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Dialética hegeliana, dialética marxista, dialética adorniana Aula 5 Na aula de hoje, gostaria de dar sequência a nossas discussões sobre a estrutura lógica do pensamento dialético através de uma discussão sobre o estatuto da contradição. Trata-se de um dos problemas mais decisivos do pensamento dialético. Não por outra razão, ao ser perguntado por Goethe sobre o que entendia por dialética, Hegel afirmou: “dialética é o espírito de contradição organizado”. Então trata-se aqui de entender, primeiramente, como é possível organizar a contradição, ou seja, não reduzí-la apenas a expressão de um objeto vazio desprovido de conceito, mas dar-lhe o estatuto de um movimento ordenado próprio aos objetos da experiência. Segundo, veremos nesta aula uma das críticas mais relevantes contra a estratégia dialética de pensar a contradição como fundamento do movimento imanente das próprias coisas, a saber, aquela que podemos encontrar na filosofia da diferença de Gilles Deleuze. Há um confronto entre contradição e diferença como categorias capazes de apreender a determinação imanente do que constitui nossa experiência do mundo que gostaria de discutir com vocês na aula de hoje. Sobre a contradição Comecemos pois pelo estatuto dialético da contradição. Em sua Metafísica, Aristóteles afirma: “É impossível que o mesmo atributo pertença e não pertença ao mesmo sujeito e sob a mesma relação” 1 . Esse princípio de não-contradição era “o mais seguro de todos os princípios”, já que aceitar a realidade da contradição, aceitar que algo pode, ao mesmo tempo e sob a mesma perspectiva, ser e não ser A, significaria arruinar nossa capacidade de julgar: 1 ARISTOTELES; Metafísica, 1005b 19

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Dialética hegeliana, dialética marxista, dialética adornianaAula 5

Na aula de hoje, gostaria de dar sequência a nossas discussões sobre a estrutura lógica do pensamento dialético através de uma discussão sobre o estatuto da contradição. Trata-se de um dos problemas mais decisivos do pensamento dialético. Não por outra razão, ao ser perguntado por Goethe sobre o que entendia por dialética, Hegel afirmou: “dialética é o espírito de contradição organizado”. Então trata-se aqui de entender, primeiramente, como é possível organizar a contradição, ou seja, não reduzí-la apenas a expressão de um objeto vazio desprovido de conceito, mas dar-lhe o estatuto de um movimento ordenado próprio aos objetos da experiência. Segundo, veremos nesta aula uma das críticas mais relevantes contra a estratégia dialética de pensar a contradição como fundamento do movimento imanente das próprias coisas, a saber, aquela que podemos encontrar na filosofia da diferença de Gilles Deleuze. Há um confronto entre contradição e diferença como categorias capazes de apreender a determinação imanente do que constitui nossa experiência do mundo que gostaria de discutir com vocês na aula de hoje.

Sobre a contradição

Comecemos pois pelo estatuto dialético da contradição. Em sua Metafísica, Aristóteles afirma: “É impossível que o mesmo atributo pertença e não pertença ao mesmo sujeito e sob a mesma relação”1. Esse princípio de não-contradição era “o mais seguro de todos os princípios”, já que aceitar a realidade da contradição, aceitar que algo pode, ao mesmo tempo e sob a mesma perspectiva, ser e não ser A, significaria arruinar nossa capacidade de julgar:

“Se todos os contraditórios relativos ao mesmo sujeito são verdadeiros ao mesmo tempo é evidente que todos os seres seriam apenas um. Haveria identidade entre um trirreme, uma muralha e um homem se, de todo sujeito, fosse possível afirmar ou negar, indiferentemente, um predicado (...) Porque pois nosso filósofo vai a Mégara ao invés de ficar em casa pensando que viaja? Porque, se ele encontra um poço ou um precipício, não se dirige a ele, mas toma cuidado, como se pensasse que não é igualmente bom e ruim nele cair? É claro que ele estima que tal coisa é melhor e que tal outra é pior. Se é assim, ele também deve julgar que tal objeto é um homem, que tal outro é um não-homem, que isto é doce, que aquilo é não-doce”2.

Afirmações desta natureza querem dizer que abandonar o princípio de não-contradição seria algo que nos levaria à completa indeterminação, pedir sua comprovação seria como pedir a comprovação de um axioma. No entanto, tudo nos leva a crer que: “o homem precisa evitar a contradição para escapar da confusão e do caos, ou seja, para dominá-los; e isso na medida que lhes impõe a forma do que é livre de contradição, uniforme e a cada vez o mesmo”3.

1 ARISTOTELES; Metafísica, 1005b 19 2 ARISTOTELES, Metafísica, IV, 4, 15-203 HEIDEGGER, Nietzsche I, p. 460

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Como vocês devem imaginar, Hegel não quer ir a Mégara ficando em casa, ele não quer dizer que podemos afirmar algo e seu contrário de todo e qualquer objeto da experiência ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto. Pois uma coisa é determinar a contradição como princípio lógico-argumentativo, como impossibilidade do nosso uso ordinário da linguagem em suas expectativas comunicacionais; outra coisa é determinar a contradição como princípio metafísico, como algo da ordem do ser enquanto ser ou, ainda, da essência. É claro que Hegel em momento algum quer colocar em questão o princípio de não-contradição como princípio lógico-argumentativo, mas ele quer colocar em questão toda tentativa de elevar o princípio de não-contradição á condição de princípio metafísico. “Para Hegel e para Heráclito, a ´contradição´ é o elemento do ser, de modo que já distorcemos tudo se falamos em uma contradição do falar e do dizer, em vez de em uma oposicionalidade do ser”4. Insistir na contradição como elemento do ser significa que não se trata de limitar a linguagem filosófica ao horizonte da dimensão comunicacional da linguagem. A linguagem filosófica não é uma comunicação no interior da qual processo informações a partir de um certo grau de previsibilidade. Ela é tematização de experiências que, do ponto de vista da consciência aferrada ao senso comum, são impossíveis e mesmo impensáveis. Do ponto de vista da consciência aferrada às representações naturais do senso comum, a contradição vale como a contingência, a abnormalidade e a doença (cf. HEGEL, 1986b, p. 75).

Hegel via como preconceito lógico acreditar que a contradição não seria uma determinação tão essencial quanto a identidade. Para ele, não há apenas contradição lógica, mas também algo que devemos chamar de “contradição objetiva”, certamente um dos conceitos mais importantes de todo pensamento dialético. Pois, na verdade, face à contradição, a identidade seria apenas a determinação do ser morto: “Algo é vivente apenas na medida em que contém em si a contradição (Widerspruch in sich enthält) e é esta força [que consiste] em apreender em si e a suportar a contradição" (HEGEL, 1986b, p. 76). Mas o que pode significa a noção de conter em si a contradição? Hegel utiliza exemplos orgânicos para mostrar como algo pode conter em si mesmo aquilo que lhe nega. Ele chega a afirmar que a contradição é a raiz de todo movimento (que produz Trieb und Tätigkeit) e de toda vida, já que o movimento é pensado como impulso em direção à superação de uma contradição posta, de uma inadequação interna. Daí porque ele pode dizer: “o negativo em sua determinação essencial é o princípio de todo automovimento”5. Notemos, no entanto, que reconhecer o princípio de um auto-movimento necessário não implica afirmar o caráter contraditório de tudo o que é. Afinal, a passagem da potência ao ato, por exemplo, não implica contradição, embora implique certa forma de negação e de contrariedade.

No entanto, Hegel dirá claramente: “O que em geral move o mundo é a contradição e é ridículo dizer que a contradição não se deixa pensar”6. Este é ponto, a meu ver, central: afirmar que o que se move, move-se através da contradição. Ele implica afirmar que “movimento” não é o desenvolvimento progressivo de uma identidade previamente assegurada, nem pode ser simplesmente pensado a partir da dinâmica de passagem da potência ao ato. Não há nada de contraditório no fato de que algo em potência tornou-se ato ou no fato de que uma substância expressa seus possíveis em seus atributos, que os atributos de uma substância são as atualizações em devir de seus possíveis. No entanto, a princípio parece que é da passagem entre

4 HEIDEGGER, idem, p. 4655 HEGEL, WL II, p. 76. 6 HEGEL, Enziklopädie, par. 119

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potência e ato que Hegel fala ao tematizar contradições como: “Algo move-se a si mesmo não enquanto está aqui neste agora e em outro agora depois, mas enquanto está e não está aqui neste agora, enquanto é igual e não é igual a este aqui” (HEGEL, 1986b, p. 76). Pois estar em movimento parece ser ocupar potencialmente o outro agora, o outro aqui; logo, por me projetar em direção ao outro aqui, já o conteria em mim mesmo. No entanto, volto a insistir, se assim fosse, não haveria razão alguma para falar em contradição, no máximo deveríamos falar de contrariedades. Na verdade, estaremos mais próximo de Hegel se aceitarmos que a contradição não é entre este agora e o agora posterior, mas entre a compreensão representacional da presença e a compreensão dialética da presença. A compreensão representacional da presença a define a partir de oposições, identidades próprias à disponibilidade de sucessões vinculadas às determinações do espaço. Já a compreensão dialética da presença tem uma profunda relação de contradição com o pensar representativo, já que implicar pensar a presença a partir da simultaneidade espectral do tempo. Compreender que, agora, estou e não estou aqui, implica transformar essencialmente o que entendemos por presença, como pensamos a presença.

Por isto, podemos dizer que o movimento dialético não é mera modificação, mas é a destruição da identidade inicialmente posta. Daí porque: “a diferença em geral é a contradição em si”7. Para Hegel, a contradição é a determinação do ser a partir do primado da diferença. Pois contradição não é mera oposição, mas negação da totalidade da identidade inicial através do movimento da identidade realizar-se como exceção de si, da totalidade encarnar-se em um termo que a nega. O que não poderia ser diferente para alguém que define o movimento da essência como uma auto-negação. Definir tal auto-negação como atualização do movimento da essência significa que esta destruição da identidade posta não é fruto de um acidente, mas a realização da essência, ou mesmo a integração do acidente no interior da essência. Se fosse um acidente meramente exterior, não haveria contradição. O que se move, move-se por destruição de si e por inscrição desta destruição em um movimento de “retorno em si” (Rückkehr in sich selbst) que modifica retroativamente o termo inicial finito e limitado, ao invés de assegurá-lo em sua identidade inicial. Esta é a maneira hegeliana de afirmar que algo tem em si a própria causa do que lhe transforma. Ter em si a própria causa do que lhe transforma não é expressar a imanência de um devir que se desdobra no interior da totalidade da substância. Antes, ter em si a própria causa do que lhe transforma é integrar uma exceção que só poderá ser encarnada por uma totalidade, só pode ser integrada à condição da totalidade modificar o que determina seu regime de relações. Daí porque é necessário falar em contradição como condição para o movimento.

Notemos como a função desta reflexão filosófica sobre o conceito de contradição não se resume à noção de que o pensamento crítico deve ser capaz de indicar as contradições reais no seio da vida social a fim de expô-las tendo em vista uma possível superação. Pois ao dar à contradição um caráter ontológico, a própria noção de “superar a contradição” deve ser radicalmente revista. Conhecemos um uso tradicional desta noção de superação, por exemplo, através da exposição marxista da contradição entre meios de produção e forças produtivas tendo em vista uma superação em direção à sociedade reconciliada. No entanto, neste caso, notem como a contradição serviria apenas para indicar a existência de situações de crise a serem superadas já que a contradição é o que não pode permanecer como tal. Ela é índice de uma crise que deve ser explicitada a fim de produzirmos uma situação na qual não existam mais crises. Não é difícil perceber como, neste ponto, temos um pensamento 7 HEGEL, Wissenschaft der Logik II, p. 65

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para o qual a contradição continua sem ter realidade ontológica alguma, pois se trata de um pensamento assombrado pela possibilidade de retornar à identidade.

Neste sentido, há de se tirar as consequências do fato de Hegel dar à contradição um estatuto claramente ontológico. Zizek está certo ao afirmar: “a figura mais elementar da reversão dialética reside na transposição de um obstáculo epistemológico para a coisa em si, como sua falha ontológica (o que nos parece incapacidade de conhecer a coisa indica uma rachadura na coisa em si, de modo que nosso próprio fracasso em atingir a verdade plena é indicador da verdade)”8. Isto significa que a contradição não pode ser eliminada, nem é explicitada para ser eliminada. O que a dialética faz é transformar a contradição, de limite ao pensamento e ação, à condição de intelecção de realidades nas quais as determinações nunca são completas, nas quais elas estão em um devir contínuo de alteração da estrutura de suas formas. O que a dialética faz é transformar a realidade (Wirklichkeit) em “atividade absoluta”.

No entanto, a identidade reinstaurada que conserva a contradição não é a perpetuação de um movimento incessante de auto-ultrapassagem, como se devêssemos conservar a identidade negada para que ela fosse continuamente exposta em sua finitude e inadequação. Maneira de perpetuar uma determinação finita que teria como função simplesmente confessar continuamente sua própria impotência. Esta não é a atividade absoluta da realidade que Hegel tem em mente. Pois isto implicaria confundir dois movimentos distintos em Hegel: a umschlagen e a Aufhebung. O primeiro movimento é uma passagem incessante nos opostos, uma reversão contínua de uma determinação em seu outro. O segundo movimento é uma superação que suspende o ritmo de tais passagens incessantes, pois implica produção de uma nova forma de determinação. O primeiro movimento nos leva ao que Hegel chama de infinito ruim por ser a perpetuação infinita do limite, a afirmação infinita do limite em sua impotência. O infinito é aqui meramente potencial, pois é a expressão de um para além que nunca se encarna, como uma essência que nunca está presente, mas que continuamente apresenta sua ausência a fim de marcar a realidade com o selo do que está sempre em falta consigo mesmo.

Já a Aufhebung expressa um movimento que é o caminho para a atualização de uma infinitude verdadeira, pois ela opera com negações determinadas. As negações determinadas tem por característica assumir que a posição de dois termos em relação, por mais incomensuráveis que sejam inicialmente, produz a modificação recíproca na natureza das identidades de ambos. Mas para que este processo seja apreendido, como veremos mais a frente, é necessário que a própria ideia de determinação mude e abandone sua natureza representacional. Ela advém uma determinação infinita. Neste sentido, podemos dizer que a reconciliação, para um pensamento que determina a contradição de forma ontológica, não pode ser a suspensão pura e simples da negatividade. Seria mais correto dizer que, para a dialética, a reconciliação é a situação na qual não é mais necessário negar a negatividade, pois acedemos a um novo regime de determinação na qual é possível dar forma à processualidade contínua do devir com suas alterações formais estruturais. Só conseguiremos pensar a reconciliação de forma dialética quando abandonarmos a ideia de que reconciliações indicam telos, a aproximação de uma imagem de suspensão de antagonismos e conflitos. Para a dialética, a reconciliação não significa a antecipação filosófica de um destino, mas a compreensão efetiva de que as condições para a atividade já estão dadas, que o que anteriormente era posto como impossível já é possível. Daí este

8 ZIZEK, Slavoj; Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético, São Paulo: Boitempo, 2013, p. 26

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movimento peculiar de afirmação que a reconciliação se realiza quando compreendemos que ela já ocorreu. Ou seja, a reconciliação não diz respeito à antecipação formal de um destino, mas ao redimencionamente efetivo da ação.

Ter a contradição em si

Mas, tentemos entender melhor a natureza objetiva da contradição dialética através de certos exemplos que Hegel nos fornece no momento de explicar como algo poderia conter em si a contradição. Notemos a importância da afirmação de Hegel a respeito da presença imediata da contradição nas determinações de relação: “Pai é outro do filho e filho é outro do pai, cada termo é apenas como outro do outro (...). [No entanto] O pai, para além da relação ao filho também é algo para si (etwas für sich); mas assim ele não é pai, mas homem em geral (Mann überhaupt)”. Hegel se serve do mesmo raciocínio em outro exemplo que toca de maneira direta o problema da designação e lembra os exemplos presentes na discussão hegeliana sobre a certeza sensível:

Alto é o que não é baixo, alto é determinado apenas a não ser baixo, e só é na medida em que há baixo; e inversamento, em uma determinação encontra-se seu contrário". Mas : "alto e baixo, direita e esquerda, também são termos refletidos em si, algo fora da relação [itálico meu]; mas apenas lugares em geral (HEGEL, 1986b, p. 71).

Os dois exemplos convergem em uma intuição maior: as determinidades são, ao mesmo tempo, algo em uma oposição real e algo para si, fora do sistema reflexivo de determinações opositivas. Elas têm um modo particular de subsistir próprio irredutível. Hegel já tinha sublinhado este ponto ao comentar a oposição entre o positivo e o negativo enquanto determinações-de-reflexão autônomas: "o negativo também tem, sem relação ao positivo [itálico meu], um subsistir próprio (eigenes Bestehen)" (HEGEL, 1986b, p. 71). Ou seja, o negativo não é simples privação de determinação ou um positivo em si que aparece como negativo apenas no interior de uma relação. Ele é também um negativo em si, fora de sua oposição ao positivo, e está é a base da operação de restituição da dimensão ontológico do negativo.

Tais frases são muito importantes para a compreensão do verdadeiro caráter da contradição hegeliana. A identidade sempre é enunciada com seu contrário não porque, por exemplo, o pai é o contrário do filho e sempre que pomos o pai deveríamos pressupor o filho. A contradição encontra-se no fato de que o pai é, ao mesmo tempo, determinação para os outros (enquanto significante ‘pai’ que se determina através de oposições entre outros significantes: ‘mãe’, ‘filho’, ‘tio’) e indeterminação para si (enquanto ele pode sempre se identificar com a negatividade da indeterminação do homem em geral). Como nos indicou Zizek: “não sou apenas ‘pai’, esta determinação particular, mas para além de seus mandatos simbólicos, não sou nada mais do que o vazio que deles escapam (e que como tal é um produto retroativo)" (ZIZEK, 1999, p. 136). Como se a inscrição da individualidade em um sistema estrutural de oposições produzisse sempre uma espécie de resto, de excesso reiterado da inscrição que Hegel teria reconhecido através desta maneira de conceber a contradição.

Pode parecer estranho que termos como ‘homem em geral’ e ‘lugar em geral’ sejam vistos como pontos de excesso da tentativa de inscrever a individualidade em um sistema estrutural. Pode parecer, por exemplo, que Hegel queira simplesmente

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mostrar como os sujeitos são, ao mesmo tempo, singulares individualizados em um universo estrutural de identidades e diferenças (pai de..., filho de...), e pessoa em geral que tem em comum com outras pessoas propriedades essenciais. No entanto, se assim fosse, não haveria sentido algum em falar de “contradição” neste caso. Se Hegel vê aqui um exemplo privilegiado de contradição é porque “homem em geral” é um lugar vazio que aparece como excesso às determinações relacionais e nos envia à dialética do fundamento (Grund), que se segue às reflexões de Hegel sobre a contradição. Assim, servindo-se de um witz famoso do idealismo alemão, Hegel dirá: “Estas determinações-de-reflexão se superam e a determinação que vai ao abismo (zu Grunde gegangen) é a verdadeira determinação da essência" (HEGEL, 1986b, p. 80). Ou ainda: "A essência, enquanto se determina como fundamento, determina-se como o não-determinado, e é apenas o superar de seu ser-determinado que é seu determinar" (HEGEL, 1986b, p. 81). Ou seja, isto nos permite deduzir que “homem em geral” apenas indica o que não se determina através de predicações e individualizações, mas permanece indeterminado e negativo. Um homem em geral que indica um gênero sem arche e sem forma, que será recuperado por Marx quando falar da “vida do gênero”. Ao menos neste caso, compreender o caráter objetivo da contradição será compreender a tensão entre determinação e indeterminação que habita todo sujeito. Este exemplo mostra como a contradição é interna ao objeto porque ela exprime a cisão que resulta da operação de inscrição do objeto visado em uma rede de determinações simbólicas9. Podemos criticar esta estratégia hegeliana afirmando que ele reduz o que está fora do sistema a um ponto vazio, a uma presença pura desprovida de individualidade predicável. Neste sentido, não seria um acaso o fato de Hegel comparar o horror habitual do pensamento representativo diante da contradição ao horror da “natureza diante do vácuo” (HEGEL, 1986b, p. 78).

No entanto, o problema hegeliano consiste em saber como apresentar o que é inicialmente vazio de conceito em uma determinidade conceitual, e não como anular o não-conceitual através do império total do conceito. É possível compreender o não-conceitual como o impulso em direção a uma concepção não-representacional de conceito, a uma concepção processual de conceito? Eis uma problemática hegeliana por excelência. Como bem sublinhou Mabille, há, no interior mesmo da ontologia hegeliana, um risco de indeterminação que sempre devemos inicialmente assumir para poder após conjurar.

Parece-me que, para Hegel, esta tarefa filosófica maior só pode ser realizada quando tentamos responder à questão das condições dos modos de “apreensão e enunciação (Auffassen und Aussprechen) da contradição". Ou seja, de uma enunciação que possa apresentar a contradição, que possa levar a contradição à dimensão das operações próprias do conceito, da coisa e do sujeito, já que: “A coisa, o sujeito, o conceito são apenas esta própria unidade negativa”10. Neste sentido, o conceito é dependente da compreensão de que: “o não-ser do finito é o ser do absoluto”11.

A crítica deleuzeana

9 É neste sentido que compreendemos a afirmação de Longuenesse: “o que resta, segundo Hegel, uma descoberta inestimável, é a tensão entre a unidade do Eu penso e a multiplicidade do não pensado, ou não completamente unificado pelo pensamento. Todo objeto (pensado) porta em si tal tensão, é por isto que todo objeto porta em si a contradição" (LONGUENESSE, 1981, p. 51). Uma contradição: « entre sua inscrição em uma unidade racional e sua irredutibilidade à unidade” (ibidem, p. 52). 10 HEGEL, WL II, p. 7911 HEGEL, WL II, p. 80

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Uma das crítica mais contundente a esta forma de pensar a diferença a partir da contradição vem de Deleuze. Deleuze tende a compreender que a posição de Hegel não é essencialmente diferente da maneira que Aristóteles define a diferença e a determinação. Esta articulação é fundamental para Deleuze poder afirmar que o que temos em Hegel ainda é uma forma de pensamento da representação. Como não há possibilidade de pensar a diferença no interior da representação, a não ser como diferença opositiva que se acomoda a um quadro estruturado de representações, esta é a forma de Deleuze afirmar que a dialética hegeliana é um pensamento da identidade, incapaz de pensar a produtividade da diferença.

Deleuze inicia afirmando que a tendência hegemônica, desde Aristóteles, consiste em pensar a determinação a partir de quatro princípios: a identidade em relação ao conceito, a analogia entre julgamentos, a oposição entre os predicados de um mesmo sujeito ou entre sujeitos exteriores e a semelhança entre os objetos percebidos. Estes quatro princípios serão a base do que compreendemos por representação. Representar algo é determiná-lo a partir de princípios de oposição, identidade, semelhança e analogia. No interior deste modo de disposição que funda aquilo que Deleuze chama de “representação orgânica”, a diferença distingue-se da diversidade e da alteridade, aparecendo submetida à oposição, que é elevada à condição de diferença fundamental.

Aristóteles afirma que é diferente aquilo que difere do outro a partir de um elemento particular, sendo necessário a existência de um elemento idêntico que construa um campo de equivalência possível. Este elemento comum pode ser o gênero ou a espécie. Duas coisas são distintas em gênero quando não há matéria comum ou geração recíproca, como é o caso de coisas de categorias diferentes. Elas são distintas em espécie quando são idênticas segundo o gênero.

Sabemos que Aristóteles distingue quatro tipos de oposição: contrariedade, contradição, relação e privação. É na contrariedade que Aristóteles verá a “diferença perfeita”, já que a contrariedade representa a diferença máxima no interior do gênero (“branco” e “preto”, “pedestre” e “alado”, etc,). Por “gênero” entendamos o que constitui a unidade e a identidade de dois seres e que diferencia estes seres de uma maneira que não é simplesmente acidental. “Animal” define minha unidade com um cão, ao mesmo tempo que “animal” diferencia-se em mim e no cão de forma não acidental, pois nos distingue em espécies. Ou seja, esta diferença no interior do gênero divide-o, produzindo espécies que tem, entre si, relações de contrariedade (como “mamíferos pedestres” e “mamíferos alados”). Desta forma, percebemos como a diferença aparece como especificidade que divide o que permanece comum, a saber, o gênero. Ela é um operador que permite a conservação da identidade conceitual do gênero, inscrevendo-se no conceito indeterminado do gênero.

Esta “diferença específica”, ou seja, que determina espécies, é compreendida por Deleuze como modo de não apresentar um conceito de diferença, mas de submeter a experiência da diferença às limitações representacionais do conceito, transformando-a em predicado de uma espécie. Daí porque ele precisa insistir que: ”confunde-se a determinação de um conceito próprio de diferença com a inscrição da diferença no conceito em geral”12. Neste sentido, ao falar que procura uma diferença desprovida de conceito, Deleuze insiste que há uma experiência exterior ao modo de determinação de predicações conceituais que deve ser recuperada a fim de nos livrarmos de uma imagem do pensamento que para nos aparece com o peso do senso comum.

12 idem, p. 48

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Por outro lado, a relação dos gêneros entre si desconhece um terceiro termo comum, por isto Aristóteles afirma que os seres de gêneros distintos são incomunicáveis. Ele dirá então que: “entre uma coisa e as coisas fora de seu gênero, não há diferença concebível”13. O ‘único termo comum possível seria “ser”. No entanto, Aristóteles afirma que, na dimensão da distinção entre gêneros, há uma equivocidade radical do ser, isto enquanto as espécies são unívocas em relação ao gênero.

Levando isto em conta, podemos dizer que a crítica deleuzeana à Hegel pode ser sintetizada na seguinte frase: “Hegel, assim como Aristóteles, determina a diferença por oposição dos extremos ou dos contrários” (DELEUZE, 2000, p. 64), o que implica reduzir a contradição hegeliana a uma forma radicalizada de contrariedade. Se aceitarmos a leitura de Deleuze poderíamos explicar porque, na Ciência da Lógica, a diversidade (como diferença exterior e multiplicidade não-estruturada) deve necessariamente resolver-se na posição da igualdade e da desigualdade para daí advir oposição14. Poderíamos ainda compreender tentativas, como a de Robert Brandom, de definir a negação determinada como a simples reflexão sobre as conseqüências de assumirmos o caráter estruturante de relações de incompatibilidade material. Lembremos do que ele afirma: “Hegel aceita o princípio medieval (e spinozista) omni determinatio est negatio. Mas a mera diferença ainda não é a negação que a determinidade exige de acordo com esse princípio. Essencialmente, a propriedade definidora da negação é a exclusividade codificada no princípio de não-contradição: p exclui-se de não-p; eles são incompatíveis” (BRANDOM, 2002, p. 179). Assim: “o conceito de incompatibilidade material ou, como Hegel o designa, de ´negação determinada´ é seu mais fundamental instrumento conceitual” (BRANDOM, 2002, p. 180).

No entanto, tais leituras não são corretas. Hegel não pensa os pólos opostos a partir de relações de exterioridade, o que impossibilita a tentativa de reduzir a contradição a uma forma de incompatibilidade material. Deleuze sabe disto, por isto dirá que, para além do modo “orgânico” de representação marcado pela aplicação estrita dos quatro princípios anteriormente mencionados, há ainda um modo da representação tentar englobar o que lhe nega, englobar o “sentimento” da infinitude. Trata-se daquilo que Deleuze chama de representação “orgiástica” e que conhecemos simplesmente por dialética em sua matriz hegeliana. Por representação orgiástica, Deleuze compreende o conceito enquanto operador de internalização do que lhe aparece inicialmente como diferença exterior. Daí porque a noção de limite se modifica: “Ela não designa mais os limites da representação finita, mas ao contrário a matriz na qual a determinação finita não cessa de desaparecer e de nascer, de se absorver e se desdobrar na representação orgiástica”15.

Deleuze insiste que a maneira que Hegel dispõe de criticar a representação consiste em salvá-la, ou seja, em conservá-la como fundamento a partir do qual o que não se conforma à representação é posto como negativo. Daí porque a determinação finita (a representação) não cessa de desaparecer (já que ele se confronta incessantemente com o que lhe nega) e de nascer (já que ela permaneceria como fundamento dos modos de orientação do pensamento). É isto que Deleuze tem em mente ao afirmar que a dialética só pode descobrir o infinito deixando subsistir a 13 ARISTOTELES, Metafísica, X, 4, linea 2614 Na verdade, não pode haver multiplicidade não-estruturada para Hegel. A simples posição de uma proposição como: “Não há duas coisas que sejam completamente idênticas” já pressupõe um dispositivo de contagem que organiza a diversidade a partir da estrutura de uma multiplicidade numérica. 15 DELEUZE, idem, p. 62

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determinação finita: “dizendo o infinito da determinação finita, representando-a não como dissolvida ou desaparecida, mas como dissolvendo-se e a ponto de desaparecer, ou seja, também como engendrando-se ao infinito”16.

No fundo, esta maneira de só pensar o infinito como desaparecimento infinito da determinação finita seria fruto de uma espécie de “sono antropológico” hegeliano. Hegel seria ainda preso à antropologia da consciência, ou seja, aos limites cognitivos da consciência psicológica. Por isto, desde de sua resenha crítica ao livro de Jean Hyppolite, Lógica e existência, Deleuze se pergunta: “não podemos fazer uma ontologia da diferença que não teria que ir até a contradição porque a contradição seria menos do que a diferença, e não mais? A contradição não seria apenas o aspecto fenomenal e antropológico da diferença?”17. Anos depois, em Nietzsche e a filosofia, Deleuze acusará a dialética de ser “uma mistura bizarra de ontologia e antropologia, de metafísica e de humanismo”18. Esta insistência na dialética hegeliana como pensamento dependente dos limites de uma antropologia (tema heideggeriano por excelência) vem da compreensão da consciência-de-si como uma consciência presa às determinações representacionais de uma consciência empírica. Pois seria para uma consciência presa ainda à representação que tudo não pensável sob a forma da representação só pode ser uma contradição, ou seja, uma impossibilidade do pensamento que só se apresenta como negatividade diante da clareza do pensamento representacional. Daí porque Deleuze afirmará que a Fenomenologia hegeliana é, no fundo, uma fenomenologia da consciência infeliz, tema que ele traz das leituras hegeliana de Jean Wahl. Como se ela fosse prisioneira da cisão própria à consciência infeliz entre a efetividade e a essência.

No entanto, tal interpretação é dificilmente sustentável. Primeiro, porque se para a consciência a contradição é o impensável, para o Espírito ela é índice de verdade. O Espírito não é uma consciência hipostasiada, mas outra forma de pensamento, radicalmente distinta da forma de pensamento que define a consciência. A Fenomenologia do Espírito não é uma antropologia da consciência, nem a consciência infeliz é seu destino final, o que seria bizarro já que Hegel criou tal figura da consciência para dramatizar as clivagens próprias à consciência moral kantiana, que ele critica19. Por isto, o fundamento ao qual a contradição é reportada não pode ser considerado: “uma maneira de tomar particularmente a sério o princípio de identidade, dando-lhe um valor infinito, tornando-o coextensivo ao todo e, assim, fazendo-o reinar sobre a própria existência”20. Ao contrário, o ir ao fundamento é uma desarticulação do anteriormente fundado. As oposições, quando vão ao fundamento (Grund), caem todas no abismo (Abgrund).

Sabemos que fundar é determinar o existente através da sua relação a um padrão que me permite orientar no pensamento. Por exemplo, ao mobilizar estruturas categoriais como a causalidade, a modalidade para assegurar a inteligibilidade dos fenômenos, determino a forma do existente. A partir deste recurso à forma como fundamento posso garantir e clarificar o critério do verdadeiro e do falso, do correto e

16 DELEUZE, idem, p. 6317 DELEUZE, Gilles; L’île déserte, p. 2318 DELEUZE, Gilles; Nietzsche et la philosophie, p. 21019 O que Derrida compreendeu bem ao afirmar: “a Fenomenologia do Espírito não se interessa por qualquer coisa a que possamos chamar simplesmente o homem. Ciência da experiência da consciência, ciência das estruturas da fenomenalidade do espírito relacionando-se com ele mesmo, ela distingue-se rigorosamente da antropologia. Na Enciclopédia, a seção intitulada Fenomenologia do Espírito vem depois da Antropologia e excede muito explicitamente os limites desta” (DERRIDA, Jacques; Margens da filosofia, Campinas: Papirus, 1986, p. 156).20 DELEUZE, Gilles; Différence et répétition, p. 70

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do incorreto, do adequado e do inadequado. Mas a aplicação de todas estas estruturas aos fenômenos depende de uma decisão prévia e tácita sobre princípios lógicos gerais de ligação e unidade capazes de constituir objetos da experiência e fundar proposições de identidade e diferença. Estes princípios de ligação (Verbindung) e unidade são derivados do Eu como unidade sintética de apercepções, que aparece assim como o verdadeiro fundamento das determinações. No entanto, a problematização de tais princípios é o verdadeiro objeto da dialética. Por exemplo, quando Hegel constrói um Witz ao dizer que, para a consciência, “o ser tem a significação do seu” (das Sein die Bedeutung das Seinen hat)21, ele tem em vista o fato de que ser objeto para a consciência significa estruturar-se a partir de um princípio interno de ligação e unidade que é modo da consciência apropriar-se do mundo, constituir o mundo a partir de sua imagem, o que permite a Hegel ignorar a relevância das distinções kantianas entre receptividade e espontaneidade. A dialética precisa pois aceder a um fundamento não mais dependente da forma auto-idêntica do Eu, o que é possível através da superação dos modos naturalizados de determinação, através a fragilização das imagens de mundo que orientam e constituem nosso campo estruturado de experiências22.

O problema do infinito

Na verdade, entre Deleuze e Hegel passa ao menos um ponto em comum: todas as duas são filosofias para as quais o problema filosófico fundamental consiste em como pensar o infinito atual. Infelizmente, não há espaço aqui para falar sobre a maneira com que Deleuze pensa o infinito, mas podemos levantar algumas características do pensamento dialético sobre o infinito. Podemos começar lembrando como, para Hegel, o infinito não está ligado a determinações quantitativas, mas a determinações qualitativas. Não se trata de pensar o infinitamente grande ou pequeno, mas o infinitamente outro. Pois infinito é aquilo que porta em si mesmo sua própria negação e que, ao invés de se auto-destruir, conserva-se em uma determinidade. Daí porque Hegel pode afirmar, em uma frase chave: “A infinitude, ou essa inquietação absoluta do puro mover-se-a-si-mesmo, faz com que tudo o que é determinado de qualquer modo – por exemplo, como ser – seja antes o contrário dessa determinidade”23. Ou seja, a infinitude é construída a partir da experiência da contradição. No entanto, enquanto a contradição é compreendida pelo entendimento como impossibilidade de constituir um objeto, a infinitude permite a constituição de um objeto da experiência que move-se a si mesmo, que tem em si mesmo a própria causa de sua transformação, o próprio princípio do que destruíra sua identidade suposta.

Mais uma vez poderíamos dizer que isto parece fazer com que o infinito seja o ato contínuo de ultrapassagem do finito, de um finito que permanece, que se conserva por precisar ser continuamente ultrapassado. Por isto, Deleuze podia dizer que , em Hegel, a representação infinita não se livra do princípio de identidade, mesmo que este princípio da identidade agora seja mobilizado preferencialmente através daquilo que indica seu limite, como as noções de oposição, antagonismo, contradição e conflito.21 HEGEL, G.W.F.; Fenomenologia do Espírito, op. cit., p. 15922 Esta é nossa maneira de adotar a tese de Ruy Fausto, para quem, se fundamentação é, necessariamente, clarificação : “Apenas os discursos cujos fundamentos primeiros são de alguma maneira ‘obscuros’ (ou seja, marcados pela negação) são discursos efetivamente claros (no sentido dialético)” (FAUSTO, Ruy; Marx: logique et politique, Paris : Publisud, 1986, p. 35)23 idem, par. 163

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No entanto, lembremos como tal leitura só seria possível se reduzíssemos todas as figuras dialéticas da negação à oposição, o que está longe de ser o caso em Hegel. A oposição pode admitir que só é possível pôr um termo através da pressuposição da realidade do seu oposto, que aparece aqui como limite de significação. Mas a oposição não pode admitir, e aqui começa uma compreensão dialética da infinitude, que a identidade de um termo é a passagem no seu oposto, que o limite de um termo, por seu seu-limite, faz parte da extensão do próprio termo. Admitir isto significaria desarticular a própria noção de identidade em sua força de distinção entre elementos, o que desarticularia a noção de “finito”. Pois perdida a capacidade de distinção entre elementos, o que resta da identidade? Certamente, nada referente a seu significado habitual. Ela deixa de ter a função organizadora que normalmente esperamos da representação. Por isto, para Hegel, a identidade do conceito nada tem a ver com a identidade da representação. Pensar o conceito (e isto Deleuze parecer ter dificuldade em compreender, dificuldade que Schelling já havia demonstrado em seu tempo, em carta a Hegel24) significa pensar para além da representação. Daí a dificuldade em aceitar uma afirmação de Deleuze como: “pois a diferença só implica o negativo e só se deixa levar até a contradição na medida em que continuamos a subordiná-la ao idêntico”25. Ela cria a ilusão de sabermos o que falamos ao denunciar a “subordinação ao idêntico”. Mas não seria esta a verdadeira questão de Hegel: levaremos a identidade até sua auto-exaustão, até este ponto onde não temos mais certeza do que estamos falando, onde continuar a falar seu nome será a maneira mais astuta de trair suas ilusões iniciais?

A vantagem da perspectiva hegeliana talvez se encontre no fato dela fornecer um princípio explanatório para o seguinte problema que fica em aberto no pensamento deleuzeano: sendo a multiplicidade e a diferença aquilo que permite a intelecção da univocidade do ser26, então como explicar a recorrência perpétua das ilusões do finito e da identidade? Tais “ilusões” devem ser: a) ou momentos da univocidade, b) ou entidades com dignidade ontológica próprias (pois se elas fossem entidades simplesmente “inexistentes”, isto produziria a situação cômica de ter de explicar porque montamos verdadeiras máquinas filosóficas de guerra contra aquilo que, no final das contas, do ponto de vista ontológico, é inexistente) ou c) expressões de alguma forma de “fraqueza moral”, de descaminho do ser. Se aceitarmos c), então colocaremos a crítica filosófica nas vias de uma crítica moral, como se o finito e a identidade fosse a versão contemporânea do mal, um mal agora chamado de “ressentimento”, tal como Deleuze acusa Hegel em Nietzsche e a filosofia. Não me parece uma saída filosoficamente condizente com um pensamento, como o hegeliano, que critica violentamente posturas morais deontológicas baseadas na cisão entre desejo e vontade, entre dever e paixões. Um pensamento que é uma filosofia da atividade e da transformação contínua, algo muito distante da fixação temporal própria a todo ressentimento.

Se o finito e a identidade forem, por outro lado, entidades com dignidade ontológica próprias, então a univocidade do ser estará quebrada e a multiplicidade se mostrará mais frágil do que a identidade, já que a identidade seria uma “ilusão” com a força de exilar a experiência da multiplicidade, isolá-la em territórios e momentos 24 “Reconheço não apreender até aqui o sentido da oposição que você estabelece entre conceito e representação”(Carta de Schelling a Hegel, 02 de novembro de 1807) 25 DELEUZE, idem, p. 126 Isto se admitirmos a leitura de Alain Badiou, para quem: “o problema fundamental de Deleuze não é certamente liberar o múltiplo, é dobrar o pensamento a um conceito renovado do Uno. O que deve ser o Uno para que o múltiplo nele seja integralmente pensável como produção de simulacros?” (BADIOU, Alain; Deleuze : o clamor do ser, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 18)

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regionais. Por isto, a identidade deve ser um momento da diferença, o finito deve ser um momento da estratégia de atualização do infinito. Hegel parte do finito porque começamos a pensar contra representações naturais enraizadas na linguagem cotidiana e nas operações do senso comum. Como diria Sartre, o primeiro ato filosófico é pensar contra si mesmo. Ignorar isto é esquecer que as determinações do mundo atual não se confundem imediatamente com o que a experiência é capaz de produzir. Ignorar isto seria elevar os limites do mundo atual a condição de limites de toda linguagem e pensamento possível. Há uma explosão dos limites do atual que é resultado de um processo de trabalho do conceito, dirá Hegel. Pois o fracasso do finito em determinar-se deve ser momento de atualização de um infinito que, inicialmente, deve aparecer como força de indeterminação, para depois aparecer como força produtiva através da resignificação dos limites do finito. O finito deve confessar que ele não é finito, ele deve se auto-negar através de uma crítica imanente na qual ele descobre em si mesmo o infinito em operação, na qual ele começa a falar outra linguagem, como se sua linguagem natural fosse simplesmente destruída. Ele deve explodir seus limites e se realizar como infinito. É assim que devemos entender uma afirmação central como:

“A superação (Aufheben) não é a alteração ou o ser-outro em geral, nem a superação de algo. Isto no qual o finito se supera é o infinito como a negação da finitude, mas a finitude foi determinada por muito tempo apenas como existência enquanto não-ser. Por seu lado, a infinitude foi determinada como o negativo da finitude e da determinidade em geral, como o vazio do para além. A superação de si na finitude é um retorno deste vôo vazio, a negação do para além que é, em si mesmo, um negativo” 27.

Terminemos lembrando: como não há um pensamento da univocidade do ser em Hegel, ele precisa apreender a substância como sujeito em atividade de negatividade, ou seja, ele precisa compreender a atualização como uma atividade na qual a totalidade é uma produção retroativa incessantemente redimensionada pelo que lhe reconfigura. Ao compreender isto, a contradição deixa de ser um limite ao pensamento para ser a expressão de um mundo que é movimento que só se estabiliza em uma transformação da linguagem. Mundo no qual poderemos enfim dizer frases incompreensíveis para o entendimento, como:

A aparição é o surgir e o passar que não surge nem passa, mas que é em si e constitui a efetividade e o movimento da vida da verdade. O verdadeiro assim é o delírio báquico, onde não há membro que não esteja ébrio; e porque cada membro, ao separar-se, também imediatamente se dissolve, esse delírio é ao mesmo tempo repouso translúcido e simples. Perante o tribunal desse movimento, não se sustêm nem as figuras singulares do espírito, nem os pensamentos determinados; pois aí tanto são momentos positivos necessários, quanto são negativos e evanescentes28.

27 (HEGEL, Wissenschalft der Logik I, p. 160)28 HEGEL, G.W.F.; Fenomenologia do Espírito,