoas est culturalmente integrada na sociedade eu-rocntrica -, o que no dizer dos povos indgenas, onde as barreiras ideolgicas e prticas que se colocam sobre os mesmos, alm de sua dimenso mais especifi camente fsica, igualmente incorporam aspectos reportados s identidades culturais ancestrais. Enfi m, este o eixo que os autores do artigo se propuseram a refl etir.

  • Apresentao 11

    Finalmente, o oitavo captulo, escrito em lngua espanhola por Jos Bessa Freire, se debrua sobre a importncia da consti-tuio de bibliotecas plurilingusticas dedicada incorporao es-pecfi ca de obras escritas nas linguagens dos povos indgenas. De fato, em qualquer estudo que verse sobre o tema das identidades nacionais, o tema da lngua e sua transposio de sua forma pura-mente falada para sua decodifi cao gramatical est longe de ser um problema especifi camente lingustico se voltando mesmo para um debate sobre os fundamentos do Estado nacional moderno, bem como seus limites. Assim, o problema da existncia ou no com dimenses multiculturais pode abrigar uma importncia muito mais profunda que aparentemente poderia levar a supor. De qualquer modo, vale frisar que o autor tem por eixo de estudo a realidade vigente no Peru, pas de marcada e visvel presena amerndia.

    Em suma, dentro do grande tema da diversidade e do multiculturalismo dentro do ambiente acadmico universitrio, o presente livro abriga diversas possibilidades analticas que deixarei ao prprio leitor saborear com seus prprios olhos.

    Vale, todavia, citar a dimenso transformadora destas interpretaes e experincias, salutar mesmo para a renovao de perspectivas para o j desgastado modelo eurocntrico que a fun-damentou, bem como para a abertura de novas possibilidades, me-nos tristes, de combinao entre a produo do conhecimento, sua transmisso, e a nobre e difcil arte de transformar a ordem das coisas.

  • Sumrio

    Apresentao | Diversidade e multiculturalismo: novos rumos para a Universidade brasileira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 04

    Marcelo Paixo

    Aes afirmativas na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15

    Ahyas Sissngela Ferreira PaceFernando Resende NbregaLygia Fernandes

    Subjetividade e relaes intertnicas: A matriz religiosa afrobrasileira na educao superior . . . . . . . . . . . . . . . . 31

    Leila Dupret

    A importncia do sistema de reserva de vagas na Uerj na construo de identidades negras . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49

    Maria Alice Rezende Gonalves

    Aes afirmativas e o acesso de negros na educao superior - A experincia do Instituto Luther King . . . . . . . . . . . . . . 69

    Mariluce BittarWanilda Coelho Soares de Moraes

  • Relaes intertnicas e educao superior indgena: O programa Rede de Saberes em Mato Grosso do Sul . . 103

    Aguilera Urquiza, A. H.Nascimento, Adir CasaroBrand, Antonio J.

    Entrelaando passado e presente: educao indgena e etnosaberes tupinamb . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127

    Ana Paula da SilvaAloisio MonteiroJos Ribamar Bessa Freire

    Lugar da memria e memria do lugar:

    Formao de professores indgenas e o currculo como narrativa tnico-racial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139

    Aloisio MonteiroJoliene do Nascimento Leal

    Quijote Y Quimbaya: Literacidad y oralidad en la Biblioteca Intercultural Indigena . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 157Jos Ribamar Bessa Freire

  • Aes afirmativas na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro Ahyas Siss1ngela Ferreira Pace2Fernando Resende Nbrega3Lygia Fernandes4

    Introduo

    A busca pela igualdade entre os indivduos um dos pressupostos para a construo de uma sociedade verdadeiramen-te democrtica. Contudo, a igualdade no um fenmeno natural inerente estrutura de toda e qualquer nao. Desta forma faz-se necessrio, em favor de grupos tnicos, de determinados grupos religiosos, de pessoas portadoras de necessidades especiais e de-mais grupos suscetveis a processos discriminatrios, a adoo das chamadas aes afi rmativas, pautadas no princpio da igualdade, mediante programas resultantes de polticas pblicas fulcradas na noo de equidade. Esses programas sugerem, portanto, que, para contemplar a diversidade que compe uma dada populao, na bus-ca de uma uniformidade concreta, a aplicao das mesmas regras de

    1 Doutor em Educao. Professor do PPGEduc - Programa de Ps-Graduao em Educao da UFRRJ. Coordenador do Leafro Laboratrio de Estudos AfroBrasileiros (NEABi/UFRRJ).2 Mestranda do Programa de Ps-Graduao em Educao da UFRRJ. 3 Mestrando do Programa de Ps-Graduao em Educao da UFRRJ. Bolsista da FAPERJ.4 Mestranda do Programa de Ps-Graduao em Educao da UFRRJ. Bolsista da CAPES.

  • 16 Negros, indgenas e educao superior

    direitos, para todos, se mostram insufi ciente para o total reconheci-mento da dignidade humana. Uma excelente caracterizao dessas polticas a oferecida por Gomes (2001), ao postular que:

    (...) as aes afi rmativas podem ser defi nidas como um conjunto de polticas pblicas e privadas de carter com-pulsrio, facultativo ou voluntrio, concebidas com vistas ao combate discriminao racial, de gnero e de origem nacional, bem como corrigir os efeitos presentes da discri-minao praticada no passado, tendo por objetivo a con-cretizao do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educao e o emprego (GOMES, 2001, p. 40).

    No se pode negar que as desigualdades sociais, tnicas, raciais, de gnero e geracionais, dentre outras, operem como po-deroso mecanismo de estratifi cao social em qualquer sociedade onde elas se manifestem (SISS, 2003). certo, tambm, que na sociedade brasileira os ndices dessas desigualdades sejam elevados, pricipalmente aqueles relacionados s desigualdades sociais e tni-co-raciais.

    No que diz respeito s desigualdades sociais e tnico-ra-ciais, alguns estudiosos dessas relaes acreditam que o preconceito de classe mais importante que o preconceito tnico-racial e se opem, de forma veemente, a qualquer tipo de poltica de ao afi r-mativa, ou de cotas tnico-racialmente enviesadas, principalmente na rea da educao superior brasileira. Outros tantos pesquisado-res dessas mesmas relaes, porm, postulam ser o preconceito t-nico-racial mais importante que a condio de classe. Compreende-se que:

    O que torna o reconhecimento de uma questo racial to problemtica a existncia de uma ideologia de igualdade racial com base na miscigenao que no encontra res-paldo na vida social. Como em muitas outras sociedades multi-raciais, as diferenas raciais no so tomadas como simples diferenas, mas como indcio de desigualdade e

  • Aes afirmativas na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro 17

    inferioridade; e a condio de classe to afi rmada nesse iderio democrtico serve apenas para mascarar uma pr-tica frequente de discriminao, evidenciada nas pesquisas atuais em todos os setores da sociedade (SEYFERTH, 1989, p. 30).

    Esta uma questo polifnica, que est colocada para a academia h mais de meio sculo e sobre a qual no h consenso. As polticas de ao afi rmativa, tanto na sua verso de cotas sociais, quanto na modalidade de cotas tnico-raciais, implementadas em uma grande parcela das Instituies de Ensino Superior brasileiras, contemporaneamente, tm suas bases orientadas e impactadas por esta polifonia tendendo, na sua grande maioria, pela implementao de cotas sociais.

    A UFRRJ e a Baixada Fluminense

    A UFRRJ - Universidade Federal Rural do Rio de Ja-neiro - que comemora em 2010 o seu centenrio est situada, em sua maior parte, na regio denominada Baixada Fluminense,

    onde se localizam dois de seus campi: o seu campus sede, localiza-do no Municpio de Seropdica e campus de Nova Iguau, outro Municpio localizado na regio da Baixada Fluminense. Em 1910, quando a UFRRJ foi criada, pertencia ao Ministrio da Agricultura

    Fonte: Anurio Estatstico Fundao CIDE - 2006

    Confi gurao da Baixada Fluminense

  • 18 Negros, indgenas e educao superior

    e, mais tarde, em 1934, a Escola Superior de Agricultura e Medicina Veterinria (ESAMV), como outrora era chamada, desmembrou-se em duas grandes escolas: Escola Nacional de Agronomia (ENA) e a Escola Nacional de Veterinria (ENV), tornando-se estabelecimen-to padro para o ensino agronmico e de medicina veterinria do Pas. Finalmente, em 1943, nasceu a Universidade Rural, j elevada categoria de Universidade, que contava em seu curriculum acadmico no somente com a ENA e a ENV, iniciais, como tambm cursos de ps-graduao para ambas as reas, alm de cursos de extenso, servio escolar e servio de desportos.

    A Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro foi cres-cendo e, com o passar dos anos, foi agregando, outras reas do conhecimento, contando hoje com 19 cursos de Ps-Graduao Stricto-Sensu, 70 cursos de Graduao na modalidade presencial: 55 desles no campus de Seropdica, 11 no campus de Nova Iguau e 4 cursos no campus de Trs Rios, alm de atuar na modalidade dis-tncia (EAD), onde conta com 2 cursos de graduao. O Municpio de Seropdica, onde se localiza o campus sede da UFRRJ foi, at meados do sculo XVII, ocupado por indgenas. Seu nome parece ter se originado da sericultura, ou seja, da atividade da criao do bicho-da-seda.

    Nova Iguau, assim como Seropdica, uma cidade do Estado do Rio de Janeiro, localizada em uma regio geogrfi ca com alto ndice populacional e acentuada desigualdade social, possuindo um dos maiores centros comerciais do pas, alm de uma concen-trao expressiva de indstrias. Neste local so gerados 25% do PIB industrial do Estado. Apesar de sua importncia econmica e da alta densidade populacional, a regio tem sido, historicamente, excluda de alguns cenrios culturais e intelectuais.

    Ainda que a educao escolarizada no seja a nica so-luo para a eliminao de todas as desigualdades sociais, raciais, tnicas, geracionais e de gnero, dentre outras, a criao de institui-es pblicas de ensino superior na regio, alm de promover uma

  • Aes afirmativas na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro 19

    ampliao do acesso a esse nvel de ensino vem favorecer processos de mobilidade e de incluso social, com impactos positivos para o desenvolvimento da regio.

    Sabemos que a educao ocupa um lugar histrico e fun-damental nos processos de construo e de implementao de ci-dadania plena dos diferentes segmentos populacionais de qualquer sociedade. No caso da Baixada Fluminense, de acordo com infor-maes do Instituto de Economia Aplicada, baseadas nas anlises fornecidas pelo Censo 2000, do Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatstica (IBGE), os municpios da Baixada Fluminense apresen-tam baixos ndices de desenvolvimento humano municipal (IDH-M), quando comparados com municpios de outras regies geogr-fi cas brasileiras.

    Com populao aproximada de 3,5 milhes de habitan-tes, a chamada Baixada Fluminense formada pelos municpios de Belford Roxo, Duque de Caxias, Guapimirim, Itagua, Japeri, Mag, Mangaratiba, Mesquita, Nilpolis, Nova Iguau, Paracambi, Queimados, So Joo de Meriti e Seropdica, dentre outros. Com densidade populacional mdia girando em torno de 28 pessoas por hectare, abriga cerca de 30% da populao do estado do Rio de Janeiro.

    De acordo com Paixo (2003), essa populao , majorita-riamente, descendente de imigrantes, afro-brasileira e pertencente classe trabalhadora. Chama a ateno o fato de que, 17% dessa popu-lao formada por jovens com idades variando entre 15 e 24 anos de idade. um espao geogrfi co marcado por elevados ndices de desigualdade social quando comparados com outras regies geogrfi -cas brasileiras, como podemos verifi car, atravs da Tabela I, 75% dos domiclios dessa regio possuem renda familiar per capita mensal de at dois salrios mnimos. Se o Brasil possui, de acordo com dados do IBGE (2000), cerca de 16 milhes de analfabetos, o municpio de Nova Iguau contribui, de acordo com esses mesmos dados, com cerca de 2,8% desse total. A Tabela II a seguir permite perceber que,

  • 20 Negros, indgenas e educao superior

    no que diz respeito ao quesito analfabetismo, o municpio de Nova Iguau encontra-se a super-representado, quando comparado com as demais regies geogrfi cas brasileiras, nesse perodo. Segundo da-dos coletados pelo IBGE e publicados no ano de 2000 esse munic-pio apresentava baixa escolarizao, quando comparado com outras regies geogrfi cas brasileiras de acordo com a Tabela III.

    TABELA I - NDICE DE POBREZA POR GRUPOS TNICOS E SEXO. Localidade Brasil, Sudeste, Rio de Janeiro, Metropolitana do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Nova Iguau. Zona Urbana

    Masculino Feminino

    Localidade Brancos Negros Indgenas Total Brancos Negros Indgenas Total

    Brasil 25,65% 49,24% 43,45% 36,05% 26,17% 50,34% 44,48% 36,24%

    Sudeste 19,45% 36,12% 30,46% 25,59% 19,81% 37,49% 32,35% 25,90%

    Rio de Janeiro 21,98% 39,03% 31,02% 29,83% 21,94% 39,99% 31,79% 29,85%

    Metropolitana do Rio de Janeiro 20,74% 37,73% 31,02% 28,72% 20,67% 38,59% 31,74% 28,70%

    Rio de Janeiro 20,55% 37,51% 30,65% 28,63% 20,42% 38,39% 31,25% 28,59%

    Nova Iguau 32,92% 44,40% 39,54% 32,99% 45,04% 39,68%

    FONTE: CENSO DEMOGRFICO, IBGE, 2000. TABULAES DO LAESER - IE-UFRRJ

    Feminino

    Raa/Cor Brasil Sudeste Rio de Janeiro Metropolitana do Rio de Janeiro Rio de JaneiroNova

    Iguau

    Brancos 7,12 5,84 4,53 4,14 3,98 6,33

    Negros 14,83 10,94 8,79 8,21 8,00 9,26

    Pretos 17,91 13,70 11,54 10,64 10,36 11,97

    Pardos 14,27 10,26 7,85 7,41 7,22 8,38

    Indgenas 16,04 13,48

    FONTE: CENSO DEMOGRFICO, IBGE, 2000. TABULAES DO LAESER - IE-UFRRJ

    TABELA II - TAXA DE ANALFABETISMO POR GRUPOS TNICOS, SEXO E IDADE. Localidade Brasil, Sudeste, Rio de Janeiro, Metropolitana do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Nova Iguau. Zona Urbana

    Masculino

    Raa/Cor Brasil Sudeste Rio de Janeiro Metropolitana do Rio de Janeiro Rio de Janeiro Nova Iguau

    Brancos 5,78 4,15 3,66 3,27 3,15 4,73

    Negros 13,47 8,43 6,60 6,00 5,82 6,44

    Pretos 14,90 10,12 7,90 6,86 6,56 8,19

    Pardos 13,19 8,00 6,15 5,72 5,58 5,84

    Indgenas 11,25 7,85

  • Aes afirmativas na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro 21

    Nesse mesmo corte populacional e entre 15 e 24 anos de idade, 13,5% desse segmento jovem em Nova Iguau possuem menos de quatro anos de escolaridade. Acreditamos haver uma efe-tiva correlao entre pobreza econmica e baixas taxas de escola-ridade, entre capital econmico e capital cultural (Bourdieu, 1974). A Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, principalmente atravs da atuao de seu campus avanado, em Nova Iguau, vem atuando, efetivamente, no sentido de reduzir esses elevados ndices de desigualdades.

    Para alm da efetiva correlao estabelecida entre pobreza econmica e baixas taxas de escolaridade, acreditamos, tambm, que a educao seja um mecanismo efetivo e imprescindvel de promoo de incluso social. A reduo dos ndices de desi-gualdades sociais est diretamente vinculada democratizao do acesso da populao a um ensino de pblico e de qualidade, como postulam pesquisadores como Freire (1989), Pastore (1979), Savia-ni (2004) e Vieira (1999). Acreditamos que os baixos ndices de escolarizao do municpio de Nova Iguau apontados pela Tabela III, desse projeto de pesquisa, possam sofrer uma drstica reduo, desde que estratgias objetivas e coerentes de elevao da taxa de

    FEMININO

    Raa/Cor Brasil Sudeste Rio de Janeiro Metropolitana do Rio de Janeiro Rio de Janeiro Nova Iguau

    Brancos 88,82 86,91 89,56 89,94 90,20 82,70

    Negros 84,30 80,92 82,09 82,11 82,17 79,90

    Indgenas 85,19 82,43 88,03 92,40 91,22

    FONTE: CENSO DEMOGRFICO, IBGE, 2000. TABULAES DO LAESER - IE-UFRRJ

    TABELA III - TAXA DE ESCOLARIZAO BRUTA TOTAL POR GRUPO TNICO E SEXO ZONA URBANA.Localidade: Brasil, Sudeste, Rio De Janeiro, Metropolitana Do Rio De Janeiro, Rio De Janeiro, Nova Iguau

    MASCULINO

    Raa/Cor Brasil Sudeste Rio de Janeiro Metropolitana do Rio de Janeiro Rio de Janeiro Nova Iguau

    Brancos 86,77 86,51 88,07 88,80 89,34 81,70

    Negros 80,35 78,95 79,22 79,59 79,68 78,18

    Indgenas 82,45 80,00 80,38 80,20

  • 22 Negros, indgenas e educao superior

    escolaridade da populao desse municpio sejam elaboradas e coe-rentemente implementadas.

    As transformaes da regio em que se localiza o campus do Instituto Multidisciplinar apontam para uma crescente urbaniza-o da periferia do Rio de Janeiro, produzindo alteraes no perfi l da populao que, cada vez mais, demanda acesso ao ensino supe-rior. A Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, como uni-versidade pblica na regio, direciona a formao de pesquisadores e professores do ensino fundamental e mdio, contribuindo para tornar mais equnimes os caminhos de acesso Universidade. A procura pelo Ensino Superior , sem dvida, parte importante des-se compromisso de melhoria da qualidade de vida da populao que habita a regio da Baixada Fluminense. A criao do campus da UFRRJ em Nova Iguau relaciona-se intrinsecamente com o aten-dimento dessa demanda social por parte da UFRRJ que no ignora o fato de que essa regio enfrenta enormes difi culdades em obter servios pblicos de qualidade, constituindo-se o acesso a educao superior pblica, gratuita, social e culturalmente referenciada como um de seus maiores problemas.

    Ao produzir e divulgar estudos de impacto e de inter-veno no campo do poder pblico e na esfera educacional, os campi da UFRRJ, na baixada Fluminense, materializam alguns de seus objetivos e metas previstas no seu Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI) e se legitima como ator e canal privilegiado de interlocuo com as vrias instituies e organizaes locorregio-nais atravs da discusso dos resultados alcanados. A universidade contribui, ento, para a reduo das mltiplas desigualdades sociais e das relaes assimtricas de poder, historicamente construdas, e intervindo, positivamente, nos processos de implementao de cidadania, atravs de uma educao inclusiva.

  • Aes afirmativas na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro 23

    A UFRRJ e as polticas de ao afi rmativa

    A UFRRJ, embora localizada na regio Sudeste, possui, em seu corpo discente, alunos oriundos de outras regies brasi-leiras e at de outros pases. Atualmente, cerca de 18,8% de seus alunos so advindos de outros estados brasileiros. O campus sede da UFRRJ em Seropdica, devido sua diversidade cultural, conheci-do como a torre de babel dos sotaques e idiomas. Durante anos, a UFRRJ procurou atender a estudantes de outras localidades, tais como no ento territrio de Macap, nas dcadas de 1970 e 1980 e, posteriormente, no fi nal da dcada de 1990, em alguns municpios do estado do Rio de Janeiro como Paracambi, Trs Rios, Quatis, Nova Iguau e Volta Redonda, mediante uma expanso associa-da a convnios com os respectivos municpios. A experincia foi importante, e potencializou refl exes em torno da necessidade de tornar-se a UFRRJ uma instituio multicampi. A UFRRJ engajou-se ao Programa de Expanso Universitria do Governo Federal, criando os campi de Nova Iguau, e de Trs Rios, no interior do es-tado do Rio de Janeiro, em 2007, que j funcionava na modalidade de turmas fora da sede, tendo acarretado na ampliao dos cursos oferecidos e, consequentemente, de estudantes.

    Buscando efetivar polticas de democratizao de perma-nncia de estudantes no ensino superior, a UFRRJ oferece aloja-mentos masculinos e femininos, no seu campus sede para cerca de 2.000 alunos dos cursos de Graduao e de Ps-Graduao. A dis-tncia da moradia do aluno, aliado baixa renda familiar comprova-das, so os critrios que defi nem o acesso a esse benefcio.

    Nesse mesmo campus, h restaurante universitrio que conta em sua equipe com Economistas Domsticos e Nutricionis-tas, que cuidam de todo o gerenciamento, no intuito de oferecer refeies qualitativamente adequadas ao corpo discente e por va-lores mdicos. Os preos das refeies variam de setenta centa-vos (R$0,70) a um real e quarenta e cinco centavos (R$ 1,45). Para

  • 24 Negros, indgenas e educao superior

    aqueles estudantes que no podem arcar com as despesas referentes alimentao, a Universidade possui uma poltica de bolsas, que proporciona aos seus alunos dos cursos de graduao, bem como aos alunos do Colgio Tcnico da UFRRJ (CTUR), refeies refe-rentes ao desjejum, almoo e jantar, gratuitamente. Aqui, o critrio de carncia econmica fundamental.

    Ainda referente alimentao, por iniciativa da UFRRJ, foi implementada a Bolsa Trabalho e a Bolsa Emergencial sem car-ter remuneratrio, atravs da qual o estudante exerce uma atividade junto ao DEG ou ao Restaurante Universitrio, em troca de gratui-dade na alimentao. Nos outros campi da UFRRJ no h restauran-te universitrio, mas j existem projetos institucionais voltados para sua implantao.

    A UFRRJ integra o Plano Nacional de Assistncia Estu-dantil (PNAES). Destinado aos estudantes matriculados em cur-sos de graduao presencial das Instituies Federais de Ensino Superior, o PNAES atua com aes de assistncia estudantil de-senvolvidas nas reas referentes moradia estudantil, alimentao, transporte, assistncia sade, incluso digital, cultura, esporte, cre-che e apoio pedaggico, embora no seja determinado como dever para as instituies, a execuo de todas essas aes. No mbito da instituio, o PNAES vem sendo implantado na modalidade Bolsa Permanncia, a qual foi subdividida em Bolsa Apoio Moradia, Bolsa Apoio ao Transporte, Bolsa Apoio Alimentao e Bolsa Apoio Didtico-Pedaggico.

    O nmero de Bolsas Permanncia concedidas so discri-minados da seguinte forma.Tabela IV - Distribuio do Programa de Bolsas PNAES por campus

    Campus Bolsa Moradia Bolsa Transporte Bolsa AlimentaoBolsa Didti co-

    Pedaggica

    Seropdica 100 100 XX 200

    Nova Iguau 200 200 250 200

    Trs Rios 50 50 100 100

    Total 350 350 350 500

    Fonte: Decanato de Ensino e Graduao - DEG/UFRRJ

  • Aes afirmativas na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro 25

    Ademais, a UFRRJ propicia Bolsas de Extenso, sendo parte delas com recursos prprios. Com relao sade dos es-tudantes, bem como de toda a comunidade universitria, a UFRRJ mantm um servio mdico, na modalidade ambulatorial, no campus de Seropdica. Este servio funciona 24 horas por dia e conta com uma equipe composta de mdicos, enfermeiros, fonoaudilogos, fi sioterapeutas, psiclogos e assistentes sociais. Apesar do seu ca-rter ambulatorial a universidade possui ambulncias prprias para remoo.

    Ainda em relao ao servio sade, UFRRJ proporciona uma Seo Especial de Ateno ao Aluno, espao onde trabalham voluntrios, como os prprios alunos na recepo, alm de masso-terapeutas, fi sioterapeutas e assistentes sociais, e profi ssionais de terapias alternativas como Reike e Florais de Bach. Toda a estrutura fsica, da salinha azul, como conhecida, custeada pela Univer-sidade. Somente no primeiro semestre de 2010 foram feitos 500 atendimentos de Reiki e 200 de massoterapia.

    Como parte de sua poltica de democratizao de acesso universidade, a UFRRJ implementou a reserva de 20% de vagas em seus cursos de licenciatura para professores em atividade na rede pblica de Educao Bsica, em consonncia com o Plano Nacional de Formao de Professores da Educao Bsica (PAR-FOR). Entretanto, a mais recente conquista em relao poltica de reserva de vagas na universidade aquela instituda em associa-o com o Programa Nacional de Educao na Reforma Agrria, o PRONERA.

    O PRONERA resulta de uma parceria entre o Governo Federal, Universidades e Movimentos Sociais no campo. Ele possui como objetivos principais estimular, propor, criar, desenvolver e coordenar projetos na rea de educao nos assentamentos de re-forma agrria. Integrando essa parceria, a UFRRJ criou o curso de Licenciatura em Educao no Campo, que pode passar a vigorar j no prximo ano, destinando 50 vagas para assentados, cadastrados

  • 26 Negros, indgenas e educao superior

    nos projetos de assentamentos da Reforma Agrria criado pelo IN-CRA e 10 vagas para as populaes indgenas e quilombolas.

    No que diz respeito s polticas de ao afi rmativa etnica-mente enviesadas, a universidade possui inicitivas implementadas, atravs das atividades do Leafro Laboratrio de Estudos Afro-Brasileiros NEABi da UFRRJ. Esse laboratrio vem oferecen-do, nos anos de 2007, 2008 e 2009, ofi cinas, cursos de extenso e de Ps-Graduao Lato-Senso em Diversidade tnica e Educao Brasileira (SISS, 2008). O Leafro vem atuando na formao conti-nuada de professores das redes pblicas dos Municpios da Baixada Fluminense enfocando as relaes entre educao, prtica docen-te e diversidade tnico-racial, tal qual explicita o Parecer CNE/CP 3/2004, a Lei n. 10.639/03 e a Lei n. 11.645/08, propiciando, pre-ferencialmente, aos professores, bem como aos demais cursistas, uma transformao qualitativa e positiva de sua prxis pedaggi-ca, no que diz respeito educao das relaes tnico-raciais na escola e na sociedade abrangente, qualifi cando a prtica docente desses profi ssionais da educao e ampliando sua formao inicial, ao mesmo tempo em que busca possibilitar aos professores, a cons-truo de alternativas de interveno pedaggica no processo edu-cativo. Acreditamos estar intervindo, positivamente, no processo de formao continuada de professores de forma a possibilitar a construo de novas subjetividades, de mudana de atitudes frente s relaes de dominao e de excluso, tanto no interior da Insti-tuio escolar, quanto na sociedade ampliada.

    Consideraes fi nais

    O resultado do levantamento das aes afi rmativas em cursos na UFRRJ apontam na direo de que elas, nas suas dife-rentes modalidades, tm se estruturado, at o momento, quase ex-clusivamente, a partir das condies socioeconmicas do seu corpo docente, ignorando as dimenses culturais de seus alunos. Polticas

  • Aes afirmativas na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro 27

    de ao afi rmativa, ou de cotas, enviesadas por etnia, raa, gnero, idade e pertena religiosa no tm sido implementadas por essa universidade. Muito embora a dinmica do racismo e da excluso dos Afro-brasileiros do ensino superior pblico tenha se modifi -cado, em relao quelas existentes, at meados dos anos noventa, do sculo passado e, principalmente, aps a Conferncia Mundial Contra o Racismo, a Discriminao Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerncia ocorrida na frica do Sul, em Durban, no ano de 2001, essa excluso, ou a insero precarizada dos Afro-brasileiros no ensino superior ainda um fato entre ns.

    Em 2010, a UFRRJ por meio do Leafro (Laboratrio de Estudos Afro-Brasileiros) iniciou seu I Censo Institucional Dis-cente. Um dos objetivos desse levantamento censitrio identi-fi car, analisar e caracterizar os segmentos populacionais das di-ferentes regies que demandam o acesso UFRRJ e as formas pelas quais a universidade vem se organizando, para dar respostas efetivas e qualifi cadas a essa demanda. Isso signifi ca discutir como se constri, ou no, o relacionamento dessa universidade com a sociedade e, mais precisamente, com as regies nas quais se inse-rem seus campi. Seu maior, ou menor, impacto social no cotidiano locorregional poder ser mensurado atravs desse estudo, o que permitir, universidade, elaborar e implementar polticas de in-cluso social diferenciadas, que permitam atender, com qualidade, a essas demandas.

    Outro dos objetivos desse levantamento construir o per-fi l dos alunos com matrcula ativa jovens, na sua grande maioria que frequentam os cursos oferecidos pela UFRRJ, com dados de-sagregados por classe social, etnia/raa, gnero, local de residncia e religio, dentre outros. O levantamento das formas de acesso universidade utilizados por esses alunos, seus mecanismos de resis-tncia, bem como as possveis estratgias por eles construdas de superao desses obstculos, permitir UFRRJ, conhecer melhor seus alunos e a criao de mecanismos que lhes possibilite uma tra-

  • 28 Negros, indgenas e educao superior

    jetria escolar menos acidentada, o que possibilitaria a reduo de eventuais ndices de evaso e de reteno acadmicas.

    Espera-se que o perfi l dos alunos dessa universidade, a ser delineado por esse I Censo Institucional Discente, possa lanar luzes novas e fortalecer, de forma positiva, as discusses sobre a necessidade, ou no, da implementao de uma poltica de ao afi rmativa na modalidade de cotas para Afro-brasileiros na UFRRJ, discusses essas que j vm acontecendo no mbito dessa univer-sidade na UFRRJ. At agora, h uma sinalizao de que a cota nu-mrica, como forma de democratizao do acesso de alunos negros UFRRJ, seja rejeitada (ADURINFORMA, n. 94, 2007, p. 04). Entretanto, a ideia de se adotar cota social, vale dizer, para alunos pobres e oriundos de escolas pblicas, como mecanismo de demo-cratizao de acesso a essa universidade, encontra maior receptivi-dade na comunidade acadmica.

    Para os limites deste artigo podemos, por ora, concluir que o caminho para a efetiva democratizao do espao universi-trio ainda longo, pois as polticas de ao afi rmativa at agora implementadas no contexto da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, demonstram que no contemplam toda a comunidade.

    Referncias bibliogrfi cas

    ADURINFORMA. UFRRJ Debate Polticas de Ao Afi rmativa. In: Informativo ADUR. Disponvel em: http://www.adur-rj.org.br/5com/adurinforma/adurin-forma94.pdfBRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao das Relaes Etni-corraciais e para o Ensino de Histria e Cultura Afrobrasileira e Africana. Mi-nistrio da Educao. Secretaria Especial de Polticas de Promoo da Igualdade Racial. Braslia : CNE, 10 de mar. de 2004. Petronilha Beatriz Gonalves e Silva (Relatora) BOURDIEU, Pierre. Avenir de classe et causalit du problable. In: Revue franaise de sociologie. Paris, 1974.FREIRE, Ana Maria, Analfabetismo no Brasil. So Paulo, Cortez/INEP, 1989. GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ao Afi rmativa & Princpio Constitucional da

  • Aes afirmativas na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro 29

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  • Subjetividade e relaes intertnicas: A matriz religiosa afrobrasileira na educao superior

    Leila Dupret1

    Resumo

    O captulo, fruto da experincia docente, discorre sobre a ocorrncia de situaes subjetivas, enfatizando a interferncia de sentimentos nas prticas educativas. A defi nio de subjetividade escolhida como referncia de base est sustentada pelas confi gu-raes dos sujeitos e suas relaes a partir dos pressupostos teri-cos de Vygotsky (1987, 1988), destacadamente a indissociabilidade afeto-intelecto e o conceito de zona de desenvolvimento proximal; Gon-zlez Rey (2003) com sua concepo sobre o sentido social e Morin (1996) a partir dos ensaios sobre complexidade.

    Nesta perspectiva, o texto percorre o trajeto da Lei n. 10.639 promulgada em 9 de janeiro de 2003, sua regulamentao pelo parecer do Conselho Nacional de Educao em 2004 e o es-tado dos profi ssionais de educao diante deste fato. Em seguida, ressalta a necessidade e a importncia de ser resgatada a construo dos brasileiros, o que passa a ser um alento para todos aqueles que, em se reconhecendo como negros, vislumbram agora seu espao valorizado e decantado pela educao.

    1 Psicloga, Mestre em Psicologia, Doutora em Psicologia, Ps-doutora em Psicologia, Prof Adjunta da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Membro do Laboratrio de Estudos Afrobrasileiros Leafro/NEABI UFRRJ.

  • 32 Negros, indgenas e educao superior

    Entretanto, o objetivo principal foi recortado no campo mais delicado das interferncias dos negros, pois se refere ao apa-rato religioso presente em nossa construo subjetiva. No mui-to fcil trazer para a discusso acadmica a rea de estudos sobre religio. No foi toa que Derrida e Vattimo (2000) entre outros pensadores fi zeram seminrios dirios em Capri acerca do tema, porque este seria um dos grandes desafi os do sculo XXI.

    Mas, voltando ao foco do estudo em tela, falar cientifi ca-mente sobre matrizes afrobrasileiras religiosas e seus atravessamen-tos presentes em nossa subjetividade a pessoas que fazem parte de um grupo cuja escolaridade se intitula de nvel superior em edu-cao, tem sido uma experincia riqussima em todos os sentidos: pessoais, profi ssionais e intelectuais.

    Lidar com os impedimentos discriminatrios etnocntri-cos instiga no s meu potencial na busca de argumentos que fun-damentem a manuteno da temtica viva nos ambientes acadmi-cos, em seus mais variados estilos: aulas, atividades complementa-res, congressos nacionais e internacionais; como tambm estimula, cada vez mais, minha capacidade de resistir a posturas racistas que permanecem alimentando as desigualdades tnicas.

    Cabe lembrar, que em se tratando de educao de nvel superior, a universidade desponta como fomentadora de discusses que ampliam o conhecimento. E ainda, se ela pretende em seus princpios ser de qualidade, no deve se furtar o direito de ter pro-fi ssionais encorajados a estudar os mais diferentes assuntos; alis, esta a marca da diversidade acadmica que se traduz na multidis-ciplinaridade.

    Ademais, se a universidade for pblica, precisa garantir os padres de atendimento que lhes so demandados, incluindo a todos que dela participam, porm favorecendo a permanncia dos mesmos; no por assistencialismo culpado pelas injustias cometi-das durante alguns sculos, mas por convico de princpios polti-cos e valores humanos que primam pela equidade social.

  • Subjetividade e relaes intertnicas 33

    Introduo Quando em 2004 foram estabelecidas pelo Conselho Na-

    cional de Educao as Diretrizes Curriculares para a Educao das Relaes tnicorraciais e o Ensino de Histria e Cultura Africanas e Afrobrasileiras, em conformidade com a Lei n. 10.639 sancionada em 2003, as instituies educativas se viram na obrigatoriedade de cumprir o que foi proposto, porm sem saber como faz-lo. Assim se coloca o primeiro obstculo a ser ultrapassado: alcanar infor-maes nunca dantes reveladas ou mencionadas em nossas esco-las. A histria, principalmente a do Brasil, estudada nas instituies de ensino em seus diferentes nveis de escolaridade, durante muito tempo no apresentou qualquer contribuio efetiva dos africanos para a nossa constituio econmica, poltica, social, cultural, reli-giosa, ideolgica, ou mesmo fi losfi ca.

    Deste modo, crescemos professores e alunos, transforma-dos posteriormente em profi ssionais das mais variadas reas, se-guindo um caminho trilhado pelo entendimento errneo dos nos-sos aprendizados de que no havia questes raciais em nosso pas, as quais na verdade estavam encobertas pelo mito da democracia racial, decantado por autores renomados como Gilberto Freire em Casa Grande e Senzala (2002), e Ruth Landes em A Cidade das Mulheres (2002), por exemplo. Alm disso, os padres de boa educao, de aquisio de conhecimentos, de evoluo civilizatria se pautavam em referncias trazidas pelos europeus, desconsiderando completa-mente os saberes advindos dos africanos.

    A maioria dos(as) profi ssionais que atuam ou atuaram nas IES, especialmente em licenciaturas e cursos de Pedagogia, obteve sua formao em meio a este contexto histrico e ideolgico do qual decorre a forma excludente de se viver e pensar a sociedade brasileira, e que desconsiderou tanto os confl itos tnico-raciais quanto as contribuies do gru-po social em questo (assim como de outros, a exemplo do indgena). A escola que formou os(as) profi ssionais da

  • 34 Negros, indgenas e educao superior

    educao que atuam hoje se baseou numa perspectiva cur-ricular eurocntrica, excludente e por vezes preconceituo-sa. (Brasil, MEC, 2010, p. 125).

    Diante deste fato, os professores, em especial, se viram na obrigao de obter informaes que pudessem, minimamente, sanar lacunas deixadas por currculos anteriores dos quais tinham sido alvo, por um lado e por outro, transformar seus aprendizados imediatos em contedos pedaggicos por eles programados. Em outras palavras, aprender e recompor planejamentos de modo a via-bilizar o novo conhecimento a quem aprende.

    Cabe destacar, entretanto, que tal impacto no se d de modo to simples como se escreve e este o ponto em que quero me deter. Existe implicitamente, ou melhor, na experincia que se d de maneira subjacente, o contato com uma dinmica psicolgica na qual protagonizam a imposio do fazer versus o no saber, a determinao da obrigatoriedade versus a impossibilidade de re-alizao, o oferecimento de material textual versus a escassez da prtica educativa em outros moldes, para se ilustrar o estado em que muitos professores fi caram e alguns ainda se mantm. im-portante mencionar a situao subjetiva porque ela um interfe-rente direto na realidade objetiva do contexto escolar, seja em nvel fundamental, mdio ou superior.

    Esta revelao nos coloca, ao mesmo tempo, diante de duas demandas: uma se refere ao atendimento do professor que no deveria alimentar uma baixa autoestima, desembocando em fracassos intelectuais e desmobilizaes profi ssionais; a outra, diz respeito ao prprio contato com nossas razes, que por terem sido to desmerecidas durante tanto tempo, tendem a no serem admi-tidas como importantes. Olhando-se por outro prisma, percebe-se que mesmo professores negros resistem em adotar procedimentos que validem a presena da contribuio africana em nossas constru-es historicamente objetivas e subjetivas.

  • Subjetividade e relaes intertnicas 35

    Subjetividade e relaes interpessoais

    O conceito de subjetividade social nos permite compreen-der a dimenso subjetiva dos diferentes processos e insti-tuies sociais, assim como o da rede complexa do social nos diferentes contextos em que ela se organiza atravs da histria. Esta viso facilita transcender a diviso dicotmi-ca entre o social e o subjetivo, assim como da dicotomia entre o individual e o social. (REY, 2003, p. 78)

    As palavras de Rey (2003) permitem delinear uma concep-o de subjetividade que no prioriza o individual em detrimento do social, ou o social em detrimento do individual, mas enfatiza a interferncia mtua e a referenciao recproca, de ambos no pro-cesso de construo subjetiva. Alm disso, amplia a refl exo sobre o que subjetividade, favorecendo o entendimento de que o con-ceito pode ser defi nido como tudo o que da instncia do sujeito, tendo sua expresso mais simples e perceptvel na esfera do cotidia-no, compreendendo o que objetivo e subjetivo, j que signifi cam manifestaes singulares, prprias, exclusivas, mas que esto cons-titudas pelo que individual e coletivo a um s tempo.

    Nesta dinmica importante trazer baila dois concei-tos pontuados na histria do desenvolvimento humano como fundamentais: a zona de desenvolvimento proximal sugerida por Vygotsky (1988) e a socializao conforme admitem Berger e Lu-ckmann (1985). O conceito de zona de desenvolvimento proximal defi nido como um estado potencial do sujeito que est prximo do que ele capaz de realizar, mas que ainda no o faz sozinho, precisando de algum mais capaz para instig-lo em sua busca de estratgias para a realizao, permite visualizar a interferncia do outro no processo de desenvolvimento de um sujeito. Dito de ou-tro modo, a dinmica da relao dos sujeitos com outros sujeitos in-terfere nos seus desenvolvimentos, pois esta interao instigadora de manifestaes que, embora estejam prestes a acontecer, s ocor-rem quando dela decorrem. Este movimento permite observar o

  • 36 Negros, indgenas e educao superior

    estreitamento da relao individual-social como construtores de si mesmos sem supremacia ou determinao de um ou outro, mas de maneira interferente e processual. Nas palavras de Vygotsky (1988, p. 97) a zona de desenvolvimento proximal prov psiclogos e educadores de um instrumento atravs do qual se pode entender o curso interno do desenvolvimento.

    Ainda no campo das relaes interpessoais cabe destacar a socializao primria, isto , o primeiro encontro do sujeito com outros sujeitos, aos quais em tenra infncia, a partir do estabeleci-mento do vnculo de afeto intenso, elege de modo no consciente como signifi cativos, cumprindo papis de verdadeiros modelos a serem seguidos; e a socializao secundria, momento posterior em que o sujeito tem contato com outros sujeitos, em diferentes ambientes sociais na sua maioria institucionalizados, nos quais pode acontecer o estabelecimento do vnculo de afeto assemelhado ao da primeira infncia, culminando na eleio de novos outros signifi cativos, tambm de modo no consciente, os quais servem igualmente de referncias a serem seguidas, a partir de mecanismos de identifi cao. Como nos diriam Berger e Luckmann (1985, p. 200), os outros signifi cativos na vida do indivduo so os princi-pais agentes da conservao de sua realidade subjetiva.

    A convocao dos autores presena da afetividade nos remete a um lembrete, mais uma vez encontrado nos pressupostos de Vygotsky (1987), quando ele afi rma que um dos grandes proble-mas metodolgicos da psicologia reside em separar intelecto e afeto em suas pesquisas e estudos, pois que ambos se apresentam unidos nos mais diferentes comportamentos.

    A separao enquanto objeto de estudo uma das prin-cipais defi cincias da psicologia tradicional, uma vez que esta apresenta o processo de pensamento como um fl uxo autnomo de pensamentos que pensam a si prprios, dissociado da plenitude da vida, das necessidades e dos interesses pessoais, das inclinaes e dos impulsos daquele que pensa. (VYGOTSKY, 1987 p.6).

  • Subjetividade e relaes intertnicas 37

    As defi nies trazidas nos servem para alinhavar o que nes-te trabalho entendemos por subjetividade, no desprezando outras consideraes de autores renomados, porm explicitando o recorte feito por nosso estudo como algo que transcende o mbito indivi-dual e est confi gurado como sendo apenas de cunho subjetivo. Ao contrrio, ao sintetizar tudo que diz respeito ao sujeito, traduz-se no prprio dilogo do que subjetivo, ou seja, pertence ao sentimento, s emoes, volio, ao desejo; e o que objetivo, isto , pertence razo, ao que material, concreto, comum. Do mesmo modo, os caminhos tomados na direo de conceitu-la revelam a possibili-dade dos atravessamentos culturais como seus constituintes, mas no como seus determinantes. E ainda, as relaes interpessoais so consideradas como interferentes no processo de construo subjetiva, mas no correspondem a predeterminaes de atitudes, condutas ou comportamentos.

    A partir desta linha de pensamento pretendo ressaltar os processos de construo subjetiva dos professores que, de um mo-mento para o outro, se viram obrigados a transmitir informaes sobre a Histria e a Cultura Africana e a Cultura Afrobrasileira sem ter subsdios para tal, alm de estarem submetidos a uma desvalo-rizao destas contribuies durante todo o percurso de suas pro-fi ssionalizaes.

    Universidade e ampliao do conhecimento

    A Universidade o lugar da construo de pessoas atravs do Ensino, da Pesquisa, da Extenso em busca do conheci-mento socialmente til compartilhado por um dilogo mais verdadei-ro. Pressupostos, Crenas, Preconceitos, Certezas s vezes no fundamentadas so disseminadas, so aceitas e s vezes defendidas pela grande maioria da Sociedade Brasileira. O Brasil tem uma enorme difi culdade em conviver de maneira civilizada com as diversidades. As diversidades dos outros seres humanos que no se assemelham ao modelo ocidental/eu-ropeu de cultura, de civilizao. (SIQUEIRA, 2006, p. 118).

  • 38 Negros, indgenas e educao superior

    Conforme as Orientaes e Aes para a Educao das Relaes tnicorracias, os NEABs so justamente o tipo de espa-o acadmico que mais poder ajudar a gerar um clima de diversi-dade nas universidades (Brasil, MEC, 2010, p. 128). Neste sentido, o LAFRO (Laboratrio de Estudos Afrobrasileiros) se confi gura como um NEABI (Ncleo de Estudos Afrobrasileiros e Indgenas) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro desde 2006. Insti-tucionalmente situado no campus de Nova Iguau, na Baixada Flu-minense, ele possui como objetivos: produzir, incentivar e acompa-nhar as polticas de ao afi rmativa, desenvolvidas na UFRuralRJ, favorecendo o aprendizado da Cultura Afrobrasileira e Africana. O Leafro atua nos mbitos de ensino, pesquisa e extenso, produ-zindo e divulgando conhecimentos localizados na confl uncia das reas de desigualdades e diversidades tnico/raciais e da educao, em consonncia com o que preconizado pela Lei n. 10.639/03 e, supostamente ampliado pela Lei n. 11.645/08. Busca intervir, tam-bm, no processo de formao inicial e continuada de professores, bem como nas modalidades presencial e distncia.

    importante ressaltar que o Leafro possui como diretriz de suas aes no s a produo e divulgao de conhecimentos acadmicos, mas tambm a interveno viabilizada por estas infor-maes em diferentes segmentos sociais da Baixada Fluminense. Atravs dos estudos que vem realizando e os que tm a inteno de realizar, o Leafro pretende estabelecer uma relao direta com demandas da Baixada Fluminense buscando interferir nas relaes sociais que se mostram visivelmente como assimtricas e desiguais. Alm disso, sendo um laboratrio de estudos instalado em Nova Iguau, faz parte do rol de seus compromissos se tornar uma refe-rncia no mbito cientfi co, no s em sentido amplo, mas princi-palmente nas investigaes locorregionais.

    Em sntese, o sistema interativo, por meio do qual levada em conta a realidade em que estamos inseridos, gerando aprendiza-do no lidar com informaes e, ao mesmo tempo, apresentando

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    comunidade outro universo informativo, advindo do conhecimen-to cientfi co e de suas possveis inovaes, descobertas e criaes, avanos e disponibilidades de tecnologia constitui o modo de fazer educao da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, da qual o Leafro parte integrante.

    O Leafro ministra Cursos de Extenso e de Ps-gradua-o lato sensu contemplando em suas estruturas curriculares a dis-ciplina Subjetividades e Religies Afrobrasileiras, guardadas as devidas propores de carga horria para ambos oferecimentos. Isto porque:

    A religio, aspecto fundamental da cultura humana, emblemtica no caso dos(as) negros(os) africanos(as) em terras brasileiras. Por meio desse mpeto criativo de so-brevivncia, pode-se dizer que a populao negra promo-veu um processo de africanizao de religies crists e de recriao das religies de matriz africana. (Brasil, MEC, 2010, p. 20).

    Delimitar a religio como rea de investigao e estudos desafi ador, inicialmente, porque destaca o campo simblico carac-terstico da condio humana oferecendo a ele o mrito que a cin-cia tradicional descarta enquanto fonte de aprofundamento de co-nhecimentos vlidos academicamente. Alm disso, em se tratando de religio de matriz africana e, por extenso, afrobrasileira, outros aspectos importantes participam dos nossos processos de subjeti-vao. Comeamos com o que nos lembra Marco Aurlio Luz:

    A estratgia desenvolvida pelo negro no Brasil garantiu a continuidade de seu processo civilizatrio, baseado nos valores da religio, que se constituiu numa verdadeira teo-logia da libertao dos povos que se fi rmam em meio aos contextos adversos do imperialismo-colonialismo, que tra-zem em suas entranhas o genocdio. (LUZ, 2002, p. 17).

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    Deste modo, utilizada como recurso para a manuteno da existncia das tradies e cultura africanas, a religio tambm funcionou como aglutinadora de um grupo que vindo de diferen-tes localidades da frica, precisava de uma referncia para fazer convergir, de um lado as lamentaes pelas perdas e, de outro, as comemoraes e festas que harmonizavam o esprito, fortalecendo e mantendo vivos, princpios que no podiam adormecer.

    Partindo deste pressuposto a disciplina Subjetividades e Re-ligies Afrobrasileiras, ento tem o objetivo de apresentar contribui-es da Psicologia para o entendimento do processo de construo subjetiva atravessado pela cultura africana, a partir das informaes religiosas, viabilizando a compreenso da interferncia dos consti-tuintes afrodescendentes no desenvolvimento humano. Assim, co-tidianamente, percebemos sua presena em diferentes ritmos musi-cais, nas letras de composies que ressaltam atributos dos Orixs ou mesmo suas aes, nos instrumentos de percusso utilizados das mais diversas formas; na dana, com o samba, o afox, o bal-afro entre outras modalidades; nas estampas, cores e modelos de roupas, nos adereos que marcam um estilo de moda, antes sequer pensa-da; no conhecimento de plantas, sua utilizao e preparo de chs, banhos, remdios, incensos; na alimentao com tipos de comidas, suas feituras e temperos usados; enfi m, uma gama de contribuies que confi guram o contexto social no qual estamos inseridos e que participa do nosso desenvolvimento, para resgatar a perspectiva de Vygotsky (1988). Obviamente, este demonstrativo denuncia uma valorizao pertencente contribuio dos negros em carter ma-cro, mas que se apresenta como partcipe de nossa subjetividade so-cial, conforme nos sinaliza a perspectiva de Gonzalez Rey (2003).

    Existem ainda caractersticas da religio de matriz afro-brasileira que precisam ser mencionadas em razo de oferecerem outras maneiras de ver o mundo e com ele se relacionar, dentre elas nos salta aos olhos a relao estabelecida com o sagrado. Cabe notar que os Santos no esto em esferas inalcanveis, eles participam

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    do mesmo espao que ns, seja atravs de fenmenos da natureza, no mar, nas chuvas, nos troves e relmpagos; seja por intermdio de valores humanos, na justia, na coragem; seja pela manifestao incorporativa nos mdiuns. A partir de tal proximidade possvel ocorrer o fortalecimento do sujeito e o sentimento de segurana despontar para suas iniciativas. Ademais, o respeito natureza e aos humanos afl ora no como mera imposio, mas como compreen-so da presena de sacralidade.

    Outro fator de suma importncia refere-se vivncia em comunidade, as experincias de vida compartilhadas em um mes-mo espao, por exemplo, o do terreiro, que se estende para alm de seus muros, pois acompanham o despertar do sentimento de solidariedade nas relaes interpessoais. Nesta perspectiva, o que chamado na linguagem comum aos participantes desta comunida-de de obrigao (defi nido como fonte distributiva de ax, ou seja, a energia que circula no ay e no orum, isto , na terra e na dimenso espiritual), embora seja de responsabilidade individual, pois cada um deve ter e cumprir a sua, reverte para todos que pertencem prpria comunidade do terreiro. Dito de outro modo, quando um sujeito realiza a sua obrigao, para a coletividade que alimenta a energia fundamental vida e no apenas para si mesmo; alis, nela ele est includo. Assim, esta compreenso do que uma responsa-bilidade coletiva traduz-se na possibilidade de se sentir importante para a manuteno do bem estar do grupo, acrescida do mesmo sentimento do grupo em relao a cada membro que o constitui.

    H tambm como vis da matriz religiosa em tela a ins-talao de um processo de desculpabilizao, se que posso utilizar este vocbulo para contrapor o pressuposto da culpa que habita outras modalidades religiosas, as quais tm como objetivo ltimo sua expiao, at na hora da morte. Para a vertente que estudamos no h pecado e, portanto, no necessrio ser perdoado. Alis, as histrias dos Orixs, que se traduzem em verdadeiro compndio de mitologia, s que no mais greco-romana, mas sim africana, so o

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    demonstrativo do que pretendo explicitar, (cf. Prandi, 2001; Verger, 1997). Em outras palavras, quando no temos o pecado original como ponto de partida, o amor e o desejo unidos em vibrao nica criam o mundo, e no possvel confi gurar uma situao pecaminosa, pela qual me veja sempre em dvida com algum a quem tenha que estar submetido em consequncia de ter feito o que no devia. Este carter de submisso e temor a Deus imediatamente substitu-do pela cumplicidade e parceria confi ada aos Orixs. Diante des-te quadro o prazer, a sensualidade e a festa so abenoados pelos Santos e participantes efetivos da vida dos humanos, incluindo a morte, pois ela apenas um outro modo de estar no mundo, em formato de energia (ax em outro feitio) e seu ritual celebrado como uma festa.

    O ss2 a origem e, ao mesmo tempo, o morto, a pas-sagem da existncia individual do iy existncia genrica do run (...) H um consenso social, uma aceitao coleti-va que permite transferir, representar e materializar num sistema simblico complexo a realidade cultural Nag da existncia simultnea do iy e do run, da vida e da morte.3 (SANTOS, 1986, p. 235).

    Finalmente, no poderamos deixar de mencionar a interferncia estrutural familiar que esta matriz proporciona, pro-pagando a relao entre pais, mes, fi lhos(as) e irmos(s) de santo, como se denomina nos ambientes em que ela se efetiva. Ou seja, o resgate da famlia como ncleo da construo dos sujeitos em suas relaes com outros sujeitos e com os recursos disponveis na cultura. Assim, a Me de Santo (Yalorix) respeitada em sua sabe-doria porque transmite oralmente os conhecimentos dos ancestrais, por exemplo; do mesmo modo, o reconhecimento do outro como irmo, no se d apenas de maneira discursiva porque a experin-

    2 Elemento constitutivo fundamental dos ritos e das cerimnias fnebres. 3 Grifos da autora.

  • Subjetividade e relaes intertnicas 43

    cia comunitria exige aliana e empenho coletivo que culminam na valorizao da alteridade.

    As palavras de Joo Jos Reis salientam a necessidade da manuteno deste relacionamento quando afi rma:

    O africano inventou aqui o conceito de parente de na-o. Alis, a intensidade com que os escravos produziam parentescos simblicos ou fi ctcios revela como era grande o impacto do cativeiro sobre homens e mulheres vindos de sociedades baseadas em estruturas de parentesco comple-xas, das quais o culto dos ancestrais era uma parte impor-tantssima (...) Da mesma forma a Famlia de Santo dos candombls substituiria importantes funes e signifi ca-es da famlia consangunea desbaratada pela escravido e difi cilmente reconstituda na dispora (REIS, 1991, p. 55).

    O aparato religioso confi gurado por este modo de com-preend-lo oferece aos alunos da disciplina supramencionada, sub-sdios para inmeras refl exes que culminam em sentimentos de inquietude, perplexidade, surpresa, afastamento, curiosidade, satis-fao, acolhimento para citarmos algumas manifestaes pblicas expostas em sala de aula. Mas cabe ressaltar que no nada sim-ples lidar com a resistncia ao reconhecimento das contribuies da religio de matriz afrobrasileira em termos socioculturais, por-que existe uma tendncia insistente nos ambientes acadmicos em consider-la apenas como uma crena dos negros, diminuindo suas qualidades contributivas culturais e menosprezando seus valores poltico-ideolgicos de enfrentamento histrico. Entretanto, este fato no deve tomar o sentido de vitimar os negros, mantendo-os na condio de pobres-coitados, despertando apenas um senti-mento de pesar ou lamento; mas ao contrrio, ser instigante busca de fundamentos, cada vez mais consistentes, para explicitar o que esteve velado durante muito tempo.

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    Refl exes Adicionais

    Durante as aulas da disciplina Subjetividades e Religies Afro-brasileiras temos possibilidade de refl etir sobre alguns temas que so pouco divulgados nos ambientes acadmicos, sob pena de estar-mos fraturando estruturas de pensamento solidifi cadas e, por con-seguinte, entendidas como verdades inquestionveis. Destacare-mos alguns deles no intuito de, em linha gerais, instigarmos o leitor tambm a pensar acerca do que debatemos em nosso cotidiano da sala de aula.

    Com o foco na matriz religiosa que acredita nos Santos com o mesmo valor de deidade, ou seja, reconhece em diferentes Orixs, Guias e Entidades, para estendermos nossa viso das con-tribuies afrobrasileiras, igual poder de emanar energia positiva aos seres no mundo, nos distanciamos da concepo de um Deus nico, onisciente, onipresente, onipotente, que conduz ao conceito de verdade absoluta e do poder exclusivo, nos colocando diante de uma distribuio igualitria de poder que sugere nos aproximarmos do entendimento da existncia de verdades; o que culmina em uma compreenso democrtica sobre o saber e fornece elementos para compreender a construo das diferenas.

    Ademais, na histria dos Orixs, identifi cadas nos mitos africanos, na dos ancestrais constituintes da origem do povo brasi-leiro, tais como o escravo e o ndio simbolizados respectivamente pelo Preto-Velho e o Caboclo, ou na de fi guras da prpria cultura regional do Brasil, comportamentos, princpios e valores ticos re-velam um modo relativo de pensar a relao Bem e Mal, apon-tando a fragilidade na crena de que o bem sempre vence o mal, do mesmo modo que o seu contrrio. Isto nos sugere outra possibili-dade de compreenso, pautada na coexistncia de ambos sem que haja uma luta entre eles com algum vencedor. Esta perspectiva nos leva a pensar sobre a importncia fi losfi ca que rege nossas vidas, muitas vezes pautadas somente em referenciais dicotmicos, exclu-

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    dentes, representados por SIM ou NO, enrijecidos, engessados, guiados por padres estabelecidos sabe-se l porque, quando pode-ramos simplesmente entender que o bem para um pode no s-lo para outro. claro que no estamos tratando de situaes especfi -cas como matar, roubar ou qualquer outra manifestao abusiva das relaes interpessoais, mas ressaltando a necessidade de imposies de maneiras de ver o mundo, impeditivas de se pensar sobre ele.

    Ainda com base na histria dos Santos, em suas diferen-tes modalidades de confi gurao, nos rituais de suas louvaes com a variedade das danas e vestimentas, e a experincia de conviver em grupo podemos observar uma concepo antropolgica que aponta para noes especfi cas sobre o corpo, a sexualidade e a co-letividade. Neste sentido, compartilhar o prazer e a alegria de estar presente no contato com o sagrado, assume o lugar do pedir perdo e se penitenciar pelos pecados cometidos, viso em que o corpo e a sexualidade pertencem as instncias proibitivas e punitivas.

    Como podemos notar, as discusses fomentadas pela contribuio da psicologia ao abordarmos o processo de constru-o da subjetividade atravessada pelo vis cultural advindo do apa-rato religioso de matriz afrobrasileira, acaba por exigir o reconhe-cimento da necessidade de efetuarmos um corte epistemolgico em nossa compreenso sobre princpios fundamentais de cincia, o que culmina na quebra de paradigmas h sculos estruturados. Em outras palavras, na primeira dcada do sculo XXI, com o avano dos estudos sobre as incertezas, as imprevisibilidades e o campo do possvel na cincia, outro modelo terico-prtico demandado para alicerar as defi nies conceituais, antes pautadas apenas em certezas, em previsibilidades e no campo do provvel.

    Neste sentido, emerge a necessidade de pensarmos de ma-neira dialgica, entendendo a importncia do princpio da coexistncia de noes opostas, ligando de modo interativo concepes suposta-mente antagnicas e praticamente impossveis de conversarem entre si. Nas palavras de Morin (1996), o paradigma da complexidade

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    Incita a distinguir e fazer comunicar em vez de isolar e de separar, a reconhecer traos singulares, originais, histricos do fenmeno em vez de lig-los pura e simplesmente a determinaes ou leis gerais, a conceber a unidade/mul-tiplicidade de toda entidade em vez de heterogeneizar em categorias separadas ou homogeneizar em indistinta tota-lidade. Incita a dar conta dos caracteres multidimensionais de toda realidade (MORIN, 1996, p. 334).

    Assim, trazemos a religio de matriz afrobrasileira, ao campo das cincias para abord-la como fenmeno sciocultural a ser estudado, investigado e pesquisado em sua condio histrica, sinonimizando-o mola propulsora da dinmica de nossa constru-o subjetiva, constitutiva do desenvolvimento humano.

    Alm disso, duas outras inquietaes aparecem a partir dos pressupostos religiosos estudados sob este vis: o princpio da equidade e a presena da diversidade. Ambos baseados no respeito existncia das diferenas e na admisso de que tratamentos dis-tintos devem ser dados aos que so diferentes, sejam Santos ou humanos.

    Em sntese, a partir de refl exes individuais e coletivas so-bre o aparato religioso pautado nesta matriz os educadores, preocu-pados com a implementao da lei 10.639/03 e no a mera execuo em seu cumprimento, entendem que suas proposies podem ser estendidas ao cotidiano, pois que atravessam nossa viso de mundo, habitando o campo ideolgico que rege nossas aes, inclusive as de cunho cientfi co.

    Referncias Bibliogrfi cas

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  • A importncia do sistema de reserva de vagas na Uerj na construo de identidades negras

    Maria Alice Rezende Gonalves1

    Introduo

    Este art. tem como objetivo descrever o sistema de re-serva de vagas e sua importncia no processo de construo da identidade negra entre os estudantes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) que ingressaram na instituio por meio do sistema de reserva de vagas para negros. Desde 2002, as universi-dades estaduais do Rio de Janeiro, entre elas a Uerj, vm adotando o sistema de reserva de vagas para grupos minoritrios: estudantes de escolas pblicas estaduais, portadores de defi cincias fsicas, in-dgenas, negros, fi lhos de policiais e bombeiros mortos em servio, entre outros. Para se candidatar s vagas reservadas para negros, necessrio comprovar a renda familiar per capita, valor estabelecido no edital do vestibular, como tambm exigida a autodeclarao de cor. Portanto, considerado negro todo candidato que se au-todeclarar com tal. Quem so esses estudantes que se candidatam ao sistema de reserva de vagas para negros? Como se processou a construo de suas identidades?

    1 Professora Adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

  • 50 Negros, indgenas e educao superior

    Observamos que estamos vivendo um contexto favorvel construo da identidade negra neste incio de sculo. A criao da Secretaria Especial de Polticas de Promoo da Igualdade Racial (SEPPIR) e das secretarias estaduais e municipais com os mesmos objetivos; a participao de ativistas do movimento negro no ce-nrio das polticas pblicas; o apoio do Ministrio da Educao s iniciativas dos Ncleos de Estudos Afrobrasileiros das universida-des pblicas (NEABs); a criao da Associao de Pesquisadores Negros (ABPN); o crescimento de pesquisas e projetos de extenso sobre a questo tnico-racial nas universidades; a incluso da tem-tica histria e cultura dos afrobrasileiros e africanos nos cursos de graduao; o oferecimento de bolsas de pesquisa e extenso a alu-nos negros; a implantao de polticas de ao afi rmativa tanto nas universidades como em outras esferas da vida social; a emergncia de novas entidades no movimento estudantil que rene estudantes negros; a obrigatoriedade das leis que alteram a LDB (10.639/03 e 11.645/08) e a recente aprovao do Estatuto da Igualdade Racial (2010), apesar da excluso das cotas raciais no texto aprovado, entre outros acontecimentos, reforam a construo de uma identidade negra positiva.

    O Sistema de Reserva de Vagas: uma alternativa para a democratizao do acesso ao ensino supe-rior?

    A partir da Constituio de 1988, em relao educao, houve aumento considervel dos direitos sociais e do dever do Es-tado com o ensino. O Estado garante a todos os cidados o ensino bsico pblico e gratuito, sem que esse direito prescreva quando ultrapassada determinada faixa etria. O art. 205 da Constituio estabelece que a educao seja um direito de todos e dever do Estado e da famlia, e que ser promovida e incentivada com a co-laborao da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pes-

  • A importncia do sistema de reserva de vagas na UERJ 51

    soa, seu preparo para o exerccio da cidadania e sua qualifi cao para o trabalho. Quanto ao ensino superior, o art. 207 garante a au-tonomia didtico-cientfi ca, administrativa e de gesto fi nanceira e patrimonial das universidades, assim como estabelece a obedincia ao princpio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extenso. Entretanto, a democratizao do acesso ao ensino superior ainda um desafi o para ns brasileiros.

    Segundo Freitag (2005), a reforma do ensino superior de 1968 deveria propor medidas imediatas para a soluo da crise uni-versitria, que consistia no descontentamento dos alunos que pres-sionavam a universidade para dar-lhes um lugar ao sol e que viam nos mecanismos altamente seletivos do vestibular uma forma de atuao dos grupos no poder com vistas a perpetuar a estrutura de desigualdade na sociedade brasileira. A reforma do ensino superior, baseada no modelo americano, cria dois nveis de ps-graduao mestrado e doutorado , adota do sistema de crditos, dissolve a ctedra e cria os departamentos, introduz para os professores o regime de tempo integral e de dedicao exclusiva, e introduz o vestibular unifi cado e classifi catrio, entre outras medidas. Assim, as demandas por aumento de vagas so atendidas por meio da ex-panso da rede privada de ensino superior, criando a iluso de que o ensino superior brasileiro democratizou-se. No entanto, as desigual-dades de classe e de raa continuam intocadas. Os alunos mais bem preparados e das classes economicamente favorecidas continuam a preencher as vagas nas melhores universidades do pas. Essas me-didas, no entanto, somente postergaram o problema da democra-tizao do ensino superior. Tanto os mecanismos para seleo dos candidatos quanto o poder de absoro do sistema de ensino supe-rior pblico continuam a no atender plenamente os anseios das ca-madas subalternas da sociedade brasileira. Parece que o desafi o do sculo XXI ser transformar a universidade brasileira num lcus da diversidade, da incluso de representantes dos diversos setores de nossa sociedade. Torna-se inadivel uma reforma dos mecanismos

  • 52 Negros, indgenas e educao superior

    de acesso, bem como o fomento de medidas que visem a possibi-litar o acesso dos menos favorecidos ao ensino pblico, gratuito e de qualidade. Desde o incio deste sculo, estamos assistindo a uma reforma paulatina nas formas de ingresso no ensino superior. Do exame vestibular unifi cado e classifi catrio do fi nal dos anos 1960, at chegar a um modelo hbrido atual, no qual possvel o ingresso na universidade de maneira diferenciada, entre elas o sistema de reserva de vagas. De um lado, as universidades pblicas buscam alternativas ao modelo tradicional de seleo, adotando modelos diferenciados e adequados s especifi cidades regionais, tais como: o aproveitamento da avaliao realizada pelo Exame Nacional do Ensino Mdio e a adoo de sistema de reserva de vagas para os setores sub-representados no ensino superior. Inaugura-se, deste modo, uma novidade no sistema de ensino superior brasileiro. Cada universidade, com base na autonomia universitria, estabelece quais sero os grupos benefi ciados pela reserva de vagas. Do outro, o go-verno busca a ampliao das vagas tanto no sistema privado quanto no pblico, por meio de programas como o Prouni e o Reuni, am-bos criados na primeira dcada dos anos 2000.

    O Programa Universidade para Todos (Prouni) tem como fi nalidade a concesso de bolsas de estudos integrais e parciais a estudantes de cursos de graduao e de cursos sequenciais de for-mao especfi ca, em instituies privadas de educao superior (www.portal.mec.gov.br). O Programa de Apoio a Planos de Re-estruturao e Expanso das Universidades Federais (Reuni) tem como principal objetivo ampliar o acesso e a permanncia na edu-cao superior. O governo federal adotou uma srie de medidas para retomar o crescimento do ensino superior pblico, criando condies para que as universidades federais promovam a expanso fsica, acadmica e pedaggica da rede federal de educao superior. As aes do programa contemplam o aumento de vagas nos cursos de graduao, a ampliao da oferta de cursos noturnos, a promo-o de inovaes pedaggicas e o combate evaso, entre outras

  • A importncia do sistema de reserva de vagas na UERJ 53

    metas que tm o propsito de diminuir as desigualdades sociais no pas. Esses dois programas citados podem ser entendidos como um prolongamento das iniciativas de ampliao das vagas no ensino superior iniciada na Reforma de 1968, diferentemente dos sistemas de reserva de vagas, que tem com objetivo o acesso de setores sub-representados no ensino superior.

    A principal preocupao das recentes iniciativas de inclu-so no ensino superior dos grupos sub-representados tem sido a promoo da diversidade no espao universitrio. Trata-se de ini-ciativas inovadoras, polticas de ao afi rmativa que visam a demo-cratizar o ensino superior de nosso pas. Iniciadas de maneira assis-temtica, foram se difundindo pelas diversas universidades pblicas nacionais. Polticas contestadas ou defendidas por diversos grupos da sociedade civil esto, sem dvida, mudando o cenrio das univer-sidades de nosso pas. Neste contexto, a Uerj foi uma das primeiras universidades a aderir ao sistema de reserva de vagas.

    A poltica de ao afi rmativa na Uerj

    Segundo Sousa (2006, p. 36), a anlise de polticas pblicas possibilita a compreenso do problema para o qual a poltica p-blica foi desenhada, seus possveis confl itos, a trajetria seguida e o papel dos indivduos, grupos e instituies que esto envolvidos na deciso e que sero afetados por ela. Uma poltica pblica percorre as seguintes etapas de anlise: (a) a identifi cao da poltica pblica: o que feito, por quem, onde, quando, proposto por quem, para mudar o qu e que resultados esperamos; e (b) as fases da anlise: o impacto na sociedade civil sobre a formulao e implantao da poltica, o processo de formulao e modalidade de deciso, o pro-cesso de implementao, a avaliao interna e externa e a defi nio de indicadores sociais.

    O principal foco analtico da poltica pblica est na iden-tifi cao do tipo de problema que a poltica se dispe a corrigir. A

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    ao afi rmativa para negros no Brasil visa a compensar as desigual-dades sociais impostas a esse grupo ao longo dos anos que suce-deram a abolio da escravatura. Esse problema chega ao sistema poltico por meio da regulamentao de programas de reserva de vagas para negros nos exames de vestibular de vrias instituies federais e estaduais de ensino superior. Hoje, no pas, centenas de instituies federais e estaduais aderiram a esse tipo de poltica in-clusiva.

    No caso do Estado do Rio de Janeiro, as aes afi rmativas foram implantadas e implementadas aps a aprovao de legislao prpria que tornava obrigatria a reserva de vagas para negros e outros grupos minoritrios nas universidades estaduais (dimenso processual). A Uerj, visando ao cumprimento das leis, criou seu programa de reserva de vagas para os grupos benefi cirios estabe-lecidos pelas referidas leis, entre eles os negros.

    O Sistema de Reserva de Vagas na Uerj foi iniciado com o primeiro vestibular realizado em 2003. Foram feitos dois processos seletivos distintos, visando a atender s duas leis citadas o Vesti-bular Estadual e o Sistema de Acompanhamento de Desempenho dos Estudantes do Ensino Mdio (Sade). O primeiro, voltado para os candidatos que no podiam ou no desejavam se candidatar ao sistema de cotas, e o segundo, para aqueles que desejavam concor-rer pelo sistema de cotas. Quanto ao cumprimento das cotas para negros e pardos, a universidade optou pela aplicao do percentual de 50% para escolas pblicas (Sade) e, em seguida, sobre as vagas no reservadas do vestibular estadual. Ainda no ano de 2003, foi aprovada a Lei n. 4.061, que reserva 10% das vagas para defi cientes fsicos.

    No ano seguinte, a Lei n. 4151 revogou todas as leis mencionadas acima e instituiu mudanas nos critrios de seleo e admisso de estudantes nas universidades estaduais, tais como: unifi cao das duas modalidades de cotas e comprovao de ca-rncia fi nanceira, e estabeleceu o percentual das cotas destinadas

  • A importncia do sistema de reserva de vagas na UERJ 55

    aos diferentes benefi cirios. Para o vestibular de 2004, foram esta-belecidos os seguintes percentuais de cotas: 20% para negros, 20% para alunos oriundos da escola pblica, alm de 5% das vagas para pessoas com defi cincias e demais minorias tnicas. Os candidatos s cotas s poderiam concorrer a uma das modalidades e tinham de comprovar a carncia fi nanceira familiar.

    Em 2007, a Lei n. 5.074 que alterou a Lei n. 4.151 in-troduziu novos benefi cirios no sistema de reserva de vagas. So eles os fi lhos de policiais civis e militares, bombeiros militares e inspetores de segurana e da administrao penitenciria mortos ou incapacitados em razo do servio. Atualmente, somados aos j benefi ciados pela Lei n. 5.074, so considerados grupos contempla-dos no sistema de reserva de vagas: estudantes da rede pblica do estado, negros, pessoas com defi cincias, indgenas e outras mino-rias, desde que comprovem a situao de carncia fi nanceira.

    A Uerj destina 45% das vagas para candidatos ao sistema de vagas, sendo 20% para negros, 20% para estudantes de escolas pblicas e 5% para defi cientes fsicos, minorias tnicas e fi lhos de policiais, bombeiros e agentes penitencirios mortos em servio. Para todos os candidatos cotistas da Uerj, a renda mensal de cada pessoa da famlia no pode ultrapassar R$ 960,00. Devido exi-gncia de baixa renda, a universidade tem recebido, ao longo dos ltimos anos, estudantes que apresentam um novo perfi l socioeco-nmico. Este fato um dos obstculos enfrentados para garantir a permanncia desse