dialética do controle giddens

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RAC, Edição Especial 2003: 101-120 101 Condutas Gerenciais e suas Raízes: uma Proposta de Condutas Gerenciais e suas Raízes: uma Proposta de Condutas Gerenciais e suas Raízes: uma Proposta de Condutas Gerenciais e suas Raízes: uma Proposta de Condutas Gerenciais e suas Raízes: uma Proposta de Análise à Luz da Teoria da Estruturação Análise à Luz da Teoria da Estruturação Análise à Luz da Teoria da Estruturação Análise à Luz da Teoria da Estruturação Análise à Luz da Teoria da Estruturação Gelson Silva Junquilho R ESUMO ESUMO ESUMO ESUMO ESUMO O objetivo deste artigo é identificar condutas gerenciais oriundas da ação humana nas organizações. Tomando-se como pressuposto que aquela mesma ação não é determinada por estruturas sociais, mas por elas condicionada, mostra-se aqui como os gerentes reproduzem, em seus cotidianos, traços da sociedade brasileira. A pesquisa de campo foi realizada nas Secretarias de Estado do Governo do Espírito Santo, tomando-se como unidade de análise os servidores estaduais ocupantes de cargo de chefia, por no mínimo dois anos, em nível dos órgãos centrais, no período de janeiro de 1995 a dezembro de 1998. O método utilizado foi o estudo de caso, levantando-se dados a partir de entrevistas. A estratégia metodológica envolveu a indissociabilidade das condutas estratégicas dos sujeitos organizacionais de elementos da estrutura social – a dualidade da estrutura. Os dados revelam que os gerentes contribuem, com sua ação, para a reprodução de propriedades estruturais brasileiras. O conhecimento dessa situação, ou seja, a cognoscitividade que possuem a respeito desse contexto, permite-lhes seguir em frente, definindo condutas apropriadas a cada momento, em processo de monitoramento constante da realidade que os cerca. Palavras-chaves: teoria da estruturação; condutas gerenciais; reprodução social. A BSTRACT BSTRACT BSTRACT BSTRACT BSTRACT The object of this article is the identification of managerial conducts, originated from human action in organizations. Taking for granted that the organizational actors do not act determinated by social structures, but conditioned by elements, rules and resources pertaining to the social structure of the reality in which they are inserted, it is shown here how such managers reproduce some features of Brazilian society in their daily routines. The field was carried out in the State Secretariat Offices of Espírito Santo State government, taking as a unit for analysis those state civil servants occupying the position of head for at least two years, at the central agencies level, during the period January 1995 - December 1998. The method used was that of a case study, collecting data from interviews. The methodological strategy involved the indissolubility between the strategic conduct of the organizational subjects and elements of the social structure – the duality of structure. Data revealed that the managers contribute, with their action, for the reproduction of some Brazilian structural characteristics. Their knowledge of such characteristics, that is, their cognoscitivity concerning that context, allows them to go ahead, defining the appropriate conduct for each moment, in a process of constant monitoring of the reality around them. Key words: structuration theory; managerial conducts; social reproduction.

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Dialética Do Controle Giddens

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  • RAC, Edio Especial 2003: 101-120 101

    Condutas Gerenciais e suas Razes: uma Proposta deCondutas Gerenciais e suas Razes: uma Proposta deCondutas Gerenciais e suas Razes: uma Proposta deCondutas Gerenciais e suas Razes: uma Proposta deCondutas Gerenciais e suas Razes: uma Proposta deAnlise Luz da Teoria da EstruturaoAnlise Luz da Teoria da EstruturaoAnlise Luz da Teoria da EstruturaoAnlise Luz da Teoria da EstruturaoAnlise Luz da Teoria da Estruturao

    Gelson Silva Junquilho

    RRRRRESUMOESUMOESUMOESUMOESUMO

    O objetivo deste artigo identificar condutas gerenciais oriundas da ao humana nas organizaes.Tomando-se como pressuposto que aquela mesma ao no determinada por estruturas sociais,mas por elas condicionada, mostra-se aqui como os gerentes reproduzem, em seus cotidianos,traos da sociedade brasileira. A pesquisa de campo foi realizada nas Secretarias de Estado doGoverno do Esprito Santo, tomando-se como unidade de anlise os servidores estaduais ocupantesde cargo de chefia, por no mnimo dois anos, em nvel dos rgos centrais, no perodo de janeiro de1995 a dezembro de 1998. O mtodo utilizado foi o estudo de caso, levantando-se dados a partir deentrevistas. A estratgia metodolgica envolveu a indissociabilidade das condutas estratgicas dossujeitos organizacionais de elementos da estrutura social a dualidade da estrutura. Os dadosrevelam que os gerentes contribuem, com sua ao, para a reproduo de propriedades estruturaisbrasileiras. O conhecimento dessa situao, ou seja, a cognoscitividade que possuem a respeitodesse contexto, permite-lhes seguir em frente, definindo condutas apropriadas a cada momento, emprocesso de monitoramento constante da realidade que os cerca.

    Palavras-chaves: teoria da estruturao; condutas gerenciais; reproduo social.

    AAAAABSTRACTBSTRACTBSTRACTBSTRACTBSTRACT

    The object of this article is the identification of managerial conducts, originated from human actionin organizations. Taking for granted that the organizational actors do not act determinated bysocial structures, but conditioned by elements, rules and resources pertaining to the social structureof the reality in which they are inserted, it is shown here how such managers reproduce somefeatures of Brazilian society in their daily routines. The field was carried out in the State SecretariatOffices of Esprito Santo State government, taking as a unit for analysis those state civil servantsoccupying the position of head for at least two years, at the central agencies level, during the periodJanuary 1995 - December 1998. The method used was that of a case study, collecting data frominterviews. The methodological strategy involved the indissolubility between the strategic conductof the organizational subjects and elements of the social structure the duality of structure. Datarevealed that the managers contribute, with their action, for the reproduction of some Brazilianstructural characteristics. Their knowledge of such characteristics, that is, their cognoscitivityconcerning that context, allows them to go ahead, defining the appropriate conduct for each moment,in a process of constant monitoring of the reality around them.

    Key words: structuration theory; managerial conducts; social reproduction.

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    Gelson Silva Junquilho

    IIIIINTRODUONTRODUONTRODUONTRODUONTRODUO

    A ao humana nas organizaes definida a partir de um processo deconstruo social que ocorre ao longo do tempo e do espao, constituindo-se numconjunto de prticas complexas e distintas que depende, entre outros fatores, damaneira particular como cada ator organizacional apreende papis a ele designados,da relao com outras pessoas, bem como dos contextos culturais nos quaisesto inseridos (Stewart, 1989; Whitley, 1989; Watson, 1994). Toma-se aindacomo pressuposto que aquela mesma ao resultado de prticas sociais (Reed,1989) e, como tal, deve ser compreendida a partir de relaes histrico-sociaisem dada sociedade (Alvesson e Willmott, 1996), isto , vinculando-se ao eestrutura, por meio de processo dinmico de construo e reconstruo da vidasocial, caracterizado por aquilo que Giddens (1979, 1984) denominou de dualidadeda estrutura. Esse conceito, central na Teoria da Estruturao, definida pelomesmo Giddens, que permite, por um lado, o estudo analtico da ao desenvolvidapor atores individuais e, por outro lado, o exame dos impactos da estrutura sobreaqueles mesmos agentes, destacando-se que as estruturas tanto restringem comofacilitam a prpria ao, permitindo, assim, a possibilidade de que os atores possamalterar comportamentos, tornando-se plausvel um processo contnuo de mudanasocial. Em outras palavras, os atores no esto passivos ao determinismo dasregras sociais.

    Desse modo, a ao humana no simplesmente restringida pelas circunstnciasnas quais ela ocorre, podendo igualmente ser facilitada por elas. Isto , as estruturase circunstncias s quais os seres humanos esto submetidos condicionamparcialmente o que eles pensam e fazem, j que eles podem, por outro lado,apoiando-se ainda nessas mesmas estruturas e circunstncias, reinvent-las pormeio da ao (Orlikowski e Robey, 1991; Watson, 1994; Rouleau, 1995; Rouleaue Junquilho, 1998). Ento, pensar a ao humana nas organizaes comoconstruo ou fenmeno social, envolve a anlise conjunta da prpria ao, bemcomo os efeitos de determinadas propriedades estruturais sobre essa ao, sejarestringindo-a e/ou facilitando-a (Giddens, 1984).

    Logo, o objetivo maior deste artigo mostrar como a dualidade da estrutura til para a anlise organizacional, permitindo a compreenso de como ocorre oprocesso de estruturao (Giddens, 1984) da ao humana, ou seja, por que tipode regras e recursos inerentes a sistemas sociais prprios de uma dada estruturasocial, certas prticas sociais so construdas no cotidiano de trabalho. Para tanto,sero apresentados resultados de um estudo que teve como problema central a

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    Condutas Gerenciais e suas Razes: uma Proposta de Anlise Luz da Teoria da Estruturao

    seguinte questo: como a ao gerencial, identificada por meio de certascondutas sociais, condicionada por propriedades estruturais dasociedade brasileira? A hiptese central foi a de que propriedades estruturais(razes) daquela mesma sociedade so as mesmas que ora habilitam e orarestringem a ao gerencial, sendo esta ltima, assim, to somente condicionadae no determinada pelas primeiras.

    A CA CA CA CA CONTRIBUIOONTRIBUIOONTRIBUIOONTRIBUIOONTRIBUIO DADADADADA T T T T TEORIAEORIAEORIAEORIAEORIA DADADADADA E E E E ESTRUTURAOSTRUTURAOSTRUTURAOSTRUTURAOSTRUTURAO PARAPARAPARAPARAPARA AAAAACCCCCOMPREENSOOMPREENSOOMPREENSOOMPREENSOOMPREENSO DADADADADA A A A A AOOOOO H H H H HUMANAUMANAUMANAUMANAUMANA NASNASNASNASNAS O O O O ORGANIZAESRGANIZAESRGANIZAESRGANIZAESRGANIZAES

    Whittington (1992) e Sahay e Walsham (1997) so categricos ao apontar autilidade da Teoria da Estruturao, concebida pelo socilogo britnico AnthonyGiddens, como ferramenta de grande importncia para a anlise organizacional.De fato, essa teoria permite vincular a ao cotidiana dos atores organizacionais,em nvel micro, questo mais ampla das estruturas sociais de uma dada realidadesem, entretanto, estabelecer determinismos entre ao e estrutura e vice-versa.Para tanto, o conceito de dualidade da estrutura proposto por Giddens (1979,1984) uma alternativa ao dualismo relacionado ao sujeito e ao objeto nas CinciasSociais, em que a estrutura tomada como externa, suprema e limitadora daao de indivduos tradies funcionalista e estruturalista.

    Giddens (1979,1984), contrapondo-se viso dicotmica entre aquelas duascorrentes do pensamento social, afirma que existe relao de reciprocidade entreao e estrutura, ou seja, no se pode pens-las uma sem a outra. Para tanto,inicia o debate criticando o conceito clssico de estrutura social descrito a partirde duas caractersticas bsicas: como sendo pilar de sustentao de um edifcioou at mesmo a constituio anatmica de um corpo, bem como restritiva(constraint) ou modeladora da ao humana. Segundo o mesmo autor, tratar aestrutura como algo vinculado idia exclusiva de restrio a mesma coisa queconsider-la como varivel independente e autnoma em relao ao humana.Isso significa, na prtica, o reforo ao dualismo entre sujeito e objeto, ou seja,interpretar a ao como sendo unicamente determinada pela estrutura social, nose dando voz aos atores sociais, isto , desconsiderando-se sua capacidade deinterveno na vida social, seja reproduzindo, seja transformando aquela mesmaestrutura.

    Assim o seu conceito de estrutura dado como sendo o conjunto de regras erecursos, recursivamente implicados na reproduo dos sistemas sociais (Giddens,1984, p.377). A idia de recursividade indica que as condutas humanas no socriadas pelos atores sociais, mas recriadas por eles, por suas prprias formas e

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    Gelson Silva Junquilho

    meios utilizados para se expressarem como atores. As regras representamconvenes sociais em que o seu conhecimento pelos atores inclui tambm oconhecimento dos contextos nos quais se aplicam, constituindo-se como guias deorientao para a conduta humana. Os recursos referem-se s capacidades, disposio dos atores para fazer com que as coisas aconteam. A partir da, aestrutura no vista como existindo exteriormente ao humana, mas concebidacomo virtual, medida que s se concretiza pela reproduo da vida social, isto, ela no se viabiliza independentemente da ao humana. Da investigar aestruturao das prticas sociais procurar explicar como que a estrutura seproduz por intermdio da ao e, reciprocamente, como que a ao constitudaestruturalmente (Giddens, 1996, p.183).

    Dada essa noo de estrutura, Giddens (1979, 1984) constri o conceito, que central na Teoria da Estruturao, qual seja, o da dualidade da estrutura,buscando a demonstrao de que a estrutura no deve s ser equiparada idiade restrio ou coero, mas tambm, simultaneamente, de facilitadora. Poressa noo da dualidade da estrutura, o autor demonstra que propriedadesinstitucionais dos sistemas sociais so criadas pela ao humana ao mesmo tempoque servem de apoio para configurar (shape) essa ao, dado que

    cada ato que contribui para a reproduo da estrutura tambm um atode produo, um novo empreendimento e, enquanto tal, pode iniciar amudana pela alterao dessa estrutura, ao mesmo tempo que a reproduz assim como o significado das palavras muda no e atravs do uso(Giddens, 1996, p.146).

    O conceito de propriedades institucionais ou estruturais surge a partir daquiloque o mesmo autor define como instituies, isto , aqueles aspectos que so maisduradouros na vida social. Dessas mesmas instituies so derivadas as propriedadesestruturais que representam as caractersticas que se encontram institucionalizadasnos sistemas sociais, garantindo-lhes solidez atravs do tempo e espao (Giddens,1984). importante observar, ainda, que a idia de dualidade da estrutura permitea superao do dualismo estrutura e ao como fenmenos isolados e independentes,bem como a interpretao de que a estrutura no determinante da ao humana,mas sua condicionante. Assim pela dualidade da estrutura que se explica apossibilidade de os atores reproduzirem relaes sociais ao longo do tempo e doespao, medida que as propriedades estruturais de uma dada sociedade so asmesmas que restringem e habilitam a sua ao cotidiana.

    A estrutura, por ser virtual, ou seja, no existir concretamente, torna-sepropriedade abstrata dos sistemas sociais, definidos por Giddens (1984, p.377)como sendo a padronizao de relaes sociais ao longo do tempo-espao,entendidas como prticas reproduzidas. Assim os sistemas sociais no so

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    Condutas Gerenciais e suas Razes: uma Proposta de Anlise Luz da Teoria da Estruturao

    estruturas, mas possuem propriedades estruturais especficas a cada um deles.A estruturao desses mesmos sistemas sociais ento dada pelo estudo dosmodos como tais sistemas, fundamentados nas atividades cognoscitivas, de atoreslocalizados que se apiam em regras e recursos na diversidade de contextos deao, so produzidos e reproduzidos em interao (Giddens, 1989, p.20).

    Conciliar estrutura e ao humana pela Teoria da Estruturao, passa tambmpela considerao de que todo ator social cognoscitivo e reflexivo, tomando-secomo princpio bsico que ele sabe como definir sua forma de agir perante a vidasocial. Cognoscitivo porque possui um conjunto de habilidades e capacidade dedomnio de determinadas convenes sociais que o orientam na vida social cotidiana.O conhecimento que ele detm dessas mesmas convenes lhe permite agircorretamente, definindo a forma como prosseguir na diversidade dos contextoscotidianos nos quais est envolvido. J a reflexividade refere-se ao fato de o serhumano ser capaz de observar e entender, rotineiramente, o que faz e enquanto ofaz e, ainda, estar sempre atento quanto forma de se conduzir em relao aterceiros, considerando tambm que esses terceiros fazem o mesmo em relao aele (Giddens, 1984; Orlikowski, 1992; Simard, 1992; Rouleau, 1995; Saranson, 1995).

    A cognoscitividade pressupe familiaridade do ator social com os contextos emque se desenrolam as aes humanas. A partir desse savoir faire, ele capaz dedesenvolver certas habilidades e rocedimentos que lhe garantem a ao em seusdiversos relacionamentos sociais cotidianos. No dizer de Giddens (1989, p.301), acognoscitividade deve ser entendida como tudo que os atores sabem (crem)acerca das circunstncias de sua ao e da de outros, apoiados na produo ereproduo dessa ao, incluindo tanto o conhecimento tcito quanto odiscursivamente disponvel. De acordo com a Teoria da Estruturao, o usodesses saberes, compartilhados e comuns aos atores sociais ou agentes, quepossibilita a produo e reproduo da vida social, permitindo-lhes, do mesmomodo, dar significados s suas aes.

    Giddens (1979, 1984) destaca ainda que a vida social, diferentemente das coisasda natureza, d origem idia de prtica social, tendo esta a ver com procedimentos,mtodos e tcnicas, executados e manejados de forma apropriada por esses mesmosagentes sociais, tomando como base a conscincia que eles detm sobre osprocedimentos de uma ao. Esse conhecimento mtuo (mutual knowledge) compartilhado pelos atores sociais, que sabem como se comportar ou prosseguirem determinadas situaes cotidianas. A prtica social concilia condutas e atos deagentes humanos sem, por outro lado, desconsiderar as estruturas sociais que soreferncias para aqueles mesmos agentes em processo de interao social(Goffman, 1983), tornando possvel a dualidade macro e microssocial, sem privilgiode um nvel sobre o outro ou at de sua independncia mtua, mas como plos

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    Gelson Silva Junquilho

    complementares. Assim, as prticas sociais podem ser estudadas, em primeirolugar, do ponto de vista da sua constituio como sries de atos desencadeadospelos atores, em segundo, como constituindo formas de interao, envolvendo acomunicao de significado, em terceiro, como constituindo estruturas que pertencems coletividades ou comunidades sociais (Giddens, 1996, p.121).

    A ao envolve tambm a criao de uma diferena por parte do agente.Desse modo, vincula-se ao conceito de poder, entendendo-se este, em sentidogeral, como capacidade transformadora, ou seja, como a capacidade de umagente intervir numa dada realidade ou em determinados cenrios, alterando-os de alguma maneira. O poder operacionalizado pela mobilizao, pelosagentes, daquilo que Giddens (1984, 1987) denomina de recursos ou facilidadese que se classificam em dois tipos: recursos alocativos, referindo-se quelesrelativos ordem estrutural econmica, isto , quelas formas de dominaoque tm que ver com o controle sobre propriedade material de bens, objetos efenmenos materiais; recursos de autoridade, inerentes ao domnio sobreatividades do seres humanos.

    Nesse sentido, todos os sistemas sociais reproduzem formas de dominao queso regularizadas ao longo do tempo e do espao. H que se ter em conta queessa reproduo de relaes de dominao no pressupe total dependncia dosagentes em relao a quem os domina, mas tambm autonomia; em outras palavras,as relaes de poder no so somente limitadoras da ao, mas tambm permitemabertura a quem est em posio de subordinao para influenciar a ao daqueleque o subordina, isto , os agentes subordinados podem dispor de certos recursosque lhes abrem espao para a ao. Essa possibilidade o que Giddens denominade dialtica do controle.

    A questo da estruturao dos fenmenos sociais passa pela compreenso dareproduo da estrutura, por meio de sistemas sociais. A partir da noo dedualidade da estrutura, ento proposto o modelo da dualidade da estrutura eminterao (Giddens 1979, 1984, 1996), que representa a reproduo da vida social.Esse modelo constitui o processo pelo qual o autor concilia estrutura e aosocial, partindo sempre do princpio de que a mediao da conduta humana pelaestrutura, bem como a constituio dessa mesma estrutura por meio da aohumana, acontecem de forma simultnea, exprimindo a vinculao entre as rotinasdas aes cotidianas e propriedades institucionalizadas da vida social.

    Assim, o modelo da Dualidade da Estrutura em Interao composto pelaassociao do domnio da estrutura ao domnio da ao humana, por meio de trsmodalidades responsveis pelo vnculo entre aqueles dois domnios. O domnioda estrutura (institucional) corresponde a trs dimenses: significao, dominaoe legitimao. O domnio da interao (ao humana) constitudo pelas seguintes

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    Condutas Gerenciais e suas Razes: uma Proposta de Anlise Luz da Teoria da Estruturao

    dimenses: comunicao, poder e sano. Cada uma dessas dimenses encontraseus correspondentes nos dois domnios. A Figura 1, a seguir, mostra que avinculao entre os dois domnios estabelecida por trs modalidades: osesquemas interpretativos, as facilidades ou recursos e as normas,consubstanciando o modelo da Dualidade da Estrutura em Interao (Giddens,1989).

    Figura 1: Modelo da Dualidade da Estrutura em Interao

    Fonte: Giddens (1989, p.23).

    As modalidades so instncias mediadoras entre a estrutura e a interao noprocesso de re/produo do social. Essas modalidades so utilizadas pelos atoresna produo das dimenses de interao, ao mesmo tempo que so meios para areproduo dos componentes estruturais (dimenses da estrutura) naquelas mesmasdimenses da interao. As modalidades expressam a cognoscitividade dos agentessociais em relao a cada dimenso da estrutura. Os esquemas interpretativosexpressam os conjuntos de conhecimentos dos atores sociais acerca da realidade eque lhes permitem compartilhar, interpretar e comunicar significados nos processosde interao cotidiana. Assim os esquemas interpretativos representam oscondicionamentos (constraints) da dimenso estrutural, isto , comportamsignificados que dizem respeito a regras sociais que, ao mesmo tempo, informam,restringem, bem como tornam possvel a comunicao no nvel da interao. Emcontrapartida, esses mesmos esquemas interpretativos podem ser transformadosna sua utilizao na vida social cotidiana pela ao humana.

    As facilidades ou recursos so modalidades que se referem aos meios que osatores utilizam como forma de alcanar objetivos e resultados que lhes interessam. por meio dessas facilidades que o poder, na dimenso interao, exercido. Deacordo com Giddens (1979, 1984), o poder tomado como a capacidade dos agentes,por meio de sua ao, de transformar a realidade na qual se inserem, ou seja, desuas habilidades para fazer uma diferena ou agir de uma maneira ou de outra. Oexerccio do poder reafirma, pelo ponto de vista da dimenso estrutura, a dominao

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    Gelson Silva Junquilho

    na vida em sociedade. Partindo-se do pressuposto de que todos os sistemas sociaisso caracterizados pela assimetria de recursos disposio dos agentes, a estruturade dominao pode sempre ser modificada, quando aquela mesma assimetria posta em cheque na dimenso da interao (Orlikowski e Robey, 1991).

    As normas referem-se aos conjuntos de regras, cdigos e convenes queorientam a conduta humana, definindo direitos e obrigaes, o que certo ouerrado, constituindo-se como ordem moral no domnio da interao. importanteobservar que regras tanto facilitam como restringem a ao social, no possuindo,portanto, carter determinista em relao a essa ltima. Essas normas, no domnioda estrutura, permitem a legitimao de determinada ordem e sua sano pelosagentes no domnio da interao. Assim elas so responsveis pela articulao,bem como pela sustentao de comportamentos legitimados institucionalmente,reforando ordens normativas na vida social cotidiana.

    Giddens (1979, 1984), por meio do modelo da dualidade da estrutura, quer enfatizarque toda interao humana, composta pelas dimenses da comunicao, poder esano, e mediada pelos esquemas interpretativos, recursos e normas, condicionada,em nvel de estrutura, pelas dimenses da significao, dominao e legitimao,ao mesmo tempo que , tambm no domnio da prpria interao, constituda aestrutura social. Ainda conforme o mesmo autor, exatamente por meio do vnculoentre os domnios da estrutura e da interao humana que se constitui o processode estruturao, sendo a diviso entre as dimenses da estrutura e da interaoapenas analtica, dado que o processo de estruturao pressupe o vnculo entreestrutura e interao pela intermediao das modalidades. No entender de Willmott(1981, 1987), os sistemas de significao permitem a comunicao entre os agentespelo uso de esquemas interpretativos. Por meio dos sistemas de dominao e desuas facilidades o poder exercido. J a sano viabilizada pela aplicao denormas institucionalizadas, legitimadas socialmente em nvel estrutural.

    Assim, o modelo da Dualidade da Estrutura em Interao (Giddens, 1984)constitui poderoso instrumento para a compreenso da ao humana nasorganizaes, medida que permite um olhar mais ampliado sobre ela, possibilitandoo seu vnculo necessrio ao plano da estrutura social, enriquecendo sobremaneiraos seus significados analticos, como ser demonstrado na pesquisa realizada noGoverno do Estado do Esprito Santo.

    EEEEESTRATGIASTRATGIASTRATGIASTRATGIASTRATGIA M M M M METODOLGICAETODOLGICAETODOLGICAETODOLGICAETODOLGICA DODODODODO E E E E ESTUDOSTUDOSTUDOSTUDOSTUDO E E E E EMPRICOMPRICOMPRICOMPRICOMPRICO

    Tomando-se como ponto de partida o conceito de dualidade da estrutura, sero

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    Condutas Gerenciais e suas Razes: uma Proposta de Anlise Luz da Teoria da Estruturao

    agora discutidos os resultados de um estudo emprico que procurou mostrar, porintermdio da identificao de um conjunto de prticas sociais compartilhadaspor determinados atores organizacionais, como a ao desses mesmos atoresestava ancorada em propriedades estruturais da sociedade brasileira.

    A orientao metodolgica contemplou a indissociabilidade da conduta humanada estrutura social. Conforme sugere Giddens (1979, 1984), a utilizao da Teoriada Estruturao como pano de fundo deste estudo, permite o enquadramentometodolgico da pesquisa em dois nveis: a anlise institucional e a anlise daconduta estratgica. Tradicionalmente excludentes, o primeiro nvel trata aspropriedades estruturais como caractersticas dos sistemas sociais que soreproduzidas de forma crnica: o foco centrado nas estruturas. O segundo temque ver com o modo pelo qual os atores sociais monitoram reflexivamente seusatos, apoiando-se em propriedades estruturais na constituio de relaes sociais:o foco aqui centrado na agncia humana, assumindo-se, em nvel epistemolgico,as propriedades estruturais como supostamente dadas. No caso deste artigo,analisar a conduta estratgica dos gerentes pblicos explicar como eles, agentescognoscitivos, utilizam propriedades estruturais da sociedade brasileira para aconstruo de relaes sociais nos cotidianos organizacionais. Assim, a pesquisaemprica, ainda que enfatizando o nvel de anlise da conduta estratgica dosgerentes pblicos, leva em considerao o seu vnculo com elementos da estrutura.

    A pesquisa, em forma de Estudo de Caso (Yin, 1994), foi feita nas Secretariasde Estado do Governo do Esprito Santo, tendo em vista ser este um Estado queoferecia uma alternativa interessante ao problema eleito, j que no perodo dejaneiro de 1995 a dezembro de 1998, vivenciou experincias em torno daimplantao da chamada Administrao Pblica Gerencial, preconizada porBresser Pereira (1996), tornando-se importante o conhecimento das prticas sociaiscompartilhadas pelos seus gerentes em face das possveis presses em seuscomportamentos, provocadas por aquelas mesmas mudanas organizacionais.

    As unidades de anlise da pesquisa foram constitudas por gerentes pblicos.Assim o universo da pesquisa emprica foi formado pelos ocupantes de cargos dechefia do Governo Estadual em Secretarias de Estado, considerando-se aquelesque j viessem exercendo funo gerencial por tempo mnimo de dois anos, apartir de janeiro de 1995. Optou-se por estratificar os ocupantes de funogerencial em trs nveis distintos: Alta Gerncia (AG) Chefes de Gabinete eSubsecretrios; Gerncia Intermediria (GI) Superintendentes, Coordenadorese Subcoordenadores; Gerncia de Linha (GL) Chefias de Grupos Setoriais e deDepartamento. Do total de cento e setenta trs cargos gerenciais somente setentae sete de seus ocupantes (44,5%) atendiam exigncia de, no mnimo, dois anosna funo. A amostra definida ento foi a do tipo no-probabilstica, atingindo-se

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    Gelson Silva Junquilho

    representantes de todas as Secretarias. A coleta dos dados deu-se por meio deentrevistas com roteiro semi-estruturado, alcanando-se a saturao e recorrnciade informaes na vigsima quinta entrevista. O tratamento dos dados levantadospelas entrevistas semi-estruturadas apoiou-se na concepo da anlise decontedo. As entrevistas foram gravadas, transcritas integralmente e entocodificadas e categorizadas (Bardin, 1996).

    AAAAANLISENLISENLISENLISENLISE DOSDOSDOSDOSDOS D D D D DADOSADOSADOSADOSADOS L L L L LUZUZUZUZUZ DADADADADA T T T T TEORIAEORIAEORIAEORIAEORIA DADADADADA E E E E ESTRUTURAOSTRUTURAOSTRUTURAOSTRUTURAOSTRUTURAO

    As Prticas Sociais Compartilhadas: Ao Gerencial e RazesAs Prticas Sociais Compartilhadas: Ao Gerencial e RazesAs Prticas Sociais Compartilhadas: Ao Gerencial e RazesAs Prticas Sociais Compartilhadas: Ao Gerencial e RazesAs Prticas Sociais Compartilhadas: Ao Gerencial e RazesBrasileirasBrasileirasBrasileirasBrasileirasBrasileiras

    A partir da uma imerso nos universos tericos de estudos sobre a sociedadebrasileira, em que autores como Ramos (1983), Faoro (1987), Da Matta (1990,1993), Freyre (1994), Holanda (1995) e Ribeiro (1996) apontam processos histrico-sociais que deram origem a traos marcantes da cultura nacional, foi identificado,com base em dados da pesquisa emprica, um conjunto de prticas sociais,compartilhadas pelos gestores pblicos entrevistados, destacando-se:

    . A boa vizinhana universo pouco propcio cooperao e troca deinformaes tcnicas entre unidades organizacionais, gerando a necessidadede os gerentes desenvolverem relaes pessoais e amizades como propriedadesindispensveis facilitao do convvio profissional.

    . O sincretismo casa/rua a no distino entre o espao em que predominamvalores ligados s relaes familiares, hierarquia patriarcal e pessoalidade(a idia da casa) e o mundo dominado pela impessoalidade, pelos decretos eregulamentos (a rua), caracterizando uma representao das organizaespblicas para os gerentes como uma segunda casa ou uma grande famlia e,ao mesmo tempo, como local de conflitos e de definio de estratgias pelasquais lutam para a prpria sobrevivncia nos cargos.

    . O controle cordial o uso de relaes afetuosas para o controle de subordinados,buscando-se evitar ao mximo as situaes de conflito direto, tendo em vista adificuldade para a aplicao de regras impessoais para a punio de insubordinados,atos esses que passam a ser tomados como de cunho pessoal, como atesta umdepoimento marcante em que um gerente visto como perseguidor, at por seusprprios pares, quando se viu obrigado a transferir de setor uma funcionria queno se adaptava aos padres estabelecidos.

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    Condutas Gerenciais e suas Razes: uma Proposta de Anlise Luz da Teoria da Estruturao

    . A contemporizao a transigncia no dia-a-dia organizacional comum,tornando-se habitual deixar as coisas como esto, originando-se da atitudesprximas acomodao, condescendncia, ao no enfrentamento de conflitosdiretos, originando o jogo de cintura como um recurso fundamental nassituaes embaraosas.

    . O plantador de coco a dificuldade para conviver com o planejamento dasatividades cotidianas, imperando as situaes de emergncia, o apaga incndioe as prioridades que mudam ao gosto dos governantes, demonstradas muitobem pela metfora utilizada por um dos entrevistados que comparou os gerentese governantes pblicos a plantadores de coco que, diferentes dos plantadoresde carvalho, cuja madeira de lei leva tempo para chegar maturidade, queremresultados sempre imediatos, como no cultivo do coco que no leva tantos anospara dar bons frutos.

    . O faz-de-conta prtica que sinaliza para espaos organizacionais em queno so privilegiadas avaliaes formais de desempenhos individuais ou coletivos,ou seja, dificilmente so medidos metas e alcance de resultados, valendo mesmoa informalidade, a conversa informal, como no caso de um entrevistado quedeclarou que o seu chefe imediato lhe outorgava notas de acordo com critriosque arbitrava cada dia.

    . O manda-chuva um conjunto de relaes entre superiores e subordinadosem que o manda quem pode, obedece quem tem juzo o lema bsico,caracterizando-se universos organizacionais marcados pelo autoritarismo ecentralizao do poder nos pontos mais altos da hierarquia.

    . O dar a volta por cima situao em que se torna comum o uso do jeitinhocomo recurso indispensvel para a convivncia com os excessos de normas edecretos formais, caracterizando situaes nas quais as relaes pessoais, asamizades facilitam o contorno de dificuldade para a obteno de resultadospelos caminhos formais.

    Esse conjunto de prticas permite caracterizar os cenrios organizacionais dosetor pblico pesquisado com tendncias a alto grau de centralizao de poder;pelo baixo nvel de cooperao interna entre unidades administrativas; pela noprimazia da definio de metas, controle e cobrana de resultados organizacionaiseficazes, predominando o imediatismo; bem como pela miscigenao entre apessoalidade e a impessoalidade no trato cotidiano. As prticas sociais dadecorrentes representam nada mais que o resultado de como os gerentes, a partirdos estoques de conhecimentos (Giddens, 1984) que dispem desses mesmoscenrios, referentes a traos tpicos da sociedade e da gesto pblica brasileiras,criam e recriam condutas que lhes permitem prosseguir como gerentes.

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    Gelson Silva Junquilho

    Ao Gerencial e o Modelo da Dualidade da Estrutura emAo Gerencial e o Modelo da Dualidade da Estrutura emAo Gerencial e o Modelo da Dualidade da Estrutura emAo Gerencial e o Modelo da Dualidade da Estrutura emAo Gerencial e o Modelo da Dualidade da Estrutura emInteraoInteraoInteraoInteraoInterao

    As prticas sociais descritas e que orientam a ao dos gerentes pesquisadosevidenciam a dualidade da estrutura em interao (Giddens, 1979, 1984), ouseja, o vnculo entre a ao gerencial e as propriedades estruturais da sociedadebrasileira suas razes histrico-sociais. Dito de outra maneira, a condutados gerentes no determinada por aquelas mesmas razes, mas condicionadapor elas, medida que habilitam e restringem a ao de atores organizacionaiscognoscitivos, ou seja, que sabem como prosseguir, tendo em vista oconhecimento que delas possuem. Esse processo ser apresentada pelomodelo da Dualidade da Estrutura em Interao (Giddens, 1984), a partir dedados coletados empiricamente e a seguir representados graficamente nosQuadros 1, 2 e 3, permitindo a visualizao das condutas gerenciais e osdomnios da estrutura e da interao, mediados, ainda que smetodologicamente, pelas modalidades responsveis pela ligao entre aquelesdois domnios.

    Quadro 1: Condutas Gerenciais - o Vnculo Estrutura e Ao

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    Condutas Gerenciais e suas Razes: uma Proposta de Anlise Luz da Teoria da Estruturao

    O Quadro 1 apresenta as condutas gerenciais inerentes boa vizinhana e aomanda-chuva, podendo-se nele verificar no domnio da estrutura a significaode um universo organizacional fragmentado, avesso viso sistmica deintegrao que, por sua vez, interpretado pelos gerentes como espao de difcilacesso a dados, bem como de reduzida capacidade de cada um para uma visoampla do todo. Da que nas interaes cotidianas se comunicam esses significadospor meio da intransigncia pouca troca de informaes, resistncia cooperaoentre pares e desinformao do que acontece no plano das polticas estratgicasde governo para cada unidade organizacional. No campo da dominao predominaforte capacidade do gerente para filtrar interesses, utilizando como recursos apessoalidade, o status hierrquico, permitindo-lhe o exerccio do poder, controlandoinformaes privilegiadas pouco socializadas e exercendo autoridade sobresubordinados pelo cultivo de relaes amigveis e pelo uso do status do cargo. legitimada assim a centralizao do poder, bem como a departamentalizaoexcessiva a idia de cada um por si, definindo-se como regra o isolamentoentre as unidades organizacionais, sancionando-se no plano da interao um baixonvel de integrao organizacional, ou seja, unidades e seus atores com reduzidasarticulaes para temas do trabalho dirio.

    Quadro 2: Condutas Gerenciais - o Vnculo Estrutura e Ao

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    Gelson Silva Junquilho

    Quadro 3: Condutas Gerenciais - o Vnculo Estrutura e Ao

    No Quadro 2 as condutas relativas ao sincretismo casa/rua e controle cordialresultam de uma significao do universo organizacional como extenso do mundofamiliar, em que os atores o interpretam como segunda casa ou grande famlia,ao mesmo tempo que o local de luta pela sobrevivncia o mundo do trabalho,impessoal (Da Matta, 1990, 1993). A comunicao desses significados marcadapor hibridismo entre os espaos pblico impessoal e privado pessoal. Noplano da dominao predomina a cordialidade (Holanda, 1995), isto , por meiode recursos como a proximidade, intimidade pessoal e conversas informais, osgerentes conseguem mais facilmente o cumprimento de obrigaes por parte deseus subordinados, construindo ambientes em que so contornados e evitadosconflitos diretos, exercendo um tipo de poder com alto teor de discricionariedade,isto , muito influenciado por discriminaes, pelas quais os mais chegadosrecebem um tipo de tratamento diferenciado daqueles mais distantes. Legitimam-se assim, nos espaos organizacionais, traos de uma herana patriarcal, dopredomnio da pessoa sobre o indivduo (Da Matta, 1990, 1993), em que asnormas que guiam a ao humana passam a ser a pessoalidade, destacando-sea afetividade como trao caracterstico da cordialidade (Holanda, 1995).Sancionam-se, como caractersticas da interao, o afeto e a violncia, ou seja, o

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    Condutas Gerenciais e suas Razes: uma Proposta de Anlise Luz da Teoria da Estruturao

    gerente, ao mesmo tempo que afetivo e discricionrio, pode usar de suaautoridade impessoal de modo mais vigoroso, para fazer cumprir o que deseja,tendo em vista que sua discricionariedade permite navegar socialmente de umplo a outro.

    No Quadro 3 destacam-se as condutas relativas contemporizao, ao faz-de-conta, ao dar a volta por cima e ao plantador de coco. Elas se destacampela significao de espaos organizacionais pouco apropriados s ditas funesadministrativas (Fayol, 1970) nos quais so possveis a definio de esquemasinterpretativos vinculados uma certa ordem natural das coisas, isto , umadose de savoir faire dos atores organizacionais que lhes permite agir em funode manter o status quo das rotinas administrativas e relaes sociais sem muitoquestionamento, provocando interaes marcadas por certa frouxido, ou seja,por uma dificuldade para enfrentamento de mudanas e conflitos com vistas anovos empreendimentos. Assim predomina a ocorrncia de pouca definio demetas e objetivos a alcanar, bem como do conseqente controle e avaliaoformal de resultados alcanados e por alcanar.

    No plano da dominao o Quadro 3 permite destacar a aproximao ao tipoideal do semeador (Holanda, 1995), caracterizado por ao gerencial impregnadapelo gosto da aventura, j que pouco provida da idia de longo prazo e viso defuturo, sendo comum o cada um por si, o correr atrs do cumprimento detarefas e alcance de resultados descolados de uma poltica organizacionalestratgica e integrada. Os recursos disponveis apontam para o uso da criatividade,improvisao, bom senso, jeitinho, permissividade e jogo de cintura, destacando-se no plano da interao o pouco enfrentamento de conflitos ou at mesmo a suaocultao, definindo certas dificuldades para o exerccio da autoridade gerencial.Legitima-se, assim, a tendncia a uma baixa responsabilidade social no sentidodo alcance de resultados organizacionais, em que regras como o imediatismo, ainformalidade e a transigncia ou o conformismo sancionam universos de trabalhoem que sobressaem o apaga incndio e a viso de curto prazo.

    Assim as representaes grficas mostraram como se d o processo deestruturao do fenmeno inerente ao exerccio da prtica gerencial nasorganizaes estudadas, ou seja, a compreenso de como a ao humana no determinada pela estrutura social, mas por ela condicionada. Os gerentes noagem como que descolados de contextos histrico-sociais, mas, por meio de suacognoscitividade, ancoram-se em propriedades estruturais da sociedade brasileira,sabendo muito bem como utiliz-las para prosseguir na vida social. Dito de outromodo, razes do processo histrico-social brasileiro, trespassando o planoorganizacional, fornecem guias para que determinados processos de significao,dominao e legitimao propiciem a construo da ao gerencial cotidiana.

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    Gelson Silva Junquilho

    Os gerentes, por meio da utilizao das modalidades identificadas nos trsQuadros 1, 2 e 3, constroem o seu modo de agir, ora limitados e ora habilitadospelas mesmas propriedades estruturais. O semeador, por exemplo, limitadopor um espao organizacional pouco propcio ao planejamento, o mesmo quedesafia aquela funo administrativa, utilizando-se de sua capacidade criativae intuitiva para o alcance de resultados. Logo a limitao que dificulta o uso deferramenta racional, habilita o desenvolvimento da intuio para a construoda ao e assim por diante, no que tange s condutas identificadas naquelesmesmos quadros.

    CCCCCONCLUSESONCLUSESONCLUSESONCLUSESONCLUSES

    As condutas gerenciais levantadas nas organizaes estatais pesquisadascomprovaram a hiptese de que a ao cotidiana dos gerentes condicionadapor propriedades estruturais da sociedade brasileira, deixando claro, comoensina a Teoria da Estruturao, como aquela mesma ao no se d aoacaso, mas reflete caractersticas de um determinado contexto histrico-social.Por meio dessa constatao, agrega-se uma contribuio para a pesquisa emAdministrao, em particular no tocante temtica da mudana organizacional,mostrando que dificilmente ela pode realmente efetivar-se, desconhecido aquelemesmo contexto.

    As prticas sociais identificadas na pesquisa permitem ainda a constatao deque os ambientes organizacionais em que os gerentes atuam no setor pblico, somarcados pelo autoritarismo, pelo baixo nvel de cooperao interna entre unidadesadministrativas, pela no primazia da definio de metas, bem como de controlese cobranas de resultados organizacionais eficazes. Os gerentes, a partir dosestoques de conhecimentos que dispem daqueles mesmos ambientesorganizacionais, ou seja, da sua cognoscitividade (Giddens, 1989), criam erecriam condutas que lhes permitem prosseguir como gerentes, ou seja, quegarantem a sua sobrevivncia nos cargos, no cabendo julgamento valorativo nosentido de que eles sejam profissionais mal intencionados ou incapazes. Mais doque certas ou erradas, eficazes ou ineficazes, as prticas sociais demonstramcomo os gerentes se utilizam de seus saberes sociais comuns, construdos elegitimados socialmente, tornando possvel a continuidade da rotina da gestoorganizacional cotidiana.

    Por outro lado, dado o conceito da dualidade da estrutura, fica claro que aspropriedades estruturais tanto facilitam como restringem a ao humana. Dessaforma, a cordialidade, a criatividade, a afetividade, a pessoalidade, a transigncia,

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    Condutas Gerenciais e suas Razes: uma Proposta de Anlise Luz da Teoria da Estruturao

    que tornam possvel a ao dos gerentes, so as mesmas propriedades facilitadoras construo de organizaes pblicas mais sintonizadas com os cidados-contribuintes, medida que processos de mudana sejam capazes de tom-lascomo propriedades que podem criar condies para o desenvolvimento de novascondutas gerenciais.

    Os Quadros 1, 2, e 3 permitem ainda, sem a inteno de criar esteretipos, aaproximao a um perfil gerencial, nas organizaes estudadas, englobando asseguintes caractersticas: autodidata na formao gerencial; cordial usa ocorao e a razo; contemporizador procura evitar conflitos diretos; acostumadoao imediatismo semeador, nos moldes de Holanda (1995); criativo e sensvels suas intuies; habituado ao sincretismo casa e rua ao pessoal e impessoal(Da Matta, 1990, 1993) e verstil para contornar regulamentos formais sem fugir legalidade. Pode-se, a partir da, sugerir novas pesquisas que tratemespecificamente da recorrncia de traos inerentes ao perfil aqui sugerido emoutras organizaes pblicas ou privadas, buscando-se, por exemplo, como elesse aproximam ou se distanciam desse mesmo perfil, tendo em vista o contextohistrico-social brasileiro e, por outro lado, as especificidades de cada organizaoestudada.

    Utilizando-se ainda a Teoria da Estruturao e por meio de uma coleta dedados que agregue a tcnica da observao, pode ser possvel enriquecerainda mais os resultados aqui apresentados, no sentido de identificao deprocessos pelos quais, por meio da dualidade da estrutura, os atoresorganizacionais no s contribuem para a reproduo de propriedadesestruturais, mas tambm como, a partir delas prprias, podem ser capazes deproduzir novas prticas e condutas gerenciais; por exemplo, quando submetidosa algum tipo de presso por mudanas organizacionais. A limitao desteestudo ao uso de entrevistas no permite ir to longe, mas indica algumaspistas que podem enriquecer futuros estudos.

    Considerando-se que, no complexo mundo das organizaes pblicas e privadascontemporneas, se faz mister a definio de alternativas que possibilitem aesestratgicas mais voltadas para realidades locais, que possam articular modelosde gesto, portadores de ferramentas referenciais universais, com o dia-a-diadas organizaes, embebidas estas ltimas pelos traos tpicos das sociedadesem que se inserem, o uso da Teoria da Estruturao como instrumento terico-metodolgico de anlise, pode ser um bom caminho.

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    Gelson Silva Junquilho

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