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1345 NA AUSÊNCIA DO CORPO, A PRESENÇA DA DOR: AS FAMÍLIAS DOS DESAPARECIDOS POLÍTICOS E O SEU LUTO SEM CORPO Silvania Rubert UFRGS [email protected] Resumo: O presente trabalho pretende apontar algumas reflexões sobre o processo de luto dos familiares dos desaparecidos políticos durante a Ditadura Civil-Militar no Brasil, dentro de um contexto específico onde não existe a presença do corpo e dos milenares rituais ligados à morte. Os familiares dos desaparecidos políticos vivem em um luto que não cessa, e que representa a extensão das torturas empreendidas pela ditadura de Segurança Nacional brasileira, fato que excede o marco temporal do período e demonstra que enormes sequelas podem ser visualizadas na atualidade. Palavras-chave: desaparecidos políticos; luto; ditadura civil-militar no Brasil. Introdução O período da ditadura civil-militar brasileira continua a produzir questionamentos, inquirições que ainda não foram respondidas. Aqui se pretende construir algumas reflexões sobre como se dá o processo de luto dos familiares dos desaparecidos políticos, permeado pela especificidade de não fazer parte desse processo a presença do corpo e dos rituais ligados à morte. É preciso entender que a ação do Estado de Segurança Nacional é muito mais abrangente e atinge um espaço temporal muito mais amplo do que o período que vai de 1964 a 1985. Sob a égide do binômio segurança e desenvolvimento estavam lançadas as bases legais para a criação da Doutrina de Segurança Nacional e a retirada, nem tão discreta, de diversos direitos constitucionais, a partir da ferramenta repressora dos Atos Institucionais. A censura aos meios de comunicação, bem como às organizações civis e movimentos sociais, passa a ser uma peça central no jogo político de implementação de um projeto hegemônico, pois si la clase dominante há perdido el consenso, entonces no es más dirigente, sino unicamente dominante, detentora de la pura fuerza coercitiva (GRAMSCI, 1974, p.56). O período compreendido entre as décadas de 1960 e 1980 no Brasil apresenta diversas nuanças e mesmo modificações substanciais na estrutura política, econômica e social. A centralização da economia nas bases do Estado já não era mais tão visível como

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    NA AUSÊNCIA DO CORPO, A PRESENÇA DA DOR: AS FAMÍLIAS DOS DESAPARECIDOS POLÍTICOS E O SEU LUTO SEM

    CORPO

    Silvania RubertUFRGS

    [email protected]

    Resumo: O presente trabalho pretende apontar algumas reflexões sobre o processo de luto dos familiares dos desaparecidos políticos durante a Ditadura Civil-Militar no Brasil, dentro de um contexto específico onde não existe a presença do corpo e dos milenares rituais ligados à morte. Os familiares dos desaparecidos políticos vivem em um luto que não cessa, e que representa a extensão das torturas empreendidas pela ditadura de Segurança Nacional brasileira, fato que excede o marco temporal do período e demonstra que enormes sequelas podem ser visualizadas na atualidade.

    Palavras-chave: desaparecidos políticos; luto; ditadura civil-militar no Brasil.

    Introdução

    O período da ditadura civil-militar brasileira continua a produzir questionamentos, inquirições que ainda não foram respondidas. Aqui se pretende construir algumas reflexões sobre como se dá o processo de luto dos familiares dos desaparecidos políticos, permeado pela especificidade de não fazer parte desse processo a presença do corpo e dos rituais ligados à morte. É preciso entender que a ação do Estado de Segurança Nacional é muito mais abrangente e atinge um espaço temporal muito mais amplo do que o período que vai de 1964 a 1985.

    Sob a égide do binômio segurança e desenvolvimento estavam lançadas as bases legais para a criação da Doutrina de Segurança Nacional e a retirada, nem tão discreta, de diversos direitos constitucionais, a partir da ferramenta repressora dos Atos Institucionais. A censura aos meios de comunicação, bem como às organizações civis e movimentos sociais, passa a ser uma peça central no jogo político de implementação de um projeto hegemônico, pois si la clase dominante há perdido el consenso, entonces no es más dirigente, sino unicamente dominante, detentora de la pura fuerza coercitiva (GRAMSCI, 1974, p.56).

    O período compreendido entre as décadas de 1960 e 1980 no Brasil apresenta diversas nuanças e mesmo modificações substanciais na estrutura política, econômica e social. A centralização da economia nas bases do Estado já não era mais tão visível como

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    nas décadas anteriores. A chamada abertura da economia ia ao encontro de uma lógica de expansão de modelos e ideologias já bem difundidas em todo o mundo.

    Sob os signos de desenvolvimento e aceleração da economia, a abertura ao capital externo e o fim da chamada Era Vargas fizeram o Estado brasileiro centrar suas ações no plano político, que tomava para si, de forma enfática, a manutenção de uma ordem social, como estruturante das ordens política e libertadora da ordem econômica, que poderia, então, sem maiores questionamentos, erigir os desdobramentos que julgasse mais interessantes sob a ótica capitalista.

    Diariamente, centenas, talvez milhares de pessoas, enterram seus familiares, amigos, amores. Outra centena de famílias no Brasil, até hoje, não possui esse tão primário direito. Conviver com a ausência transformada em vazio, acoplada de dor e angústia tem sido o cotidiano das famílias dos cerca de cento e quarenta desaparecidos políticos durante a Ditadura Militar no Brasil, que há mais de quarenta anos procuram obstinadamente informações sobre o destino dado a essas pessoas.

    Existem listas com os nomes dos presos e desaparecidos, estudos minuciosos sobre sua militância, mas não existe uma lista dos pais e mães que morreram sem realizar o desejo de saber o real paradeiro e o que aconteceu com os seus filhos? Nem os filhos dessas vítimas puderam falar abertamente sobre como foi e é viver tendo apenas uma imagem distante e não o direito de usufruir da presença real desse pai, dessa mãe.

    A condição de desaparecido corresponde ao estágio maior do grau de repressão política em um dado país. Isso porque impede, desde logo, a aplicação dos dispositivos legais estabelecidos em defesa da liberdade pessoal, da integridade física, da dignidade e da própria vida humana, o que constitui um confortável recurso, cada vez mais utilizado pela repressão. (BRASIL: NUNCA MAIS, 1985, p.260)

    Segundo o Dossiê Ditadura

    o termo desaparecido é usado para definir a condição de pessoas sobre quem as autoridades governamentais jamais assumiram ou divulgaram a prisão e morte, apesar de terem sido sequestradas, torturadas e assassinadas pelos órgãos de repressão, e o termo morto oficial define a situação de pessoas que foram presas, cuja morte foi reconhecida publicamente pelos órgãos repressivos. (2009, p.22)

    Muitos foram enterrados com os nomes falsos dos documentos que usavam na clandestinidade, o que dificulta o trabalho de procura dos corpos. A partir da abertura das valas clandestinas, um marco na luta pelo resgate da memória sobre os mortos e desaparecidos políticos, os familiares e as entidades relacionadas à luta por verdade e justiça passaram a reivindicar de maneira mais contundente o acesso aos arquivos policiais

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    e militares daquele período.O desaparecimento político se configura como uma extensão do silêncio,

    preconizado e difundido pelos órgãos repressores do período em questão, acaba por perpetuá-lo e impede sua ressignificação, deixando as famílias cristalizadas em uma imagem do ente enquanto vivo, mas que não é mais real.

    A busca das mães dos desaparecidos

    O que faz uma mãe, já em idade avançada, ainda seguir a busca pelo corpo do filho? Seguir pistas ao vento em busca de seu paradeiro, desconhecido ou obscurecido por quem não deseja que verdades gritantes sejam reveladas, a perpetuação do sofrimento, pela incerteza sobre o destino do ente querido, é uma prática de tortura muito mais cruel do que o mais criativo dos engenhos humanos de suplício (Brasil: Nunca Mais: 1985, p.260). Uma luta incessante por um direito tão básico: ter um corpo para atestar que a pessoa está morta, dar às pessoas um documento, um atestado de óbito, um lugar no plano simbólico de representações, um túmulo no cemitério para se visitar. Quais os sentidos e interesses que ainda se fazem presentes, quando o Estado não auxilia efetivamente na busca por respostas, ou mesmo não permite o acesso aos principais arquivos e documentos da Ditadura Militar?

    Diversos relatos de mães permitem-nos perceber que o anseio das mesmas era saber onde estão os restos mortais dos seus filhos desaparecidos, a fim de “dar-lhes sepultura digna em seus lugares de origem”. Conviver com a ausência transformada em vazio, acoplada de dor e angústia tem sido o cotidiano das famílias dos cerca de cento e quarenta desaparecidos políticos durante a Ditadura Militar no Brasil, que há mais de quarenta anos procuram obstinadamente informações sobre o destino dado a essas pessoas: a perpetuação do sofrimento, pela incerteza sobre o destino do ente querido, é uma prática de tortura muito mais cruel do que o mais criativo dos engenhos humanos de suplício (Brasil: Nunca Mais: 1985, p.260). Uma luta incessante por um direito tão básico: ter um corpo para atestar que a pessoa está morta, dar às pessoas um documento, um atestado de óbito, um lugar no plano simbólico de representações, um túmulo no cemitério para se visitar. Quais os sentidos e interesses que ainda se fazem presentes, quando o Estado não auxilia efetivamente na busca por respostas, ou mesmo não permite o acesso aos principais arquivos e documentos? Que perigos a quebra do silêncio pode representar? E para quem? Sendo assim, parece imprescindível questionar o sentido do silêncio instituído.

    Abaixo cito trecho da carta enviada por D. Ermelinda Bronca, mãe do gaúcho José

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    Huberto Bronca, morto na Guerrilha do Araguaia, ao Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, em vinte e um de maio de 1980:

    Ilmo Sr. Dr. Seabra FagundesD.D. Presidente da OABRio de JaneiroTem esta a finalidade de solicitar à V. S. na qualidade de digno presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, que interceda junto ao Governo Federal para que o mesmo informe o paradeiro dado ao meu querido filho José Huberto Bronca, o qual consta na lista dos desaparecidos políticos na denominada “Guerrilha do Araguaia”, no ano de 1973. Creio desnecessário relembrar à V. Excia. o vazio e a permanente sensação de desespero que me invade pela falta de meu filho, ou pelo menos pela falta de notícias de meu filho. Desde o ano de 1970 que não tenho notícias de meu querido filho e durante estes 10 anos aguardo informações e procuro através de todas as pistas indícios que me possam conduzir a qualquer certeza, para colocar fim nesta angústia. (SOUSA, 2006, p.217) [grifos do autor]

    No mesmo ano de 1980, D. Ermelinda prestou depoimento á equipe da ONU, sediada na Suíça, sobre o desaparecimento do seu filho. Abaixo segue parte do mesmo, que, igualmente ao trecho citado anteriormente, mostra o forte anseio das mães dos desaparecidos de recuperarem os restos mortais de seus filhos. Nessa carta é visível uma maior consciência política diante da atuação do filho no combate ao regime militar, bem como já é possível perceber a organização política dos familiares a fim de fazerem valer seus direitos, mesmo ainda durante o regime militar:

    O que eu e as demais mães queremos das autoridades é saber onde estão os nossos filhos desaparecidos: se estão vivos os queremos de volta e, se mortos, queremos seus restos para dar-lhes sepultura digna em seus lugares de origem. Acho que o direito de uma mãe é sagrado. Ninguém pode impedir uma mãe de procurar o seu filho. Isso não pode ser considerado revanchismo. Esses jovens deram a vida por uma causa justa. Não tiveram sucesso, mas alguém tinha de lutar por isso. (SOUSA, 2006, p.219) [Grifos meus]

    Publicizar os acontecimentos, os direitos humanos que foram violados, os sofrimentos de diversas origens, é retirar o acontecido do território da clandestinidade, do privado. É uma forma de sair da vitimização, politizar o trauma e adentrar no território da luta. Em 28 de março de 1978, no Dia Nacional do Protesto, dona Egle Maria Vannucchi Leme, mãe do líder estudantil Alexandre Vannucchi Leme morto pela Ditadura, leu, com a voz embargada, uma carta escrita de próprio punho diante de cerca de cinco mil pessoas, em frente à Faculdade de Medicina, em São Paulo. Segue um trecho do texto.

    Tudo me foi tirado: um filho, o consolo de vê-lo após a morte e o direito mais legítimo de sepultar. Mas, estas vozes que clamaram, logo após silenciaram, frágeis por não se levantaram em uníssono e por ser o governo o grande terrorista sufocando qualquer voz que surja contra ele.

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    É crescente o anseio de, além de nomear, reconstruir a história de vida e de militância política dos presos, mortos e desaparecidos políticos durante o período de 1964 a 1985, no Brasil. Reduzi-los a números estatísticos parece tão pouco diante do real significado de suas existências. É nesse sentido que diversas pesquisas têm buscado um maior conhecimento e entendimento diante desses que criaram brechas, onde essas pareciam não existir, e empreenderam ações pequenas, mas significativas, para que, na atualidade, se possa inquirir o passado recente acerca de como é possível construir a participação política, mesmo em regimes onde a democracia é apenas um conceito, não uma prática.

    A questão do corpo

    Em O que é autoridade? Hannah Arendt diz que a violência é inerente ao ato de “fazer”, “fabricar” e “produzir” e, na sequência, identifica a violência com o ato de “matar” e “violar” (2002, p.152). Portanto, a violência não identificaria qualquer ato coativo, mas apenas aquele que opera, no caso das relações sociais. Por fim, o conceito de autoridade refere-se ao mais enganoso dos fenômenos políticos, pois descreve uma realidade aparentemente paradoxal. De um lado, identifica uma relação hierárquica de mando e obediência, mas que não se traduz em violência, isto é, não demanda o uso efetivo dos implementos para funcionar; de outro lado, não opera por meio da persuasão, pois não é uma relação igualitária, mas sim hierarquizada. A Convenção de Genebra, assinada após o fim da Segunda Guerra Mundial, em 12/08/1949, normatizou o respeito aos mortos, mesmo que tendo sido inimigos em guerra. A ocultação de corpos é um crime que perdura o crime de morte, que não cessa enquanto não se localizam os restos mortais. O desaparecimento de um membro mexe com a identidade de toda a família. São duas formas de dor: a da certeza da perda e a da incerteza da perda, gerada pela falta do corpo. Para muitas famílias a dor da espera foi substituída pela certeza da morte, gerando a possibilidade da vivência de um luto saudável e passível de ressignificação. Uma autora contemporânea que trabalha o aspecto da necessidade de rituais de morte é Hannah Arendt que, em Origens do Totalitarismo, afirma

    Os campos de concentração, tornando anônima a própria morte e tornando impossível saber se um prisioneiro está vivo ou morto, roubaram da morte o significado de desfecho de uma vida realizada. Em certo sentido, roubaram a própria morte do indivíduo, provando que, doravante, nada – nem a morte – lhe pertencia e que ele não pertencia a ninguém. A morte apenas selava o fato de

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    que ele jamais havia existido (1989, p.503).

    A ausência de corpo sugere morte, mas não permite a realização dela no imaginário. Esta ausência de simbolização significa o não poder esquecer, pois só existe esquecimento quando algo foi registrado na ordem simbólica. O ritual do luto cumpre a função de permitir que os que ficaram se adaptem à ausência dos que se foram.

    Sendo assim, que dor é essa que os familiares, amores e amigos dos desaparecidos políticos sofrem no processo de luto sem o corpo? Seria uma eterna angústia, a espera de respostas que permitiriam a entrada em um processo de desligamento mais real e saudável? Essa dor pode ser considerada uma extensão da tortura? Para os que esperam respostas sobre o corpo de seus entes, a ditadura ainda vive?

    Aspectos do processo de luto

    A dor é uma reação à perda, uma forma do eu preparar-se para lidar com alguma situação traumática. O luto é um lento processo de separação vital do morto e de regeneração do conjunto do eu, também é um processo de desamor, e a dor do luto é uma pressão de amor. Ficar de luto é aprender a amar de outra forma o morto, sem o estímulo de sua presença viva. A saudade é uma mistura de amor, dor e gozo: sofro com a ausência do amado e gozo ao oferecer-lhe a minha dor. Nessa perspectiva, a própria organização de associações que objetivam lutar por respostas ou responsabilizações por parte do governo diante do desaparecimento já significam a vivência do luto, como uma forma última e desesperada de manter viva a imagem do ente.

    Enquanto não se cumpre o luto, a página não vira. A vida segue em ritmo estranho, a morte é uma dúvida. “Uma hora, pensava ‘deve estar vivo’. Outra hora, pensava ‘deve estar morto’. Outra hora, pensava ‘ah, judiaram dele e deve estar louco’”, afirma Ilda Gomes da Silva, esposa de Virgílio Gomes da Silva. A dúvida persistiu até 2004, quando o cruzamento de documentos permitiu ter certeza de que o corpo do marido estava enterrado em Vila Formosa.

    A dor, enquanto esfera simbólica de percepção, pode ser entendida a partir do aspecto das dores física e psíquica. O enfoque aqui proposto é a dor psíquica que, ao contrário da dor corporal causada por um ferimento, a dor psíquica ocorre sem agressão aos tecidos (NASIO, 2006, p.31).

    A ruptura do laço amoroso provoca um estado de choque. O rompimento do laço amoroso é a perda súbita do ser amado ou do seu amor. A dor é a reação à comoção pulsional efetivamente provocada por uma perda, enquanto a angústia é a reação à ameaça de uma perda eventual (NASIO, 2006, p.35).

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    Sendo assim, que dor é essa que os familiares, amores e amigos dos desaparecidos políticos sofrem no processo de luto sem o corpo? Seria uma eterna angústia, a espera de respostas que permitiriam a entrada em um processo de desligamento mais real e saudável? Essa dor pode ser considerada uma extensão da tortura? Para os que esperam respostas sobre o corpo de seus entes, a ditadura ainda vive?

    A primeira definição de dor de amar, como o afeto que resulta da ruptura brutal do laço que nos liga ao ser ou à coisa amados. Essa ruptura, violenta e súbita, suscita imediatamente um sofrimento interior, vivido como um dilaceramento da alma, como um grito mudo que jorra das entranhas. (NASIO, 2006, p.31)

    Se a pessoa se ausenta existe a suspeita da morte, não confirmada justamente pela ausência do corpo. Assim, a morte não se consolida, fica em aberto, e a vida não pode ser ressignificada. A ocultação de corpos também é um crime que, inclusive, não cessa enquanto não se localizam os restos mortais. Todas as famílias dos desaparecidos políticos são vítimas de uma tortura estendida, tortura que perdura há mais de quatro décadas no caso do Brasil. A perda é uma condição permanente da vida. Lamentar é o processo de adaptação às perdas.

    A ruptura do laço amoroso provoca um estado de choque. O rompimento do laço amoroso é a perda súbita do ser amado ou do seu amor. A dor é a reação à comoção pulsional efetivamente provocada por uma perda, enquanto a angústia é a reação à ameaça de uma perda eventual (NASIO, 2006, p.35).

    A primeira fase do luto é o choque, que é ainda maior quando ocorre uma morte inesperada e acompanhada de violência. As fases do luto começam com uma ruptura (ou lesão), que desencadeia uma comoção psíquica, e culmina com uma reação defensiva do eu para rechaçar a comoção. Após a primeira fase da dor, vem um intenso sofrimento psíquico, que pode ser longo, e acompanhado de raiva e sensações físicas como letargia, atividades exageradas, ansiedade pela separação e um desespero sem remédio. Se a pessoa se ausenta existe a suspeita da morte, não confirmada justamente pela ausência do corpo. Assim, a morte não se consolida, fica em aberto, e a vida não pode ser ressignificada. A ocultação de corpos também é um crime que, inclusive, não cessa enquanto não se localizam os restos mortais. Todas as famílias dos desaparecidos políticos são vítimas de uma tortura estendida, tortura que perdura há mais de quatro décadas no caso do Brasil. A perda é uma condição permanente da vida. Lamentar é o processo de adaptação às perdas.

    Como lamentamos e como, ou se, nossa lamentação vai terminar depende do modo como sentimos nossa perda, depende da nossa idade e da idade de quem

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    perdemos, depende de o quanto estamos preparados para isso, depende de como a pessoa sucumbiu à mortalidade, depende das nossas forças interiores e do apoio externo, e, sem dúvida, depende da nossa história – nossa história ao lado da pessoa que morreu e nossa história individual de amor e de perda. (VIORST, 1988, p.246)

    A dor – física ou psíquica – é sempre um fenômeno de limite. Ela emerge sempre no nível de um limite: o limite impreciso entre o corpo e a psique, entre o eu e o outro ou, ainda, entre um funcionamento regulado do psiquismo e sua desregulação. Por isso, do ponto de vista psicanalítico não existe diferença entre dor física e dor psíquica, ou, mais exatamente, entre a emoção dolorosa e a dor psíquica propriamente dita.

    Breve comentário contextual

    Segundo Dockhorn, os eventos de 1964 serviram para resguardar a ordem estabelecida, ou seja, os interesses imediatos de uma parcela da burguesia, principalmente a que vinha se formando desde os anos 50 (2002, p.17). A coalisão civil-militar afirmava que sua grande missão era “organizar a casa” e, tão logo isso se efetivasse, o país retornaria a legalidade. Mas o que ocorreu foi uma paulatina retirada dos setores civis apoiadores do golpe da esfera central de poder, com a justificativa de que a expansão do papel das Forças Armadas se fazia necessária para viabilizar a execução de um projeto de país.

    Vivia-se um ciclo de crescimento inédito na história nacional. Desde 1968 a economia mostrava-se não só revigorada, mas também reorientada. O ano de 1969 fechava sem deixar margem a dúvidas: 9,5% de crescimento do Produto Interno Bruto, 11% de expansão do setor industrial e inflação estabilizada pouco abaixo dos 20% anuais. Depois de quinze anos de virtual estagnação, as exportações chegaram a 1,8 bilhão de dólares, com um crescimento de 23% em relação ao ano anterior. A taxa de poupança bruta ficara em 21,3%, índice jamais atingido e jamais igualado. A indústria automobilística estava a pleno vapor, e a construção civil entrara em tal atividade que faltou cimento. (GASPARI, 2002, p.208)

    Sob a égide do binômio segurança e desenvolvimento estavam lançadas as bases legais para a criação da Doutrina de Segurança Nacional e a retirada, nem tão discreta, de diversos direitos constitucionais, a partir da ferramenta repressora dos Atos Institucionais. A censura aos meios de comunicação, bem como às organizações civis e movimentos sociais, passa a ser uma peça central no jogo político de implementação de um projeto hegemônico, pois si la clase dominante há perdido el consenso, entonces no es más dirigente, sino unicamente dominante, detentora de la pura fuerza coercitiva (GRAMSCI, 1974, p.56).

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    Em 1964, só a Marinha possuía um centro de informações – o CENIMAR. Em 1967 e 1970, respectivamente, surgem o Centro de Informações do Exército (CIE) e o da Aeronáutica (CISA). Por iniciativa do general Golbery do Couto e Silva, fundou-se, em 1964. O SNI, cérebro do sistema geral de inteligência. (...) O êxito da OBAN, em São Paulo, inspirou a institucionalização dos DOI/CODI. A repressão das organizações de esquerda se converteu oficialmente em operação de guerra interna (GORENDER, 1999, p.257).

    O cerceamento se estendia às famílias, escolas, igrejas, as mais diversas micro-esferas sociais. Era proibido pensar, e, caso pensasse, era melhor não falar a fim de garantir a sobrevivência. Um estado de tensão, onde a participação política foi praticamente eliminada e relegada a pequenos grupos, que não obstante empreenderam tentativas de se respirar dentro desse sufocante e esquizofrenizante regime. O Serviço Nacional de Informações foi peça chave na espionagem e ‘caça as bruxas’.

    A destruição das organizações armadas começou em julho de 1969, a partir da centralização das atividades de polícia política dentro do Exército. (...) No final de junho de 1970 estavam desestruturadas todas as organizações que algum dia chegaram a ter mais de cem militantes. A unificação de esforços colaborou para o trabalho da “tigrada”, mas foi o porão que lhe garantiu o sucesso. Entre 1964 e 1968 foram 308 denúncias de torturas apresentadas por presos políticos às cortes militares. Durante o ano de 1969 elas somaram 1027 e em 70, 1206. (GASPARI, 2002, p.159)

    Mas que inimigo era esse? Os ditos ‘comunistas’, mas o que significava ser um ‘comunista’ à época? Pretender quaisquer reformas de cunho social que, em maior ou menor grau, possibilitassem uma possível articulação dos setores até então marginais às esferas política e econômica. Assim foi se construindo o projeto de nação que se instituiu a partir da chegada dos militares ao poder após o golpe de 31 de março de 1964, com a deposição de Jango. Com um discurso aglutinador de diversos setores da sociedade, principalmente da ascendente classe média urbana, iniciava-se um período de 21 anos, onde o Brasil viveu sob a égide dos chamados ódio de uniforme (GORENDER, 1999, p.250).

    Para a aplicação desse modelo econômico, foi necessário alterar a estrutura jurídica do país, reforçar o aparato de repressão e controle, modificar radicalmente o sistema de relação entre Executivo, Legislativo e Judiciário. Em outras palavras: foi necessário montar um Estado cada vez mais forte, apesar de se manterem alguns disfarces da normalidade democrática. (BRASIL NUNCA MAIS, 1985, p.60)

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    Considerações finais

    Na atualidade a censura indireta e o cerceamento aparecem na não disponibilização de grande parte da documentação sobre o período. Hoje é permitido pensar, mas no limite dos materiais que se dispõe, o que impede que se pense de uma forma mais completa, e em consonância com o real vivido. Cada nova pesquisa realizada sobre o período contribui para o não silenciamento diante dos momentos que o país viveu. Mas ainda existem muitos fantasmas, escondidos sob os véus da ausência de informações. Essa ausência, inclusive, é a que os mantém vivos a assombrar a atualidade. Nesse sentido, Eric Hobsbawn, em seu livro Sobre História, propõe que

    Esquecer, ou mesmo interpretar mal a história, é um fator essencial na formação de uma nação, motivo pelo qual o progresso dos estudos históricos muitas vezes é um risco para a nacionalidade. (...) Se não há nenhuma distinção clara entre o que é verdadeiro e o que sentimos ser verdadeiro, então minha própria construção da realidade é tão boa quanto a sua ou a de outrem, pois “o discurso é produtor desse mundo, não o espelho”. (1998, p.285-286). [grifos do autor]

    Aí entra a questão do sentido político e do conteúdo militante do discurso construído. Leia-se aqui, discurso como uma forma de representação identitária e de consolidação de um determinado ideário ou grupo, independente de defender esta ou aquela ideologia, pois nenhuma esfera da sociedade escapa de ter a política intrínseca em suas práticas. Porém, embora exista a liberdade de se versar sobre o que se deseja, algumas questões continuam negligenciadas, apesar de um certo aumento do crivo da opinião pública nas últimas décadas. Torna-se necessário enfrentar os ‘desmentidos’ das arbitrariedades cometidas, a partir da ótica da defesa interna diante da construção ideológica e ideologizante da presença do “inimigo interno”.

    Existe toda uma geração que viveu na pele esse período, e outras que são frutos desse medo instituído. As organizações que combatiam, de alguma forma, a ditadura no Brasil foram desmontadas, ficaram acéfalas com a prisão de seus líderes, restando a clandestinidade, o exílio e movimentos deslocados de combate. Nesse sentido, podemos entender que as organizações dos familiares dos mortos e desaparecidos políticos que hoje atuam, também são organizações de resistência, que visam combater ou mesmo amenizar as sequelas deixadas pela ditadura, e por eles vividas, confirmando a hipótese de que ainda existem aspectos vivos da ditadura militar, que podem ser entendidos à luz dos silêncios que permanecem.

    A questão da participação política e construção da simbologia de cidadania também deverá ser enfatizada pelo trabalho, pois o fato de o país ter ficado mais de duas décadas sem que o Presidente da República fosse eleito pelo voto universal, acarreta um

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    distanciamento entre a população e os seus governantes, fato que, por sua vez, pode ter contribuído para um processo de despolitização e descrédito na política.A questão da memória não é alheia à dinâmica política e aos jogos de poder. Tendo em vista que fazem parte da memória a construção de uma visão de sociedade, de si mesmo e de nação, ela carrega em si o jogo dialético travado pelos diversos setores sociais e seus estruturais interesses. A construção da memória também é permeada por fatores pessoais e psíquicos, mais visivelmente expostos na obra A Memória, a história, o esquecimento, de Paul Ricoeur. A memória dos sujeitos recebe a conotação social e cultural de funcionar como depósito e fonte mais significativa daquilo que podemos chamar de “verdade”.

    A coisificação do outro, empreendida pela brutalização institucionalizada, deve ser lembrada e relembrada. O resgate da presença do outro implica em resgatar, também, sua história, seu protagonismo, sua forma de inserção em determinado contexto; logo, tal ação deve fazer parte da construção da memória coletiva da história do país -enquanto construção da identidade nacional- e pode constituir um fator que contribua no melhor entendimento da história recente e da democracia resultante desse processo histórico.

    No processo de tortura a submissão se dá de forma cruel; a partir da coação direta. A teoria da funcionalidade da tortura baseia-se numa confusão entre interrogatório e suplício. Num interrogatório há perguntas e respostas. No suplício o que se busca é a submissão (GASPARI, 2002, p.39). Submissão essa, que se apresenta como um pré-requisito essencial na implantação de um novo modelo de desenvolvimento para o Brasil.

    No Brasil, a rememoração e o trabalho de luto sobre o passado recente da violência política não assumiram o caráter social ou coletivo que tem sido vivenciado em outros países da América Latina, onde diversos processos de apuração dos fatos e das responsabilidades têm ocorrido, com a formação de Comissões de Verdade. (DOSSIÊ DITADURA, 2009, p.49)

    BIBLIOGRAFIA

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    • Os trabalhos completos deverão ser postados neste site até o dia 30 de agosto de 2012, na área do inscrito.