na prisão dialética do desejo - texto de rogério viana

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  • 8/7/2019 Na Priso Dialtica do Desejo - Texto de Rogrio Viana

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    Teatro

    Na priso

    dialtica do

    desejo

    Rogrio Viana

    Curitiba Paran Janeiro de 2010

    (todos os direitos reservados)

    1

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    Personagens

    Martha Mulher jovem. Ela o que . Ou o que imagina ser.

    Solano Homem jovem. Ele o que . Ou o que imagina ter.

    Rogrio Viana

    Rua Padre Anchieta, 2690 apto. 1301Bigorrilho Curitiba ParanCEP 80730 000

    Fones 41 8803 7626 3078 8647

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    Na priso dialtica do desejo

    Cenrio com sugesto de iluminao ou viceversa O palco deve ser dividido em trs

    pernas de passagem (paralelas e bem prximas

    boca de cena) que so passarelas de luz quedevem estar bem prximas entre si. Entre astrs pernas de passagem, dois espaos ondeobjetos de cena sero colocados. A luz que vaiiluminar os objetos de cena deve ser

    perpendicular luz das pernas, das passagens.Um quadriltero no piso (com mais largura que

    profundidade) delimita o espao (e o tempo)onde acontecem as aes. sugesto, sugesto.

    1 Os vus que escondem o nada

    (Martha entra, na primeira perna, com acabea coberta por finos e transparentes vusbrancos. Veste uma roupa fluida, quaseinexistente. Cabelos longos e soltos, emdesalinho, livres)

    Martha Onde est esta mulher que em mimteima em no se revelar? Serei eu ou outraserei? Que perigos corro se deixar-me revelar?Posso perder-me nessa revelao? Ou arevelao vai mostrar que o que se escondenada ?

    (Martha retira um vu, suavemente)

    H tempos venho tentando me revelar. Mas otempo, ah!... o tempo! Justamente ele que fazperder-me nessa dvida diria que me consome,que se materializa em dvida impagvel, queno me d crditos para resgatar-me, nem hoje,

    nem amanh, em nenhum prazo qualquer maisadiante... talvez, nunca...

    Onde estou em mim? Onde est essa mulher,translcida, fluida, vazia? Essa mulher quedeseja ser, desejando ter a si mesma.

    Objeto de desejo de quem eu sou? Teimaria emdizer que desejaria ser a desejada de mimmesma. Teimaria em dizer que o desejo vaialm do ter. Suportaria ter sem ser? Teria

    suporte para ir alm do ser?

    (Martha retira outro vu, suavemente)

    A dvida me consome. Consumo-me em mimmesma. Quando penso ter alcanado um passoadiante qualquer, qualquer simples movimentome faz balanar e a dvida vem e se instala

    novamente. Consumida assim no me deixofluir. No permito corporificar nada alm dovu que cobre um semblante que se caracterizaem nada ser, nada sendo, nada . Nada sendo,no tenho capacidade de conquistar o tempo,nem o espao. Enfim, no consigo mesmoexistir ou viver. No me permito ter desejos,nem posso me proporcionar um gozo a mais.Ah... como deve ser bom gozar um gozo amais! Sim, gozar... Um gozo a mais! Sim, comodeve ser bom...!

    Smbolo do que poderia efetivamente ser, o realem mim irrepresentvel. O simblico ganhacontornos trgicos, no se realizando. Nem naimaginao permanece. Em que instncia emmim est o sonho, o desejo, o gozar, um gozar amais, um mais gozar?

    (Martha retira mais um vu, suavemente)

    (os vus cados no cho so levados pelo ventoque assola o espao. Martha fica com suaroupa fluida, quase inexistente)

    (entra Solano com uma impaciente calma)

    Solano Voc ainda no escolheu qual roupavai usar? Mulher tem tanta dificuldade paraescolher uma simples roupa, no , Martha?

    Uma simples roupa para ser escolhida significa

    uma longa batalha entre voc, seu guarda roupaimenso, impensvel e seu espelho cmplice,no ? Mas hoje ele est cmplice de quem?Seu ou do guarda roupa onde nem um simplesvu consegue espao para ser guardado?

    No precisa responder, eu entendo... sim, euentendo... Afinal, sou o nico a quem vocpermitiria uma pergunta dessas, no ? Vocsabe que a festa tem horrio para comear, nosabe? A sua festa, por sinal...

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    (Martha afasta-se para a segunda pernailuminada. A luz se apaga em Solano)

    (uma arara com vrios vestidos e acessriosfemininos iluminada)

    Martha - Ainda no sei qual ser o modelo quevou usar na festa do meu aniversrio de 25 anosque aconteceu h quase um ano. No sei qualmodelo vou usar.

    Talvez eu use dois, diferentes. Um para ocomeo da festa. Este dever ser bemsofisticado, de grife, que tenha a minha cara.Que expresse minha personalidade.

    O outro, j para o meio da festa, deve ser

    tambm de grife, claro, mas ser uma pea maisdespojada, para me dar mais liberdade paradanar muito, para abraar muito meus amigose amigas, para eu tir-lo com mais facilidadequando chegar a hora de ficar sozinha ao ladodele.

    Esta dvida est comigo h quase um ano.Ainda no sei qual ser o modelo que vou usarno comeo da festa. Qual ser o outro que voutrocar para a parte final da festa do meuaniversrio de 25 anos, o que se passou h umano. Ainda estou em dvida.

    Meu desejo sempre aumenta minha dvida.Mas, na dvida, busco um desejo maior, que mecomplete.

    (Solano vai para a segunda perna iluminadaonde est Martha)

    Solano Foi com essa motivao que voc teveque comprar quatro vestidos diferentes, quatrosapatos diferentes e quatro bolsas diferentes,alm dos brincos diferentes enormes, sempre,por sinal das pulseiras, colares, cintosdiferentes? E sem contar as lingeriesextravagantes, sim aqueles quatro conjuntosdiferentes? Para mim, todos eles,indistintamente, parecem ser apenas um. Um s.Nada, aos meus olhos, os diferenciam entre si.Nenhuma das peas parece ser diferente. Ser

    que a diferena entre eles possa ser o momento

    em que foram desejados, comprados, pagos eempacotados? Talvez a diferena esteja a. Nomomento da compra. Apenas a.Tem certas horas que no consigo entendercomo que voc consegue tomar decisesimportantes em seu trabalho sem que tenha que

    aumentar o custo delas, sem ter que elevar estecusto a um patamar impensvel. Sim, estoufalando no tempo que voc demora para tomaruma deciso... Como consegue ser eficaz,produtiva e dar lucro sua empresa se, em suavida, voc to insegura, lenta, demoradaquando tem que fazer suas escolhas?

    Minha me sempre diz que, no tempo dela, umvestido novo era motivo de muita festa. Vocusaria um s vestido numa festa, pensa em dois

    diferentes e compra quatro.

    J escolheu, querida?

    Martha Ainda no sei...

    Solano Foi sempre assim?

    Martha Ainda no sei...

    Solano Foi sempre assim?

    Martha Quer fazer o favor de no encher aminha pacincia, o meu saco! No tenho tempopara discutir com voc o que sua me aquelapobre coitada vive falando sobre a poucaroupa que ela tinha...

    Solano No consigo entender isso em voc...

    Martha Que isso, isso o qu? O quer dizer?

    Solano Foi sempre assim?

    Martha Ainda no sei...

    Solano Foi sempre assim, insegura?

    Martha No uma questo de insegurana,voc sabe que sou muito segura. Sei tomardecises. Mas elas tm um tempo paraacontecerem. No aparecem como num passe

    de mgica. Preciso de tempo para tomar a

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    deciso acertada. No meu trabalho tenho umtiming preciso para isso. No meu trabalho,tenho.

    Solano Mas quatro vestidos? Todos so muitoparecidos com as centenas tem vezes que me

    parecem milhares - que voc tem no seucloset... Eu diria que todos so exatamenteiguais. Sem mnimas diferenciaes. Todos

    Martha Voc pode esperar mais um pouco,meu amor? S mais um pouco. A moa foi verse tem um do meu nmero. Adorei este modelolindssimo, este belo e sensual vestidovermelho...

    Solano Outro vestido vermelho? Voc tem

    tantos parecidos com esse. Quem olha paravoc pensa que voc tem s um vestidovermelho...

    Eu no vejo diferena entre eles. Nenhumadiferena.

    No, no... no precisa me explicar. Eu sei, eusei... no a cor, o modelo em si, o tecido, amarca, o estilista... isso sim o que temimportncia, no ?

    Martha No sei por que voc fica assim comessa cara quando vai ao shopping comigo.Devia disfarar um pouco melhor e no dartanto na cara que est comigo s por...

    Solano Voc acha que apenas por...?

    Martha Lembre-se: o dinheiro meu, o cartode crdito meu. As minhas contas sou eu

    quem consegue pagar. Se esqueceu?Solano Mas eu preciso entender como quevoc consegue investir tanto dinheiro em coisasque no tero mais valor daqui a uma semana...Tanto dinheiro por coisas to iguais.

    Martha Os meus vestidos e as minhas coisas,eu pago. Voc cuida dos seus brinquedinhoseletrnicos, est bem? Seu smart-phone pareceestar tocando...

    (som de celular tocando. Solano vai para altima - p3 - perna da luz. Martha permanecena p2, sem luz. A cada fala a luz acende sobreos personagens em cada posio onde esto)

    Solano Al... desculpe, no ouvi voc ligar...

    Estava aqui distrado, absorto em pensamentos.Claro, todos eles com voc, claro... Voc vai?Passo a que horas para pega-la, querida?

    Martha Ainda no sei... mas voc pode mepegar s 21, pode ser?

    Solano Vou chegar um pouco mais cedo.Assim tomo um uisquinho antes, combinado?

    (Martha vai para a primeira perna p1 e a

    luz a ilumina. Ela est com duas bolsas iguaisnas mos)

    Martha Que prazer me d fazer compras! um prazer que no consigo explicar. Um prazerimenso, indescritvel mesmo. Entre tantosapelos, perco-me em quase todos. Tento manterum foco sobre questes essenciais, mas o apelodaquele objeto sempre desvia minha ateno eme conduz at ele de um modo que no tenhocomo resistir. Quero aquele objeto como se elefosse vital para a minha serenidade. No...muito mais, para minha felicidade. Tambm,no... quero para minha saciedade... Tenhoganas de prazer s ao olhar para alguma coisaque me desperta a ateno. Ganas... sim... Asbolsas, ah! As bolsas! Como elas me atraem.Como!

    Eu nem te conto, querida... Essa bolsa, simplesvoc vai dizer, bem simples, no ? Pois bem,

    essa simples bolsa custou-me, no mnimo, trsorgasmos a menos... Sim, trs orgasmos...Or...gas...mos... Acha pouco s trs? Mas osmeus so orgasmos mltiplos, minha querida...Mltiplos. Correspondem a pelos menos adezoito dos seus bem simples, dos seus simplesorgasmos fisiolgicos, infantis, clitoridianos...

    (simula um orgasmo fugaz)

    Essa outra, sim essa outra, com design especial,

    j custou bem mais, muito mais... Custou-me

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    doze orgasmos a menos... Sim, doze... entendeubem? Doze, sim, doze orgasmos a menos.

    Perdeu a conta... vou ajud-la a entender aquantidade, comparando aos seus orgasmosmnimos, infantis, desinteressantes... Na sua

    contabilidade seriam setenta e dois orgasmosdos seus... Perto de quatro anos de orgasmosseus, querida... Perto de quatro anos! Acha que exagero?

    Pois eu lhe digo: no !

    (simula outro orgasmo, desta vez menos fugaz)

    Voc entende o que e o que vale um orgasmoa menos? Consegue entender a dimenso do que

    seja isso? Um orgasmo a menos, na minharegra, ou padro, como queira, o prazersupremo, o gozo mximo, a completude que meinvade a cada objeto que consigo comprardepois de ter desejado apenas com um simplesolhar, num simples momento de desejo. Oobjeto exerce em mim um fascnio que assimples mortais como a infeliz me daqueleum no conseguem entender, muito menosavaliar.

    Por me darem tanto prazer, por meproporcionarem gozos indescritveis que, cadavez mais, eu quero me fascinar por objetos toespeciais quanto essas duas incomparveisbolsas.

    Elas sempre valem os orgasmos a menos que eupago!

    (Martha vai para a segunda perna, mas ainda

    sem iluminao. Solano entra e fica na primeira perna e tem um copo de usque namo)

    Solano Ainda bem que o usque pode mefazer companhia nesta espera. Como ela demorapara decidir qual vestido vai usar! Bem, odezoito anos, rtulo azul, faz valer a penaesperar!

    (Martha veste um vestido vermelho que estava

    na arara)

    (Solano vai para a segunda perna e beija orosto de Martha)

    Martha Como estou?

    Solano Linda como sempre... No demorou

    nada, desta vez! Onde vamos?

    Martha Pensei em ir ao cinema. Ou ao teatro.Voc sabe que gosto de ser surpreendida porprogramas no programados com antecedncia.So mais excitantes...

    Solano Est bem... Sei onde vou lev-la...

    (cai a luz)

    2 Nada muda, permuta

    (Martha vai para a primeira perna. Solano ficana terceira perna. Os dilogos se desenvolvemno dinamismo da luz que acende e que apagaem cada espao-tempo do cenrio)

    Martha Como voc me v?

    Solano Fraca...

    Martha Apenas?

    Solano E a mim?

    Martha Corajoso...

    Solano S?

    Martha Ativo e forte...

    Solano Passvel de fazer de tudo para agradarum homem quando ele a interessa...

    Martha Voc tem um senso de justia...

    Solano Voc aceita as injustias semquestion-las.

    Martha A inteligncia no seu forte. Seufsico, sim.

    Solano Voc tem uma inteligncia prtica.

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    Martha Temos que ser diferentes para noscompletarmos.

    Solano Eu amo. Mas voc faz do amor umdesejo todo prprio. Todo seu.

    Martha No sei atacar. Tenho preferncia porestabelecer estratgias de defesa bemarticuladas.

    Solano Sua audcia ser extremamentetmida.

    Martha Acredita que eu sempre estejamentindo?

    Solano Manipula muito bem alguns

    sentimentos. No entendo muito bem como issose d, mas...

    Martha Voc, pelo que sei, tambmmanipula... Mas isso com voc... sabe,manipula o que lhe parece um trofu, seu pau,por exemplo. Sempre pronto para mostrarpresena. Fao assim, estalo os dedos e ele jest a postos. Pronto para servir-me.

    Solano O que voc fala sempre tem um certoar do que no mesmo sua fala. Como se a falaescondesse o que no sabe dizer. Ou pode dizer.

    Martha Como voc me v? S assim?

    Solano Voc a dona da casa. A casa do seudesejo. Ele sim, o desejo, o senhor quecomanda sua vida. Suas aes. Seu tmido jeitode ser agressiva e manipuladora.

    Martha a mim que voc v assim?Solano Fraca... que esconde uma forainexistente que me causa estranhamento.

    Martha Como voc me v?

    Solano Fraca... por ser forte. S nasaparncias e contradies.

    Martha No um paradoxo o que v em

    mim? Ou o paradoxo est na sua fala? No que

    pretensamente diz como sua fala mesmo.

    Solano Nenhum vento mais forte conseguirretirar sua real mscara. Tenho que reconhecer.Nenhum vento, vendaval, furaco mover suareal mscara, neste semblante de impvida

    deusa. Nada real em voc. Nem o disfarce datimidez que esconde a fraca fora quepretensamente apresenta em pblico.

    Martha Ento minha fora ser fraca?

    Solano A mim, isso uma verdade.

    Martha Voc est subestimando algo que amim muito caro.

    Solano O que seria?

    Martha Eu sou a senhora dos meus desejos.

    Solano No... voc senhora das suascarncias e inseguranas.

    Martha Apenas?

    Solano Mas creio que elas possam ajud-la aatingir alguns dos seus objetivos.

    Martha Quais? Consegue apontar algum?

    Solano Ter completo domnio sobre seupensamento.

    Martha Mas eu tenho. No preciso deartifcios para atingir esse objetivo primrio.

    Solano Voc se esquece que no domina

    nada. Eu disse que voc senhora das suascarncias e inseguranas. Sendo assim, no temcomo dominar seu pensamento. Talvez finja.Talvez simule. Talvez imagine. Mas no real,nada disso pode acontecer. Um pensamentofugidio. Inseguro, insistente, mas inseguro. Nose sustenta no que mesmo real. Apenasfulgura no campo do sonho, da imaginao.

    Martha Eu o desejei e voc veio a mim comouma simples bolsa azul.

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    Solano Imagina ter tido o poder de me atrair?Esquece que foi voc quem olhavainsistentemente para mim naquele bar?

    Martha No precisei de mais nada. S umolhar. E voc veio senhor de si. Como um

    cavalheiro medieval com sua lana em riste!

    Solano Voc foi uma presa fcil demais paraeu contabilizar como uma mulher a maisconquistada.

    Martha Apenas como mais uma mulher?

    Solano No conto mais mulheres como vocna relao de minhas conquistas.

    Martha Como voc no enxerga mesmo oque a mim deva ser creditado...

    Solano Acredita que a conquistadora tenhasido voc? Tem conscincia disso como irreal?

    Martha Eu sei, do meu modo, exercerfascnio sobre os homens. E voc deixou-seabater imaginando ter sido o conquistador, noa cidadela a ser conquistada. Eu sou a dona dacasa. Est em sua fala, no que disse antes.

    Solano No vou perder tempo em umadiscusso estril como essa. Nem vou prender-me a questes meramente semnticas.

    Martha Tenho a impresso que seusargumentos se esgotaram ou voc perdeu-se emseu arrazoado.

    Solano No perco mais meu tempo em

    discutir essas razes sem importncia. Eu a tivequando quis, como quis. Voc veio, entregou-se.Gemeu, gritou... deixou-se dominar pela lanado cavalheiro negro!

    Martha Pobre cavalheiro negro! Eu gozomais, muito mais, muito mais mesmo quandocompro uma bolsa. Quando compro duas... outrs, ou quatro... Pode avaliar isso, cavalheironegro? Voc custou um orgasmo a menos!

    (cai a luz bruscamente)

    3 Eu no a sinto, eu no tenho respostas...

    (Solano vai para a primeira perna. Martha vaipara a segunda e fica mexendo nos vestidos daarara. Uma luz azul forte lateral iluminaSolano)

    (Solano est com um comando de vdeo-gamenas mos, jogando, jogando)

    Solano Sou louco por jogos, mas esse aquiest me deixando maluco! Coisa insana, rapaz!Insana! A primeira coisa a me surpreender queno vem com nenhum manual de instrues. Oscomandos parecem ser os mesmos a outros

    jogos. Mas no so. No consigo descobrircomo devo fazer para atingir um estgio acima

    do que apenas o comeo do jogo. Como devofazer para avanar? Ver melhor os resultados.Enxergar isso ao meu comando. Como? Minharesposta : No sei! E o pior, no sei e noconsigo encontrar uma explicao, nem umadica, muito menos uma instruo segura. V poraqui, faa isso, faa aquilo. Sem orientao,estou tentando descobrir como devo fazer. Mastenho que confessar minha absolutaincapacidade para descobrir algo alm dobsico, do primeiro estgio desse jogo. Insano,

    jogo insano, rapaz! Quem poder me ajudar?Em minhas mos, parece que nem ajudafunciona. Tentei ler. No encontrei nada a daruma orientao segura. Tentei conversar com

    jogadores mais vividos e experientes. Ningumnem sabia que pudesse haver uma orientaopara esse tipo de desafio. Sobre o jogo mesmo,o mximo que me disseram foi: investigue, crie,arrisque, bote a cara para bater, experimente,no tenha medo, siga seu instinto.

    Funcionou? Funcionou?

    Que nada! No funciona! E eu fico com oabacaxi na mo, pois no obtenho respostas,embora, confesso, seja muito interessante tentardescobrir algo alm do primeiro estgio.

    O pior de tudo que o jogo no fala comigo,no me d respostas claras, tudo muitocifrado, misterioso, as mensagens sempre

    aparecem em horas inapropriadas e quando

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    parecem ser claras, no so. Quando penso:acertei! Desta vez, acertei! Que nada, rapaz!Deu tudo errado, funcionou ao contrrio.Pensei, agora vai. E no foi. Quando pensavaque no ia. A coisa ia. Mas, por um descuido,uma falta de ateno. Tudo voltava ao estgio

    inicial. Que coisa! Tenho pensado seriamenteem desistir. Sim, desistir mesmo. No me vejoconseguindo vencer esse desafio que parece sersimples e que, eu sei, eu sei, est em minhasmos, apenas em minhas mos.

    Estou tendo uma impresso que este jogo no seassemelha em nada com outros jogos, com ossistemas aparentemente parecidos de outros

    jogos. Ou eu estava muito equivocado com osoutros jogos, ou esse aqui mesmo especial.

    Mas cheio de armadilhas, de desvios, de falsaspistas. Certeza disso tudo no tenho. Alis, tudo incerto. At quando eu tinha achado que acoisa estava indo muito bem, estava, muito pelocontrrio, indo pra baixo, regredindo.

    O que devo fazer? Ser que desisto ou insistoum pouquinho mais!

    (som de um celular tocando)

    (Solano fica movimentando o comando do vdeogame e no fala nada)

    (o som de um celular volta a tocar mais vezes)

    Detesto esta porcaria! tudo muito fcil. Soumesmo imbatvel neste jogo. Imbatvel...

    (som de um celular tocando)

    ela! Como demorou para me chamar!(atende ao celular)

    Oi... (fica em silncio)

    O qu? (silncio maior, preocupado)

    Pode repetir? O que foi mesmo que voc disse?Pode repetir? Vamos, diga... repita. Mas noprecisa ficar to brava assim. Eu pedi para voc

    repetir, apenas repetir. Vamos, repita... Repita...

    Vamos, repita, repita...

    O que voc disse?

    (Escuta em silncio e joga o controle do jogono cho. Faz uma cara de espanto e desliga o

    celular)

    No teve jeito. Ela disse que fui reprovado. Queno tenho a mnima habilidade para entende-la.Nem consigo faze-la feliz. Que no tenho comofaze-la mais feliz. Pois falta-me uma habilidadeessencial: tenho que aprender a apertar oscomandos certos. Certo botozinho que eu nosei como funciona direito. E que todos os meusesforos foram em vo, pois, ao contrrio de eulhe dar prazer, eu s consegui irrit-la com

    minha inabilidade em conhecer o incrvel jogodo corpo dessa mulher insana, insana, rapaz!

    Ah, se ela fosse um vdeo game!

    Mas ela me disse que no um jogo. Disse-meque no mulher. Disse-me e repetiu: No soumulher. Eu sou uma mulher. Eu sou uma

    mulher, voc entendeu? Voc tem que descobrirqual a misteriosa chave que vai me fazer maisfeliz, mais bonita, mais desejada, mais nica,menos inconfundvel com outras. Voc vai terque aprender a me fazer gozar mais, ter maisdesejo e aceitar isso de um jeito natural.

    Confesso. No tenho mesmo capacidade defazer o jogo com essa mulher, essa mulher quediz no ser mulher, mas sim, uma mulher!!!

    Afinal, o que quer uma mulher?

    Eu tentei, tentei mesmo, insisti, insisti, fui almdos meus limites, muito alm, mas a respostapara essa simples pergunta continua semresposta. Afinal, o que quer uma mulher?

    No sei o que responder. No sei dar nenhumaresposta.

    Ser que um dia eu vou saber? O que quer umamulher? O que uma mulher quer?

    (cai a luz em resistncia, suavemente)

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    4 A misteriosa chama da rainha Loana

    (Martha e Solano vo para a primeira perna demos dadas. A luz foca apenas Martha

    Martha Sei que difcil entender, muitas

    vezes, o que quero. Parece, do meu lado, quedou todas as informaes precisas para que meentendam. Exijo que me entendam, mas sei que difcil entender o que quero.

    E voc sabe por qu?

    porque eu no sei exatamente o que quero!

    Simples assim: No sei o que quero!

    Se quero comprar um novo vestido e meaparece um lindo modelo de cor azul, eu queroaquele vestido a todo custo. Mas na hora deprovar, de experimentar, de avaliar diante doespelho, j no era bem aquilo, o tecido no to gostoso ao toque e a cor, ah, o azul no ficanada bem. A soluo pedir: tem um igual nacor vermelha?

    Mas esse no sei o que quero no diz respeitoapenas para questes de produtos, de objetosque despertam o meu desejo mais intenso,minha pulso por comprar, comprar, comprar...O no sei o que quero constante em outrosaspectos de minha vida. No sei se quero amardesse jeito ou se prefiro de outro. No sei sevou ligar para minha me ou se prefiro esperarpara que ela me ligue. Que coisa! Ser quesempre sou eu a tomar a iniciativa para tudo?Estou com o saco cheio de ser responsvel portodas as iniciativas, por todos os sim e os no.

    Gostaria muito, muito mesmo, de nem dizer nosempre, nem dizer sim sempre. Quero ter opoder de olhar, de ouvir uma indagao e dizerapenas: talvez. Ou, quem sabe. Melhor ainda,pode ser. Ser que vou conseguir isso? Meudesejo poder trafegar com mais calma, commais tranqilidade e menos afobao entre osim e o no. Sem esperar, de mim mesma,outros tipos de cobranas ou de dvidas.

    No sei o que quero!

    uma afirmao to verdadeira que acabei,agorinha mesmo, de me questionar se issomesmo o que eu deveria ter dito. Ser que nosei o que quero ou ser que sei o que no quero?

    Espera... espera... vou tentar reformular a

    questo: ser que no sei o que quero ou serque no sei o que no quero? Em resumo, nosei mesmo o que quero, como tambm, no seimesmo o que no quero. uma dvida perversaessa... Que atormenta!

    Entre no saber o que quero e saber o que noquero, s sei que esse trnsito me leva sempre auma s sada: sempre desejar mais, mais, maise, no desejo, no ter, nunca, nunca mesmo,nenhuma resposta confortvel para realizar isso

    ou aquilo.

    Sei que no deveria estar aqui apresentando,publicamente, essa dvida em que se encerra aquesto do que representa o desejo em mim.

    Revelar, assim, o que o desejo em mim nome agrada nada, at porque torna-me frgil,vulnervel, um telhado enorme de vidro paraque atirem maledicncias, crticas infundadas,observaes preconceituosas, olharesindiscretos e, sobretudo, muita inveja. Sim,inveja. Sabe o que inveja?

    Sei que desperto inveja em muitas pessoas. Emmulheres, sobretudo. Mas, ao mesmo tempo,como eu invejo outras! Como eu queria ter,dessas mulheres, o que no consigo comnenhuma forma de esforo. Eu invejo, sim. Eessa inveja no aquele desejo violento depossuir o bem alheio, mas sim o de querer ser

    aquela pessoa e ter a felicidade que ela pareceter. Sabe, ter e ser ao mesmo tempo...

    Vira o espelho para l. Chega de me ver repetiressa mesma cena centenas, milhares de vezes...

    Sim, por favor, quero o modelo igual ao azul,mas apenas se for vermelho. Um vermelho bemintenso. Chega de cores sem calor. Se paraprovocar inveja que todas morram de invejacom o sucesso vermelho que meu desejo

    proporciona, provoca.

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    5 Vermelho pra que te quero vermelho

    (Solano traz a arara e a coloca entre ele eMartha, como se fosse um biombo, uma parede.Solano fala entre as roupas, escondendo-se)

    (A luz acende e apaga, e alternadamente, na fala de um e na fala do outro. Solano fala noescuro. Martha est com luz. Martha fala noescuro. Solano est com luz. Nunca ailuminao mostra quem est falando, nunca, um pedido embora possa ser uma regra, afinalno sou o diretor, nem o iluminador, no ?)

    Solano Ser que voc gosta de vestidosvermelhos apenas pelo fato deles seremvermelhos?

    (Martha no percebe a pergunta)

    Ser que voc gosta de vestidos vermelhosapenas pelo fato deles serem vermelhos?

    (Martha reage fisicamente pergunta,inquietando-se)

    Martha Voc falou alguma coisa?

    Solano O que o vermelho representa paravoc?

    Martha Antes de mais nada, para dar umaresposta bem simples, que voc j sabe qual , overmelho representa sucesso.

    Solano Est falando srio?

    Martha Como sempre.

    Solano No parece.

    Martha Falo sim.

    Solano Uma coisa no tem a ver com outra.No d para representar o sucesso por uma corque tem por caracterstica representar a guerra,a clera, a vergonha... ou uma falida doutrinapoltica que no se concebe mais entre ns...

    Martha Meu sucesso sempre faz muitas

    mulheres me invejarem. E a inveja leva raiva.E a raiva injeta nelas a cor vermelha. Nos olhos,na face. Sei que h mulheres que so toinvejosas, mas to invejosas, se encontram comalgum a quem invejam, mas detestam, podemficar, instantaneamente menstruadas...

    Solano Que viagem!

    Martha sim... j ouvi algum comentandoisso...

    Solano Pessoas assim merecem cuidadosespeciais... devem se tratar...

    Martha Cuidado com o que voc fala...

    Solano Mas mesmo. Pessoas assim devemconsultar de cara um psiquiatra.

    Martha Cuidado... indicar um psiquiatra paraalgum pode ser, ao contrrio de mostrarcuidado, uma afronta, uma agresso muitogrande.

    Solano Mas voc j consultou algum?

    Martha O qu?

    Solano Sim... voc j consultou algumpsiquiatra?

    Martha Sabia que voc ia vir com esse tipode agresso...

    Solano Mas no agresso. cuidado. Estoumuito preocupado com sua fixao pela corvermelha de seus vestidos.

    Martha Mas eu tenho to poucos vestidosvermelhos? Conheo mulheres que tem mais decem vestidos azuis. Outras, mais de cem verdes.H uma colega de trabalho que s se veste decor de rosa...

    Solano Mas, responda: voc j consultou umpsiquiatra? Vamos, responda.

    Martha A bem da verdade, ainda no.

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    Solano Ainda no? Ento passou por suacabea consultar um?

    Martha Como assim?

    Solano Ainda... voc disse ainda... ainda

    no...

    Martha Acha mesmo que eu devo?

    Solano No far mal se consultar. Pode ajudarem outras questes suas...

    Martha O qu? Meu querido, acho que vocpassou dos limites...

    Solano No, no passei mesmo...

    Martha No estou gostando do rumo em quenossa conversa est tomando...

    Solano Nossa conversa? Que raios de nossaconversa?

    Martha Sim, esse nosso dilogo, aqui...

    Solano Dona... dona... a senhora est falandosozinha...

    (cai a luz, bruscamente)

    6 Zona de segredos necessria

    (a arara ser colocada paralela boca decena)

    Martha Nem tudo o que parece ser. Guardarcertos segredos numa dimenso mstica e no

    permitir que eles, uma s vez, possam sercompartilhados d a eles uma dimenso maiordo que realmente so. Maiores os segredos,maiores os cuidados. Mas o espao mtuo dequem se ama deve ser preservado, respeitado,sobretudo. No se pode permitir que certossegredos saiam daquela zona segura onde ossegredos devem permanecer. O mistrio umbom combustvel para o amor, para a paixo.Por esse motivo que entre as pessoas que seamam no se deve ir abrindo seus pequenos

    segredos a torto e a direito. No se deve. A

    relao acaba afrouxando. No se sustenta,assim. O amante deve ter seus segredos eguarda-los muito bem para que a relao no setorne promscua. A relao fica mais saudvelassim. Um no invade a fortificao do outroonde determinado segredo est alojado.

    Voc poder dizer que certos segredos podemsofrer de uma relativa toxicidade. Voc sabe:certos segredos so txicos mesmo, pois com opassar do tempo podem contaminar as paredesonde esto guardados. E o que foi apenassussurrado, l, naquele tempo, se intoxica; oque foi abafado antes tem vontade de trovejaragora, no se contenta apenas em berrar maisalto, tornar-se evidente, mas quer atordoar almdo ouvido, da conscincia.

    Eu tento defender o espao onde certossegredos meus esto muito bem escondidos. azona necessria de preservao deles. Se forampara l, l ficaro. No posso permitir queinvadam como um cavalo-de-tria, como umpresente que uma armadilha. Tenhoconscincia de que a presso possa serinsuportvel, mas determinada a no ceder,simplesmente no cedo. E mantenhoresguardados os segredos que h tempos meforam balbuciados inadvertidamente.

    No tente invadir essa zona. No tente. Serpura perda de tempo. Alm do que, certossegredos s valem mesmo para quem os guarda.

    V com calma, sim? No tente desvendar-mepor inteiro. V que os vus retirados possamrevelar apenas o nada. Ao contrrio do que vocesperava, imaginando o todo.

    No pretendo, no meu turno, penetrar em seussegredos. No vale a pena o esforo. Pode darmais trabalho e no resultar em nada. Estcombinado assim?

    Voc com seus segredos. Os meus guardadosesto, guardados ficaro. Nada alm. Nada.

    (Solano troca de lugar com Martha. Vai paraonde ela estava. Martha passa por trs da

    arara)

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    Solano Quando voc divaga e isso voc fazseguidas vezes no expe meio que semquerer, um pouco do que voc ?

    Martha No havia pensado nisso. Mas, quemsabe...

    Solano E, fala aqui, fala l, fala um pouco,hoje, depois amanh acrescenta algo... e arevelao de alguns segredos comea a ganharforma... contornos mais ou menos ntidos.

    Martha No... no mesmo...

    Solano O tal segredo guardado l naquelelugar inacessvel se mostra. Claro, nem todas aspessoas tm capacidade de ir formando esse

    entendimento, ligando um ponto aqui, umpouco ali mais adiante e nos poucos pontosforma-se uma imagem mais delineada, visvel.

    Martha Ser? Pensando assim... bem, talvez osegredo queira se revelar como num enigma.Indica um caminho que pode ou no ser overdadeiro. Mas o verdadeiro, j sabemos,nunca o real. No um truque de palavras,mas uma comprovao. Pense sob esse aspecto.

    Solano Pode ser. Mas, voltando... Quer meparecer que voc tem entranhado em si umsegredo que no to misterioso assim.

    Martha Voc quer reduzir tudo a um saspecto muito simplista. Nem tudo o queparece ser, j foi colocado isso.

    Solano No querer ser reducionista. Snteseno reduo. Sntese ampliar esse fator

    simplista para algo mais abrangente. Mas nadade teoria, ok? Sejamos prticos, pode ser?

    Martha Sempre fui. Voc sabe disso. Seja.

    Solano Se quer dizer que ao escolher svestidos vermelhos voc mostra-se muitoprtica, quem sabe...

    Martha De novo a questo dos vestidos?

    Solano De novo? No deixamos o tema

    inicial fora de nossa conversa. sobre essemesmo tema que estamos dialogando desde oincio. Voc concorda?

    Martha Ficar mastigando assim no vai levara nada.

    Solano O mesmo vestido vermelho, seguidasvezes sendo comprado, comprado, comprado...

    Martha Um equvoco seu, querido.

    Solano Mas voc s compra o mesmo vestidovermelho, sempre.

    Martha No, querido. Eu desejo sempre ummesmo padro de vestido. Por uma

    coincidncia, um vestido vermelho. Mas no ovestido vermelho. um vestido vermelho. Ovestido vermelho uma coisa. Um vestidovermelho outra completamente diferente.

    Solano O vestido ou um vestido, para mim amesma coisa.

    Martha No, meu amor. Tenho que adotaruma postura bem maternal para lhe explicar. Ovestido genrico. Um vestido reveste-se desingularidades. No procuro o genrico. O esomente o. Busco, pelo meu desejo, um... um...um mais... um alm... um interminvel. D paraentender?

    Solano No consigo enxergar, ainda, essadiferena. Parece-me que sutil, eu sei, eu sei...mas essa diferena s tem fora pelo que vocdiz, no pelo modo como voc tem agido.

    Martha Percebe, ento, que sua teoria de queos meus segredos podero ser revelados juntando-se aspectos daqui e dali, de nossasconversas, no se sustenta?

    Solano Mas ainda no juntei todos os pontos.Estou formulando ainda essa juno, na snteseque voc me permite produzir.

    Martha Pode amarrar pontos equivocados.

    Solano Nada equivocado se tiver um

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    mtodo. Discutir o mtodo, agora, creio no seroportuno. At porque cada um faz o seu. Tem oseu. H um mtodo que permeia os mtodosindividuais, eu sei, eu sei... mas os mtodos sosempre prprios, de cada um.

    Martha Voc acabou de encontrar uma chavepara a discusso. Se h um mtodo e se elepassa pelos mtodos de cada um, ento, entraem cena a questo da singularidade. O que genrico talvez o tal mtodo aludido torna-se singular pela insero de fatores individuais.Eu havia colocado a questo. No o vestido. um vestido. O vestido genrico. Um vestido singular. Lembre-se, o que quer a mulher?Genericamente falando, no se sabe. E o quequer uma mulher? A singularidade se estabelece

    e a resposta que voc quer obter se amplia parauma complexidade que dificilmente o levar aresponder com exatido.

    Solano Estou ctico ainda em relao a essasquestes. Minha curiosidade se ampliou porquepretendia saber mais sobre voc. Mas, pelovisto, sempre encontra uma maneira de dar avolta, de desviar-se, de no entregar o mapa damina. Mas ser que ele existe?

    Martha Mapa da mina? Voc leu muitaliteratura romntica e de aventura na infncia e

    juventude, no foi? Sejamos realistas. No hmapa da mina nenhum. No h. Nunca houve.Anotaes esparsas, orientaes aqui,indicaes ali, nada disso somados podeconstruir um mapa. E tem a questo crucial deque nenhum mapa territrio. O territrio nose mapeia. Esse, o da discusso, no mesmo.

    Solano Sou tentado a insistir ainda na questodo porque do vestido vermelho. Bem, comoqueira, a questo de um vestido vermelho, estbem?

    Martha No tente entender. Nem tente invadirum territrio desconhecido tendo apenas comoinstrumento um mapa mal traado e semreferncias reais. O real no verdadeiro.

    Solano E se eu passar pelo que seja

    simblico? Serei levado a alguma concluso

    mais adequada? Posso avaliar sob os aspectosdo simblico. S vermelho, s vermelho... podeser um smbolo a ser interpretado, no ?

    Martha Meu amor, no tente. No tente ir poresse caminho. Ele muito mais complexo ainda

    e voc, meu querido, no est capacitado paraavanar. Lembre-se: mulher nenhuma vem commanual de instruo. Mulher no um jogoeletrnico desses que voc aperta um boto aquie d uma resposta. Aperta dois, tem novasrespostas, aperta dez e cem respostas aparecem,magicamente pela programao feita. Mulhernenhuma programada por bits, bytes... Mulher jogo que no se vence. Nem por esforo, nempor dedicao, nem por amor, sim... amor.

    Mulher bicho esquisito e todo ms sangra...

    E o sangue vermelho, meu querido. O sangue vermelho...

    7 O desejo que aprisiona. O que liberta

    (a arara vai para o espao entre as duas pernasiluminadas. Martha e Solano esto lado a lado,na primeira perna. A iluminao abraa os doisque sempre estaro no foco)

    Solano Reconheo que voc nasceu dapalavra, cresceu entre frases, se formou entreverbos, adjetivos e complementos e que mesmo fruto precioso da linguagem. Mas ondevoc est, neste instante, no pode ser lido, poispode estar dissipada em pontos, vrgulas,reticncias, nas entre linhas de um discursoqualquer.

    Em voc o tom da fala importa menos que osom que fala. Em voc uma palavra sempre valemais que um gesto. Que um sussurro abala maisque um toque pretensamente preciso entre suaspernas. Est em voc ser mais abraada por umapalavra, mesmo pequena, que ser tocada maispor um abrao real, mesmo grande. Mas aindame inquieta um aspecto em voc: qual asimilaridade entre voc e outras mulheres queconheci?

    No que voc igual a tantas Lyas, Clarices,

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    Fernandas, Alices, Polianas, Lenizas,Dulcinias, Efignias, Marias, Paolas, Elisas,Marcelas, Santinhas, Saloms ou outrasdevotadas cortess e uma infindvel galeria deraparigas abusadas? No que voc diferente?No que voc mais Maria e menos Martha? No

    que voc menos Maria e mais Martha? Ajude-me a entend-la, Martha?

    Como posso resgatar quem voc realmente ,neste ser intrigante que se oculta entre desejosque no conheo e faces que no reconheo?Voc pode me sinalizar se devo agir como seucarrasco poeta ou seu sedutor de mil dedos eartimanhas? Devo usar uma boca imprecisa napalavra ou uma lngua precisa em seus seios?

    Martha Talvez voc no tenha se dado contade que meus desejos so bsicos. Comuns atodas as mulheres. Nada originais, nemdiferentes, muito menos so desejos que possamcausar surpresa ou levantar suspeitas, muitomenos provocar indignaes. Sentir-me emsegurana. Ter e responder aos afetos. Poderexpressar-me sem restries ou senes. Enfim,ter liberdade. Ser parceira na jornada. Noresponder sozinha pelo piano que deva serlevado at o dcimo terceiro andar de umedifcio que no tem elevadores. Sentir-meintegrada, ser mais reconhecida que conhecidano meio social onde trafego. Ter na vida depessoas ou de uma nica pessoa o respeito e aimportncia que sei ser merecedora. Meu amorno precisa ser um prncipe, um cavalheiromedieval com armas, armaduras, elmos e pliosesvoaantes. Precisa ter-me apenas como seuamor e que faa-me sentir apreciada e aceita.

    muito isso?Solano Para a mulher que deseja, no!A questo que no quer calar ainda impera: masque mulher essa? Quem essa mulher?

    Os desejos bsicos dessa personagem no sooriginais, claro. Originais, so, porm. Pareceser um paradoxo da semntica? So, sim,originais. Esto na sua origem, so primitivos,primordiais, iniciais em voc. So originais,

    portanto.

    Mas difcil conseguir alcanar desejosoriginais e primitivos to abrangentes, j que sepode estender seus significados para alm dosentendimentos comuns. Voc pode no exigirum prncipe medieval, um cavalheiro negro.Mas, quem sabe no espere um prncipe

    sarraceno? Ele que traz sua espada reluzente,mas que tenha escondida aquela mortferaadaga com um cabo incrustado de rubis. Estariavoc em segurana com um homem assim? Ocavalheiro ou o sarraceno? No estaria maissegura se ele fosse um contador, um torneiromecnico, um diplomata ou um simplescontador de histrias? Quais seriam os afetosque se encerram em seus desejos? So amplasas possibilidades desse afeto. Ter liberdade. Oque ser livre, Martha? Ser livre... O que ter

    essa falsa sensao de ter asas e poder voar acada vontade?

    Martha Inquieta-me, aqui, essa sensao deno me sentir pertencente ao espao ondehabito. Revolta-me, muito mais, o sentimentode no habitar o tempo atual.

    O aqui e o agora, o instante de alegria e deterror. O desejo e o gozo. A surpresa e oencantamento dissipam-se nas tnues tramas dovu original. Trafegam pelo cenrio iluminadoteias fortssimas de um emaranhado dehistrias, sentimentos, afetos reais,conquistados e que se perderam ao longo dacolcha de retalhos que teci como Penlope eque destru ao rolar-me com ela em caladasfrias de noites mal dormidas. Sinto-me s,embora o calor de algum me d uma falsasensao de cumplicidade.

    Conviver, como disse aquela sbia mulher l doSul, no se torna dilogo ou parceria, mas umfrustrante monlogo a dois.

    Estou cansada de monologar num falso dilogocomigo mesma. Voc, meu querido Solano, um vento que sopra clido quando necessrio.Mas, vez ou outra, quase sempre, vem glido,cortante. Fazendo sons que me aterrorizam eque invadem recnditos de minha alma, masque, ainda assim, me fazem sentir-me viva.

    Desejo uma convivncia diferente, viva, audaz.

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    Nada que me faa sentir-me a mesma. Mas amesma sensao de me revelar nova, distinta acada novo olhar que me permito no espelho.

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    Voc o companheiro que se completa em mimmesma? Ou s se completa quando me sinto

    usada, cedendo meu corpo como um clice quevai guardar a seiva do seu prazer que sersorvida num festim onde se celebra o encontrodas contradies com a falsa alegria de estarliberto das palavras?

    Se pensa que assim que se dar essaconvivncia, arrefea seus nimos, embainhesua espada, monte novamente seu corcelselvagem e aponte um novo norte em seudestino.

    Solano Martha, Martha... minha querida esempre surpreendente Martha...! Atendi ao seuchamado. No para confrontar posies, ideiasou contradies. Voei, vim de muito longe paracomungar com voc no meras sensaesfugazes e insignificantes. Transformei-me nestenovo ser, neste homem com feies mticas,para simplesmente revelar o que em mim, tudo voc. Tento, no entanto, ter que reconhecer aenorme dificuldade que ser esse homemdesejado, sem ter que desejar-me ser outro.Voc, filha dileta da contradio, smbolohermtico do desejo que nunca se satisfaz ou secompleta, deixa-me, neste instante num dilemahomrico. Mais que isso. Um dilema ancestral.

    Dialogar com sua verdade, uma enormementira. Mentir, aqui, diante de voc, averdade cristalina com todas as exatas palavras.

    No somos termos opostos, seres adversrios,mentes divergentes. No sou o antnimo do seuprazer, nem voc o sinnimo da minhatristeza. Somos eu. Voc ns. Voc eu, sendons o que em mim este meu eu representa.

    No h incompatibilidade entre ns, nem entreo que afirmamos ao longo de um inauditodiscurso. O desacordo que ser visvel entre aMartha que sou e o Solano que voc no passaa ser uma mera figura retrica. Ela real, no

    existindo. Ela mentira, deixando-se

    resplandecer a fora do encontro irrealizvel.Voc, minha doce e sempre surpreendenteMartha tem algo a me dizer?

    Martha Tenho, sim, meu querido Solano...Tenho sim e vou dizer com toda a fora da

    minha emoo: Retire-me, nem que seja pelosmeus cabelos, desse poo onde ca e que medeixou sentir presa a sensaes e descobertasque somente seriam reveladas caso fossemextintas todas as formas de priso, de dor, desofrimento e de angstia.

    Volto ao ponto original, primordial,fundamental de minha existncia.

    Onde est esta mulher que em mim teima em

    no se revelar? Serei eu ou outra serei? Queperigos corro se deixar-me revelar? Possoperder-me nessa revelao? Ou a revelao vaimostrar que o que se esconde nada ?

    Mas, meu inestimvel Solano, reverso de mimmesma. Tire-me daqui. Resgate-me. Abrandemeu sofrimento. Aqui, na priso dialtica dodesejo eu ainda no sei com que palavras possodar novos significados para o sexo que tenho, osexo que perdi e o sexo que desejo ter e quesempre aparecem com seus gozos efmeros queme viciaram em desejar apenas e to somentevestidos vermelho, bolsas azuis e sapatos, todoseles que nenhum de ns consegue calar...

    (cai a luz em resistncia com todas as corespossveis do cenrio)

    Rogrio Viana

    Curitiba (PR), 9 de janeiro de 2011.

    Um domingo de meio sol, de um falso calor, de umvero que no aparece verdadeiramente como vero.