nadja hermann validadeemeducacao
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VALIDADE EM EDUCAO
Intuies e problemas na recepo
de Habermas
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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO
GRANDE DO SUL
CHANCELER - Dom Altamiro Rossato
REITOR - Ir. Norberto Francisco Rauch
CONSELHO EDITORIAL
Antoninho Muza Naime
Antonio Mario Pascual Bianchi
Dlcia Enricone
Jayme Paviani
Jorge Alberto Franzoni
Luiz Antnio de Assis Brasil e Silva
Regina Zilberman
Telmo Berthold
Urbano Zilles (Presidente)
Diretor da EDIPUCRS - Antoninho Muza Naime
EDIPUCRS
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C.P. 1429
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Nadja Hermann
VALIDADE EM EDUCAO
Intuies e problemas na recepo
de Habermas
Coleo:
FILOSOFIA - 93
PORTO ALEGRE
1999
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Copyright de Nadja Hermann
P936v Hermann, Nadja Validade em educao: intuies e problemas na recepo
de Habermas / Nadja Hermann. - Porto Alegre: EDIPUCRS,
1999.
137p. ; (Coleo Filosofia, n. 93)
1. Filosofia da Educao 2. Habermas, Jrgen - Crtica e Interpretao I. Ttulo
CDD: 370.1
Ficha catalogrfica elaborada pelo Setor de Processamento Tcnico da
BC-PUCRS
ISBN: 85-7430-070-5
Capa: Cristiano Max Pereira Pinheiro
Diagramao: Isabel Cristina Pereira Lemos
Diagramao da verso digital: Paolla Monticelli
Reviso: Reinholdo Aloysio Ullmann
Impresso: Grfica EPEC, com filmes fornecidos
Coordenador da Coleo: Dr. Urbano Zilles
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A palavra do homem
filha da morte.
Falamos porque somos
mortais: palavras no
so signos, so sculos.
Ao dizer o que dizem
os nomes que dizemos
dizem tempo: nos dizem,
somos nomes do tempo.
Conversar humano.
Octavio Paz
Todo o pensamento emite um lance de
dados.
Mallarm
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SUMRIO
APRESENTAO / 8
INTRODUO / 10
I
CONTEXTO
O CONTEXTO DA RECEPO DA OBRA DE HABERMAS NA EDUCAO
/ 16
1. O pensamento contemporneo: da unidade pluralidade da razo / 16
2. A tradio moderna e a educao da virtude / 24
3. A crise da metafsica e a perda do princpio unificador do sistema
pedaggico / 28
3.1. A metafsica da subjetividade / 29
3.2. A crtica de Nietsche: perspectivisino e antifinalismo / 36
4. Os paradoxos na formao do sujeito / 40
II
OPES
AS PESQUISAS EDUCACIONAIS EMBASADAS NA TEORIA
HABERMASIANA / 46
1. A pedagogia da ao comunicativa / 47
2. A educao e a interlocuo de saberes / 50
3. Currculo / 54
4. Fundamentos para uma teoria crtica da educao / 55
5. A recuperao do rs e do thos pedaggico / 59 6. Educao e racionalidade / 61
III
CRTICAS
AS OBJEES A HABERMAS E AS RELAES COM A JUSTIFICAO
PEDAGGICA / 68
1. Objees a Habermas: idealizao, racionalismo e circularidade / 68
2. Ao pedaggica na perspectiva da ao comunicativa / 77
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2.1. O obscurecimento do problema real: ao pedaggica no ao
comunicativa / 78
2. 2. A contradio entre racionalidade e sentimentos / 82
2.3. A ao pedaggica como interao / 84
3. A contribuio da teoria habermasiana na educao: problemas e
perspectivas / 90
BIBLIOGRAFIA / 98
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8
APRESENTAO
Este livro nasce de uma pesquisa acadzmica, desenvolvida com apoio de
Bolsa de Produtividade em Pesquisa, concedida pelo Conselho Nacional de
Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico - CNPq (1996-1998) e complementada
por urna viagem de estudos realizada na Alemanha, na Universidade de
Heidelberg, Erziehungswissenschaftliches Seminar, tendo como anfitrio o Prof.
Dr. Volker Lenhart, com o apoio da Deutscher Akademischer Austauschdienst -
DAAD e da Fundao de Amparo Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul -
FAPERGS. Mas foi impulsionado tambm por produtivas discusses com os
alunos de Mestrado e Doutorado do Programa de Ps-Graduao da Faculdade de
Educao da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que participaram dos
Seminrios nas tardes das segundas-feiras, nos semestres de 1996 e 1997, quando
debatemos as relaes entre Filosofia e educao, especificamente no que se refere
crise da racionalidade ocidental e suas consequncias para o fundamento
normativo da educao. Um desses seminrios foi especialmente voltado para o
estudo da teoria de Habermas, o significado da virada lingustica e as implicaes
para a educao de uma racionalidade que se expressa como resultado de
aprendizagem entre sujeitos capazes de fala e ao.
Agradeo aos meus alunos que, com perguntas e pacincia,
contriburam para o esclarecimento de minhas prprias idias, indicando a
fecundidade da interao.
Essas oportunidades de convivncia reafirmaram o aviso do poeta de
que conversar humano, o princpio terico do filsofo de que a razo
comunicativa e o alerta da hermenutica de que a palavra o imprio universal
pelo qual o esprito alcana a possibilidade de ver a si mesmo.
O tema deste livro me acompanha h algum tempo, mais pela via de
compreender como um conceito de ao comunicativa pode enfrentar os
paradoxos da educao do que especificamente fazer uma investigao tcnica
sobre a Filosofia de Habermas. O campo da educao propcio seduo de
novas perspectivas, porque freqentemente se depara com seus dficits tericos
e com a urgncia da ao que impulsiona a busca de novas explicaes, numa
tentativa salvadora de ajustar os esquemas conceituais prtica, que no em o
suficiente esclarecimento sobre si mesma. Meu empenho enfrentar o acesso
facilitador da seduo, evitando, por um lado, a identificao imediata entre
ao comunicativa e ao pedaggica e, por outro lado, no fechando os olhos
ao gigantesco esforo de Habermas em defesa da tica contra o relativismo
esttico. Esse empenho deita razes no reconhecimento de que no possvel
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9
educar, dando as costas tradio, e que tampouco pode-se levar adiante um
projeto pedaggico com um completo esvaziamento da norma.
Considerei pertinente perguntar pela recepo da obra de Habermas
na perspectiva de compreender o contexto, as expectativas e os problemas
que a educao enfrenta e que configuram as diferentes apropriaes da
teoria. Uma hermenutica compreensiva permite que a educao conhea a
racionalidade de suas prprias aes, indica a fecundidade de um autor e
sublinha aqueles pontos a que preciso prestar ateno, num confronto com
os limites internos prpria teoria.
Penso, ainda, que este trabalho possa contribuir para superar certos
aligeiramentos que rondam a educao e fazem com que leituras apressadas
reduzam o pensamento filosfico, sobretudo por confundi-lo com premissas
que sustentam outras pedagogias. Tem ainda a modesta pretenso de
afirmar um espao prprio Filosofia da educao, rea devedora de dois
mundos o da Filosofia e o da educao, cujo imbricamento, antes inevitvel, torna-se radicalmente rompido com o mundo desencantado da modernidade , no intuito de contribuir para uma compreenso da racionalidade que orienta o agir pedaggico.
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INTRODUO
No de surpreender que a obra de Jrgen Habermas se tenha tornado
conhecida no mbito educacional brasileiro. Parte dessa penetrao deve-se ao
influxo gerado pelo meio acadmico, atravs do estudo e debate de sua teoria e o
intercmbio na rea de pesquisa em Filosofia e cincias humanas, o que motivou,
inclusive, a vinda de Habermas ao Brasil, em 1989. Destacam-se tambm as
contnuas tradues de suas principais obras e artigos, publicados com certa
regularidade. Alm disso, Habermas reconhecidamente um dos maiores
intelectuais da atualidade, que aceita o desafio de pensar as possibilidades da razo
e da modernidade, diante de um diagnstico ctico da situao mundial e da perda
das bases normativas. Trata-se de um filsofo capaz de abrir caminhos.
Dados os estreitos vnculos entre teoria social, normatividade,
modernidade e educao, sua obra incita o campo educacional, que tambm se
encontra s voltas com sua prpria legitimidade e com a multiplicidade de
orientaes valorativas, sem que nenhuma pretenda validade universal. A
modernidade apresenta-se ambivalente, como uma moeda de dupla face, em pugna
constante entre verdade e no-verdade, em realizar o humano e o inumano.
Na perspectiva desse problema, a obra de Habermas apresentaria um
carter sedutor para a educao, na medida em que sinalizaria para a superao
de seu carter instrumental e para uma possvel soluo pela perda de suas
bases legitimadoras.
A originalidade da obra, sobretudo diante de um certo esvaziamento de
propostas no campo das cincias humanas, coloca Habermas entre aqueles
filsofos que tm algo a dizer no plano da ao social e sobre as questes que
sempre preocuparam a Filosofia, tais como verdade, unidade, pluralidade, bem
viver. Nessa perspectiva, cabe perguntar pelas formas como sua obra
assimilada, interpretada e recebida no campo educacional. Ou seja, cabe
investigar o contexto em que se d a recepo da obra, como ela interpretada
e sob que horizonte de sentido so produzidos seus entendimentos. O estudo da recepo
1 nos remete contribuio da hermenutica,
onde um tempo histrico estabelece a comunicao entre os leitores e o texto.
A recepo s possvel de ser entendida na fuso de horizontes entre o mundo
da obra e o mundo vivenciado pelos leitores, dentro de um contexto histrico.
1 JAUSS, Hans Robert. A literatura como provocao. Passagens, Vega (original em
alemo, de 1993).
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11
A historicidade da compreenso , para Gadamer, um princpio hermenutico
2, que remete pr-estrutura da compreenso heideggeriana. Desde j, compreendemos, a partir de certas opinies prvias, que, do mesmo
modo que condicionam o processo compreensivo, tornam-se revisadas base
de novos projetos de sentido.
A produtividade da hermenutica indica que um sentido nunca se
encerra na produo originria do autor. Cada poca entende um texto transmitido de uma maneira peculiar, pois o texto forma parte de um conjunto
da tradio, pela qual cada poca tem um interesse objetivo e tenta
compreender a si mesma 3. A conscincia histrica a prpria situao hermenutica, uma
situao que limita nossas possibilidades de ver e qual vincula-se o conceito
de horizonte4. Entendido por Gadamer como o mbito de viso que abarca e
encerra tudo o que visvel, a partir de um determinado ponto, o conceito de
horizonte permite teoria da recepo operar com horizonte de expectativa5.
Isso implica o reconhecimento de que a recepo de uma obra nunca se
apresenta no vazio, num vcuo de informaes; ao contrrio, a recepo
interpretativa de um texto pressupe sempre pr as questes, s quais o texto
pretende dar uma resposta. Pelo horizonte se aprende a ver alm do que est
mais prximo, integrando o compreendido num todo mais abrangente. Desse
modo, estamos sempre pondo prova nossos preconceitos, e o horizonte do
presente est em contnua formao.
Cabe aqui considerar que a teoria de Habermas emerge de um contexto
extremamente complexo, que pressupe o entendimento das discusses
contemporneas sobre a crise da razo. Como lembra Redondo6: Boa parte das
dificuldades adicionais em que tropea a obra de Habermas se deve a que todos os
seus escritos do por conhecido um contexto de discusso extraordinariamente
complexo e plural, da Filosofia e da teoria social alem dos ltimos decnios, que
s muito fragmentariamente tem sido recebida entre ns. Assim, a teoria habermasiana requer, na interlocuo com o campo
educacional, cuidados redobrados: por um lado, ateno ao contexto em que o
autor formula sua pergunta e constri sua resposta e, por outro lado, o horizonte de
expectativas com o qual a educao fixa as bases da apropriao compreensiva da
2 GADAMER, Hans Georg. Verdad y Mtodo. Salamanca: Sgueme, p. 331.
3 Idem, ibidem, p. 366.
4 Idem, ibidem, p. 372.
5 JAUSS, op. Cit., p. 66.
6 Conforme Introduo feita por Manuel Jimnez REDONDO, na obra de Habermas
La lgica de ls cincias sociales. Madrid: Tecnos, 1990, p. 12.
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12
obra, e desde o qual se estabelece uma dialtica entre pergunta e resposta. A
tradio metafsica e utpica da educao constitui parte de seu horizonte histrico,
trazendo reivindicaes muito fortes, que com todo direito querem se impor e que
configuram os contornos de nossos esquemas interpretativos.
Juntamente com esses cuidados, creio que no podemos mais alegar
que uma teoria produzida num contexto europeu possa ser motivo para seu no-
aproveitamento em uma discusso terica de nossa realidade. A esse propsito,
podemos lembrar, com Peter Burke7, a inevitabilidade dos emprstimos
culturais. Evidentemente, que esse processo se d como posis,8 se entrelaa
com nossas tradies, repercute de forma diferenciada em funo de contextos,
das prprias tradies culturais. permevel e sofre permutabilidades.
Certamente as aspiraes tericas, que gestaram os processos educacionais
e que se institucionalizaram sob o que se convencionou chamar sistema mundial moderno 9, em muito ultrapassam os limites do contexto em que foram produzidos. Assim, o debate em torno das bases justificadoras da educao escolar
igualmente transcende os limites do contexto onde gerado. Teorias originrias de
contextos diversos podem contribuir para a reflexo da teoria em educao, uma
vez que essa apropriao se d por acesso hermenutico.
A recepo de uma obra filosfica no campo educacional, requer
compreender, sobretudo, as circunstncias relativas fundamentao da
educao, uma vez que no se trata de uma normatividade no campo emprico,
no sentido de a obra prescrever um caminho metodolgico ou didtico, mas
sim de uma Filosofia que tenciona reformular as prprias bases normativas da
racionalidade moderna, elemento com o qual a educao tem uma conexo
7 Conforme suplemento Mais, Jornal Folha de So Paulo, 27/07/97, p. 3.
8 O termo posis, de origem grega, significa a ao de fabricar, de produzir,
envolvendo tanto a produo de um objeto artesanal como uma obra potica.
Aristteles (tica a Nicmaco, VI, 4, 1140) faz uma distino entre produzir e agir:
Toda a arte visa gerao e se ocupa em inventar e em considerar as maneiras de produzir alguma coisa, que tanto pode ser como no ser, e cuja origem est no que
produz, e no no que produzido. Na filosofia, o termo posis foi tratado como a ao e o efeito da operao de algum ser, conforme MORA, Jos Ferrater, no Dicionrio de Filosofia. So Paulo: Martins fontes, 1993, p. 590. 9 ADICK defende a tese de que a escola, enquanto sistema mundial moderno,
resultado de uma evoluo sociocultural universal, decorrente da modernidade, na perspectiva proposta por Habermas, sendo mais que uma herana colonial. Ela um
instrumento colocado disposio da humanidade, relativamente invariante no tempo,
que apresenta um carter evolutivo universal, como componentes de dominao e
iluministas. Ver ADICK, Christel. Die Universalisierung der modernen Schule.
Paderborn, Mnchen, Wien, Zrich: Schningh, 1992. (Especialmente Captulo 6).
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direta, na medida em que a escola resulta de um processo de diferenciao
sociocultural. A forma de aceitao, os mecanismos de resistncia e o clima
sociocultural so elementos definidores do prprio processo de recepo.
nesse sentido que Jauss lembra: A distncia entre a primeira percepo atual de uma obra e as suas significaes virtuais ou, dito de outro modo, a
resistncia que a obra nova ope expectativa de seu primeiro pblico pode ser
to grande que ser necessrio um longo processo de recepo antes de ser
assimilado aquilo que era originalmente inesperado e inassimilvel 10 Para Jauss, a recepo de uma obra envolve o assim chamado horizonte
de expectativas de um primeiro pblico, estabelecendo-se, a partir da, uma dinmica prpria pela hermenutica da pergunta e resposta. Isso cria um dilogo
entre a obra e o pblico. E na direo do horizonte de expectativas, reinante no
campo educacional, que interpretada a recepo da obra de Habermas.
Nesse horizonte encontra-se a fundamentao antropolgica de base
metafsica, sobretudo na sistematizao iluminista, com sua projeo claramente
educativa de romper com todas as heteronomias e orientada pelo ideal kantiano de
que o homem s se converte em homem pela educao. nessa perspectiva que o
mundo moderno apostou, como nenhuma outra poca, no projeto educativo.
Individualidade, conscincia, responsabilidade moral e identidade do eu passaram
a ser as categorias centrais do discurso pedaggico, decorrentes de uma certa
compreenso sobre a natureza humana. Essas categorias, arrastadas pela crise da
razo, j no oferecem educao nenhum tipo de segurana.
A diversidade de saberes decorrentes de processos de modernizao
cientfico-tecnolgicos aporta escola uma multiplicidade de formas. (As
exigncias constantes de movimentos reformadores, o currculo, como as
polticas educacionais ou os processos metodolgicos esto a a demonstrar
essa exigncia). Associam-se a isso os processos de autocrtica da razo que
decretou o seu fim e o das ideologias. A pluralidade se impe, e a educao no
consegue mais articular a pretendida unidade integradora de sentido. Os
esforos tericos de justificao gestados no sculo 18, que pretendiam, a partir
de uma compreenso da natureza racional do homem e de sujeito
transcendental, orientar a educao na realizao dessa mesma natureza, caem
cada vez mais11
. O discurso pedaggico se faz deficitrio e seu problema bsico
10
JAUSS, op. Cit., p. 94. 11
LYOTARD, na obra A condio ps-moderna, Lisboa: Gradiva, 1989, p. 18, mostra
que a crise dos princpios metafsicos ( as metanarrativas) traz como conseqncia a
queda do processo de aquisio do saber associado formao do esprito (Bildung).
Isso rompe o vinculo entre conhecimento e mancipao, nos termos propostos pela
modernidade e, consequentemente, pela teoria da educao moderna.
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se revela como uma aporia decorrente do carter normativo da educao com
suas exigncias de universalidade, em confronto com o relativismos dos
diferentes contextos. A realidade plural contradiz as exigncias de unidade.
Esse o horizonte em que se situa o eixo principal dos problemas da
educao: a queda de seu fundamento normativo. O que se pretende investigar
justamente a recepo da teoria habermasiana em relao possibilidade de
renovao do sentido de educar.
A Teoria da Ao Comunicativa prope uma racionalidade prtica que
reativa compromissos de constituio da identidade de sujeitos e de
possibilidade de continuar propondo acordos morais. Ou seja, o ponto central
a definio de princpios racionais universais que regulam nosso agir
comunicativo. Para recuperar o potencial da razo, Habermas retoma a ao
comunicativa, em termos de pragmtica formal.
Ao fim do sujeito que se perde numa sociedade desprovida de
significado, onde no so mais possveis a reconciliao e a felicidade, como o
constatam todos os impasses da Teoria Crtica12
, Habermas direciona sua
anlise para a tese de que o fim do individuo ocorreria, quando o processo de socializao se separa de um sistema de norma que requer justificao 13.
O argumento bsico de Habermas se desenvolve a partir de um conceito
pragmtico comunicativo de razo, pelo qual os professores lingsticos tm
validade universal. Sob o paradigma da comunicao, o sujeito no mais definido
como no modelo da filosofia da conscincia, mas como aquele que tem que se
entender com os outros sobre o que conhecer e dominar os objetos. Assim, no
paradigma da comunicao, fundamental o enfoque performativo, presente no
entendimento intersubjetivo entre sujeitos capazes de falar e agir. A racionalidade
se manifesta em acordos e consensos que so obtidos pelos sujeitos em
comunicao. Dessa forma, a linguagem apresenta um carter normativo universal,
e a racionalidade existe na conversao.
Mas o abandono do recurso metafsico e do reino dos fins, como
ocorria na tica kantiana, traz dificuldades para a passagem entre os interesses
individuais e as exigncias morais14
. Assim, uma teoria importante, como a de
12
ADORNO, Theodor. Dialtica Negativa. Madrid: Taurus, 1975; ADORNO, Theodor
e HORKHEIMER, M. Eclipse da razo. Rio de janeiro: Labor, 1986; ADORNO, T.
Educao aps Auschwitz. So Paulo: tica, 1986. 13
WHITEBOOK, Joel. rzon y felicidad: algunos temas psicoanalticos de la teora. In: Habernas y la modernidad. Madrid: Ctedra, 1994, p. 240. 14
ANDREOLI, Miguel. Los limites de La tica Del discurso en cuestiones de justicia. In: ROHDEN, Valrio. tica e poltica. Porto Alegre: Goethe Institut, Editora da universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1992.
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Habermas, provoca seu fascnio, impe prestgio, mas tambm acarreta muitas
crticas e objees15
.
As criticas so provenientes, de um lado, de uma tese forte, pela qual a
certa identificao necessria entre razo e comunicao e, por outro lado, pela
tentativa de superar os limites tericos da filosofia da conscincia pela
pragmtica, levando ao reconhecimento do consenso como imanente
comunicao; ou seja, o reconhecimento de um suposto carter essencialmente
comunicativo da linguagem.
Disso derivam acusaes de ser Habermas excessivamente racionalista e
idealista. As objees apontam aspectos tericos, considerados pelos seus crticos
como vulnerveis e que tm gerado debates que no parecem estar no fim.
Algumas dessas crticas so aceitas por Habermas. outras ele refuta. Parece,
entretanto, que seu empenho em reconstruir as bases normativas da modernidade
uma das poucas abordagens produtivas, para encontrar uma resposta ao beco sem
sada16
em que se encontra a educao, desestabilizada pelos impasses da crtica da
razo e pela dificuldade de encontrar um sentido vlido para a tarefa. Na
perspectiva de Habermas, a razo est na tenso entre contexto e transcendncia,
entre universal e singular, entre unidade e pluralidade.
Assim, interessa recepo da obra de Habermas compreender como
as crticas se articulam em relao s possibilidades de a ao pedaggica
renovar-se pelo conceito de ao e racionalidade comunicativa, de modo a
esclarecer sua prpria pretenso de validade
15
As criticas esto apresentadas no item Objees a Habermas: idealizao, racionalismo e circularidade. 16
MASSCHELEIN, Jan. Kommunikatives Handeln und Pdagogiches Handeln.
Weinheim: Deutscher Studien, Leuven Univ. Press, 1991.
-
16
I
CONTEXTO O CONTEXTO DA RECEPO DA OBRA
DE HABERMAS NA EDUCAO
1. O pensamento contemporneo: da unidade pluralidade da razo
A obra de Habermas emerge do contexto especfico da Filosofia
contempornea, que se defronta com duas questes bsicas: o relativismo e a
pluralidade das vises de mundo. A pluralidade um conceito que se refere a uma
multiplicidade de normas e formas de vida, teorias e idias, modos de
fundamentao e filosofias, constituindo-se numa inegvel marca da atual
realidade sociocultural. A impresso de que a pluralidade reivindicada como
tema e problema pelo pensamento ps-moderno seria falsa ou, pelo menos, uma
perda da perspectiva histrica, uma vez que tanto a Filosofia social como a teoria
do conhecimento tm tradio em tematizar o problema da pluralidade diante da
apologia da unidade. De certa forma, trata-se de um tema recorrente, mas que
encontra na Filosofia contempornea uma acentuao.
Com a modernidade, rompe-se a unidade integradora de sentido, como era
compreendida pelas vises metafsicas e teolgicas, nas quais o consenso, que
permitia a justificao da tica e a hierarquizao de valores, substitudo pela
pluralidade de vises do mundo. Dessa forma, a racionalidade moderna traz a
ruptura com o consenso normativo encontrado nas sociedades tradicionais.
Habermas comparte a posio weberiana17
de modernidade, entendida
como um processo de desencantamento, onde a racionalizao das imagens do
mundo resulta numa diferenciao das esferas de valor (a cincia, o direito e a
moral, a arte). Essas esferas tornam-se autnomas e so regidas por critrios de
valor prprios de cada uma delas.
A racionalizao um processo pelo qual se d uma ampliao do saber
emprico, da capacidade de predio e do domnio instrumental e organizativo dos
processos empricos. Essas condies geradas pela compreenso cientfica
exercem um carter decisivo para o processo histrico-universal de
desencantamento, na medida em que o mecanismo causal de explicaes leva ao
17
Ver especialmente a interpretao de Habermas sobre a teoria de Weber no capitulo
II-La teoria de La racionalizacin de Max Weber, na obra Teoria de la accin comunicativa. V. I. Madrid: Taurus, 1987, p.197s.
-
17
abandono das compreenses geradas pelas religies, que conferiam um sentido
tico ao mundo. A arte autnoma tambm includa no processo de
racionalizao, na medida em que desvincula sua estilizao artstica dos cultos
religiosos e participa de uma legalidade prpria. Essa legalidade no se refere a
uma esfera reservada para a arte (como um pblico de arte e crtica especializada),
mas sim aos efeitos que a apreenso dos valores estticos autnomos tm para as
tcnicas de produo artstica. A racionalizao permite um cultivo consciente das
experincias de auto-interpretao metdica da subjetividade, emancipada das
convenes cognitivas e prticas da vida cotidiana18
.
O direito e a moral igualmente participam do processo de racionalizao,
na medida em que as idias prtico-morais se desvinculam das doutrinas ticas e
jurdicas em que estavam inseridas. Razo terica e razo prtica no podiam ser
diferenciadas, pois as imagens cosmolgicas, metafsicas e religiosas conduziam a
uma viso de totalidade. A autonomizao do direito conduz ao direito formal e s
ticas profanas da inteno e da responsabilidade. Assim, as normas jurdicas, que
apelavam para magias, tradies sagradas e revelao, perdem legitimidade e
passam a se constituir em simples convenes.
A racionalidade predominante na modernidade passa a ser a
instrumental, cujo tlos a dominao do mundo. E acompanhada pela ruptura
da totalidade de sentido, no mais possvel, desde que as imagens mticas,
cosmolgicas e metafsicas mostram-se insuficientes como totalidade
explicativa do real.
Decorrente da separao entre cincia e moral, surge tambm a separao
entre sentenas descritivas e normativas. Positivismo e racionalismo contestam a
possibilidade de validar proposies normativas e legitimar os prprios princpios
de validao. As sentenas descritivas expressam o saber dos fatos, explicam os
fenmenos, atravs de construes terico-formais, independentemente de valores.
Trata-se de um saber falvel, hipottico-dedutivo. Ao contrrio dos antigos, no se
fala mais em essncia, pois isso implica dever-ser e normatividade. O que se
explica so os fenmenos, independentes de apreciao valorativa. As sentenas
normativas, que expressam o dever-ser, encontram sua justificao de forma
independente de uma ontologia. As normas e os fins orientadores da ao deixam
de ser acessveis razo, e esta torna-se reduzida razo cientfica, que analisa
proposies analticas da lgica e proposies sintticas relativas aos fatos.
Diante da ruptura da totalidade, o mundo ento marcado por uma
pluralidade de vises que concorrem entre si, gerando problemas para as
questes orientadoras do agir humano, nos termos de uma orientao universal.
Sobretudo a tica e todas as formas da vida prtica, entre elas a educao, se
18
HABERMAS, op.cit., p. 218-9.
-
18
ressentem da queda da perda da validade dos fundamentos originrios. Sistema
e normatividade esto desacoplados.
A razo, no Ocidente, segundo Habermas, por ter tomado o rumo da
racionalidade instrumental, apresenta um dficit normativo. Ao lado das anlises
de Max Weber, o filsofo tambm compartilha as interpretaes de Horkheimer19
sobre a crtica da razo. A tese fundamental a de que h uma racionalizao
progressiva da razo que a oblitera, trazendo a perda da prpria idia de homem.
Em sua gnese, a razo dividia-se em objetiva e subjetiva. A razo
objetiva expressiva uma ordem do mundo, uma estrutura imanente realidade,
enquanto a razo subjetiva referia-se apenas a uma parte dessa totalidade, ou
seja, expresso parcial de uma racionalidade universal, orientada por uma
noo de verdade objetiva. Os grandes sistemas filosficos foram erigidos na
perspectiva da razo objetiva (Platonismo, Aristotelismo, Idealismo) de
descrever a ordem do mundo; e o grau de racionalidade da vida humana podia ser determinado segundo sua harmonizao com a totalidade 20.
O motivo de criao desses sistemas era justamente a compreenso da
impossibilidade de a razo subjetiva ir alm de sua finalidade de autopreservao.
Horkheimer define razo subjetiva como a possibilidade de calcular probabilidades e desse modo coordenar os meios corretos com um fim
determinado 21. A razo subjetiva era apenas a expresso parcial da ordem geral. Ao longo de sua gnese, a razo sofre um deslocamento e torna-se
predominantemente subjetiva. Disso resulta uma formalizao, que a incapacita
para determinar se um fim desejvel ou no. H aqui uma cada do thos, que
garantia a tica, e uma fundamentao ontoteolgica do agir humano se tornou
impossvel. A razo se reduz a uma coordenao de aes. desvinculada de
qualquer referncia ao mundo social. Desse modo, perde-se o fundamento
pblico da moral. Embora haja vrias tentativas de fundamentao, nenhuma se
impe como legtima entre as outras, criando-se o decisionismo moral.
Na perspectiva empreendida. no sculo XX, de fazer uma crtica radical
razo e situao prpria da sociedade contempornea, merece destaque a
interpretao produzida pela Dialtica do Esclarecimento22
(de certa forma uma
19
HORKHEIMER, Max. Eclipse da razo. Rio de Janeiro: Labor do Brasil, 1976.
Trata-se de um texto escrito em ingls, em 1946, quando Horkheimer encontrava-se
exilado nos Estados Unidos. Em 1967, foi editado na Alemanha com o titulo Zur Kritik
der instrumentalen Vernunft. 20
Idem, ibidem, p. 12. 21
Idem, ibidem, p. 13. 22
A Dialtica do esclarecimento editada em 1944 pelo Institute of Social Research e
aparece, pela primeira vez, na Europa, em 1947, publicada pela editora Querido de
Amsterdam.
-
19
continuao da estrutura bsica do argumento j apresentado por Horkheimer em
Eclipse da razo), onde Adorno e Horkheimer revelam o poder coercitivo da
razo, ao contrrio de sua pretenso emancipatria. Libertao transforma-se em
represso. O processo de racionalizao, que pretende um domnio sobre o mundo.
pressupe a represso da natureza interna do sujeito e acaba por torn-la vtima
submetida. A autoconservao do homem e o domnio da natureza externa,
necessrias formao do sujeito unitrio e aos sistemas totalizantes, pagam o
preo da represso da natureza interna, do desejo de felicidade. A humanidade teve que se submeter a terrveis provaes at que se formasse o eu, o carter
idntico, determinado e viril do homem, e toda a infncia ainda de certa forma a
repetio disso. O esforo para manter a coeso do ego marca-o em todas as suas
fases. e a tentao dc perd-lo jamais deixou de acompanhar a determinao cega
de conserv-lo. (...) O caminho da civilizao era o da obedincia e do trabalho,
sobre o qual a satisfao no brilha seno como mera aparncia. como beleza
destituda de poder 23. Aqui defendida a tese de que os descaminhos da razo no so
atribudos a fatores externos, mas so fundamentos internos que produzem a
queda no seu desenvolvimento. As anlises sombrias indicam que a ligao de
nossos procedimentos racionais com o domnio interna prpia razo. Assim,
para Adorno e Horkheimer, o diagnstico da runa no se restringe razo
moderna, mas j est presente desde os primrdios do lgos. Tal runa teria
incio no esclarecimento grego pela constituio da Filosofia como um
empreendimento de desligamento do mito, cujo carter calamitoso hoje
imenso. A razo torna-se cnica e mero aparato de dominao.
Welsch24
entende que o quadro em que se encontra uma crtica da
razo hoje deve levar em considerao as conseqncias fatais dessa critica
para a realidade e as tendncias catastrficas do mundo. Numa perspectiva
lgica, a critica da razo apresenta duas teses25
: um a primeira, indica que a
realudade hoje determinada essencialmente por processos racionais; e uma
segunda tese indica que o estado da realidade permite uma concluso sob o
carter responsvel da razo.
A crescente imposio da racionalidade moderna, que traz consigo uma
verdadeira desrazo, torna-se a chave da nova crtica. Nessa perspectiva,
Welsch26
aponta trs formas de reaes possveis diante da critica radical da
23
ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialtica do Esclarecimento. Rio de
Janeiro: Zahar, 1985, p. 44. 24
WELSCH, Wolfgang. Vernunft. Frankfurt AM Main: Suhrkamp, 1966, p.36s. 25
Idem, ibidem, p. 37. 26
Idem, ibidem, p. 39-41.
-
20
razo, no quadro do pensamento contemporneo: o diagnostico da
descompostura, a opo pela razo e a despedida da razo.
A primeira reao nega o diagnostico de crise e afirma que vivemos o
melhor da modernidade. O mal-estar seria provocado pelo prprio diagnostico,
e quem prope tal analise engana-se.
Uma segunda forma de reao, contrariamente primeira, reconhece a
misria da razo e procura encontr-la atravs da prpria razo. Trata-se de uma
forma singular de enfrentamento do problema e subdivide-se em duas propostas:
uma razo corretiva e uma transformao da razo. A primeira opo entende
que, durante seu desenvolvimento, a razo cai num descaminho e torna-se
irracional, sendo necessrio voltar ao projeto originrio e retomar sua validade.
Weisch indica Husserl e Habermas como representantes dessa posio. A outra
opo entende no ser possvel ampliar o conceito de razo. D as costas
concepo tradicional, por consider-la insuficiente e porque a realidade presente
expe a falha que acompanha desde o seu nascimento. Aqui propoe-se a passagem
da concepo da razo oferecida, que no representa a pura relativizao do velho
conceito, mas contm uma radical transformao. O prprio Wolfgang Welsch
um representante dessa posio com o conceito de razo transversal27
.
O terceiro tipo de reao possvel prope uma despedida total da razo.
Diferencia-se da primeira reao, porque reconhece a precariedade da situao
presente e da segunda, porque a opo pela razo obsoleta e ilusria. E uma
reao que se situa no mbito do outro da razo28
27
Segundo Welsch, com a despedida da concepo arquimdica de razo, seu o eixo muda da verticalidade para a horizontalidade. Razo torna-se um poder de passagem. No se
considera a viso refletida, mas ela passa entre as formas de racionalidade. Isso uma
conseqncia de seu status de pureza, justamente como razo pura ela no pode sair da
posse do contedo, mas deve passar adiante processualmente. Todas as atividades da razo
executam-se como passagens. Isso forma o prprio - a forma especfica e a atividade central
- da razo. Ela transforma-se de um princpio preso e esttico para um poder dinmico e
intermedirio. WELSCH, W. Vernunft und bergang: Zum Begriff der transversalen Vernunft. In: APEL. Karl-Otto; KETTNER, Mathias. Die eine Vernunft und die vielen Rationalitten. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1966, p. 153. 28
O outro da razo, segundo a interpretao dos irmos Bhme. aquilo que visto como
irracional, a moral do imoral, o lgico do ilgico. O outro da razo a natureza, o corpo humano, a fantasia, o desejo, os sentimentos - ou melhor: tudo isso, enquanto a razo no
puder se apropriar. (...) Aquele outro, que a razo no abarca, degenera num mbito difuso, ameaador e inquietante. Alm dos limites da razo no mais possvel orientao (BHME, Harmut; BHME, Gernot. Das Andere der Vernunfi, zur Entwicklung von
Rationalittsstrukturen. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1996, p. 13-14).
-
21
No quadro do pensamento contemporneo, o dficit da razo est
especialmente relacionado com a aliana entre domnio e tendncia
uniformizao. O pensamento da uniformidade uma caracterstica da
metafsica, que tudo conduz ao uno, subsumindo a diferena e as
particularidades. Isso se constitui num dos pontos undamentais da crtica dos
ps-modernos. Segundo Welsch29
, o pensamento ps-moderno apresenta as
seguintes caractersticas:
1. Uma concepo de pluralidade radicalizada, que faz emergir a diferena. Tal pluralidade constatada desde h muito tempo, mas agora torna-
se uma concepo fundamental, no sendo mais s uma especulao abstrata,
mas uma determinao da realidade da vida.
2. A experincia fundamental da ps-modernidade est na existncia de formas de saber, de estilos de vida e modelos de comportamento altamente
diferenciados. O reconhecimento daquilo que se apresenta como desconhecido
provm de um fundamento simples: uma mesma circunstncia pode representar
uma perspectiva to completa quanto outra e, em nenhum caso, essa
perspectiva possui menos luz que a primeira, mas se constitui apenas numa outra perspectiva. Nessa caracterizao, Welsch ressalta que o velho modelo
do sol um sol para todos e sobre tudo no vale mais. A ps-modernidade salva, quando essa realidade no reprimida, caracterizando-se como uma
pluralizao dos conceitos de verdade, justia e humanidade.
3. Por trs do princpio da pluralidade, e de forma conseqente, a ps-modernidade faz uma opo antitotalitria. Defende a ofensiva da
multiplicidade e pe-se contra as velhas e novas hegemonias, Isso aparece na
multiplicidade de concepes, jogos de linguagem e formas de vida, que no se
apresentam como negligncia, e no sentido de aprovar um relativismo, mas sob
o fundamento da experincia histrica e da idia de liberdade. Welsch alerta
que o mpeto filosfico da ps-modernidade profundamente moral.
4. Em diferentes mbitos, em que a ps-modernidade referida, a pluralidade apresenta-se como um foco unitrio. A congruncia do fenmeno
ps-moderno evidente, tanto na literatura, arquitetura, na arte em geral, como
nos fenmenos sociais da economia at poltica. nas teorias cientficas e na
reflexo filosfica. A fora dessa congruncia provm do fato de a ps-
modernidade ser um conceito e no um mero ttulo.
5. A ps-modernidade, de modo algum, como seu nome sugeriu e seu familiar equvoco sups: uma trans e antimodernidade. Seu fundamento a pluralidade ainda propagada na modernidade do sculo XX, justamente a
29
WELSCH, Wolfgang. Unsere postmoderne Moderne. Berlin: Akademie Verlag,
1993, p. 4-7. Ver tambm WELSCH, op. cit.
CristianoXavierNota
-
22
partir da cincia e da arte. A ps-modernidade agora resgata esse desiderato para o
mbito da realidade. Para Welsch, o contedo da ps-modernidade no nada
antimoderno, e a forma no simplesmente transmoderna, mas uma forma de
soluo exotrica, que um dia compreendeu a esotrica modernidade do sculo
XX. Por isso, pode-se afirmar que ela radicalmente moderna e no ps-moderna,
o que conduz a uma forma de transformao da prpria modernidade. Como
sugere o ttulo de seu livro Unsere postmoderne Moderne30
, Welsch defende a tese
de que vivemos ainda na modernidade, mas isso feito exatamente na medida em
realizamos a ps-modernidade.
6. A pluralidade ps-moderna no s um ganho de liberdade, mas tambm liga-se com um agravamento (ou com uma nova sensibilidade) em
relao ao problema, que tanto de natureza terica como prtica. A ps-
modernidade tem um fundamento essencialmente tico, exigindo um novo
modo de tratamento da pluralidade. Mas a radicalidade do pluralismo torna a
prpria tica rompida. Em outras palavras, a pluralidade traz formas de
racionalidade, cujo relacionamento no pode mais ser regulado atravs do
recurso a uma nica racionalidade. Por outro lado, a heterogeneidade da razo
no necessariamente a ltima palavra.
Pode-se afirmar que a procura moderna pela unidade tem se tornado
problemtica, seno impossvel, pois unidade realizao da metafsica
moderna, sobretudo atravs do sujeito transcendental e, na perspectiva ps-
moderna, objetivos universais, que so dependentes de uma viso de unidade
do mundo, no podem ser fundamentados metafisicamente. Assim, os ps-
modernos focalizam a heterogeneidade do radical pluralismo, enquanto, no
quadro do projeto da modernidade, o radical pluralismo visto como ameaa
s idias de solidariedade, humanismo ou emancipao.
Habermas no aceita a tese de um trnsito imediato para a ps-
modernidade, uma vez que a modernidade um projeto inacabado, desviado de sua meta, mutilado em suas intenes, convertido. inclusive no contrrio 31, que pode suprir seus dficits com um conceito mais amplo de racionalidade.
Ao quadro da realidade contempornea o filsofo confere o termo
Unbersichtlichkeit32
(intransparncia), expressando um certo pessimismo cultural
que a caracteriza e onde as futuras possibilidades da vida j no so visveis como
foram no otimismo dos iluministas. Recusa deliberadamente persistir nas aporias
30
Idem, ibidem, p. 6. 31
HABERMAS, Jrgen. Teora de accin comunicativa . complementos y estudios
previos. Madrid: Ctedra, 1989. p425. 32
HABERMAS, Jrgen. Die NeueUnbersichtlichkeit. Frankfurt am
Maio: Suhrkamp,1985, p. l4ls.
-
23
decorrentes da crtica total razo, pois ela implica reconhecer que no existe qualquer sada 33. Nesse contexto do pensamento se situa o problema filosfico de Habermas. Segundo suas palavras, o aguilho ctico cravado fundo na carne normativa e uma avaliao ctica da situao mundial constituem o pano de fundo de seu pensamento. Suas preocupaes centram-se em como a razo pode
conjugar unidade e pluralidade, abandonando sua pretenso de acesso privilegiado
verdade e assumindo o grande desafio de pensar a finitude e a transcendncia, a
partir da virada lingustica. Habermas rejeita, depois dos processos de
desconstruo da razo, a idia de uma fundamentao ltima, como Apel34
prope, pois isso o impediria de aceitar o falibilismo. A sada possvel para a
Filosofia assumir a racionalidade processual, que abre espao contingncia e
pluralidade, sem abandonar as pretenses de validade universal. Ou, na expresso
de Habermas, a unidade da razo na multiplicidade de suas vozes, viabilizada pela razo comunicativa, que levanta sua voz atravs de pretenses de validez que so, ao mesmo tempo, contextuais e transcendentes 35
A despedida do sonho moderno da unidade um problema para a
teoria educacional. Surge claramente o ceticismo, provocado pela crtica da
metafsica, que torna difcil, quando no impossvel, a relao entre a
particularidade e o universal. No h mais a instncia superior que indique o
universal e que legitime a idia de bem, sob a qual se justificaram as
reivindicaes da tradio pedaggica. Da mesma forma, o conceito de
particular problemtico, porque ele s faz sentido em relao ao universal.
Quando o particular impera nas reivindicaes, no h mais exigncia de
validade, mas apenas reivindicaes de poder.
nesse amplo contexto que so determinadas as condies geradoras
da pergunta de Habermas, de cuja resposta surge outro entendimento de
racionalidade e a Teoria da Ao Comunicativa. Segundo suas palavras, o
motivo de sua obra salta vista, urna vez que j no mais inquestionvel a herana da racionalidade ocidental. O que est em jogo a substncia das tradies e idias ocidentais 36.
33
HABERMAS, Jrgen. O discurso filosfico da modernidade. Lisboa:
Dom Quixote, 199l.p. 128. 34
Ver APEL, Karl-Otto . Fundamentao ltima no-metafsica? In: STEIN, Ernildo: DE BONI, L. A. Dialtica e liberdade; Festschrift em homenagem a
Carlos Roberto Cirne-Lima. Petrpolis: Vozes: Porto Alegre: Editora da UFRGS,
1993, p. 305-326. 35
HABERMAS, Jrgen. Pensamento ps-metafsico. Rio de janeiro: Tempo Brasileiro,
1990, p.151 ss. 36
HABERMAS, Jrgen. Teoria de La accon comunicativa. V. I. Madrid: Taurus,
1987, p. 11-12.
-
24
As fissuras do contedo normativo da modernidade, que questionam a
tradio, tambm atingem o edifcio seguro que sustentava a educao. E ela,
igualmente, revela suas aporias (ver item - Os paradoxos na formao do sujeito).
Desse modo, pode-se afirmar que o contexto sob o qual Habermas produz sua
teoria o mesmo sob o qual a educao movimenta-se com seus dficits tericos.
Entretanto, o enfrentamento de tais problemas pela educao mais tardio, pois,
tratando-se de aes do mbito existencial, a necessidade de segurana e de
familiaridade mais intensa. A essa necessidade corresponde a inevitvel atrao
unidade, que retarda seu enfrentamento com questes relativas pluralidade.
2. A tradio moderna e a educao da virtude
A recepo da obra de Habermas na teoria da educao traz um ponto
de clivagem, com a fundamentao do discurso pedaggico, que se apia nas
categorias modernas de sujeito autnomo: razo e aperfeioamento moral. A
pedagogia da Aufklrung procura fazer um mundo essencialmente tico, a
partir de virtudes da pessoa.
O sculo XVIII. Conhecido como sculo pedaggico, formula uma concepo de educao e ensino, que tem influncia at hoje e que pode ser
traduzida na expresso educao como discurso da virtude37
. Os influxos dessa
inspirao terica tm apresentado efetividade histrica e a recepo de uma nova
teorizao sobre a modernidade, o sujeito e a razo no dispensam esse horizonte
de expectativa. Ao contrrio, os conceitos, que se tornaram operativos, funcionam
como uma pr-compreenso nas novas formas de interpretar a educao: tornam-
se, na verdade, uma tradio invasora, seja para serem refutados ou confirmados.
Pretende-se evidenciar aqui que o sentido da ao pedaggica, na sua formulao
moderna, dependia de uma viso de unidade e universalidade, que deixa um espao
vazio, quando tal viso se torna improvvel pelo enfrentamento, tanto de suas
aporias, como a no-realizao de condies objetivas que assegurassem a
formao do homem virtuoso. A ateno de muitos pensadores da segunda metade
do sculo XX quer responder a esse vazio, buscando um novo sentido ou indicando
a impossibilidade de sentido universal para as aes humanas. A racionalidade
comunicativa e a tica discursiva, propostas por Habermas, so uma reconstruo
da racionalidade encontrada nas prticas cotidianas, a qual no quer dar as costas
aos princpios que se encontram diretamente conectados com a herana da
educao. Nessa perspectiva, necessrio compreender como se formula o
discurso pedaggico moderno.
37
OELKERS Jrgen; OSTERWALD. Fritz. Pestalozzi. Umfeld und Rezeption.
Weinheim und Basel: Beltz, 1995, p. 25.
-
25
Suas primeiras formulaes esto relacionadas com uma concepo
antropolgica que propunha o desenvolvimento de uma educao correta e
virtuosa. Isso j se evidencia em Rousseau e Locke38
na metfora do jardineiro, que
cuida das plantas para obter o melhor desenvolvimento. A analogia com o
desenvolvimento orgnico evidencia a pretendida eficcia do ensino, quando a
prpria natureza deve progredir para um crescimento tico. Assim, o pensamento
central de Locke39
, de que o entendimento humano no provm das idias inatas,
mas que toda a idia deve ser aprendida, um fundamento da psicologia
sensualista, que permite a concretizao das premissas antropolgicas. Segundo a
concepo sensualista de Locke, todas as idias, tanto as elementares como as
complexas, devem ser imprimidas na criana. Portanto, passa a ter significao
especial a descrio das condies de possibilidade da influncia pedaggica. A
obra de Locke Some Thoughts concerning Education (1693) visava aplicao da
teoria empirista do conhecimento ao ensino, pois, segundo ele, o esprito da criana pode ser facilmente conduzido para este ou aquele caminho, como a
prpria gua 40. Conforme destaca Oelkers
41, a educao, para Locke, s tem como
pressuposio a capacidade de aprendizagem da criana. Ao mesmo tempo, resulta disso que a criana no tem uma disposio para a moral, mas todas as proposies morais e cada disposio para a virtude adquirem-se pela
experincia. O objetivo da educao produzir uma pessoa virtuosa, e o grande princpio e fundamento de toda a virtude e valor posto nisto: que o
homem capaz de rejeitar seus prprios desejos, ultrapassar suas prprias
inclinaes e seguir puramente o que a razo indica como melhor 42 J com Rousseau, o central para o processo de educao do homem moral
a contradio entre natureza e sociedade. No cdigo binrio que estabelece, o mal
est na sociedade, e o bem na natureza. Sua hiptese mais importante a negao
do pecado original, conforme ocorria na tradio crist, e que s a natureza pura
pode ser o fundamento da educao43
. Trata-se de um fundamento antropolgico,
de status quase-teolgico. Nesse sentido, deve-se lembrar a conhecida afirmao
que abre o Primeiro Livro de Emlio: Tudo certo, em saindo das mos do Autor
38
Idem, ibidem, p. 30-31. 39
LOCKE, John. Ensaio acerca do entendimento humano. So Paulo: Abril Cultural,
1973. (Os Pensadores, 18). 40
LOCKE, John. Some Thoughts concerning Education. Ed. By John W. Yolton and
Jean S. Yolton. Oxford: Clarendon Press, 1989, p. 83-84. 41
OELKERS, Jrgen. Pdagogische Ethik. Weinheim und Mnchen: Juventa Verlag,
1992, p. 50. 42
LOCKE, op. Cit., p. 103. 43
OELKERS, , op. Cit., p. 27.
-
26
das coisas, tudo degenera nas mos do homem 44. A educao dos sentidos deve seguir a natureza, enquanto a educao para a vida em sociedade deve ser resultado
de um processo de reflexo. A natureza deve ser desenvolvida, antes que a criana
compreenda a exigncia da razo.
Oelkers destaca a importncia do conceito de natureza em Rousseau,
que no mais mstico, tampouco mecnico, como a fsica de seu tempo, mas
uma unidade pr-emprica a qual age autonomamente, uma unidade perfeita,
anterior sociedade, que, projetada sobre a criana, torna possvel pensar a
educao. Isso gera o mito da educao como fora universal da natureza, que
pode conduzir o homem para o bem. O Emlio seria, na verdade, a fbula do
paraso renovado45
.
A isso vincula-se uma concepo idealista de trabalho pedaggico, atravs
da qual a certeza do desenvolvimento da criana, segundo a natureza, torna-se uma
garantia antropolgica para a pedagogia. Conhecendo a natureza humana, o
educador pode agir sobre ela. Mas isso torna-se, no Emlio, tambm um paradoxo,
pois o estado natural deve ser, ao mesmo tempo, superado e conservado.
Kant confere outra direo para a relao entre educao e moral, uma vez
que a natureza no basta para resolver o problema tico, que ele funda na razo. A
razo (Vernunft) no um conjunto de qualidades, nem o objetivo, nem o meio da
educao, mas sua condio. O ponto de partida de Kant a fsica de Newton, que
reconhece as condies causais-deterministicas das leis da natureza,
independentemente do querer e da conscincia humana. A soluo que Kant
apresenta entre causalidade da natureza e causalidade da liberdade na forma de
condies do pensamento, que efetivamente foram estranhas a Locke e Rosseau.
Ambas, natureza e sociedade, so causalidades separadas, no sendo possvel
reduzir uma a outra46
A causalidade da razo prtica o imperativo que deve guiar
nossas aes, o dever (Sollen). A teoria pedaggica de Kant deduzida da tica e
confere educao um carter estruturante na passagem de uma primeira natureza
para uma natureza tica. A educao prtica ou moral, afirma Kant, aquela que diz respeito construo do homem, para que possa viver como ser livre, (...) o
qual pode bastar-se a si mesmo, constituir-se membro da sociedade e ter por si
mesmo um valor intriseco. (...) O homem deve, antes de tudo, desenvolver suas
disposies para o bem. (..) Tornar-se melhor, educar-se, (...) produzir em si a
moralidade: eis o dever do homem47.
44
ROSSEAU, Jean-Jacques. Emlio ou da educao. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
1995, p. 9. 45
OELKERS, op. Cit., p. 28-29. 46
OELKERS, op. Cit., p. 44. 47
KANT, Immanuel. Pedagogia. Piracicaba: Editora da UNIMEP, 1996, p. 20-36.
-
27
Subjacente a essa idia est a prescrio de educar para o
aperfeioamento moral da humanidade, uma idia de futuro, presente nas
utopias modernas e em toda a teoria pedaggica da tradio, pois, de acordo
com Kant, no se deve educar as crianas segundo o presente estado da espcie humana, mas segundo um estado melhor, possvel no futuro, isto ,
segundo a idia de humanidade e sua inteira destinao 48. Dessa forma, o pensamento pedaggico baseia-se no ideal, tendo,
como conseqncia, um modelo correto de ao a seguir. Kant expe isso com
toda a clareza: O projeto de uma teoria da educao um ideal muito nobre e no faz mal que no possamos realiz-lo (...). Uma idia no outra coisa
seno o conceito de uma perfeio que ainda no se encontra na experincia49. Evidentemente que Kant conhece as dificuldades de educar, diante da
diversidade da vida e dos mltiplos interesses, mas isso no o impede de
demarcar que o bem, que tem carter universal, a destinao a seguir e que a
boa vontade atua, para que o homem queira realizar esse bem, assegurando a
liberdade. Ao contrrio do animal, que cumpre seu destino sem o saber, o
homem obrigado a tentar conseguir o seu fim, preparando-se para escolher os bons fins, aqueles aprovados necessariamente por todos e que podem ser, ao mesmo tempo, os fins de cada um 50.
A complexidade e as exigncias dessa tarefa (o que inclui a necessria
disciplina) levam Kant a reconhecer a educao como o maior e o mais rduo problema que pode ser proposto ao homem; e dela no podemos fugir, pois se impe como dever de todos e de cada um. Essa formulao, relacionada com a
razo prtica, determina o paradoxo do reino da liberdade e o domnio da lei,
entre liberdade e submisso. E em conseqncia da lei moral que a humanidade
no mais espera, como no pensamento religioso, a felicidade na vida eterna,
mas abre-se para uma perspectiva de futuro orientado pela virtude, ou um
estado tico, onde todos seriam cidados.
Desse modo, a reivindicao da educao moderna vincula-se a um
discurso da educao da virtude, sustentado por bases metafsicas e com
pretenso de universalidade. A tradio pedaggica da Aufklrung teve sua
validade ancorada numa idia de bem a ser buscada pela formao do homem
virtuoso. Conhecer a natureza humana se tornou condio de possibilidade de
realizao da influncia educativa. O problema que se apresenta para a
educao contempornea que conceitos como natureza humana e uma idia
48
Idem, ibidem, p. 22-23. 49
Idem, ibidem, p. 17. 50
Idem, ibidem, p. 18-27.
-
28
de bem esto desestabilizados, justamente porque as bases metafsicas, que os
sustentaram, foram solapadas.
3. A crise da metafsica e a perda do princpio unificador do
sistema pedaggico
A formulao do projeto pedaggico moderno como desenvolvimento
do homem virtuoso vincula-se metafsica da subjetividade na autocertificao
dos tempos modernos51
. Isso trouxe a exigncia de uma nova justificao, que
diferenciasse a modernidade dos perodos anteriores, influindo tambm no
sentido do projeto pedaggico moderno.
Basicamente o que entra em questo aqui o alcance da razo, para
orientar a vida humana e produzir um conjunto de significados comuns. Os
homens sempre produziram seus modelos de racionalidade, que lhes assegurou
a vivncia de uma poca histrica52
. A modernidade estrutura um tipo de razo,
que mantm seus influxos at hoje, de forma diretamente vinculada
subjetividade e universalidade. Como sabemos, trata-se de uma poca em que
o homem pretendeu constituir-se sujeito, capaz de dominar a si e o mundo,
produzir verdades universais, superar as foras mgicas e emancipar-se de
todas as formas de heteronomia.
51
Refiro-me ao artigo de Habermas A conscincia de poca da modernidade, no qual ele afirma ser Hegel o primeiro a elevar categoria de problema filosfico o processo de separao da modernidade das sugestes normativas do passado que lhe so exteriores.
certo que, no quadro de uma crtica da tradio, que integra experincias da Reforma e do
Renascimento e reage aos incios das modernas cincias da Natureza, a Filosofia dos
tempos modernos, desde o fim da Escolstica at Kant, exprime j a autocompreenso da
modernidade. Mas s no fim do sculo XVIII que o problema da autocertificao da
modernidade se torna de tal modo premente que leva a Hegel a tomar conscincia dessa
questo como problema filosfico e mesmo como problema fundamental da sua
filosofia (HABERMAS, Jrgen. O discurso filosfico da modernidade. Lisboa: Dom Quixote, 1990, p.26-27). 52
Habermas, ao analisar o carter pluralista das vises de mundo, constata que as
interpretaes mticas so de tal forma totalizadoras que permitem submeter as
contingncias e particularidades s foras invisveis, O animismo e a magia impedem a
diferenciao entre mundo natural e cultural, no favorecendo os processos reflexivos, que
permitem estabelecer critrios de crtica da racionalidade. Ao contrrio, a racionalidade
moderna torna suas explicaes cada vez mais independentes de contedos especficos e
por isso tem subjacente estruturas universais. Uma caracterstica fundamental da racionalidade moderna a possibilidade de expor critica seus prprios pressupostos,
permitindo a distino entre os mundos objetivo, subjetivo e social. (cf. HABERMAS,
Jrgen. Teoria de La accin comunicativa. V. 1. Madrid: Taurus, 1987, p. 69s.).
-
29
O argumento que pretendo desenvolver que, embora estejamos num
mundo notadamente antimetafsico, a fora contida na metafsica da
subjetividade traz dificuldades para a educao, em sua tentativa de superao
desse modelo. Isso ocorre, sobretudo, porque h, na tradio, reivindicaes
que, com todo o direito, a educao no quer abandonar, mas h tambm
problemas que no podem mais ser resolvidos com os conceitos os quais lhe
so disponveis por essa mesma tradio. A recepo de uma obra, como a de
Habermas, que altera o paradigma, no qual se ancorava o projeto pedaggico,
requer situar o horizonte, a partir do qual a educao lana seu olhar.
A desestabilizao da metafsica gesta um amplo espectro de novas
formulaes filosficas, que questionam a educao pensada, a partir de
estruturas estveis do ser e de uma compreenso sobre natureza humana. Mas
tais estruturas no se desfazem rapidamente, fecundando um solo para o
ressurgimento do transcendental.
No discurso pedaggico, a modernidade torna-se o tempo da grande aspirao 53: a educao deve conduzir o eu para uma comunho com a vida, junto com outras pessoas, formar o homem virtuoso, onde a racionalidade o
ponto central (civilizar, cultivar, moralizar, humanizar so expresses desse
processo). A educao deve ser racional, porque a razo, comum a todos os
seres humanos, o fundamento da totalidade da existncia. A proposta de
Kant, conforme apresentada no item A tradio moderna e a educao da virtude, exemplar da idia de educar para uma vida racional, de forma coerente com a pretenso de autonomia da razo e da necessidade de superar a
menoridade autoculpada.
Sob inspirao do princpio da subjetividade, sedimenta-se um ncleo
bsico que justificar a ao educativa. Com diferentes modulaes, as
categorias pedaggicas so: sujeito, conscincia tica, liberdade, autonomia,
entre outras. A recepo da obra de Habermas se faz sob esse horizonte, numa
tentativa explcita de no abandonar essas categorias. Para dar continuidade
argumentativa ao texto, h mister uma aproximao ao significado da
metafsica da subjetividade.
3.1. A metafsica da subjetividade
Como sabemos, o termo metafsica foi inicialmente usado por Andrnico
de Rodes, no sculo I a. C., para classificar as obras de Aristteles, referindo-se
queles estudos que esto alm da fsica, t met t physik, que expressa as
53
Conforme prope OELKERS, em livro homnimo, apud UHLE, Reinhard. Bildung
in Moderne-Theorien.Weinheim: Deutscher Studien Verlag, 1993, p.10-ll.
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coisas que esto depois da fsica, ou seja, estudos que transcendem o mundo da natureza. Aristteles havia denominado tais estudos de Filosofia Primeira, cujo
objeto o estudo do ser enquanto ser, ou as causas primeiras e os princpios 54, a essncia das coisas, aquilo que elas so em si mesmas (a coisa em si), a despeito
das aparncias e do movimento.
Ao longo do pensamento ocidental, o objeto da metafsica no percorre
um caminho tranqilo, tendo muitos sentidos. Com os medievais, ela adquire
um contedo teolgico, que dado pela revelao, mas conserva-se como a
cincia do ser enquanto ser, um ser que transcende. Desde a antiguidade grega,
partia-se da idia de que a realidade existe e perguntava-se sobre o que a
realidade (ou o que o ser). Na poca moderna, emergem opinies muito
diversas acerca da metafsica, e seu problema desloca-se para a questo das
certezas, passando-se a indagar como possvel o conhecimento. Embora
continue sendo a cincia do transcendente, a metafsica agora est intimamente
vinculada ao eu pensante, ao sujeito.
A metafsica da subjetividade nos remete palavra sujeito. Como
estamos familiarizados com seu uso, no percebemos a palavra como
sedimentao histrica55
. Ela refere-se a algo que est subjacente, que serve de
fundamento. Na Filosofia moderna, o sujeito passa a constituir a base de
justificao da realidade externa. O modo de manifestar-se dessa realidade est
relacionado com a prpria idia de verdade, que necessita de certeza. Como
no havia mais vigncia das crenas anteriores, impunha-se a busca de
fundamentos que garantissem o acesso verdade e permitisse uma ao
interventiva no mundo da natureza, para coloc-la a servio do homem. Por
esse caminho a subjetividade constitui-se numa formulao pretensiosa.
nesse quadro que se travam as disputas entre o empirismo e o
racionalismo, assim como a insero de Kant no debate. Revela-se um esprito
de poca, onde a busca de um fundamento absoluto de toda a verdade se d, [...] no tanto pela tentativa de conhecer a estrutura do real quanto a necessidade de reconhecer algo como verdade, de ter a garantia, a segurana de
que posso dispor a qualquer momento de uma forma de decidir se algo
verdade 56. Tal necessidade de segurana influenciar o esforo metodolgico, na tentativa de assegurar o xito da educao correta, revelando aspectos
objetificadores de sua base metafsica.
54
ARISTTELES. Metafsica. Livro I. So Pulo: Abril Cultural, 1973, p. 213. (Os
Pensadores, 4). 55
GARCIA, Ramn R. Heidegger y La crisis de La poca moderna. Madrid: Cincel,
1987, p. 166. 56
Idem, ibidem, p. 167.
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31
O cogito, ergo sum cartesiano responde seguinte preocupao: a
necessidade radical de no buscar nenhum fundamento externo, para garantir a
autonomia. Algo s pode ser aceito como verdadeiro, se satisfizer exclusivamente
critrios claros e distintos. A tese metafsica da subjetividade adquire fora,
justamente porque o pensar descobre a certeza apodtica de que o pensamento est
dado e, por conseqncia, o eu. A busca da certeza leva o pensamento a se instalar
como reflexo de si mesmo. Segundo Descartes57
, [...] enquanto eu queria assim pensar que era tudo falso, cumpria necessariamente que eu, que pensava, fosse
alguma coisa. E, notando que essa verdade: eu penso, logo existo, era to firme e
to certa que todas as mais extravagantes suposies dos cticos no seriam
capazes de abalar, julguei que podia aceit-la, sem escrpulo, como o primeiro
princpio da Filosofia que procurava. Pensar representar, trazer as coisas diante de si mesmo como
representadas; desse modo, a conscincia de si condio de possibilidade para
a conscincia do objeto. Isso tem como conseqncia a objetificao, presente
no modo de proceder das cincias modernas, gerando a racionalidade
instrumental58
e as mais diversas formas de dominao.
Descartes considerava que os procedimentos dos antigos e escolsticos
no assegurariam as bases da cincia universal, sendo necessria a criao de um
mtodo que assegurasse a verdade. Por isso, abaixo do ttulo Discurso do mtodo
(1637), aparece o explicativo para bem conduzir a prpria razo e procurar a verdade nas cincias. O pensar claro e distinto, a partir de um modelo matemtico, torna-se critrio de verdade. A opo metodolgica cartesiana, ao
trazer o apreo pela matemtica, traz tambm a desconfiana com relaes s
57
DESCARTES,Ren. Discurso do mtodo. So Paulo: Abril Cultural, 1973, p.54. (Os
Pensadores, 15). 58
A racionalidade instrumental, na crtica de Horkheimer e Adorno, traz um processo de
coisificao, onde a razo torna-se apenas a capacidade de calcular probabilidades e desse modo coordenar os meios corretos com um fim determinado. Surge, assim, a possibilidade de objetificar o mundo, e a razo reduz-se a uma faculdade intelectual de
coordenao de aes, desvinculada de referncia realidade social. Ver
HORKHEIMER, Max, op. cit. Habermas apontar que as cincias experimentais
modernas confiam apenas na racionalidade de seu prprio procedimento: Passa a valer como racional, no mais a ordem das coisas encontradas no prprio mundo ou concebida
pelo sujeito, mas somente a soluo de problemas que aparecem no momento em que se
manipula a realidade de modo metodicamente correto. A racionalidade do procedimento
no est mais em condies de garantir uma unidade antecipada na pluralidade dos
fenmenos (HABERMAS, Jrgen. Pensamento ps-metafsico; estudos filosficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 1990, p.44).
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opinies e crenas do mundo, diversidade que estranha razo. Para que a
tarefa de bem usar a razo obtenha xito, deve-se seguir passo a passo um mtodo.
Com Descartes instaura-se a conscincia subjetiva, racional e
autnoma, a qual pretendia superar as concepes metafsicas que concediam
exterioridade fundamentao da razo. No mais devedora de foras mgicas
e princpios supra-sensveis, a racionalidade moderna prepara o caminho para o
avano triunfal das cincias.
Penso ser oportuno trazer aqui o argumento de Koyr59
. Ele aponta o
carter paradoxal da afirmao da cincia no Renascimento, justamente porque a
poca das letras e das artes e no de ideal de cincia. Embora Descartes no se situe especificamente nesse perodo, vive o ceticismo das tradies antigas. A
explicao estaria na destruio da fsica e da metafsica aristotlicas, deixando a
poca renascentista sem critrios para decidir a possibilidade ou no de algo. Essa
destruio da ontologia, que permitia decidir antecipadamente a verdade e a
falsidade, abriu espao para uma credulidade sem limites. Disso emerge uma ontologia mgica, possibilitando, por um lado, que tudo seja possvel, mas, por outro, gera o reverso, uma curiosidade ilimitada, agudeza de viso, esprito de
aventura (o prprio Descartes empreende diversas viagens e conclui que os
costumes levam diversidade de opinies e impossibilidade de estabelecer um
princpio de verdade, atravs de tais costumes e opinies), enfim uma curiosidade
pela natureza. Qual o caminho que nos leva verdade? essa a pergunta originria
da Filosofia moderna, cuja resposta dada pelo empirismo, para o qual a verdade
deriva da experincia do mundo dos fatos, e pelo racionalismo, para o qual a
verdade encontra seus critrios no interior da razo, sem recorrer experincia.
Cabe registrar que a emergncia do sujeito epistmico e da afirmao do
mtodo, para o projeto pedaggico, desde o perodo renascentista, situa-se nesse
contexto. O pensamento de Comenius (1529-1670) a inserido revela uma
duplicidade: por um lado, devedor da afirmao do mtodo e da cincia, mas, por
outro, no consegue ainda romper com os princpios metafsicos religiosos. Assim,
a arte de ensinar nada mais exige que judiciosa disposio do tempo, das coisas e do mtodo 60 (grifo meu), e a educao deve basear-se na eficincia e rendimento dos objetos mecnicos, de forma a garantir a eficincia das mentes humanas. Alm
de incrementar as coisas naturais, a educao deve conduzir o homem recuperao da harmonia perdida pelo pecado. Essa pretenso no se desvincula de
59
KOYR, Alejandre. Estdios de historia Del pensamiento cientfico. Mxico: Siglo
Veintiuno, 1978, p. 41-50. 60
COMENIUS, apud HUBERT, Ren. Histria da Pedagogia. So Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1976, p. 234.
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uma finalidade previamente estabelecida para vida do homem de cunho
essencialista e metafsico.
A tentativa da razo autnoma de desvencilhar-se da metafsica deixa
dvidas quanto ao xito do empreendimento e acaba por transformar a
autonomia num princpio metafsico.
Ao analisar o prprio pensamento, que dvida, Descartes percebe-se
como ser imperfeito, e tudo o que existe nossa volta igualmente imperfeito,
mas, ao mesmo tempo, possvel reconhecer que existe a idia da perfeio -
essa idia provm de Deus, pois s Deus poderia ter colocado essa idia no
homem. Isso revelado pela luz natural, pelas idias claras e distintas do cogito. A necessidade subjetiva das idias (idias inatas) converte-se em
necessidade objetiva, e assim ficam garantidas a unidade das experincias e a
certeza do conhecimento. Dessa forma, Descartes reincide na metafsica, dada
a presena, no eu pensante, de idias inatas.
O poder do eu penso ser retomado por Kant, de forma a garantir a determinao do sujeito e de todas as representaes: Esta representao [...] um ato da espontaneidade, isto , no pode considerar-se pertencente
sensibilidade. Dou-lhe o nome de apercepo pura, [...] porque aquela
autoconscincia que, ao produzir a representao eu penso, que tem o poder de
acompanhar todas as outras. e que una e idntica em toda a conscincia, no
pode ser acompanhada por nenhuma outra 61 Kant recusa a metafsica tradicional, mas quer fund-la sobre outras
bases. Para tanto, preciso submeter crtica os limites da razo. Com a crtica
kantiana, h outro desenvolvimento da metafsica da subjetividade, de modo a
garantir que o mundo s existe, se contraposto ao eu, ao sujeito. Assim, o
essencial no se o que est diante de mim pode ser ou no independente, mas
sim a capacidade de representar os objetos. Uma incondicional capacidade
objetivadora a caracterstica par exceilence da metafsica da subjetividade.
Tal capacidade objetivadora o que permite educao a ao interventiva
sobre o aluno, nos moldes de um fim a atingir.
A motivao originria da Filosofia kantiana est relacionada com a busca
de um fundamento vlido para o conhecimento. Nesse particular, marcante a
influncia de Hume62
, notoriamente um ctico, que acusa a metafsica de
61
KANT, Immanuel. Crtica da razo pura. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1989,
B 132. 62
Para HUME, a fonte de todo nosso entendimento a experincia sensvel. Em
Investigao sobre o entendimento humano (So Paulo: Abril Cultural, 1973. p. l40-141)ele
pergunta: Qual a natureza de todos os nossos raciocnios sobre questes de fato? A resposta apropriada parece ser que eles se baseiam na relao de causa e efeito. Mas, se
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impossibilidade de fundamentao, levando Kant a despertar de seu sono dogmtico. Como Hume no aceita a existncia de princpios a priori ou de causa, para estabelecer conexo entre os fenmenos, na verdade ele destri
tambm a metafsica (j que no possvel afirmar que Deus a causa do mundo).
Se a razo no pode ampliar o conhecimento que tenho da experincia, tambm
no possvel estabelecer enunciados verdadeiros sobre o supra-sensvel. O
desenvolvimento argumentativo kantiano demonstra a imposio das condies
internas da razo ao mundo, no processo de conhecimento. Essa a origem da
atividade autnoma da razo.
Os nossos conceitos dependem de condies a priori, anteriores
experincia, o que leva defesa da existncia de juzos sintticos a priori, capazes
de dar ao conhecimento um carter universal e necessrio, evitando o relativismo63
.
A capacidade de sintetizar do eu permite a emergncia do contedo novo,
assegurando o progresso do conhecimento. Os enunciados sintticos a priori
constituem os pressupostos metafsicos das cincias empricas, sua prpria
condio de validade. Portanto, Kant percebe que no se conhece a coisa em si,
como o queria a antiga metafsica, mas o objeto da experincia, que, por sua vez,
est submetido s leis que configuram a experincia sensvel, Assim, o filsofo de
Knigsberg um crtico da metafsica, que salva a prpria metafsica: a causa dos
fenmenos no mgica, nem teolgica, mas uma noo terica racional. A
verdade no mais um axioma (como para os grandes metafsicos), tampouco o
problema era como evitar o erro (como em Descartes), mas o estabelecimento das
condies para haver a verdade. A Filosofia deve fazer a crtica dos pressupostos
do conhecimento, constituindo-se em Filosofia transcencental; portanto, renova-se
pela constante possibilidade de crtica de seus prprios fundamentos.
tornarem a perguntar: Qual o fundamento de todos os raciocnios e concluses a respeito
dessa relao?. poderemos responder com uma simples palavra: a experincia. Mas, se
quisermos esmiuar ainda mais e indagarmos: Qual o fundamento de todas as concluses
tiradas da experincia?, isso implica uma nova questo que pode ser mais difcil de
resolver e explicar. Os filsofos, que se do ares de superior sabedoria e suficincia,
vem-se em grandes apuros, quando encontram pessoas de ndole inquisitiva que os
desalojam de todos os cantos onde se vo refugiar e acabam infalivelmente por encurral-
los em algum dilema perigoso. O melhor meio de prevenir essa confuso sermos mais
modestos em nossas pretenses; e mesmo descobrir por ns prprios a dificuldade, antes
que ela nos seja lanada em rosto. Por esse meio, podemos converter numa espcie de
mrito a nossa prpria ignorncia. 63
Em sua argumentao, KANT distingue juzos sintticos e analticos. O juzo analtico
aquele em que o predicado no exprime nada mais do que pensado no sujeito. Juzo
sinttico aquele em que a um conhecimento novo se acrescenta outro. Estes podem ser a
priori, se ocorrem anteriormente experincia, ou a posteriori, se derivados da experincia.
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Lbrun chama a ateno para a astcia de Kant, que, ao defender a
cincia enquanto prtica racional, apenas ressalva os direitos da razo em geral,
e muito especialmente o direito de pensar e conhecer o supra-sensvel. O que Kant salvou, por um tempo, deslocando audazmente e genialmente o platonismo, foi a razo universal, essa figura derradeira de Deus, a mais
sorrateira- que os procedimentos cientficos podem perfeitamente dispensar. O
que exorcizou foi a imagem de uma cincia adulta, que funcionasse sem
garantia nem fundamento e, nem por isso, se portasse mal 64 Kant quer ir alm da preocupao em legitimar a cincia: os
conhecimentos obtidos pela razo pura so traduzidos em conceitos, mas idias
como Deus, liberdade, imortalidade da alma no so passveis de conceito.
Entretanto, a razo tem acesso a elas, so idias possveis razo prtica.
E no mbito da razo prtica que Kant tambm formula uma contribuio
para o estabelecimento dos princpios orientadores da ao, baseado na razo
autnoma. Mesmo as pessoas, que se deixam orientar pela razo vulgar, sabem que
esto submetidas a algumas normas objetivas. Mas a moral no pode ser fundada
em princpios subjetivos (como o prazer e o til), pois seria sempre varivel e
contingente. Apenas um a priori pode conferir vontade universalidade e
necessidade: essa , para Kant, a lei moral, o imperativo categrico, que tem a
seguinte formulao: Age apenas segundo uma mxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal. 65
A lei moral nos determina um fim, mas isso, na argumentao
kantiana, no compromete a autonomia, porque o homem, enquanto membro
de uma comunidade de seres racionais, colabora para a consecuo desses fins.
A razo capaz de ter interesse na liberdade, superando interesses subjetivos, e
no mbito da razo prtica que est seu pleno uso. Da que libertar-se da
submisso a tarefa do homem, conforme Kant expe no texto Resposta
pergunta: o que esclarecimento? (1783). Tal tarefa continua na conseqente
exigncia de educar o homem como ser livre.
O texto Sobre a pedagogia (1803), resultado de anotaes das aulas de
Kant, em Knisgberg, revela que todo o sistema filosfico tem subjacente uma
pedagogia e indica que a educao, sendo prtica ou moral, [...] diz respeito construo (cultura) do homem, para que possa viver como um ser livre, o qual
pode bastar-se a si mesmo, construir-se membro da sociedade e ter por si
mesmo um valor intrnseco. 66
64
LEBRUN, Grard. Sobre Kant. So Paulo: Iluminuras, EDUSP, 1993, p. 13. 65
KANT,Immanuel. Fundamentao da metafsica dos costumes. So Paulo: Abril
Cultural, 1974. p.233. (Os Pensadores, 25). 66
KANT, Immanuel. Pedagogia. Piracicaba:Editora da UNIMEP, 1996, p.36.
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A liberdade uma qualidade fundamental na filosofia do sujeito e isso
implica elevar ao grau mximo a responsabilidade do homem pela sua prpria
construo, conduzindo-o ao aperfeioamento. Apostar na educao do gnero
humano revela-se, assim, uma conseqncia da prpria argumentao kantiana.
De forma coerente com os grandes ideais do Iluminismo e numa perspectiva de
consolidao da modernidade, a educao buscar a instaurao do sujeito
autnomo, fundamentado na metafsica da subjetividade. A autoconscincia a
fonte da realizao dos fins.
Cada membro da comunidade s chega liberdade e maioridade pela
educao, o que implica, inclusive, a disciplina e a educao negativa, como forma
de impedir que a animalidade prejudique o carter humano, tanto no indivduo como na sociedade. Portanto, a disciplina consiste em domar a selvageria 67 Mas no basta que o homem seja disciplinado, isso seria apenas o primeiro passo. Ele
deve tambm ser culto, adquirindo habilidades e conhecimentos condizentes com
os fins almejados: ser prudente e cuidar da moralidade, entendida como a
disposio para escolher bons fins, ou seja, aqueles que so passveis de se
submeterem ao critrio de universalizao.
A educao, tributria de uma modernidade, que gira em torno do signo da
liberdade68
, no permanece imune aos problemas de no-realizao de suas metas e
do questionarnento do pensamento metafsico pelo desenvolvimento histrico. A
desconstruo dos ideais iluministas e as dificuldades de tais idias passarem
conscincia geral traz a pergunta pela possibilidade de sentido da ao educativa.
De modo a dar continuidade argumentao, vou referir- me crtica da
metafsica feita por Nietzsche, especialmente por constituir-se numa forma
radical de abandono das pretenses emancipatrias da razo, quando a razo
deixa de ser endeusada.
3.2. A crtica de Nietsche: perspectivisino e antifinalismo
De Nietzsche, a metafsica da subjetividade recebe o mais duro ataque
e produz, de certa forma, uma diagnose de seu tempo, que implica a desistncia
da dialtica do Iluminismo e a desautorizao da autoconscincia como
realizao da unidade.
Nietzsche apresenta a verdade como uma vontade de potncia, gerando o
perspectivismo, para o qual no h como decidir entre diferentes pontos de vista.
Ao produzirmos verdade, queremos segurana e familiaridade. Prope que nos
67
Idem, ibidem, p. 26. 68
HABERMAS, Jrgen. O discurso filosfico da modernidade, Lisboa: Dom Quixote,
1990, p. 89.
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desvencilhemos da seduo, provocada por termos como eu penso, conhecimento absoluto (clara referncia a Descartes e Kant). Diz Nietzsche: De onde retiro o conceito de pensar? Por que acredito em causa e efeito? O que me d direito a falar de um Eu, e at mesmo de um Eu como causa e, por fim, de
um Eu como causa de pensamentos? Quem, invocando uma espcie de intuio do
conhecimento, se aventura a responder de pronto a essas questes metafsicas,
como faz aquele que diz: Eu penso e sei que ao menos isso verdadeiro, real e certo - esse encontrar hoje sua espera, num filsofo, um sorriso e dois pontos de interrogao. Caro senhor, dir talvez o filsofo, improvvel que o senhor no esteja errado: mas, tambm, por que sempre a verdade?69
A capacidade de pensar, organizar sistemas e categorias apenas um
ponto de vista entre outros possveis, de modo que verdade, unidade e
finalidade, categorias fundamentais da metafsica, entram em decadncia.
Convices so prises, dir Nietzsche, no Anticristo e, em Alm de bem e,
mal, acusar a metafsica pela crena na oposio de todos os valores.
A denncia do logocentrismo, presente no pensamento, feita ainda
em nome da mania de razo70
. Ao expressar a verdade, o homem manifesta seu
desejo de impor urna ordem intelectual e depois esquece sua prpria fora
motriz, Nossa necessidade de conhecimento no precisamente nossa necessidade de uma coisa conhecida? [...] No seria o instinto de medo que nos
levaria a conhecer? O jbilo daquele que conhece seria a segurana
reconquistada? Um filsofo d por conhecido o mundo, assim que o conduziu
idia. Mas, no ser porque a idia alguma coisa conhecida e habitual? 71 A criao da moral tambm resultado da vontade de potncia, da
necessidade de autoconservao. No h um poder transcendente que d sentido
vida, nem a religio, nem a moral legitimada pelo supra-sensvel. Nessa
perspectiva, a imposio de um ideal, um indicativo de vida correta e de homem
virtuoso, seria contra a vida: O ideal asctico brota do instinto de proteo e de cura de uma vida em degenerao, que por todos os meios procura manter-se e
combate por sua existncia. (...) O ideal asctico tal meio: , pois, precisamente o
inverso do que pensam os que veneram esse ideal a vida luta nele e por ele com a morte e contra a morte, o ideal asctico um artifcio da conservao da vida 72
69
NIETZSCHE, Friedrich. Alm de bem e de mal. So Paulo: Companhia das Letras,
1992, 16. 70
TRCKE, Christoph. O louco: Nietzsche e a mania da razo. So Paulo: Vozes,
1993. 71
NIETZSCHE, Friedrich. La gaya ciencia. Barcelona: Teorema, 1982, 355. 72
NIETZSCHE, Friedrich, Para a genealogia da moral. So Paulo: Abril Cultural,
1974, p. 323.
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A afirmao na vida se d atravs da projeo de valores, mas no h nada
prvio, nenhum finalismo, nenhum a priori, resultando disso apenas valores
relativos conservao da vida. O carter universal e objetivante de tais valores
deve-se ao esquecimento de que sua origem apenas fruto da vontade de potncia,
um defeito de nosso intelecto. Uma vez esquecida a sua produo originria, os
homens querem impor aos outros seus sistemas valorativos.
O modo de pensar, buscando um fundamento, o tpico preconceito pelo qual