giddens. a constituição da sociedade

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Sociologia

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    A CONSTITUIO DA SOCIEDADE

    Anthony Giddens

    Traduo

    LVARO CABRAL

    Martins Fontes So Paulo 2003

  • Titulo angina/: THE CONSTITUTION OF SOC!E1Y. Copyright Anrhony Giddens, 1984.

    Copyright 1989. Livraria Martins Fontes Editora Ltda .. So Paulo, para o presente edio

    11 edio outubro de 1989

    2' edio junho de 2003

    Traduo LVARO CABRAL

    Reviso da traduo Mitsue. Morissawa Reviso grfica

    Coordenao de Mauricio Baltlunar Leal Produo grfica

    Geraldo Alves Paginao/Fotolitos

    Studio 3 Desenvolvimenro Editorial

    Dado. Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Giddens, Anthony A constituio da sociedade I Anthony Giddens : traduo lva-

    ro Cabral.- 2' ed.- So Paulo: Martins Fontes, 2003.- (Biblioteca universal)

    Ttulo original: The constitution o f society. Bibliografia. ISBN 85-336-1781-X

    1. Estrutura social 2. Instituies sociais 3. Sociologia 4. Sociologia poltica I. Ttulo. II. Srie.

    03-2751 CDD-301 ndices para catlilogo sistemtico:

    L Sociedade: Sociologia 301

    Todos os direitos desta edio para o Brasil reservados Livraria Martins Fontes Editora Ltda.

    Rua Conselheiro Ramalho, 330!340 01325-000 So Paulo SP Brasil Tel. (11) 3241.3677 Fax (11) 3105.6867

    e-mail: [email protected] http://www.martinsfontes.com.br

    ndice

    Prefcio ........................................................................... . Abreviaturas .................................................................... . Introduo ....................................................................... .

    I. Elementos da teoria da estruturao ................... . O agente, a agncia ................................................... . Agncia e poder ........................................................ . Estrutura, estruturao .............................................. . A dualidade da estrutura ........................................... . Formas de instituio ................................................ . Tempo, o corpo, encontros ...................................... .

    11. Conscincia, se/f e encontros sociais ..................... . Reflexividade, conscincia discursiva e prtica ...... . O inconsciente, tempo, memria .............................. . Erikson, ansiedade e confiana ................................ . Rotinizao e motivao ........................................... . Presena, co-presena e integrao social.. .............. . Goffinan: encontros e rotinas .................................. . Serialidade ................................................................ . Fala, reflexividade .................................................... . Posicionamento ......................................................... . Notas crticas: Freud sobre lapsos linguae .............. .

    111. Tempo, espao e regionalizao ............................. . Tempo-geografia ..................................................... . Comentrios crticos ................................................ ..

    IX XI

    XIII

    I 6

    17 19 29 33 40

    47 47 51 59 69 75 79 85 91 97

    109

    129 129 136

  • Modos de regionalizao .......................................... . Regies da frente, regies de trs ............................ . Abertura e se/f .......................................................... . Regionalizao genrica ........................................... . Tempo, espao, contexto ......................................... .. Contra o "micro" e o "macro": integrao social e de sistema ................................................................ . Notas crticas: Foucault sobre distribuio de tem-po e de espao ......................................................... ..

    IV. Estrutura, sistema, reproduo social .................. . Sociedades, sistemas sociais ................................... .. Estrutura e coero: Durkheim e outros ................... . Trs sentidos de "coero" ....................................... . Coero e reificao ................................................. . O conceito de princpios estruturais ........................ . Estruturas, propriedades estruturais ........................ . Contradio .............................................................. . Fazendo a histria ..................................................... . Notas crticas: "sociologia estrutural" e individua-lismo metodolgico ................................................ ..

    Blau: uma verso da sociologia estrutural... ........ . Uma alternativa? Individualismo metodolgico .. .

    140 144 149 153 155

    163

    171

    191 192 199 205 211 213 218 227 235

    243 243 251

    V. Mudana, evoluo e poder .................................... 267 Evolucionismo e teoria social.................................... 269 Adaptao .................................................................. 274 Evoluo e Histria .................................................. 278 Anlise da mudana social ....................................... 287 Mudana e poder....................................................... 301 Notas crticas: Parsons sobre evoluo.................... 31 O

    VI. A teoria da estruturao, pesquisa emprica e cr-tica social . . .. . . . .. . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . .. . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . .. . . . . 3 31 Uma reiterao de conceitos bsicos......................... 331 A anlise da conduta estratgica................................ 339 Conseqncias impremeditadas: contra o funciona-lismo .......................................................................... 345 A dualidade da estrutura............................................ 351 O problema da coero estrutural.............................. 358

    Contradio e o estudo emprico do conflito ............ . Estabilidade e mudana institucional ...................... . Juntando os fios da meada: teoria da estruturao e formas de pesquisa ................................................... . Conhecimento mtuo versus senso comum ............ . Generalizaes em cincia social ............................. . As conotaes prticas da cincia social .................. . Notas crticas: cincia social, histria e geografia .. .

    Glossrio de terminologia da teoria da estruturao ..... . Bibliografia ..........................

    366 377

    385 394 404 409 418

    439 445

  • Prefcio

    Venho procurando h algum tempo, e atravs de numero-sas publicaes, estabelecer uma abordagem da cincia social que se afaste de maneira substancial das tradies existentes do pensamento social. Este volume fornece um agregado des-ses escritos anteriores, apresentando-os no que espero seja uma forma desenvolvida e coerente. O termo vago "aborda-gem" da cincia social realmente transmite muito bem o que entendo como sendo as implicaes metodolgicas da teoria da estruturao. Na cincia social, pelas razes consideravel-mente detalhadas nas pginas que se seguem, os esquemas conceptuais que ordenam e informam processos de investiga-o da vida social so, em grande parte, o que e para que serve a "teoria". No quero dizer com isso, obviamente, que a finalidade da teoria social no seja elucidar, interpretar e explicar caractersticas substantivas da conduta humana. En-tendo que a tarefa de estabelecer e validar generalizaes -no diria "leis"- apenas uma entre vrias outras prioridades ou metas da teoria social. A tarefa de construir conjuntos de generalizaes estavelmente firmadas, que (talvez) a liga-o entre os esforos das cincias naturais, no uma ambi-o de grande importncia para esta. Ou, pelo menos, o que proponho.

    Muitas pessoas foram bastante generosas para examinar e comentar os primeiros rascunhos do livro ou contriburam, de outro modo, muito diretamente para dar-lhe a forma final. Gos-taria de manifestar minha gratido em particular s seguintes: Sra. D. M. Barry, John Forrester, Diego Gambetta, Helen Gib-

  • X A CONSTITUIO DA SOCIEDADE

    son, Derek Gregory, David He1d, Sam Hollick, Geoffrey Ingham, Robert K. Merton, Mark Poster, W G. Runciman, Quentin Skmner, John B. Thompson e Jonathan Zeitlin.

    A.G. janeiro de 1984

    1 I

    Abreviaturas

    CCHM A Contemporary Critique of Historical Materialism, vol. 1 (Londres, Macmillan/Berke1ey, University of California Press, 1981)

    CPST Central Problems in Social Theory (Londres, Mac-millan!Berke1ey, University of Ca1ifornia Press, 1979)

    CSAS The Class Structure ofthe Advanced Societies, edio revista (Londres, Hutchinson!Nova York, Harper & Row, 1981)

    NRSM Ni?W Rules o f Sociological Method (Londres, Hutchin-son!Nova York, Basic Books, 1976)

    PCST Profiles and Critiques in Social Theory (Londres, Mac-millan/Berke1ey, University ofCa1ifornia Press, 1982)

    SSPT Studies in Social and Political Theory (Londres, Hut-chinson!Nova York, Basic Books, 1977)

    Todos de autoria de Anthony Giddens

  • Introduo

    O pano de fundo deste livro deve ser encontrado numa srie de significativos desenvolvimentos ocorridos nas cin-cias sociais ao longo dos ltimos quinze anos. Eles concentra-ram-se, em parte substancial, na teoria social e relacionam-se especialmente com a mais denegrida e mais provocadora das cincias sociais: a sociologia. Por sua prpria natureza, a so-ciologia propensa polmica. Entretanto, durante um pero-do considervel aps a Segunda Guerra Mundial, sobretudo no mundo de lngua inglesa, houve um amplo consenso a res-peito de sua natureza e tarefas, bem como as das cincias so-ciais como um todo. possvel dizer que houve um terreno central compartilhado tambm por perspectivas rivais, um ter-reno no qual podiam ser travadas batalhas intelectuais. Nesse lapso de tempo, a sociologia foi uma rea de crescimento aca-dmico, um tpico com reputao crescente, apesar de se con-servar notoriamente impopular em muitos crculos. No plano internacional, era dominada pela sociologia norte-americana, e na teoria social a influncia de Talcott Parsons foi acentua-da'*. O prestgio desfrutado pelas idias de Parsons pode ser retrospectivamente exagerado- muitos consideravam desinte-ressante seu gosto pela abstrao e pela obscuridade, e ele teve contra si um razovel contingente de criticas e detratores. Entretanto, The Structure of Social Action, cuja primeira edi-o data do final da dcada de 1930, mas s se tornou ampla-mente conhecida no periodo do ps-guerra, foi em mais de um

    *As referncias podem ser encontradas a pp. XLI-XLII.

  • XIV A CONSTITUIO DA SOCIEDADE

    aspecto uma obra fundamental para a formao da sociologia moderna. Nela, Parsons estabeleceu uma linbagem sistemti-ca para a teoria social, baseada numa interpretao do pensa-mento europeu do sculo XIX e comeos do atual. As obras de Durkheim, Max Weber e Pareto preponderavam, mas Marx de-sempenhava um papel deveras secundrio. Os escritos da ge-rao de 1890-1920 tinbam supostamente superado Marx em todos os aspectos importantes, filtrando o que era valioso e descartando o refugo.

    O livro tambm estabeleceu um enfoque da teoria social de um tipo muito defmido, combinando uma verso refinada de funcionalismo e uma concepo naturalista de sociologia. Os escritos subseqentes de Parsons desenvolveram essas idias com considervel mincia, enfatizando que, embora a ao hu-mana tenba atributos muito especiais e distintivos, a cincia social compartilha, de um modo geral, a mesma estrutura lgi-ca da cincia natural. Escrevendo e trabalhando ele prprio num contexto americano, a tentativa de Parsons de localizar de forma precisa as origens de seu pensamento na teoria social europia serviu realmente para reforar a posio dominante da sociologia norte-americana. Pois Durkheim, Weber e Pareto foram considerados precursores do desenvolvimento do "siste-ma de coordenadas da ao", que ganbaria sua plena expresso em Parsons e seus colegas. A sociologia pode ter suas princi-pais origens tericas na Europa, mas a elaborao ulterior da matria foi uma tarefa amplamente transferida para o outro lado do Atlntico. Curiosamente, esse resultado foi obtido custa do reconhecimento concomitante da importncia das con-tribuies norte-americanas para a teoria social; G. H. Mead recebeu pouqussima ateno em The Structure ofSocial Action, como Parsons viria mais tarde a admitir. At hoje, porm, exis-tem compndios de teoria social ou "teoria sociolgica" prove-nientes dos Estados Unidos, que comeam com os pensadores europeus clssicos, mas depois do a impresso de que a teoria social na Europa estancou subseqentemente - qualquer novo progresso nessa rea visto como um assunto puramente norte-americano.

    INTRODUO XV

    Entretanto, mesmo nos limites dos debates que derivam diretamente dos escritos de Parsons, algumas das mais destaca-das contribuies foram europias. O marxismo tem sido h muito tempo urna influncia bem mais importante na cultura intelectual europia do que na norte-americana, e alguns dos mais argutos crticos de Parsons inspiraram-se tanto em Marx quanto em leituras de Weber, bem diferentes daquelas que P~sons fizera. Daluendorf, Lockwood, Rex e outros, de visoes semelhantes, consideraram o contedo terico da obra de Par-sons muito mais seriamente do que seus crticos radicais norte-americanos (C. Wright Mills e, depois, Gouldner). O primeiro grupo considerou as contribuies de Parsons de grande im-portncia, mas unilaterais, por desprezarem fenmenos que ele reputava primordiais em Marx: diviso, conflito e p~der de classes. Seus membros no eram marxistas, mas admitiam a possibilidade de uma fuso de conceitos de Parsons com outros de Marx. Embora houvesse muitas inovaes Importantes den-tro do marxismo durante esse perodo - como o ressurgimento do interesse no "jovem Marx", as tentativas de fuso do mar-xismo com a fenomenologia e, subseqentemente, do marxis-mo com 0 estruturalismo -, elas no eram muito conhecidas por aqueles que se intitulavam "socilogos", inclusive na Eu-ropa. Os que se consideravam socilogos e marxistas eram pro-pensos a partilhar os pressupostos bsicos do funcionalismo e do naturalismo, o que constitui uma das razes de se ter encon-trado um terreno comum to amplo para debate.

    As fissuras nesse terreno comum se abriram de modo no-tavelmente sbito, no final da dcada de 1960 e comeo da de 1970, para logo se aprofundarem muito. No h dvida de que suas origens foram tanto polticas quanto intelectuais. Mas, quaisquer que tenbam sido, tiveram o efeito de dissolver, em grande parte, todo consenso que tivesse existido antes acerca do modo como a teoria social devia ser abordada. Em seu lugar surgiu uma desconcertante variedade de perspectivas tericas concorrentes, nenbuma delas capaz de reconquistar plenamen-te a preeminncia desfrutada antes pelo "consenso ortodoxo". Tornou-se evidente para os que trabalham em sociologia que,

  • XVI A CONST/TUJA-0 DA SOCIEDADE

    durante todo esse tempo, tinha havido, de fato, menos consen-so sobre a natureza da teoria social do que muitos imaginavam. Algumas tradies de pensamento, como o interacionismo simblico, tinham gozado sempre de considervel apoio, sem necessidade de tomar de assalto a cidadela do consenso orto-doxo. Outras escolas de pensamento, que se desenvolveram em grande parte separadamente do corpo principal das cincias sociais, foram levadas a srio pela primeira vez, incluindo a fenomenologia e a teoria crtica dos filsofos de Frankfurt. Algumas tradies que pareciam agonizantes receberam um novo impulso. Embora Weber tivesse sido influenciado pela tradio hermenutica e incorporasse sua obra o principal conceito por ela postulado, o de verstehen, a maioria dos pen-sadores ligados sociologia certamente no consideraria a "hermenutica" como parte de seu lxico. Mas, parcialmente em conjunto com a fenomenologia, as tradies interpretativas no pensamento social voltaram de novo ao primeiro plano. Finalmente, outros estilos de pensamento, como a filosofia da linguagem, foram adotados e inseridos de vrias maneiras na teoria social.

    Com esses desenvolvimentos, o centro de gravidade no tocante s contribuies inovadoras para a teoria social voltou a deslocar-se para a Europa* Tornou-se bvio que uma impor-tante parcela do trabalho terico mais interessante estava sendo a desenvolvida- e em sua maioria em outras linguas que no o ingls. A teoria social europia estava, e est, no s viva, mas pulsando com grande vigor. E qual o resultado desses movi-mentos? Pois a perda do terreno central antes ocupado pelo consenso ortodoxo deixou aparentemente a teoria social numa irremedivel desordem. No obstante a balbrdia criada por vozes tericas rivais, possvel discernir em meio a ela certos temas comuns. Um deles liga-se ao fato de a maioria das esco-las de pensamento em questo - com notveis excees, como o estruturalismo e o "ps-estruturalismo" - enfatizar o carter ativo, reflexivo, da conduta humana. Quer dizer, elas esto uni-

    'Ver nota app. XLI-XLII.

    INTRODUO XVII

    das em sua rejeio da tendncia do consenso ortodoxo de ver o comportamento humano como o resultado de foras que os atores no controlam nem compreendem. Ademais (e isso inclui o estruturalismo e o "ps-estruturalismo"), elas atribuem um papel fundamental linguagem e s faculdades cognitivas na explicao da vida social. O uso da linguagem est embuti-do nas atividades concretas da vida cotidiana e, num certo sen-tido, parcialmente constitutivo dessas atividades. Finalmente, reconhece-se que o declnio da importncia das filosofias empiristas da cincia natural tem implicaes profundas tam-bm para as cincias sociais. No se trata apenas do caso de as cincias social e natural estarem muito mais distantes uma da outra do que imaginavam os defensores do consenso ortodoxo. Vemos agora que uma filosofia da cincia natural deve levar em conta justamente aqueles fenmenos em que as novas esco-las de teoria social esto interessadas - em especial, a lingua-gem e a interpretao de significado.

    com esses trs conjuntos bsicos de questes, e suas co-nexes mtuas, que se ocupa a teoria da estruturao, tal como a exponho no presente livro. "Estruturao" , na melhor das hipteses, um termo detestvel, embora seja menos deselegan-te no contexto glico donde provm. No fui capaz de pensar numa palavra mais cativante para as idias que desejo transmi-tir. Ao elaborar os conceitos da teoria da estruturao, no pre-tendo apresentar uma ortodoxia potencialmente nova para substituir a antiga. Mas a teoria da estruturao sensvel s deficincias do consenso ortodoxo e significao dos desen-volvimentos convergentes acima citados.

    No caso de haver qualquer dvida acerca da terminologia aqui usada, permito-me sublinhar que emprego a expresso "teoria social" para abranger questes que sustento serem do interesse de todas as cincias sociais. Essas questes relacio-nam-se com a natureza da ao humana e do se !f atuante; com o modo como a interao deve ser conceituada e sua relao com as instituies; e com a apreenso das conotaes prticas da anlise social. Em contrapartida, entendo que a "sociologia" no uma disciplina genrica que se ocupa do estudo das so-

  • XVIII A CONSTITUIA'O DA SOCIEDADE

    ciedades humanas como um todo, mas aquele ramo da cincia soctal que concentra seu foco particularmente sobre as socie-dades modernas ou "avanadas". Tal caracterizao disciplinar subentende uma diviso intelectual de trabalho, nada mais do que 1sso._ Conquanto existam teoremas e conceitos que perten-cem d1stmtamente ao mundo industrializado, no h como algo chamado de "teoria sociolgica" possa distinguir-se com clare-za dos conceitos e preocupaes mais gerais da teoria social. Em outras palavras, a "teoria sociolgica" pode, se assim se

    qm~er, ser considerada, mais genericamente, wn ramo da teoria soc1al, sem manter contudo uma identidade totalmente separa-da. Este hvro est escrito com uma ntida inclinao sociolgi-ca, no senl!do de que mmha tendncia concentrar-me em ma-terial especialmente relevante para as sociedades modernas. ~as, como ~a introduo teoria da estruturao, ele tam-bem se propoe ser, em substancial grau, uma formulao das tarefas da teoria social em geral e, no mesmo sentido "teo-ri.a':; Quer dizer, o _foc~ i?c!de sobre a compreenso d~ "agn-Cla humana e das mst1tu1oes sociais.

    ."'!eoria social" no uma expresso que tenha alguma prec1sao, mas, apesar de tudo, muito til. Tal como a repre-sento, a "teoria so~ial" envolve a anlise de questes que reper-cute~ na fllosof!a, mas no primordialmente um esforo fllosoflco. As c1nc1as sociais estaro perdidas se no forem d1retarnente relacionadas com problemas filosficos por aque-les que as pral!cam. Pedir aos cientistas sociais que estejam

    ate~tos para as questes filosficas no o mesmo que lanar a cwncm soc1al nos braos daqueles que poderiam pretender ser ela merentemente mais especulativa do que emprica. A teoria soc1al tem a tarefa de fornecer concepes da natureza da ativi-dade social humana e do agente humano que possam ser colo-cadas a serv1o do trabalho emprico. A principal preocupao da teona_ social idntica s das cincias sociais em geral: a eluc1daao de processos concretos da vida social. Sustentar

    q~e o~ debates filosficos podem contribuir para essa empresa nao s1gmflca supor que tais debates necessitam ser resolvidos de modo concludente antes que se possa iniciar uma pesquisa

    r I INTRODUO XIX

    social digna de crdito. Pelo contrrio, o prosseguimento da pesquisa social pode, em princpio, tanto projetar luz sobre controvrsias filosficas quanto fazer justamente o inverso. Em particular, penso ser errado inclinar a teoria social de um modo excessivamente inequvoco para o lado das questes abs-tratas e altamente generalizadas de epistemologia, como se qual-quer desenvolvimento significativo em cincia social tivesse que aguardar uma soluo efetiva daquelas.

    So necessrias algumas consideraes sobre a "teoria" em teoria social. Existem certos sentidos freqentemente atri-budos "teoria" nas cincias sociais dos quais pretendo man-ter uma considervel distncia. H uma concepo que gozava de popularidade entre alguns dos partcipes do consenso orto-doxo, embora j no seja to amplamente sustentada hoje em dia. Trata-se da idia- influenciada por certas verses da filo-sofia lgico-empirista da cincia natural- de que a nica for-ma de "teoria" digna desse nome aquela exprimvel como um conjunto de leis ou generalizaes dedutivamente relaciona-das. Esse tipo de noo acabou sendo de aplicao muito limi-tada, mesmo no mbito das cincias naturais. Se que pode ser realmente sustentada, ser apenas no que diz respeito a certas reas da cincia natural. Quem desejar aplic-la cincia social deve reconhecer que (por enquanto) no existe teoria nenhuma; sua construo uma aspirao adiada para um fu-turo remoto, um objetivo a ser perseguido antes de constituir parte concreta das buscas atuais das cincias sociais.

    Embora essa idia tenha alguns adeptos mesmo hoje, est muitssimo distante de qualquer coisa a que, em meu entender, a teoria social poderia ou deveria aspirar - por razes que se apresentaro com bastante clareza no corpo do presente livro. Mas existe uma verso mais fraca dessa idia que ainda exerce inegvel influncia sobre um grande contingente de seguidores e que pede uma discusso um pouco mais extensa, mesmo nes-te contexto introdutrio. Trata-se da idia de que a "teoria" em teoria social deve consistir essencialmente em generalizaes para possuir um contedo explanatrio. De acordo com tal ponto de vista, muito do que passa por ser "teoria social" con-

  • XX A CONSTITUIO DA SOCIEDADE

    siste mais em esquemas conceptuais do que (como deveria ser) em "proposies explanatrias" de um tipo generalizante.

    Dois problemas tm de ser aqui separados. Um diz respei-to natureza da explicao nas cincias sociais. Considerarei ponto pacfico que a explicao contextual, o esclarecimento de indagaes. Ora, poder-se-ia sustentar que as nicas inda-gaes competentes na cincia social so as de um tipo muito genrico, as quais, portanto, s podem ser respondidas por re-ferncia a generalizaes abstratas. Mas tal idia tem pouco que a recomende, uma vez que no ajuda a aclarar a importn-cia explicativa de muito do que os cientistas sociais (ou, a res-peito disso, os cientistas naturais tambm) fazem. A maioria das perguntas "por qu?" no necessitam de uma generalizao para serem respondidas, nem as respostas implicam logica-mente que deva existir alguma generalizao ao alcance das vistas, que poder ser invocada para servir de suporte a elas. Tais observaes tornaram-se lugar-comum na literatura filo-sfica, e no tentarei alongar-me sobre elas. Muito mais con-troversa uma segunda proposio que defendo e desenvolvo neste livro: a de que a descoberta de generalizaes no a totalidade nem a finalidade suprema da teoria social. Se os pro-ponentes da "teoria como generalizao explanatria" confina-ram estreitamente demais a natureza da "explicao", eles agra-varam ainda mais o erro quando deixaram de efetuar uma in-vestigao suficientemente acurada do que , e deve ser, a ge-neralizao em cincia social.

    As generalizaes tendem para dois plos, com uma esca-la e variedade de possveis tonalidades entre eles. Algumas sustentam-se porque os prprios atores as conhecem - sob al-guma forma- e as aplicam em seu desempenho. O observador cientista social no tem, de fato, de "descobrir" essas generali-zaes, embora possa dar-lhes uma nova forma discursiva. Ou-tras generalizaes referem-se a circunstncias, ou aspectos de circunstncias, as quais so ignoradas pelos agentes e que "atuam" efetivamente sobre estes, independentemente do que os agentes possam acreditar que tm pela frente. Aqueles a que chamarei de "socilogos estruturais" tendem a interessar-se

    r I

    INTRODUO XXI

    apenas pela generalizao nesse segundo sentido- na verdade, isso o que se pretende dizer quando se afirma que a "teoria" em teoria social deve compreender generalizaes explanat-rias. Mas o primeiro sentido to fundamental para a cincia social quanto o segundo, e cada forma de generalizao va-rivel com relao outra. As circunstncias em que as genera-lizaes sobre o que "acontece" aos agentes prevalecem so mutveis no tocante ao que eles podem aprender a "fazer acon-tecer" de modo inteligente. Disso deriva o (logicamente aber-to) impacto transformativo que as cincias sociais podem ter sobre o seu "objeto de estudo". Mas da tambm decorre o fato de que a descoberta de "leis" - isto , de generalizaes do se-gundo tipo - apenas uma preocupao entre outras que so igualmente importantes para o contedo terico da cincia social. Entre essas outras preocupaes destaca-se o forneci-mento de meios conceptuais para analisar o que os atores sa-bem acerca das razes por que atuam como atuam, especial-mente quando ou ignoram ( discursivamente) que as conhecem ou, em outros contextos, carecem de tal conhecimento. Essas tarefas revestem-se de um carter primordialmente hermenuti-co, mas constituem parte inerente e necessria da teoria social. A "teoria" envolvida na "teoria social" no consiste apenas, nem mesmo primordialmente, na formulao de generalizaes (do segundo tipo). Tampouco os conceitos desenvolvidos sob a rubrica "teoria social" so constitudos somente por aqueles que podem ser inseridos em tais generalizaes. Muito pelo contrrio, esses conceitos devem ser relacionados com outros referentes cognoscitividade dos agentes, aos quais esto ine-vitavelmente vinculados.

    A maioria das controvrsias estimuladas pela chamada "converso lingstica" (linguistic turn) em teoria social e pelo surgimento de filosofias da cincia ps-empiristas tem sido de carter fortemente epistemolgico. Por outras palavras, inte-ressam-se de forma predominante por questes de relativismo, problemas de verificao e falsificao etc. Por mais significa-tivas que elas possam ser, a concentrao nas questes episte-molgicas desvia a ateno dos interesses mais "ontolgicos"

  • XXII A CONSTITUIO DA SOCIEDADE

    da teoria social, e primordialmente nestes que a teoria da es-truturao se ~oncentra. Em vez de se preocuparem com dispu-tas ep1stemolog1cas e com a questo de saber se qualquer coisa como "epistemologia", em sua acepo consagrada pelo tem-po, pode ou no ser realmente formulada, sugiro queles que trabalham em teoria social que se empenhem, em primeiro lu-gar e ac1ma de tudo, na reelaborao de concepes de ser hu-mano e de fazer humano, reproduo social e transformao soc1al. De primordial importncia a esse respeito um dualis-mo que est profundamente estabelecido na teoria social uma diviso entre objetivismo e subjetivismo. O objetivismo e~a um terceiro -ismo caracterizando o consenso ortodoxo, em conjun-to com o naturalismo e o funcionalismo. A despeito da termi-n?logm de Parsons do "quadro de referncia da ao", no h duv1da de que em seu esquema terico o objeto (sociedade) predomma sobre o sujeito (o agente humano cognoscitivo). Outros, cujas idias poderiam ser associadas a esse consenso foram muito menos sofisticados a esse respeito do que Par~ sons. Ao atacarem o objetivismo- e a sociologia estrutural-aqueles influenciados pela hermenutica ou pela fenomenolo~ g1a puderam pr a nu importantes deficincias desses pontos de v1sta: Mas, por sua vez, inclinaram-se nitidamente para o subjet!Vlsmo. O d1v1sor conceptual entre sujeito e objeto social permanecia to profundo como sempre.

    A teoria da estruturao baseia-se na premissa de que esse duahsmo tem de ser reconceituado como dualidade - a duali-dade da estrutura. Embora reconhecendo o significado da "con-verso lingstica", no se trata de uma verso de hermenutica ou de sociologia interpretativa. Embora admitindo que a socie-dade no criao de sujeitos individuais, est distante de qual-quer concepo de sociologia estrutural. A tentativa de formu-lar uma descrio coerente da atividade humana e da estrutura

    exi~e, porm, ~m c?nsidervel esforo conceptual. Uma expo-slao dessas 1de1as e oferec1da no captulo de abertura, para ser ma1s desenvolvida ao longo do livro. Conduz diretamente a outros temas principais, em especial o que envolve o estudo de relaes de tempo e espao. As propriedades estruturais dos sistemas sociais s existem na medida em que formas de con-

    -,-

    INTRODUO XXIII

    duta social so cronicamente reproduzidas atravs do tempo e do espao. A estruturao de instituies pode ser entendida em funo de como acontece de as atividades sociais se "alon-garem" atravs de grandes extenses de espao-tempo. In-corporar o espao-tempo no mago da teoria social significa repensar algumas das divises disciplinares que separam a sociologia da histria e da geografia. O conceito e anlise de histria particularmente problemtico. Na verdade, este li-vro poderia ser corretamente descrito como uma extensa refle-xo sobre uma clebre e freqentemente citada frase que se encontra em Marx. Comenta Marx que "os homens [permi-tam-nos dizer imediatamente: os seres humanos] fazem sua prpria histria, mas no a fazem como querem; no a fazem sob circunstncias de sua escolha ... "*. Bem, assim acontece. Mas que diversidade de problemas complexos de anlise so-cial acaba sendo desvendada por esse pronunciamento aparen-temente incuo!

    * A frase encontra-se nos pargrafos iniciais de O 18 Brumrio de Luis Bonaparte. Foi escrita numa veia polmica; aqueles que so ignorantes de histria, diz Marx, podem ser condenados a repeti-la, talvez at em tom joco-so. A citao exata no original a seguinte: "Die Menschen machen ihre eige-ne Geschichte, aber sie machen sie nicht aus freien Stcken, nicht unter selbstgewhlten, sondem unter unmittelbar vorgefundenen, gegebenen und berlieferten Umstnden. Die Tradition aller toten Geschlechter lastet wie ein Alp auf dem Gehime der Lebenden. Und wenn sie eben damit beschftigt scheinen, sich und die Dinge umzuwlzen, noch nicht Dagewesenes zu schaf-fen, gerade in solchen Epochen revolutionrer Krise beschwren sie ngstlich die Geister der Vergangenheit zu ihrem Dienste herauf, entlehnen ihnen Namen, Schlachtparole, Kostm, um in dieser alterhrwrdigen Verkleidung und mit dieser erburgten Sprache die neue Weltgeschichtsszene aufzufiihren" (Marx e Engels. Werke. Berlim, Dietz Verlag 1960, vol. 8, p. 115). ["Os ho-mens fazem sua prpria histria, mas no a fazem como querem; no a fazem sob circunstncias de sua escolha, seno sob aquelas com que se defrontam di-retamente, apresentadas e transmitidas pelo passado. A tradio de todas as geraes mortas aflige como um pesadelo o crebro dos vivos. E precisamente quando parecem ocupados em revolucionar-se a si mesmos e s coisas, em criar algo que nunca existiu, justamente nessas pocas de crise revolucionria, os ho-mens chamam angustiadamente em seu socorro os espritos do passado, apos-sando-se dos seus nomes, gritos de guerra e trajes, a fim de se apresentarem nessa linguagem emprestada na nova cena da histria universal."] (N. do T.)

  • XXIV A CONSTITUIO DA SOCIEDADE

    Ao formular esta descrio da teoria da estruturao, no tive a menor relutncia em apoiar-me em idias oriundas de fontes completamente divergentes. Isso poder parecer a al-guns um ecletismo inaceitvel, mas eu nunca consegui temer esse tipo de objeo. Existe um inegvel conforto em trabalhar dentro de tradies estabelecidas de pensamento - sobretudo, talvez, em face da grande diversidade de abordagens com que se defronta correntemente quem est fora de uma tradio qual-quer. O conforto de pontos de vista estabelecidos pode, entre-tanto, servir facilmente de cobertura para a preguia intelec-tual. Se as idias so importantes e esclarecedoras, muito mais importantes do que sua origem estar capacitado para deline-las de modo a demonstrar a utilidade delas, mesmo num qua-dro de referncia que poder ser inteiramente diferente daquele que ajudou a engendr-las. Assim, por exemplo, admito a exi-gncia de que o sujeito seja descentrado e considero isso bsi-co para a teoria da estruturao. Mas no aceito que isso impli-que a evaporao da subjetividade num universo vazio de si-nais. Pelo contrrio, consideramos que as prticas sociais, ao penetrarem no espao e no tempo, esto na raiz da constituio do sujeito e do objeto social. Admito o significado central da "converso lingstica" introduzida especialmente pela feno-menologia hermenutica e pela filosofia da linguagem ordin-ria. Ao mesmo tempo, porm, sustento que essa expresso , em certa medida, enganadora. Os mais importantes desenvol-vimentos no tocante teoria social no esto ligados a uma converso em direo linguagem quanto a uma viso alterada da interseo entre dizer (ou significar) e fazer, oferecendo uma nova concepo de prxis. A transmutao radical da her-menutica e da fenomenologia iniciada por Heidegger, e as inovaes do Wittgenstein do ltimo periodo constituem os dois principais marcos de um novo caminho. Mas avanar nesse caminho significa precisamente rechaar qualquer tentao para tornar-se um discpulo de corpo e alma de um ou outro desses pensadores.

    Perntitam-me oferecer agora um resumo da organizao deste livro. Tendo apresentado no primeiro captulo um esboo

    INTRODUO XXV

    dos principais conceitos envolvidos na teoria. da estruturao, dou incio, no segundo captulo, parte ma1s substantiva do volume com uma discusso sobre a conscincia, o mconsctente e a constituio da vida cotidiana. Os agentes ou atores huma-nos- uso indistintamente um e outro termo- tm, comO aspec-to inerente do que fazem, a capacidade para entender o que fa-zem enquanto o fazem. As capacidades reflexivas do ator h~mano esto caracteristicamente envolvidas, de um modo conti-nuo no fluxo da conduta cotidiana, nos contextos da atividade soei~!. Mas a reflexividade opera apenas parcialmente num nvel discursivo. O que os agentes sabem acerca do que fazem e de por que o fazem - sua cognoscitividade como agentes -est largamente contido na conscincia prtica: Esta cons1ste em todas as coisas que os atores conhecem tacitamente sobre como "continuar" nos contextos da vida social sem serem ca-pazes de lhes dar uma expresso discursiva direta. O significa-do de conscincia prtica um dos temas pnnc1pa!s do hvro, e cumpre distingui-la da conscincia (discursiva) e do incons-ciente. Embora aceitando a importncia de aspectos mconscJen-tes da cognio e da motivao, no penso que possamos estar satisfeitos com algumas das idias mais convencionalmente estabelecidas a esse respeito. Adoto uma verso modi(icada da psicologia do ego, mas empenho-me em relacion-la direta-mente com o que, sugiro eu, um conceito fundamental da teo-ria da estruturao- o conceito de rotinizao.

    A rotina (tudo o que feito habitualmente) constitui um elemento bsico da atividade social cotidiana. Uso a expresso "atividade social cotidiana" num sentido muito literal, no na-quele mais complexo e, em meu entender: mais amb~o . que se tornou familiar atravs da fenomenologia. O termo cotidia-no" condensa ~xatamente o carter rotinizado que a vida social adquire medida que se estende no tempo e no espao. A_natu-reza repetitiva de atividades empreendidas de mane1ra JdentJCa dia aps dia a base material do que eu chamo de "carter recursivo" da vida social (nome que, segundo entendo, des1gna a recriao constante das propriedades estruturadas da at!vida-de social - via dualidade de estrutura - a partir dos propnos

  • XXVIII A CONSTITUIO DA SOCIEDADE

    vidade decorrentes de propriedades fsicas do corpo e dos am-bientes em que os agentes se movimentam. A referncia a esses fatores apenas um dos aspectos em que a sociologia pode obter proveito dos escritos de gegrafos. Um outro a interpre-tao do urbanismo, o qual, argumento eu, tem um papel bsi-co a desempenhar na teoria social; e, claro, uma sensibilidade geral a espao e lugar de importncia ainda maior.

    Goffinan d considervel importncia regionalizao de encontros, e, para mim, a noo de regionalizao uma das mais significativas para a teoria social. Ela foi sempre uma preocupao principal dos escritos de gegrafos, mas desejo encar-la como um conceito no to puramente espacial como eles habitualmente a vem. A natureza localizada da interao social pode ser utilmente examinada em relao com os dife-rentes locais atravs dos quais as atividades cotidianas dos indivduos so coordenadas. Os locais no so apenas lugares, mas cenrios de interao; conforme Garfinkel demonstrou, de modo particularmente persuasivo, os cenrios so usados cronicamente- e, em grande parte, de maneira tcita- por ato-res sociais para confirmar o significado em atos comunicati-vos. Mas os cenrios tambm so regionalizados de forma que influenciam substancialmente o carter serial dos encontros e so influenciados por este. A "fixidez" de tempo-espao tam-bm significa normalmente fixidez social; o carter sub stan-cialmente "dado" dos milieux fsicos da vida cotidiana entrela-a-se com a rotina e profundamente influente nos contornos da reproduo institucional. A regionalizao tambm tem for-te ressonncia psicolgica e social no que diz respeito ao "ocultamento" viso de alguns tipos de atividades e de pes-soas, e "revelao" de outros. Encontramos aqui de novo um importante ponto de conexo entre idias aparentemente dspa-res: as de Goffinan e as de Foucault. Ambos atribuem grande importncia s linhas social e historicamente flutuantes entre ocultarnento e revelao, confinamento e exposio.

    Penso ser um engano considerar os encontros em circuns-tncias de co-presena como sendo, de algum modo, a base sobre a qual se constroem propriedades sociais maiores ou

    INTRODUO XXIX

    "macroestruturais". O chamado estudo "microssociolgico" no se ocupa de uma realidade que , de certa maneira, mais substancial do que aquela que interessa anlise "macrosso-ciolgica". Mas tampouco, pelo contrrio, a interao em situaes de co-presena simplesmente efmera, em contras-te com a solidez de instituies em grande escala ou estabeleci-das de longa data. Cada ponto de vista tem seus proponentes, mas eu vejo essa diviso de opinio como vazia, e como uma verso ligeiramente mais concreta do dualismo em teoria social j mencionado. A oposio entre "micro" e "macro" melhor reconceituada no que se refere ao modo como a intera-o em contextos de co-presena est estruturalmente implica-da em sistemas de ampla distanciao de tempo-espao - por outras palavras, ao modo como tais sistemas abrangem grandes setores espao-temporais. E isso, por sua vez, melhor investi-gado como um problema da conexo entre a integrao social e a integrao de sistema, tal como defino esses termos. Mas um corolrio vital tem de ser adicionado a isso. A relao entre integrao social e integrao de sistema no pode ser apreen-dida num nvel puramente abstrato; a teoria do urbanismo -lhe essencial, pois s com o advento das cidades - e, em tempos modernos, com o urbanismo do "ambiente criado" -torna-se possvel um desenvolvimento significativo da integrao de sistema.

    preciso realmente ter muito cuidado com o conceito de "sistema social" e a noo associada de "sociedade". Eles soam inocentes e so provavelmente indispensveis se usados com medidas adequadas de cautela. "Sociedade" tem um til signi-ficado duplo, no qual me apio -descrevendo um sistema li-mitado e a associao social em geral. A nfase sobre a regio-nalizao ajuda a lembrar que o grau de "sistemidade" em sis-temas sociais muito varivel e que as "sociedades" raramente tm fronteiras facilmente especificveis - at, pelo menos, in-gressarmos no mundo moderno das naes-Estados. O funcio-nalismo e o naturalismo tendem a encorajar a aceitao irrefle-tida das sociedades como entidades claramente delimitadas e dos sistemas sociais como unidades dotadas de elevada inte-

  • XXX A CONSTITUIO DA SOCIEDADE

    grao interna. Pois tais perspectivas, mesmo quando rejeita-das as metforas orgnicas diretas, tendem a ser ntimas aliadas de conceitos biolgicos; e estes tm sido geralmente formula-dos com referncia a entidades claramente derivadas do mundo que as circunda e dotadas de evidente unidade interna. Mas, com muita freqncia, as "sociedades" no so nada disso. Para ajudar a explicar isso, proponho as expresses "sistemas inter-sociais" e "extremidades do tempo-espao", em referncia a diferentes aspectos de regionalizao que atravessam sistemas sociais reconhecivelmente distintos como sociedades. Uso essas noes extensamente tambm na avaliao de interpreta-es de mudana social, no captulo 5.

    Ao formular a teoria da estruturao, desejo furtar-me ao dualismo associado com o objetivismo e o subjetivismo. Mas alguns crticos ponderaram que no dado suficiente peso a fatores enfatizados pelo primeiro desses conceitos, sobretudo a respeito dos aspectos coercitivos das propriedades estruturais de sistemas sociais. Para mostrar que no esse o caso, indico com algum detalhe o significado atribuvel a "coero" em teoria social e como os vrios sentidos que podem ser dados ao termo so entendidos na teoria da estruturao. O reconheci-mento da natureza e importncia da coero estrutural no im-plica sucumbir s atraes da sociologia estrutural, mas tam-pouco aceito, como procurei deixar claro, um ponto de vista prximo do individualismo metodolgico. Na conceituao da teoria da estruturao, "estrutura" significa algo diferente de seu uso habitual nas cincias sociais. Apresento tambm um conjunto de outros conceitos que gravitam em tomo do de estrutura, e esforo-me por mostrar por que so necessrios. O mais importante deles a idia de "princpios estruturais", que so caractersticas estruturais de sociedades globais ou totali-dades sociais; tambm procuro mostrar que atravs da noo de princpios estruturais que o conceito de contradio pode ser especificado, de maneira mais proveitosa, como pertinente anlise social. Essas noes, uma vez mais, no podem ser expressas de forma puramente abstrata, de modo que as exami-no com referncia a trs importantes tipos de sociedade que

    1 INTRODUA-0 XXXI

    podem ser destacadas na histria humana: culturas tribais, so-ciedades divididas em classes e naes-Estados modernas as-sociadas ascenso do capitalismo industrial.

    A meno de histria relembra a sentena de que os seres humanos fazem a Histria. O que exatamente 1sso que eles fazem- o que significa "histria" neste caso? A resposta ~o pode ser expressa numa forma to convincente quant? a maxJ-ma original. Existe, claro, uma diferena entre H1stona como eventos que transcorrem e histria como reg1stro escn_to des-ses eventos. Mas isso no nos leva muito longe. H1stona, ~o primeiro sentido, temporalidade, eventos em sua d~~ao. Somos propensos a associar a temporal idade a .um~ sequenc1a linear, e assim, a Histria, pensada dessa man~1ra, e assocta~a a movimento numa direo discemvel. Mas 1sso pode mmto bem ser uma forma culturalmente criada de pensar o tempo; mesmo que no seja, temos ainda assim de evitar a equao de "histria" com mudana social. Por essa razo vale a pena falar de "historicidade" como um sentido definido de vida num mundo social constantemente exposto a mudana, no qual a mxima de Marx parte de uma conscincia cultural geral, no um teorema peculiar a pensadores sociais especialistas. A his-tria como registro escrito da Histria tambm apresenta seus prprios dilemas e enigmas. Tudo o que tere} a d:zer a respeito deles que no se caracterizam pela precisao; nao nos P~~mtem efetuar distines claras, bem deflmdas, entre h1stona e cincia social. Problemas hermenuticas envolvidos na descn-o exata de formas divergentes de vida, a interpreta~o de tex-tos, a explicao de ao, instituies e transformaao soc1al -tudo isso compartilhado por todas as cincias socJaJs, mclum-do a histria.

    Como deveremos, pois, abordar o estudo da mudana so-cial? Procuro mostrar que a busca de uma teoria de mudana social (quando "teoria" significa, neste caso, a explicao da mudana social por referncia a um s conJunto de mec~msmos como os velhos favoritos evolucwmstas de adaptaao e

    sele~o diferencial) uma tarefa condenada. Est contaminada pela mesma espcie de deficincias lg1cas que se assoc1am

  • XXXII A CONSTITUIO DA SOCIEDADE

    mais geralmente suposio de que as cincias sociais podem descobrir leis universais de conduta humana. As espcies de entendimento ou conhecimento que os seres humanos tm de sua prpria "histria" so, em parte, constitutivas do que essa histria e das influncias que atuam para mud-la. Contudo, importante dar especial ateno crtica ao evolucionismo por-que, em uma verso ou outra, foi muito influente numa varie-dade de reas da cincia social. Entendo por "evolucioni-smo", quando aplicado s cincias sociais, a explicao da mudana social em termos de esquemas que envolvem as seguintes ca-ractersticas: uma srie irreversvel de estdios atravs dos quais as sociedades se modificam progressivamente, ainda que no se sustente que cada sociedade deve passar por todos eles a fim de atingir os superiores; uma certa ligao conceptual com as teorias biolgicas da evoluo; e a especificao de direciona-lidade ao longo dos estdios indicados, quanto a um dado crit-rio ou a critrios, como crescente complexidade ou expanso das foras de produo. Uma srie de objees pode ser apre-sentada contra essas idias, tanto a respeito de seus demritos intrnsecos quanto em termos de implicaes secundrias que o evolucionismo quase inevitavelmente tende a trazer em sua esteira, embora no sejam logicamente ocasionadas por ele. O "materialismo histrico", penso eu, uma verso do evolucio-nismo de acordo com esses critrios, em pelo menos uma das muitas maneiras como esse discutido termo tem sido entendi-do. Se interpretado desse modo, o materialismo histrico ma-nifesta mais geralmente muitas das limitaes principais e se-cundrias das teorias evolucionistas, e tem de ser rejeitado pe-las mesmas razes.

    Como no penso ser possvel comprimir a "Histria" nos tipos de esquemas favorecidos pelo evolucionismo, em geral, ou pelo materialismo histrico, mais especificamente, falo antes de desconstru-los do que de reconstru-los. Quero dizer com isso que as descries de mudana social tm de adotar uma forma substancialmente diferente do evolucionismo; no h mrito algum em tentar meramente remodel-las um pouco. Alm dos conceitos j apresentados, fao uso de dois outros: o

    INTRODUO XXXIII

    de "episdio" e o de "tempo mundial" (o primeiro devido a Gellner, o segundo a Eberhard). Toda a vida social pode serre-presentada como uma srie de episdios; os encontros em Cl~cunstncias de co-presena tm certamente uma forma epiSO-dica. Mas, neste contexto, refiro-me principalmente a proces-sos de mudanas em grande escala, nos quais existe algum tipo de reorganizao institucional, como a formao de cidad:s em sociedades agrrias ou a dos primeiros Estados. Os eplso-dios podem certamente ser proveitosamente comparados entre si mas sem se abstrair por completo o contexto de suas on-

    g~ns. A influncia do tempo mundial importante precisamen-te para se apurar at que ponto os episdios so,_ de fato, co~parveis. O "tempo mundial" diz respeito s conJunturas vana-veis na Histria que podem afetar as condies e os desfechos de episdios aparentemente similares e a influncia do que os agentes envolvidos sabem sobre tais condies e desfechos. Pro-curo indicar o valor analtico dessas noes, usando como !lus-trao teorias de formao do Estado. . _

    A teoria da estruturao no ser de mmto valor se nao ajudar a esclarecer problemas de pesquisa emprica, e ~o cap-tulo final abordo essa questo, que sustento ser mseparavel das implicaes da teoria da estruturao como ~a forma d~ cri:i-ca. No tento empunhar um b1stun metodolog!Co, 1sto e, nao acredito que exista qualquer coisa na lgica ou na substncia da teoria da estruturao que proba de alguma forma o uso de certas tcnicas especficas de pesquisa, como os mtodos de coleta de dados, questionrios etc. Algumas consideraes apre-sentadas so importantes para o modo de aplicao de determi-nadas tcnicas a questes de pesquisa e para a interpretao de resultados mas este um assunto um tanto diferente. Os pon-tos de liga~o da teoria da estruturao com a pesquisa empri-ca dizem respeito elaborao das implicaes lg1cas do estudo de uma "matria" da qual o pesquisador j uma parte e elucidao de conotaes substantivas das noes essenciais de ao e estrutura. Alguns dos pontos que formulei no nvel abstrato de teoria aplicam-se diretamente no nvel de pesqu1sa. Uma parte considervel da teoria social, em especial a associa-

  • XXXIV A CONSTITUIA'O DA SOCIEDADE

    da sociologia estrutural, tratou os agentes como muito menos cognoscitivos do que realmente so. Os resultados disso po-dem ser facilmente discernidos no trabalho emprico, no tocan-te ao fracasso em obter informao que permita o acesso total cognoscitividade dos agentes de pelo menos duas maneiras. O que os atores esto aptos a dizer acerca das condies de sua ao e da de outros sintetizado se os pesquisadores no reco-nhecerem a possvel importncia de uma gama de fenmenos discursivos a que eles prprios, como atores sociais, certamen-te prestariam ateno, mas que so com freqncia simples-mente desprezados na pesquisa social. Trata-se de aspectos do discurso que, na forma, so refratrios sua traduo como enunciados de crena proporcional ou que, como humor ou ironia, derivam seu significado menos do contedo daquilo que dito do que do estilo, modo de expresso ou contexto de verbalizao. Mas cumpre adicionar a isso um segundo fator de maior importncia: a necessidade de reconhecimento do significado da conscincia prtica. Quando o que os agentes conhecem a respeito do que fazem est restrito ao que eles po-dem dizer sobre isso, em qualquer estilo discursivo, uma rea muito vasta de cognoscitividade simplesmente subtrada da viso. O estudo da conscincia prtica deve ser incorporado ao trabalho de pesquisa. Seria um erro supor que os componentes no-discursivos da conscincia so necessariamente mais difi-ceis de estudar empiricamente do que os discursivos, muito embora os prprios agentes, por definio, no possam comen-t-los diretamente. O inconsciente, por outro lado, apresenta uma ordem inteiramente diferente do problema, exigindo, por certo, tcnicas de interrogao distintas das envolvidas na pes-quisa social descritiva.

    O funcionalismo foi sumamente importante nas cincias sociais, devido no s sua preeminncia como um tipo de teo-rizao, mas tambm ao estmulo emprico que forneceu. As origens do trabalho de campo em antropologia so mais ou me-nos contrminas ao impacto do funcionalismo, e na sociologia tambm o pensamento funcionalista ajudou a gerar um corpo significativo de trabalho de pesquisa. Penso ser essencial com-

    INTRODUO XXXV

    preender os atrativos do funcionalismo a esse respeito, embora continuando a sustentar que, no plano conceptual, sua influn-cia foi sobremaneira perniciosa. o funcio~alismo enfatizou fortemente o significado das conseqncias impremeditadas da ao, sobretudo na medida em que estas ocorrem de modo regular e esto envolvidas, portanto, na reproduo de aspectos institucionalizados de sistemas sociais. Os funcionalistas esti-veram inteiramente certos em promover essa nfase. Mas perfeitamente possvel estudar conseqncias impremeditadas sem o uso de conceitos funcionalistas. Alm disso, a designa-o do que no premeditado ou intencional com relao s conseqncias da ao s pode ser empiricamente apreendido de forma adequada se os aspectos premeditados ou intencio-nais da ao forem identificados, e isso significa, uma vez mais, operar com uma interpretao de agncia mais refinada do que normalmente admitido por aqueles que se inclinam para as premissas funcionalistas.

    Na teoria da estruturao, considera-se "estrutura" o con-junto de regras e recursos implicados, de modo recursivo, na reproduo social; as caracteristicas institucionalizadas de sis-temas sociais tm propriedades estruturais no sentido de que as relaes esto estabilizadas atravs do tempo e espao. A "es-trutura" pode ser conceituada abstratamente como dois aspec-tos de regras: elementos normativos e cdigos de significao. Os recursos tambm so de duas espcies: recursos impositi-vos, que derivam da coordenao da atividade dos agentes hu-manos, e recursos alocativos, que procedem do controle de produtos materiais ou de aspectos do mundo material. O que especialmente til para a orientao da pesquisa o estudo, primeiro, das intersees rotinizadas de prticas que consti-tuem os "pontos de transformao" nas relaes estruturais; e, segundo, dos modos como as prticas institucionalizadas esta-belecem a conexo entre a integrao social e a integrao de sistema. Quanto ao primeiro desses temas de estudo, para dar um exemplo, pode-se demonstrar como a propriedade privada, um conjunto de direitos de posse, pode ser "traduzida" em au-toridade industrial, ou modos de sustentao do controle admi-

  • XXXVI A CONSTITUIA-0 DA SOCIEDADE

    nistrativo. Em relao ao segundo, o que tem de ser emprica-mente determinado at que ponto as prticas localizadas e es-tudadas numa determinada gama de contextos convergem en-tre si d~ modo a ingressarem diretamente na reproduo do sis-tema. E importante, neste caso, estar atento para o significado dos locais como cenrios de interseo; no h razo nenhuma para que os socilogos no adotem algumas das tcnicas de pesquisa estabelecidas pelos gegrafos, inclusive as tcnicas grficas de tempo-geografia, a fim de estud-los.

    Se as cincias sociais so entendidas como eram durante o periodo de domnio do consenso ortodoxo, suas realizaes no impressionam, e a importncia da pesquisa social para ques-tes prticas parece razoavelmente escassa. Pois as cincias na-turais ou, pelo menos, as mais avanadas dentre elas, possuem leis precisamente especificadas e geralmente aceitas em con-junto com um amplo repertrio de observaes em~ricas in-discutveis que podem ser explicadas em termos dessas leis. A cincia natural articulou-se com capacidades tecnolgicas espantosas, tanto destrutivas quanto construtivas. Aos olhos da-queles que adotariam diretamente para a cincia social o mode-lo da cincia natural, a primeira certamente superada de lon-ge pela segunda. Tanto cognitiva quanto praticamente as cin-cias sociais parecem nitidamente inferiores s cincias natu-rais. Mas, ao se aceitar que a cincia social no deve mais con-tinuar sendo uma espcie de rplica da cincia natural e que, em certos aspectos, um empreendimento de natureza inteira-mente divergente, pode-se ento defender uma viso muito di-ferente de suas realizaes e influncia relativas. No existem leis universais nas cincias sociais nem haver nenhuma- no antes de tudo, porque os mtodos de verificao emprica se~ jam um tanto inadequados, mas porque, como j assinalei, as condies causais envolvidas em generalizaes sobre a con-duta social humana so inerentemente instveis com relao ao prprio conhecimento (ou crenas) que os atores tm sobre as circunstncias de sua prpria ao. A chamada "profecia auto-realizadora", a concretizao de algo como simples efeito de ter sido esperado, a cujo respeito Merton e outros escreveram,

    1 INTRODUO XXXVII

    um caso especial de um fenmeno muito mais genrico nas cincias sociais. uma interao interpretativa mtua entre cincia social e aquelas cujas atividades constituem seu objeto de estudo- uma "dupla hermenutica". As teorias e descober-tas das cincias sociais no podem ser mantidas totalmente separadas do universo de significado e ao de que elas tratam. Mas, por sua parte, os atores leigos so tericos sociais, cujas teorias ajudam a constituir as atividades e instituies que so o objeto de estudo de observadores sociais especializados ou cientistas sociais. No existe uma clara linha divisria entre a reflexo sociolgica esclarecida levada a efeito por atores lei-gos e as diligncias similares por parte de especialistas. No quero negar que existam linhas divisrias, mas elas so inevita-velmente vagas, e os cientistas sociais no tm um monoplio absoluto sobre as teorias inovadoras nem sobre as investiga-es empricas do que estudam.

    Talvez tudo isso possa ser tomado por certo. Mas talvez no se possa aceitar, a partir desses comentrios, a adoo de uma viso das realizaes e do impacto das cincias sociais distinta da acima indicada. Como poderia ser seriamente suge-rido que a cincia social tem tido tanta ou mais influncia sobre o mundo social quanto a cincia natural sobre o mundo mate-rial? Penso, de fato, que esse ponto de vista pode ser mantido-embora, claro, tal comparao no possa ser precisa, em vir-tude das prprias diferenas entre o que est envolvido em cada caso. A questo que a reflexo sobre processos sociais (teorias e observaes sobre eles) continuamente penetra, sol-ta-se e torna a penetrar o universo de acontecimentos que eles descrevem. No existe tal fenmeno no mundo de natureza inanimada, o qual indiferente a tudo o que os seres humanos possam pretender saber a seu respeito. Considerem-se, por exemplo, as teorias de soberania formuladas pelos pensadores europeus do sculo XVII. Elas resultaram da reflexo sobre- e do estudo de- tendncias sociais nas quais foram, por sua vez, realimentadas. impossvel apontar um moderno Estado sobe-rano que no incorpore uma teoria discursivamente articulada do moderno Estado soberano. A tendncia acentuada a uma

  • XXXVIII A CONSTITUIO DA SOCIEDADE

    expanso da "automonitorao" poltica por parte do Estado caracterstica da modernidade no Ocidente em geral, criando o clima social e intelectual a partir do qual discursos especializa-dos, "profissionais", da cincia social se desenvolveram, mas que ambos tambm expressam e fomentam. Certamente poder-se-ia fazer algum tipo de argumentao favorvel pretenso de que essas mudanas, nas quais a cincia social esteve cen-tralmente envolvida, se revestem de um carter muito funda-mental. Ao lado delas, as transformaes da natureza realiza-das pelas cincias naturais no parecem to macias.

    Refletindo um pouco mais sobre tais consideraes, pode-mos ver por que motivo as cincias sociais podem parecer no gerar uma soma considervel de conhecimentos originais, e tambm por que teorias e idias produzidas no passado podem conservar, de modo aparentemente paradoxal, uma pertinncia aos dias de hoje que as concepes arcaicas das cincias natu-rais no possuem. As melhores e mais interessantes idias nas cincias sociais a) participam na promoo do clima de opi-nio e dos processos sociais que lhes do origem, b) esto em maior ou menor grau entrelaadas com teorias em uso que aju-dam a constituir aqueles processos e c) improvvel, portanto, que sejam claramente distintas da reflexo ponderada que ato-res leigos empregam, na medida em que discursivamente arti-culam, ou se aperfeioam sobre, teorias em uso.

    Esses fatos tm conseqncias, sobretudo para a sociolo-gia ( qual eles so na maioria nitidamente pertinentes), que afetam o prosseguimento da pesquisa emprica e a formulao e recepo de teorias. No tocante pesquisa, eles significam que muito mais dificil do que no caso da cincia natural "sus-tentar" a aceitao de teorias enquanto se buscam meios de as comprovar apropriadamente. A vida social segue em frente; teorias, hipteses ou descobertas interessantes ou potencial-mente prticas podem ser levantadas na vida social de tal modo que as bases originais em que poderiam ser testadas tenham se alterado desta ou daquela maneira. H muitas e complexas per-mutaes possveis de mtua sustentao neste caso, as quais se combinam tambm com as dificuldades inerentes ao contra-

    1 INTRODUO XXXIX

    !e de variveis, rplica de observaes e outros dilemas meto-dolgicos em que as cincias sociais podem encontrar-se. As teorias na cincia natural so originais, inovadoras etc., at o ponto em que colocam em questo aquilo em que tanto atores leigos quanto cientistas profissionais acreditavam previamente acerca dos objetos ou eventos a que elas se referem. Mas as teorias nas cincias sociais tm de ser de algum modo baseadas em idias que (embora no necessariamente formuladas por elas em termos discursivos) j so sustentadas pelos agentes a que se referem. Uma vez reincorporadas na ao, sua qualida-de original poder perder-se; elas podem tornar-se excessiva-mente familiares. A noo de soberania e teorias associadas do Estado eram surpreendentemente novas quando foram formu-ladas pela primeira vez; hoje, tornaram-se em certa medida parte integrante da prpria realidade social que ajudaram a estabelecer.

    Mas por que algumas teorias sociais conservam seu vio muito depois de passadas as condies que ajudaram a produ-zi-las? Por que, agora que estamos familiarizados com o con-ceito e a realidade da soberania do Estado, as teorias seiscentis-tas do Estado continuam a ter tanta relevncia para a reflexo social ou poltica hodierna? Por certo, exatamente porque con-triburam para a constituio do mundo social em que vivemos agora. O que chama nossa ateno o fato de que so reflexes sobre uma realidade social que elas tambm ajudam a consti-tuir e que est distanciada, e ao mesmo tempo permanece sen-do parte, de nosso mundo social. As teorias nas cincias natu-rais, que foram substitudas por outras que cumprem melhor a mesma funo, no interessam prtica corrente da cincia. No pode ser esse o caso quando essas teorias ajudaram a cons-tituir o que elas interpretam ou explicam. A "histria de idias" talvez possa ser justificadamente considerada de importncia marginal para o cientista natural praticante, mas muito mais do que tangencial para as cincias sociais.

    Se so corretas, essas ponderaes levam diretamente a uma considerao da cincia social como crtica- como envol-vida de maneira prtica com a vida social. No nos podemos

  • XL A CONSTITUIA'O DA SOGEDADE

    contentar com a verso "tecnolgica" da crtica proposta pelo c~nsenso ortodoxo, uma concepo que deriva do modelo da ~Ie~cm natural.,A vis.? tecnolgica da crtica pressupe que a cntiCa mterna da Ciencia social - as avaliaes crticas que

    aqueles que trabalham nas cincias sociais fazem das opinies uns dos outros- gera sem complicaes uma "crtica externa" da~ crenas leigas que podem ser a base da interveno social pratica. Mas, dada a significao da "dupla hermenutica" as coisas so muito mais complexas. A formulao da teoria crlti-ca no ~ urna opo; as teorias e descobertas nas cincias sociais sao suscetveis de ter conseqncias prticas (e polti-cas) mdepen~entemente de o observador sociolgico ou 0 es-trat;gista pohtico dec~dir q_ue elas podem ou no ser "aplica-das a uma dada questo pratica.

    O presente livro no foi nada fcil de escrever e, at certo ponto, provou ser refratrio ordenao normal de captulos. A teon~ da estruturao foi formulada, em parte substancial atraves de sua prpria "crtica interna"- a avaliao crtica d~ uma variedade de escolas de pensamento social geralmente concorrentes. Em vez de deixar alguns desses confrontos crti-cos se imiscurem nas principais sees do texto, tratei de in-clu-los como apndices aos captulos com os quais se relacio-nam mais diretamente. (Do mesmo modo, as notas associadas a eles seguem-se s que pertencem aos captulos pertinentes.) O leitor que queira aco~panhar a linha principal de argumento do hvro sem mterrupoes pode saltar os apndices e suas res-pectivas notas. Entretanto, eles sero de interesse para quem estiver mteressado em apreciar como os pontos de vista que de-fendo diferem dos de outros ou na elaborao de temas trata-dos de forma condensada no cerne de cada captulo. Uma va-neda~e de neologismos usada no livro, os quais constam do glossano colocado no final.

    JNTRODUA'O XLI

    Referncias

    1. Seria um erro, claro, supor que a influncia de Parsons est confi-nada no passado, imaginar que esse autor foi esquecido como ele prprio certa vez sugeriu ter acontecido a Spencer pouco depois de sua morte. Pelo contrrio, uma das tendncias mais visveis na teo-ria social hodierna o papel primordial desempenhado por concep-es inferi das mais ou menos diretamente de Parson~. Poderamos citar, a ttulo de exemplo, os escritos de Luhrnann e Habermas, na Alemanha, Bourricauld, na Frana, e Alexander e outros, nos Estados Unidos. No pretendo discutir em detalhes essa literatura, mas talvez valha a pena explicar um pouco por que no simpatizo muito com aqueles aspectos de tais autores que se basearam forte-mente em idias de Parsons. Todos os escritores em questo criti-cam veementemente as conexes de Parsons com o funcionalismo, do qual Luhmann procurou provavelmente reter mais do que os outros. Neste aspecto, estou de acordo com eles, como este livro dever deixar bastante claro. Mas, em outros, por razes que tam-bm sero documentadas extensamente nas pginas que se se-guem, penso ser necessrio fazer uma ruptura radical com teore-mas parsonianos. Um importante aspecto disso refere-se infiltra-o da influncia de Max Weber atravs dos escritos de Parsons. Tenho sido freqentemente qualificado de "weberiano" por crti-cos que consideram isso uma espcie de defeito irreparvel. Ao contrrio deles, no encaro o termo como um estigma, um rtulo desonroso, mas tampouco o aceito como corretamente aplicado a meus pontos de vista. Se me apio em Weber, de um ngulo bem diferente daquele adotado pelos autores acima citados. Assim, o Weber de Habermas (talvez surpreendentemente) tende a ser de um estilo parsoniano, preocupado sobretudo com a racionalizao de valores e com a "diferencial social", retratadas como processos generalizados de desenvolvimento. A vida social no descrita aqui atravs das lentes que eu preferiria tomar emprestadas de We-ber, quando se interessa pelas mltiplas prticas e lutas de atores concretamente localizados, pelo conflito e choque de interesses secionais, e pela territorialidade e violncia de formaes polticas ou Estados.

    Parsons considerava-se um "terico da ao" e chamou sua verso de cincia social o "quadro de referncia da ao". Mas, como procurei mostrar minuciosamente em outro trabalho (ver NRSM, captulo 3), o que eu aceitaria como concepo satisfatria

  • XLII A CONSTITU!A'O DA SOCIEDADE

    de ao (e outras noes afins, especialmente as de intenes e razes) no ser encontrado na obra de Parsons. Isso no se deve, como alguns crticos sugeriram, ao fato de uma nfase ulterior sobre o funcionalismo e a teoria de sistemas ter ameaado sufocar uma preocupao anterior com o "voluntarismo". O motivo est em que a idia de voluntarismo apresentava-se viciada desde a ori-gem. No pensamento de Parsons, o voluntarismo sempre esteve vinculado resoluo do "problema da ordem", por ele concebido como a coordenao de vontades individuais potencialmente de-sintegradoras. A resoluo se d atravs da demonstrao de que os atores internalizarn, como motivos, os valores compartilhados de que depende a coeso social. O pedido de uma explicao da ao acaba fundindo-se com a exigncia de ligar uma teoria "psi-colgica" de motivao com uma interpretao "sociolgica" das caractersticas estruturais de sistemas sociais. Pouca ou nenhuma margem conceptual deixada para o que eu enfatizo como a cog-noscitividade de atores sociais,'enquanto constitutiva, em parte, de prticas sociais. No penso 'Llie qualquer ponto de vista que seja fortemente ancorado em Parsons possa enfrentar satisfatoriamente essa questo, no prprio mago dos interesses da teoria social, segundo eu os concebo neste livro.

    Se aqueles que tm grande dbito para com Parsons hoje no se consideram funcionalistas e rejeitaram a inclinao funcionalis-ta do pensamento parsoniano em maior ou menor grau, eles ainda encampam outras idias relacionadas maioria das verses do fun-cionalismo. Estas incluem: um fascnio pelo "consenso de valor" ou pelas ordens simblicas, custa dos aspectos prticos mais coti-dianos da atividade social; a tendncia a supor que as sociedades so unidades facilmente distinguveis, semelhana dos organis-mos biolgicos; e a predileo por teorias de estilo evolucionista. Considero ada uma dessas nfases seriamente enganosa e apre-sentarei fories reservas a respeito delas. No pode haver dvidas sobre o refinamento e a importncia da obra de alguns autores que atualmente se empenham em desenvolver a obra de Parsons por novos caminhos, especialmente Luhmann e Habermas. Mas penso ser to necessrio repudiar as novas verses do parsoniap.ismo quanto as variedades, estabelecidas h mais tempo, da sociologia estrutural no-parsoniana.

    Captulo I _ Elementos da teoria da estruturaao

    Ao oferecer uma exposio preliminar dos principais con-ceitos da teoria da estruturao'* ser til comear pelas dlVI-ses que separaram o funcionalismo (inclusive a te_ona de SIS-temas) e 0 estruturalismo, por um lado, da hermeneutJCa e das vrias formas de "sociologia interpretativa", por outro. O fun-cionalismo e 0 estruturalismo tm algumas semelhanas nota-veis, apesar dos contrastes de outro modo acentuados existen-tes entre eles. Ambos tendem a expressar um ponto de v1sta na-turalstico e se inclinam para o objetivismo. O pensamento fun-cionalista, de Comte em diante, via particularme~te a bwlog1a como a cincia que fornece o modelo ma1s prox1mo e ma1s compatvel para a cincia social. A biologia f01 considerada for-necedora de um guia para conce1tuar a estrutura e o funcwna-mento de sistemas sociais, assim como para anahsar processos de evoluo via mecanismos de adaptao. O ~ensamento es: truturalista, especialmente nos escntos de Lev1.-Strauss, f01 hostil ao evolucionismo e isento de analogias bwlog1cas. ~este caso, a homologia entre cincia social e cincia n~tural e pn-mordiahnente cognitiva, na medida em que se supoe _que cada uma expressa caracteristicas similares da constJtuJao global da mente. O estruturalismo e o funcwnahsmo enfatizam forte-mente a preeminncia do todo social sobre suas partes mdlVI-duais (isto , seus atores constituintes, SUJeitos huma~os).

    Em tradies hermenuticas de pensamento, e claro, _as cincias sociais e naturais so consideradas radicalmente d1s-

    * As referncias podem ser encontradas a pp. 44-6.

  • 2 A CONSTITU!A-0 DA SOCIEDADE

    crepantes. A hermenutica foi a base daquele "humanismo" contra o qual os estruturalistas se opuseram de modo to vigo-roso e persistente. No pensamento hermenutico, tal como apresentado por Dilthey, o abismo entre sujeito e objeto social alcana sua amplitude mxima. A subjetividade o centro pre-viamente constitudo da experincia de cultura e histria, e como tal fornece o fundamento bsico das cincias sociais ou huma-nas; Fora do domnio da experincia subjetiva, e alheio a ela, esta o mundo matenal, governado por relaes impessoais de causa e efeito. Enquanto para aquelas escolas de pensamento que tendem para o naturalismo a subjetividade foi encarada como uma espcie de mistrio, ou quase como um fenmeno residual, para a hermenutica o mundo da natureza que opaco - o qual, diferentemente da atividade humana somente pode. ser apreendido desde fora. Nas sociologias in;erpretati-vas, e concedida pnmazia ao e ao significado na explicao da conduta humana; os conceitos estruturais no so notavel-mente conspcuos e no se fala muito de coero. Para o funcio-nalismo e o estruturalismo, entretanto, a estrutura (nos sentidos divergentes atribudos ao conceito) tem primazia sobre a ao e suas qualidades restritivas so fortemente acentuadas.

    As diferenas entre esses pontos de vista sobre a cincia social tm sido freqentemente consideradas epistemolgicas, quando, de fato, so tambm ontolgicas. A questo como os conceitos de ao, significado e subjetividade devem ser espe-cificados e como poderiam ser relacionados com as noes de estrutura e coero. Se as sociologias interpretativas se assen-tam, por assim dizer, num imperialismo do sujeito, o funciona-lismo e o estruturalismo, por seu lado, propem um imperialis-mo do Objeto sociaL Uma de minhas principais ambies na formulao da teoria da estruturao pr um fim a cada um desses esforos de estabelecimento de imprios. O domnio b-sico de estudo das cincias sociais, de acordo com a teoria da estruturao, no a experincia do ator individual nem a exis-tncia de qualquer forma de totalidade social, mas as prticas sociais ordenadas no espao e no tempo. As atividades sociais humanas, semelhana de alguns itens auto-reprodutores na

    1 i ELEMENTOS DA TEORIA DA ESTRUTURAO 3

    natureza, so recursivas. Quer dizer, elas no so criadas por atores sociais mas continuamente recriadas por eles atravs dos prprios meios pelos quais eles se expressam como atores. Em suas atividades, e atravs destas, os agentes reproduzem as condies que tornam possveis essas atividades. Entretanto, a espcie de "cognoscitividade" apresentada na natureza, na forma de programas codificados, distante das aptides cognitivas exibidas por agentes humanos. na conceituao da cognosci-tividade humana e em seu envolvimento na ao que procuro tomar para uso prprio algumas das principais contribuies das sociologias interpretativas. Na teoria da estruturao, um ponto de partida hermenutico aceito na medida em que se reconhece que a descrio de atividades humanas requer fami-liaridade com as formas de vida expressas naquelas atividades.

    a forma especificamente reflexiva da cognoscitividade dos agentes humanos que est mais profundamente envolvida na ordenao recursiva das prticas sociais. A continuidade de prticas presume reflexividade, mas esta, por sua vez, s pos-svel devido continuidade de prticas que as tornam nitida-mente "as mesmas" atravs do espao e do tempo. Logo, a "re-flexividade" deve ser entendida no meramente como "auto-conscincia", mas como o carter monitorado do fluxo cont-nuo da vida social. Ser um ser humano ser um agente inten-cional, que tem razes para suas atividades e tambm est apto, se solicitado, a elaborar discursivamente essas razes (inclusi-ve mentindo a respeito delas). Mas termos tais como "propsi-to" ou "inteno", "razo", "motivo" etc. tm de ser tratados com cautela, porquanto o seu uso na literatura filosfica tem sido muito freqentemente associado a um voluntarismo her-menutica, e porque eles retiram a ao humana da contextua-lidade de espao-tempo. A ao humana ocorre como uma du-re, um fluxo contnuo de conduta, semelhana da cognio. A ao intencional no se compe de um agregado ou srie de intenes, razes e motivos isolados. Assim, til falar de re-flexividade como algo assentado na monitorao contnua da ao que os seres humanos exibem, esperando o mesmo dos outros. A monitorao reflexiva da ao depende da racionali-

  • 4 A CONSTITUIA-0 DA SOCIEDADE

    zao, entendida aqui mais como um processo do que como um estado, e como inerentemente envolvida na competncia dos agentes. Uma ontologia de tempo-espao como constituti-va de prticas sociais bsica para a concepo de estrutura-o, a qual comea a partir da temporalidade e, portanto, num certo sentjdo, da "histria".

    Essa abordagem s muito parcimoniosamente pode apoiar-se na filosofia analtica da ao, entendida a "ao" no sentido comumente dado pela maioria dos autores anglo-americanos contemporneos. A "ao" no uma combinao de "atos"; os "atos" so constitudos apenas por um momento discursivo de ateno dure da experincia vivida. Tampouco se pode discutir a "ao" do corpo, de suas mediaes com o mundo circulante e da coerncia de um se/f atuante. Aquilo a que chamo de um modelo de estratificao do se/f atuante envolve tratar a monitorao reflexiva, a racionalizao e a motivao da ao como conjuntos de processos incrustados'. A raciona-:izao da ao, referente "'intencionalidade" como processo, e, como as outras duas dimenses, uma rotina caracterstica da conduta humana exercida de forma reconhecida. Em circuns-tncias de interao - encontros e episdios - a monitorao reflexiva da ao incorpora tipicamente, e uma vez mais roti-neiramente, a monitorao do cenrio onde essa interao se desenrola. Como indicarei mais adiante, esse fenmeno bsi-co para a interpolao da ao dep.tro das relaes espao-tem-porais do que designarei por "co,presena". A racionalizao da ao, dentro da diversidade de circunstncias de interao, constitui a principal base sobre a qual a "competncia" genera-hzada dos atores avaliada por outros. Deve ficar claro, po-rm, que a tendncia de alguns filsofos de equiparar razes e "compromissos normativos" tem de ser combatida: tais com-promissos abrangem somente um setor da racionalizao da ao. Se isso no for entendido, no compreenderemos que as normas se apresentam como fronteiras "fatuais" na vida social, para as quais so possveis vrias atitudes manipulatris. Um aspecto de tais atitudes, embora relativamente superficial, encontra-se na observao banal de que as razes que os atores

    ELEMENTOS DA TEORIA DA ESTRUTURAO 5

    oferecem discursivamente para o que fafem podem divergir da racionalizao da ao quando realmente envolvida no fluxo de conduta desses atores.

    Essa circunstncia tem sido uma freqente fonte de preo-cupao para filsofos e observadores da cena social - pois como poderemos ter a certeza de que as pessoas no dissimu-lam a respeito das razes para suas atividades? Mas isso de interesse relativamente pequeno comparado com as vastas "reas cinzentas" existentes entre dois estratos de processos inacessveis conscincia discursiva dos atores. O grande vo-lume dos "estoques de conhecimento", na frase de Schutz, ou que eu prefiro designar por conhecimento mtuo incorporado em encontros, no diretamente acessvel conscincia dos atores. A maior parte desse conhecimento prtico por nature-za: inerente capacidade de "prosseguir" no mbito das roti-nas da vida social. A linha entre conscincia discursiva e cons-cincia prtica flutuante e permevel, tanto na experincia do agente individual quanto no que se refere a comparaes entre atores em diferentes contextos da atividade social. Contudo, no h barreira entre estes, como as que se observam entre o inconsciente e a conscincia discursiva. O inconsciente inclui aquelas formas de cognio e de impulso que esto ou total-mente impedidas de conscincia ou somente aparecem na conscincia de forma distorcida. Os componentes motivacio-nais inconscientes da ao, como sugere a teoria psicanaltica, possuem uma hierarquia interna que lhes prpria, uma hierar-quia que exprime a "profundidade" da histria de vida do ator individual. Ao dizer isto, no quero dar a entender uma aceita-o incondicional dos teoremas-chave dos escritos de Freud. Devemos estar prevenidos contra duas formas de reducionismo que esses escritos sugerem ou promovem. 'uma delas uma concepo redutiva das instituies, a qual, ao procurar mos-trar o fundamento das instituies no inconsciente, no deixa campo suficiente para a operao de foras sociais autnomas. A segunda forma uma teoria redutiva da conscincia, a qual, querendo mostrar quanto da vida social governado por cor-rentes sombrias fora do alcance da conscincia dos atores, no

  • 6 A CONSTITU!A"O DA SOCIEDADE

    pode apreender adequadamente o nvel de controle que os agen-tes esto caracteristicamente aptos a manter de modo reflexivo sobre sua prpria conduta.

    O agente, a agncia

    O modelo de estratificao do agente pode ser representa-do como na Figura I. O monitoramento reflexivo da atividade uma caracteristica crnica da ao cotidiana e envolve a con-duta no apenas do indivduo mas tambm de outros. Quer di-zer, os atores no s controlam e regulam continuamente o fluxo de suas atividades e esperam que outros faam o mesmo por sua prpria conta, mas tambm monitoram rotineiramente aspectos, sociais e fisicos, dos contextos em que se movem. Por racionalizao da ao entendo que os atores- tambm rotinei-ramente e, na maioria dos casos, sem qualquer alarde - man-tm um contnuo "entendimento terico" das bases de sua ati-vidade. Como mencionei, possuir tal entendimento no deve ser equiparado apresentao discursiva de razes para deter-minados itens de conduta, nem mesmo capacidade de especi-ficar tais razes discursivamente. Entretanto, o que agentes competentes esperam dos outros - e esse o principal critrio de competncia aplicado na conduta cotidiana- que os atores sejam habitualmente capazes de explicar a maior parte do que fazem, se indagados. Perguntas freqentemente formuladas por filsofos acerca de intenes e razes so normalmente apre-sentadas por atores leigos apenas quando alguma conduta especificamente enigmtica ou ento quando h um "lapso" ou

    c9nd1es (1 mon1torao reflexiVa da ao ~ 1 consequnclas nao-reconhec1das : i 1mpremed1tadas da ao * racionalizao da ao ~ da ao

    : 1 , mot1vao da ao , '.., ____________________ _.,/

    Figura 1

    ELEMENTOS DA TEORIA DA ESTRUTURAO 7

    fratura na competncia que poderia, de fato, ser intencional. Assim, no perguntaremos comumente a uma outra pessoa por que se empenha numa atividade que convencwnal para ~ grupo ou cultura de que o indivduo membro. Tampouco e costume pedir uma explicao se ocorre um lapso para o qual parece improvvel que o agente possa ser tido por responsv:I, como os tropeos na administrao do corpo (ver a d1scussao de "Upa!", pp. 95-6) ou o lapsus linguae. Se Freud est ce;to, entretanto, esses fenmenos poderiam ter um fundamento logi-co se bem que isso s raramente seja percebido pelos perpetra-do~es desses atos falhos ou por outros que os presenciam (ver pp. 109-23). . . -

    Eu distingo a monitorao reflexiva e a racwnahzaao da ao de sua motivao. Se as razes se referem aos motivos da ao, estes, por sua vez, referem-se s necessidades que a msti-gam. Entretanto, a motivao no est to diretamente vincula-da continuidade da ao quanto sua monitorao reflexiVa ou racionalizao. Ela refere-se mais ao potencial para a ao do que propriamente ao modo como a ao cronic~ente_ exe-cutada pelo agente. Os motivos tendem a ter uma mfluencJa direta na ao apenas em circunstncias relativamente inco-muns, situaes que, de algum modo, quebram a rotina. Em sua grande maioria, os motivos fornecem planos ou pro~ramas globais - "projetos", na terminologia de Schutz - no amb!lo dos quais uma certa gama de condutas so encenadas. Mmto de nossa conduta cotidiana no diretamente motivada.

    Embora atores competentes possam quase sempre infor-mar discursivamente sobre suas intenes ao - e razes para-atuar do modo que atuam, podem no fazer necessariamente o mesmo no tocante a seus motivos. A motivao inconsciente uma c~acteristica significativa da conduta humana, embora eu indique mais adiante algumas reservas a respeito da interpreta-o de Freud da natureza do inconsciente. A noo de cons,-cincia prtica fundamental para a teoria de estruturao. E aquela caracteristica do agente ou sujeito humano para a qual o estruturalismo tem sido particularmente cego'. Mas o mesmo tem acontecido com outros tipos de pensamento objetivista.

  • 8 A CONSTITUIO DA SOCIEDADE

    Somente na fenomenologia e na etnometodologia, dentro das tradies sociolgicas, encontramos detalhados e sutis trata-mentos da natureza da conscincia prtica. Com efeito, so es-sas escolas de pensamento, em conjunto com a filosofia da lin-guagem ordinria, as responsveis pelo esclarecimento das deficincias das teorias ortodoxas da cincia social a esse res-peito. No pretendo que a distino entre conscincia discursi-va e conscincia prtica seja rigida e impermevel. Pelo con-trrio, a diviso entre as duas pode ser alterada por numerosos aspectos da socializao e das experincias de aprendizagem do agente. No h barreiras entre esses dois tipos de conscin-cia; h apenas as diferenas entre o que pode ser dito e o que, de modo caracteristico, simplesmente feito. Existem barrei-ras, porm, centradas principalmente na represso, entre a cons-cincia discursiva e o inconsciente.

    conscincia discursiva A

    conscincia prtica

    motivos (nconscientes/cognio

    Conforme explicado em om,ra parte do livro, proponho esses conceltos em lugar da tradiCional triade psicanaltica de ego, superego e id. A distino freudiana de ego e id no pode dar conta tranqilamente da anlise da conscincia prtica, a qual carece de abrigo terico na teoria psicanaltica, assim como nos outros tipos de pensamento social previamente indi-cado,s, O conceito de "pr-consciente" talvez seja a noo mais prx~a da conscincia prtica no repertrio conceptual da ps1canahse, mas, em seu uso geral, significa claramente ajgo diferente. Em lugar de "ego" preferivel falar de "eu" (como fez Freud, claro, no alemo original). Esse uso no impede o

    a~tropom~rflsmo, no qual o ego retratado como uma esp-Cie de mm1-agente; mas, pelo menos, ajuctaa comear a reme-di-lo. O uso de "eu" desenvolve-se a partirdo posicionamento do agente em encontros sociais e est-lhe associado da em diante. Enquanto um termo de tipo predicativo "vazio" de contedo, em comparao com a riqueza das autodescries do

    ELEMENTOS DA TEORIA DA ESTRUTURAO 9

    ator que implicam o "mim". O completo domnio das relaes de "eu", "mim", "tu", quando aplicadas reflexivamente no dis-curso, de importncia decisiva para a competncia em forma-o de agentes que esto aprendendo a linguagem. Uma vez que no uso o termo "ego", evidentemente prefervel dispen-sar tambm "superego" - um termo de todo modo tosco. A expresso "conscincia moral" serve perfeitamente bem como seu substituto.

    Todos esses conceitos referem-se ao agente. E o que dizer da natureza da agncia? Isto pode ser ligado com uma nova questo. A dure da vida cotidiana ocorre como um fluxo de ao intencional. Entretanto, os atos tm conseqncias im-premeditadas; e, como foi indicado na Figura I, estas podem sistematicamente realimentar-se para constiturem as condi-es no reconhecidas de novos atos. Assim, uma das conse-qncias normais de eu falar ou escrever de um modo correto em ingls contribuir para a reproduo da lngua inglesa como um todo. O fato de eu falar ingls corretamente in-tencional; a contribuio que dou para a reproduo da lngua no . Mas como formularemos o que so as conseqncias impremeditadas?

    Admite-se com freqncia que a agncia humana s pode ser definida em termos de intenes, ou seja, para que um item do comportamento seja considerado uma ao, preciso que o realizador tenha a inteno de o manifestar, caso contrrio o comportamento em questo apenas uma resposta reativa. Essa viso deriva certa plausibilidade, talvez, do fato de haver alguns atos que no podem ocorrer a menos que o agente tenha essa inteno. O suicdio um caso ilustrativo. Malgrado os es-foros conceptuais de Durkheim em contrrio, s possvel dizer que o "suicdio" ocorreu quando se constatou algum tipo de inteno de precipitar a autodestruio. Uma pessoa que sai do meio-fio da calada e atropelada por um carro no pode ser qualificada de "suicida" se o evento foi acidental; algo que acontece ao indivduo e no algo que o indivduo faz. Entretanto, o suicdio no tpico da maioria dos atos huma-nos, no que se refere a intenes, na medida em que se pode di-

  • 10 A CONSTITUIO DA SOCIEDADE

    zer que ocorreu somente quando seu perpetrador quis que ocor-resse. A maioria dos atos no tem essa caracterstica.

    Alguns filsofos argumentaram, porm, que para um evento que envolve um ser humano ser considerado um exem-plo de agncia necessrio, pelo menos, que o que a pessoa faz possa ser descrito como intencional, mesmo que o agente este-ja enganado acerca dessa descrio. Um oficial num submari-no puxa uma alavanca com a inteno de mudar o curso, mas, em vez disso, tendo acionado a alavanca errada, afunda o Bismarck. Ele fez algo intencionalmente, embora no o que imaginara, mas desse modo o Bismarck foi a pique atravs de sua agncia. Se algum derrama intencionalmente caf, pen-sando erradamente tratar-se de ch, derramar o caf um ato dessa pessoa, ainda que no cometido intencionalmente; sob wna outra descrio, como "derramar o ch", intencional4. (