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O presente número da Política Democrática, justamente por se concentrar na comemoração dos vinte anos da Carta Magna de 1988 e por manter sua discussão quase permanente sobre a história, limites e possibilidades da esquerda brasileira, é particularmente relevante para o leitor atento, seja qual for o ponto do espectro político em que estiver.

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20 Anos da Carta de 1988

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Fundação Astrojildo PereiraSDS · Edifício Miguel Badya · Sala 322 · 70394-901 · Brasília-DF

Fone: (61) 3224-2269 Fax: (61) 3226-9756 – [email protected] www.fundacaoastrojildo.org.br

Política DemocráticaRevista de Política e Culturawww.politicademocratica.com.br

Conselho de Redação

EditorCaetano E.P. AraújoEditor ExecutivoFrancisco Inácio de AlmeidaEditor Executivo AdjuntoCláudio Vitorino de Aguiar

Alberto Aggio Anivaldo Miranda Davi EmerichDina Lida Kinoshita Ferreira Gullar George Gurgel de Oliveira

Giovanni Menegoz Ivan Alves FilhoLuiz Mário Gazzaneo Luiz Sérgio HenriquesRaimundo Santos

Alberto Passos Guimarães FilhoAmarílio Ferreira JrAmilcar BaiardiAntonádia Monteiro BorgesAntonio Carlos MáximoArmênio GuedesArtur José PoernerAspásia CamargoAugusto de FrancoBernardo RicuperoCelso FredericoCícero Péricles de CarvalhoCharles PessanhaDélio MendesDenis Lerrer RosenfieldFábio FreitasFernando PardellasFlávio KotheFrancisco Fausto MatogrossoFrancisco José PereiraGildo Marçal Brandão

Gilson LeãoGilvan CavalcantiJoanildo BuritiJosé Antonio SegattoJosé BezerraJosé Carlos CapinamJosé Cláudio BarriguelliJosé Monserrat FilhoLuís Gustavo WasilevskyLuiz Carlos AzedoLuiz Carlos Bresser-PereiraLuiz Eduardo SoaresLuiz Gonzaga BeluzzoLuiz Werneck ViannaMarco Antonio CoelhoMarco Aurélio NogueiraMaria do Socorro FerrazMarisa BittarMartin Cézar FeijóMichel ZaidanMilton Lahuerta

Oscar D’Alva e Souza FilhoOthon JambeiroPaulo Alves de LimaPaulo BonavidesPaulo César NascimentoPaulo Fábio Dantas NetoPedro Vicente Costa SobrinhoRaul de Mattos Paixão FilhoRicardo Cravo AlbinRicardo MaranhãoRoberto Mangabeira UngerRose Marie MuraroSérgio Augusto de MoraesSérgio BessermannSinclair Mallet Guy GuerraTelma LoboWashington BonfimWillame JansenWillis Santiago Guerra FilhoZander Navarro

Produção: Editorial AbaréCopyright © 2008 by Fundação Astrojildo PereiraISSN 1518-7446

Os artigos publicados em Política Democrática são de responsabilidade dos respectivos autores.Podem ser livremente veiculados desde que identificada a fonte.

Conselho Editorial

Política Democrática – Revista de Política e Cultura – Brasília/DF: Fundação Astrojildo Pereira, 2008.Nº 22, out./nov. 2008200 p.

1. Política. 2. Cultura. I. Fundação Astrojildo Pereira. II. Título.

CDU 32.008.1 (05)

Ficha catalográfica

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Política DemocráticaRevista de Política e CulturaFundação Astrojildo Pereira

Out./Nov. 2008

20 Anos da Carta de 1988

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Sobre a capa

O artista que nos presenteia com suas belas obras, que ilus-tram nossas capa e contra-capa, é o jovem cearense Ayrton Rocha Junior (nome artístico Ayrton).

Seu encontro com a pintura começou em 1968, aos 6 anos de ida-de, na cidade do Rio de Janeiro/RJ, onde morou toda sua infância. Continuou seu trabalho em Brasília, durante toda sua adolescência, e depois em Fortaleza, fez várias exposições individuais e participou de várias coletivas, entre elas o XXXIV Salão de Abril de 1984, uma das mais antigas mostras de artes visuais do Brasil, da qual já par-ticiparam artistas como Antonio Bandeira, Zenon Barreto, Aldemir Martins, Barrica, e outros importantes artistas.

Em 1990, fez sua primeira Exposição Individual, na Galeria de Arte do IBEU, em Fortaleza/CE. Em 1991, em João Pessoa/PB, a convite dos organizadores do XXII Encontro Nacional do Centro de Estudos Freudianos, apresentou mais uma individual com o tema Retratos de Freud. Participou de uma Coletiva, na TVE, e, na déca-da de 1980, no Circo Voador, no Rio de Janeiro/RJ.

Mais recentemente, lançou na Internet a primeira Exposição Virtual e inovadora “Arte Galeria Virtual”, em que expôs mais de 40 pinturas, tornando-se um sucesso em audiência, de acordo com dados do google analityc. Além de pintor, trabalhou em criação em diversas agências de propaganda e no Departamento de Arte de várias televisões.

Este jovem grande artista, filho do jornalista, publicitário, poeta e músico Ayrton Rocha, tem “educação singela, sensibilidade à flor da pele, sua inteligência vai muito mais além dos homens que não têm o poder da arte, e sempre transmite suas cores mentais num gesto de amor”. Ele pinta o Cubismo, o Impressionismo, o Figurati-vo, o Surrealismo.

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Sumário

I. Apresentação

Luiz Sérgio Henriques ................................................................................................ 11

II. Entrevista

Roberto Freire ............................................................................................................ 17

III. Tema de Capa – 20 Anos da Constituição de 1988

Batalhas para redigir e aplicar a nova ConstituiçãoMarcello Cerqueira ..................................................................................................... 39

A Constituição de 1988 e o início da era dos direitos no BrasilMarco Mondaini e Shirley Nascimento ....................................................................... 46

A Carta de 88 e a questão sindicalJosé Carlos Arouca .................................................................................................... 55

IV. Observatório Político

Problema do Bush?Arnaldo Jardim .......................................................................................................... 67

Chega de violência! Sem guerras justas e injustas!Dina Lida Kinoshita ................................................................................................... 71

Tsunami sistêmico com batida de umbu no PelôArthur Poerner ........................................................................................................... 79

ONGs, sem preconceitosFausto Mato Grosso ................................................................................................... 81

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A tragédia do clientelismoHamilton Garcia de Lima ........................................................................................... 84

V. Batalha das Idéias

Uma identidade reformista para a esquerdaAlberto Aggio .............................................................................................................. 89

Um poder de sedução que cresceTony Judt ................................................................................................................... 95

A gênese do petismoClayton Cardoso Romano .......................................................................................... 99

VI. O Social e o Político

Resistências cor-de-rosa-choqueAndréa Bandeira ..................................................................................................... 111

Notas sobre a Questão UrbanaSérgio Augusto de Moraes ........................................................................................ 119

Economia e conservação da NaturezaGustavo Souto Maior ................................................................................................ 124

VII. Ensaio

Esquerda, empresários e políticaFernando Mires ........................................................................................................ 135

VIII. Mundo

O mundo está mudandoAlfredo Reichlin ....................................................................................................... 149

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A esquerda depois da “terceira via”Ernst Hillebrand ...................................................................................................... 153

Ai dos que crêem no ImpérioImmanuel Wallerstein .............................................................................................. 162

IX. Vida Cultural

Livros que eu liIvan Alves Filho ....................................................................................................... 169

Forma e conteúdo no vôo do Ícaro do sertãoVladimir Carvalho .................................................................................................... 179

X. Resenha

Machado de Assis e Astrojildo Pereira: O livro e o filmeMartin Cezar Feijó .................................................................................................... 187

Aconteceu longe demaisGonzalo Adrián Rojas .............................................................................................. 189

O que Adam Smith foi fazer na ChinaAlexandre de Freitas Barbosa ................................................................................. 193

Uma antologia de agraristas políticosMichel Zaidan .......................................................................................................... 198

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I. ApresentaçãoLuiz Sérgio Henriques

Editor do site Gramsci e o Brasil, ensaísta, tradutor e um dos organizadores das obras de

Antonio Gramsci em português, especialmente a nova edição das Cartas do Cárcere

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O presente número da Política Democrática, justamente por se concentrar na comemoração dos vinte anos da Carta Mag-na de 1988 e por manter sua discussão quase permanente

sobre a história, limites e possibilidades da esquerda brasileira, é particularmente relevante para o leitor atento, seja qual for o ponto do espectro político em que estiver.

A Constituição de 1988, por exemplo, é aqui vista de ângulos di-versos e até freqüentemente opostos. A partir do depoimento de Ro-berto Freire, um dos protagonistas do processo constituinte, desen-rola-se uma série de textos e avaliações de uma Carta que, de fato, está na base do mais longo período de vida democrática da história moderna do país. O próprio Freire examina dilemas daquela época que nos acompanham até hoje, como um grande desequilíbrio de poderes, em favor do “presidencialismo imperial” e em detrimento do Congresso, a casa por excelência da democracia; o tratamento insuficiente dos problemas do Judiciário; os impasses relativos à anistia; e a condução da reforma agrária. Em muitos desses ca-sos, formulações constitucionais excessivamente analíticas, ainda que de caráter progressista, contribuíram para retardar a aplicação prática das medidas de reforma, contrariando a boa intenção de constituintes, inclusive os de esquerda.

De todo modo, está claro que o documento de 1988 marca a retomada vigorosa da construção de uma “era de direitos” no país, embora, ao longo dos anos noventa, reformas liberais tenham in-cidido sobre o texto, no âmbito da rediscussão do papel do Estado e do mercado, tão própria daquela década. Que balanço fazer dos anos de reforma liberal que, a rigor, começou com Collor e, grosso modo, não parou mais desde então, na falta de inflexões mais visí-veis rumo a um desenvolvimentismo de novo tipo? Como entender as sucessivas emendas sofridas pela Carta cidadã? Tratou-se de um aggiornamento necessário, tendo em vista a intensa transformação pela qual passavam a economia e a sociedade em nível planetário, ou, ao contrário, significaram perda generalizada de direitos e in-serção subalterna nas engrenagens do capitalismo globalizado?

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I. Apresentação

Eram uma decorrência de excessos discursivos, que engessavam a ação ordinária dos governos, ou, como afirma Marcello Cerqueira, chegaram perigosamente a ameaçar “bens públicos, constitucional-mente indisponíveis”, como as florestas e os rios?

São discussões que ainda hoje animam o debate público, e pes-soalmente considero difícil deixar de pensar que todo este tempo, desde 1988, combinou substanciais ganhos democráticos que, aos poucos, vão se enraizando capilarmente na nossa sociedade, com a persistente “crise do desenvolvimento nacional”, que taxas rela-tivamente altas nestes anos mais recentes encobriram, mas não resolveram com firmeza. Discutem-se assim na sociedade os resul-tados do jogo que, muitas vezes, não são bons, mas, querendo ou não, raramente se põe em questão o essencial, que é a manutenção da regra democrática, a adesão mais ou menos generalizada aos princípios do Estado democrático de Direito. Eventuais quebras das regras do jogo, como a manobra da reeleição em meados dos anos 1990 em benefício do governante no poder, ou, mais recentemente, indecentes sugestões de terceiro mandato, têm encontrado quase unânime condenação, ainda que, no primeiro caso, isto só seja pos-sível retrospectivamente. Não é pouco, num país de vida constitu-cional conturbada como a nossa.

Um outro eixo importante de discussão aqui presente é a ques-tão da esquerda e dos desafios da sua renovação. Em tempos de crise aguda dos mercados globais, cujo paralelo mais evidente é 1929 e a década trágica que se seguiu, até desembocar no flagelo da Segunda Guerra, é bom ter presente a necessidade de uma esquer-da de novo tipo, radicalmente democrática, que não se deixe desen-caminhar pelo “grave equívoco [de] pensar que o que está ocorrendo hoje é o fim da idéia do capitalismo” (Freire).

Neste mesmo sentido, Alberto Aggio lança a discussão de um novo reformismo, recuperando semanticamente uma palavra que costumava cair como chumbo sobre os militantes do velho Partidão, supostamente desqualificando sua opção pela luta legal contra o re-gime militar. O que se propõe, a respeito, é a ruptura com o padrão bolchevique/soviético e o cubano/guerrilheiro, ambos conforma-dores da esquerda brasileira e ambos flagrantemente insuficientes para compreender nossa realidade e nela agir, introduzindo refor-mas incisivas, concretas – se não consensuais, pelo menos ampla-mente majoritárias, apontando para níveis mais altos de progresso e civilização.

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I. Apresentação

Temos de admitir que o ato de nascimento deste reformismo for-te, adepto incondicional da democracia política como o terreno mais favorável para a luta dos setores “de baixo”, ainda não se deu, nem mesmo como visão geral ou estilo de fazer política aceito pelas for-ças da esquerda brasileira, na variedade das suas manifestações. E, diga-se de passagem, as dificuldades do PT em relação à Carta de 1988, contra a qual votou e que assinou apenas protocolarmente, tais dificuldades são muito ilustrativas de um suposto radicalismo que mal encobre subalternidade e incapacidade de uma verdadeira direção do destino do país e das suas grandes escolhas.

O reformismo forte de que falamos supõe, evidentemente, a incor-poração de outras matrizes e orientações além do marxismo, a assi-milação de problemáticas novas, como a da ecologia ou a da questão urbana, que adquirem uma feição antes inteiramente desconhecida e que também são tratadas em outros textos deste número.

A associação pode ser arbitrária, mas não resisto a lembrar que, certa vez, o poeta Caetano Veloso fustigou a selvageria do trânsito, dizendo que nós, motoristas brasileiros, insistimos pateticamente em perder os sinais verdes e avançar os vermelhos. É uma boa imagem para compreender a situação das esquerdas, enquanto não nascer e ganhar vigor este novo reformismo: continuaremos a an-siar por rupturas e revoluções, por ataques frontais ao palácio de poder, enquanto desperdiçamos o sinal escancaradamente aberto às mudanças que a vida em democracia proporciona.

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II. EntrevistaRoberto Freire

Ex-senador e ex-deputado federal, é o presidente nacional do Partido Popular Socialista

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“Temos muito o que comemorar com a nossa Constituição”

Caetano Araujo – Para iniciar nossa conversa, como ava-lia a Constituição que estamos festejando e o processo de sua construção?

Roberto Freire – Ela tem uma virtude básica inegável: é a mais democrática de todas as que o país já teve. A começar pelo regimento e pela forma de elaboração. Nas outras constituintes republicanas, havia uma Grande Comissão, formada pelos par-lamentares mais notáveis, que elaboravam um anteprojeto, en-quanto os demais constituintes apenas esperavam para votar. Na de 1987/88, formaram-se oito comissões temáticas das quais participaram todos os constituintes – os 487 deputados e 72 se-nadores – incorporados naquelas de cujo assunto tinham maior familiaridade. Enquanto as constituintes de 1891, 1934 e 1946 trabalharam quase em segredo com suas comissões de notáveis, a de 1987/88 praticamente forçou os brasileiros a participar dos debates e da elaboração da nova Carta. Além do Jornal Nacional, da TV Globo, com uma audiência de mais de 60 milhões, havia ainda os noticiários de TV e Rádio chamados Diário da Consti-tuinte, em rede nacional de 170 estações televisivas e mais de mil emissoras radiofônicas, em que se prestavam contas de cada passo na elaboração da Carta. Grande parte da sociedade se orga-nizou em grupos de pressão e, durante 18 meses, cada brasileiro se familiarizou com temas os mais complexos do país. Ao longo de um ano e meio, analisaram-se 61.020 emendas de parlamentares, além de 122 populares.

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II. Entrevista

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Francisco Almeida – Do seu ponto de vista, qual o balanço das conquistas?

Roberto Freire – Francamente positivo e temos muito o que comemorar. Nós conseguimos a superação do regime militar, com uma ruptura constitucional, com um novo texto da Carta Magna. Conseguimos construir uma sociedade com direitos democráti-cos, que poucos países conseguiram atingir, do ponto de vista da sua formulação, da sua concepção. É fato indiscutível. Não deve-mos esquecer, quando formalizamos a Constituição, que se tinha uma visão do Estado muito presente nas atividades econômicas, na sociedade, que, com o colapso do socialismo real, ficou meio anacrônica. Isso explica o que foi modificado por emenda, que não é um número tão elevado, que deve ser debitado às mudan-ças que ocorreram no mundo, à superação da bipolaridade da guerra-fria. Basta ver todo o processo de privatização, o debate da questão dos monopólios... Hoje, quando vivemos uma profun-da crise no sistema financeiro global, não devemos esperar que venha outra mudança daquela magnitude, até porque é um gra-ve equívoco pensar que o que está ocorrendo hoje é o fim da idéia do capitalismo. O Estado está, como sempre esteve, a serviço dos interesses privados. Nunca na história da humanidade se viu um Estado tão dedicado ao serviço dos interesses do setor privado como agora. Não se trata de nenhuma visão de intervenção es-tatal. Ocorre apenas que deixaram de tal forma solto o sistema financeiro operativo, com uma regulamentação que favoreceu em muito a especulação, que agora precisam intervir para mantê-lo. Não é para acabar com a atividade, é para garantir a funcionali-dade do sistema capitalista.

Claudio Vitorino – Como analisa a relação entre os Poderes, do ponto de vista da Constituição e da prática concreta depois de 20 anos?

Roberto Freire– Um dos seus elementos mais problemáticos diz respeito às Medidas Provisórias. Essa questão é complicadís-sima, sobretudo pela visão que tínhamos do Executivo, e dos ins-trumentos que este detinha. Por força do poder do presidencia-lismo, como sabemos, há uma tendência de realização de uma presidência “imperial”, em que o Executivo tem um papel prepon-derante, em relação aos outros Poderes e à própria sociedade civil. No parlamentarismo, o Executivo é a expressão do parlamento, portanto, é essencialmente democrático, não um império. No sis-tema presidencialista, há um descolamento da vontade democrá-

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Temos muito o que comemorar com a nossa Constituição

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tica representada pelo Legislativo, que é subalternizado. Esta é a origem de toda distorção no exercício do poder. Nós vivemos na América Latina historicamente um bolsão de atraso institucional impressionante. Nós somos herdeiros diretos do absolutismo, do despotismo, do império, do rei-sol, ainda dos salvadores. A Amé-rica Latina é legatária dessa tradição.

C.A. – Mas, a nossa Constituição também dá poderes ao Con-gresso e o Congresso não os usa. Só para dar um exemplo, o nosso Supremo Tribunal passou 20 anos sem usar as ferramentas que a Constituição dava para ele. Depois de duas décadas, quando a sua composição foi aprovada, os novos ministros entenderam por bem fazer uso delas. No caso das MP’s, por exemplo, não bastaria apenas o Congresso declarar a inadmissibilidade delas e rejeitá-las, de pronto?

R.F.– Teoricamente, ele tem poderes, claro.

C.A. – E não funciona?

R.F. – Não. Por razões específicas, ligadas ao poder de pressão do Executivo, o Congresso Nacional não utiliza o poder de negar a Medida Provisória, que é típica do parlamentarismo. Nunca o fez! Mas, precisamos considerar que o Estado moderno vem assumindo crescente complexidade. É uma dinâmica que exige do Executivo maior capacidade de intervenção e velocidade de resposta. Nessa lógica, produzir MP’s em situações emergenciais tem todo o sen-tido, já que o serviço público só pode agir dentro da lei. Tem que haver a lei e a MP é uma forma de lei. Agora, daí para a verdadeira fábrica de MP’s vai uma enorme distância. O que estamos vivendo é o risco de não termos uma democracia consolidada, no sentido republicano do equilíbrio de poderes. Atualmente, o Executivo se apropria da função de legislar, típica de outro poder, e com isso produz um grave desequilíbrio nas instituições, na direção de um Estado centralizado e centralizador e, pior, com a complacência de deputados e senadores. No parlamentarismo, esse movimento de sobreposição não é possível, pois o Executivo tem que ser ágil, fru-to que é da maioria parlamentar.Além de haver um afastamento natural do Executivo, que se dedica apenas à gestão da máquina pública, seu planejamento e condução constituem resultado da formação de maiorias estáveis no Legislativo.

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II. Entrevista

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C.A. – Ele está sujeito à maioria.

R.F. – Exatamente! No presidencialismo, não. Este tem que subordinar a maioria aos seus interesses, e assim o faz. E só pode governar se o fizer. E, para fazê-lo, subordina o Legislativo. No caso dos poderes do Judiciário, não é que lhe tenham sido dados muitos, mas houve no Brasil um processo chamado “judicializa-ção”, em que a cidadania começou a ter maior acesso às institui-ções, como Ações Diretas de Inconstitucionalidade, e todo um pro-cesso de representação na Justiça, na ausência de normatização do Legislativo.

C.A. – A criação do Ministério Público...

R.F. – Claro, o Ministério Público, a criação de uma instituição...

C.A. – Independente...

R.F. – Houve alguns grandes avanços na Constituinte, na questão do Poder Judiciário, viabilizando alguns processos rela-tivos a sua reforma, só que foram implementados de forma equi-vocada. Dou como exemplo a questão do Juizado de Pequenas Causas, que era uma idéia importante na questão da reforma do Judiciário, que garantia o acesso da cidadania à Justiça. Esse Juizado de Pequenas Causas é a ampliação do Poder Judiciário, para o acesso da cidadania ser maior. Houve, no entanto, uma distorção, porque não se fez reforma nenhuma no que respeita ao andamento dos processos, e que tinha a ver também com uma melhor definição de competências entre os entes federativos, os tribunais, os juízes, de melhorar a sua competência.Mexeu-se em algo que é complexo demais. Na Constituinte deu-se um primeiro passo, e a reforma do Judiciário foi por um outro caminho, pro-curando resolver problemas dos tribunais superiores. Então, toda a discussão cingiu-se a como desafogar os tribunais superiores. Assim, embora tenhamos conseguido avançar, não foi o suficien-te. O avanço maior era o da instituição da Corte Suprema, que não passou em função do regime parlamentarista não ter sido aprovado, e, ao mesmo tempo, não se deu mandato aos membros do Supremo, o que talvez possibilitasse maior mobilidade demo-crática, e não a vitaliciedade que, para o tipo de designação que existe, não deve ser concedida. A vitaliciedade é uma prerrogativa fundamental para a judicatura, principalmente para o juiz das instâncias inferiores, por não ser fruto de uma designação políti-ca, mas de carreira, até para garantir a soberania das sentenças.

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No que diz respeito às instâncias superiores, não. Houve boas discussões sobre esse tema, trazendo a súmula vinculante e uma série de novidades do ponto de vista dos tribunais superiores, mas com poucos reflexos no que se constitui a grande reforma: o aces-so irrestrito, a gratuidade completa no acesso à Justiça, que era o que queríamos. Ao contrário, ficaram até alguns resquícios cor-porativos muito fortes, como os relativos às custas processuais, privilegiando determinadas categorias, e isso é um grave equívoco que, infelizmente, ainda se mantém. Na oportunidade, inclusive, Roberto Campos, único voto contrário, afirmou que o advogado – leia-se a OAB – “era a única categoria profissional no Brasil a merecer um dispositivo constitucional”.

C.A. – Antes disso, uma coisa muito importante, que diz res-peito à parte política, é o sufrágio universal, que foi conquistado na Constituinte, e pouca gente fala disso. Foi um grande avanço.

R.F. – Ressaltem-se o voto dos analfabetos, que sempre foram excluídos, e o dos jovens aos 16 anos. A Constituição é nomeada “cidadã”, não por acaso. Lembro que, nessa discussão do voto a partir dos 16 anos, destacou-se uma figura conhecida naquele tra-balho, de uma grandeza interessante, que teve grande influência, o conservador Afonso Arinos. Em alguns momentos, apesar do seu papel e do uso de sua inteligência a favor algumas vezes de causas anti-democráticas, como na tentativa de golpe contra JK, de criar a maioria absoluta, ele foi brilhante nessa questão dos 16 anos, tor-nando-se o principal orador em defesa do voto dos jovens. Foi um momento importante! Muitos talvez não saibam, mas, no Japão, o voto era a partir de 21 anos. Quer dizer, o Brasil foi, talvez, um dos primeiros, senão o primeiro país a dar o direito do voto aos jovens a partir dos 16 anos. Nesse novo mundo em que vivemos, conecta-do em redes cada vez mais amplas, a juventude tem precocemente condições de discernimento, de poder decidir, de poder participar, mesmo que seja facultativo. Do ponto de vista político, a sociedade brasileira avançou, e muito. É uma grande conquista.

C.A. – Desse mesmo ponto de vista, há uma outra questão de que pouco se fala, que é a manutenção do voto proporcional, com listas abertas, sistema que é um permanente foco de crise. Tanto é assim que sempre há projeto de reforma política para se discutir mudanças.

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II. Entrevista

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R.F.– Certo, mas me permitam uma teoria que eu não tinha na época, tenho-a hoje: na Constituinte, defendíamos o sistema pro-porcional, e o Partido defendia o sistema de deputação nacional. Era um sistema meio diferente, mas era um sistema em que você votava em partidos nacionalmente.

C.A. – Com listas nacionais?

R.F. – Sim, com listas nacionais. Claro que era uma visão para um sistema parlamentarista de país unitário, com grandes dificuldades para um país federal como o nosso. Tinha esse grave equívoco. Tanto é que, quando apresentamos essa proposta, ela, de imediato, foi excluída, foi retirada. E não tivemos condições de defendê-la. E era até muito bonito, e era bom para um partido como o nosso, porque ele tinha um voto nacional, mas fugia à própria realidade de uma federação, mesmo que meio torta como a nossa... Tem-se que levar em conta o respeito aos estados. Como era um sistema muito complicado, foi desconsiderado. E partimos para o proporcional, fomos defendê-lo, e o embate ficou entre o proporcional e o distrital misto. Não esquecer que o distrital misto foi muito pouco defendido.Este só veio a crescer posteriormente, a partir do PSDB e do Fernando Henrique Cardoso, que apresentou um projeto para criá-lo.

C.A. – No Senado.

R.F.- No Senado, ele iniciou um debate a respeito. No entanto, esse debate não foi muito presente na Constituinte, onde o siste-ma proporcional tinha ampla maioria.

C.A.- É que os nossos problemas com esse sistema, no biparti-darismo que tínhamos vivido na ditadura, não apareceram tanto, mas com o pluripartidarismo ficaram evidentes.

R.F.- Independente disso, o problema grave não é o sistema proporcional em si, mas a realidade do relacionamento do Legisla-tivo com o Executivo, que transformou partido político, no Brasil, em moeda de troca, como revelado pelo “mensalão”.

C.A.- Isso não era muito discutido na época.

R.F.- É verdade, e o sistema de voto proporcional ganhou bem, até porque não tinha muitos adversários, e porque não havia ne-

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Temos muito o que comemorar com a nossa Constituição

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nhum experimento num regime pluripartidário sem ele. Como ía-mos ter um sistema pluripartidário, o sistema proporcional era o que melhor atendia. O sistema distrital, mesmo que misto, tem uma diminuição sensível no número de partidos, e caminha para ter dois grandes partidos polarizando as posições. Talvez, por isso, tenha sido rapidamente derrotado, até em função do passado mui-to recente, e não tinha havido nenhuma crise ainda do sistema plu-ripartidário. Depois é que surgiram alguns dos problemas, porque nós não atinamos com o que o STF atinou agora, que o mandato é do partido, e é efetivamente do partido! Não há nenhum país no mundo que tenha esse sistema, que o mandato não seja do partido, porque a origem do sistema proporcional brasileiro é belga, e lá o mandato é partidário, porque é de lista.

C.A. – Só é lógico, se for assim.

R.F. – Claro, e era assim! Nós é que, pela frouxidão, pela inér-cia, começamos a admitir, depois do regime militar, a mudança de partido, como se fosse troca-troca de camisa. No sistema consti-tucional de 1946, isso não era muito comum. Não é que não hou-vesse dissidências, partidos rachados. Isso sempre houve, mas as pessoas não saíam dos partidos, criavam dissidências, mas viviam dentro do partido, não os deixavam. Sair do partido era um caso raro, e quando havia, na maioria das vezes, eram lideranças de pequenos partidos, que surgiam por um certo populismo, e Jânio Quadros talvez seja o melhor exemplo disso, porque entrou de pára-quedas na UDN, nunca teve nenhuma tradição de nada. Trata-se de um caso raro. Os políticos conviviam com essas con-tradições, não muito comuns, mas ficavam no partido. Esta rea-lidade começou a afrouxar mesmo com o fim da ditadura, entrou num crescendo, e com Lula foi esse festival do troca-troca... Bom, o “mensalão” é isso...

C.A. – Como foi enfrentada a delicada questão da anistia?

R.F. – Antes de entrar nessa questão, deve-se salientar que o PCB teve uma posição de não revanchismo, e isso tem a ver com o processo de anistia no Brasil. A anistia – é bom que se saiba – não foi concedida pelos militares. Num primeiro momento, ela o foi pelo Congresso, claro que um Congresso com limitações, sob o re-gime militar. Mas foi um Congresso em que a oposição participou das discussões e pactuou com os parlamentares que davam sus-tentação ao regime militar. E foi votada no Congresso que existia

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II. Entrevista

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à época. No entanto, esse processo de anistia se consolidou defini-tivamente na Constituinte, já sem os militares no poder, diferente-mente da Argentina, do Uruguai, do Chile, onde as anistias foram auto-concedidas, com os militares ainda no poder. E quando foi reconquistada a democracia nesses países, evidentemente, as for-ças da resistência não aceitaram nada do que os militares fizeram. Aqui, não foram os militares! A anistia ampla, geral e irrestrita foi concedida pela nossa Constituinte. E foi uma luta importante, com o PCB muito presente em todo esse debate. Aliás, nós estáva-mos presentes desde a Comissão Mista, lá em 1979, que votou o primeiro tema da Constituinte, e da qual eu participei.

C.A. – A Constituinte, então, perdeu a oportunidade de fazer a anistia avançar no sentido da divulgação de informações sobre os casos, tal como na África do Sul?

R.F. – No Brasil, precisamos admitir, não tínhamos força po-lítica para fazer a anistia avançar, até porque a transição foi um pouco pactuada com os militares. Eles não tinham mais força para se manter no poder, mas tinham força para vetar algumas das mudanças projetadas. É claramente isso. Quando conversei com Tancredo Neves, depois de ele eleito pelo Colégio Eleitoral, sobre a legalização do nosso Partido Comunista, ele disse ser ne-cessário aguardar a convocação da Constituinte, pois antes dela nada seria possível fazer. Isso porque ele não queria ter nenhum contratempo no processo de transição negociada que fizera. E isso se refletiu, inclusive, com José Sarney logo após assumir o governo e com Fernando Lyra como ministro da Justiça, sem que tivéssemos condições de publicar o manifesto, os estatutos e o programa partidários, no Diário Oficial, para legalizar o PCB. Sarney fez depois, porque, acredito, não tinha assumido nenhum compromisso para manter-se na presidência. Desejo apenas mostrar que no Brasil não houve ruptura. A Constituição, em al-guns aspectos, provocou rupturas, mas nesse tema, não. O má-ximo conseguido foi ampliar a anistia para os que estavam soltos e não tinham sido anistiados, os autores do que eles chamavam de “crimes de sangue”. Não só obtivemos avanços na Constitui-ção, retroagimos a anistia até para companheiros comunistas que nunca tinham sido anistiados, como os de 1935. É só um de-talhe, mas é importante ser afirmado, para não se perder a con-dição de se entender isso, porque, hoje, fica fácil esquecer o que

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a anistia significou, como se não tivesse acontecido, como se não fosse importante como conquista democrática. Claro que houve erros, mas aquele foi um momento importante da cidadania.

F.A. – E o tratamento da complexa questão da reforma agrária?

R.F. – Ficou, durante algum tempo, por força da UDR, parali-sando os trabalhos da Constituinte, já em Plenário. Passaram-se duas sessões sem se chegar a nenhuma condição de votar nada sobre o capítulo da reforma agrária. Lembro-me que participei de vários debates, na CNBB, onde nos chamaram para discutir essa temática, assim como na Contag, por ser matéria muito polêmica, de confronto dos trabalhadores rurais com a UDR. É exatamente, nesse momento, que surge, de um lado, o Ronaldo Caiado como grande liderança, líder da UDR, com posições radicalíssimas con-tra a reforma agrária, e, do outro, a esquerda reunida para dis-cutir o enfrentamento da questão. Os debates eram tão acirrados que, por exemplo, aconteceu uma sessão, no plenário do Senado, não terminou – algo impressionante – porque começaram a jogar moedas das galerias, querendo dizer que os parlamentares es-tavam comprados. A situação era de tal ordem que todo mundo teve que se abrigar das moedas, e a sessão ser encerrada. Sobre a questão agrária, defendi uma tese, que, aliás, era a que, sem nenhuma bazófia, deveria ficar: esquecermos a Constituição que, segundo a esquerda mais radicalizada, era apenas uma carta de declaração de intenções, e colocarmos nela apenas o que fosse de fundamental importância para o processo da reforma agrária. Ora, quem melhor definiu isso foi o regime militar, que produziu um texto constitucional sintético: “a propriedade tem que exercer sua função social, e quando não a exercer pode ser desapropriada para o interesse social, pagando-se com o título da dívida agrá-ria”. Mas aí, vinha a propensão de alguns setores da esquerda de ter que colocar um discurso na Constituição, e venceu essa tese. E isso, evidentemente, gerava polêmicas sem fim. Não tínhamos condições de chegar a um acordo. Nesse capítulo, afirma-se o que é propriedade da terra e produtividade, define-se um conjunto de intenções que, na prática, significou a paralisação de todo um posterior processo de desapropriações. Esse processo da reforma agrária, aliás, só se efetivou quando o Osvaldo Russo foi indi-cado para o Incra pelo PCB, no governo Itamar. Eu era líder do governo na Camara, onde votamos uma lei que definia o que era propriedade produtiva, o que era função social da propriedade, para poder desapropriar. Falava-se na desapropriação, mas cria-

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vam-se tantas declarações de intenções sobre ela, que foi preciso regulamentá-la. E isso complicou... Até hoje há discussões, por exemplo, sobre qual o grau de produtividade das propriedades para que possam ser desapropriadas. Esta questão poderia até se constituir em uma luta política, mas não constar no texto da Car-ta, a qual deveria apenas definir que se desapropria, que se paga em títulos da dívida agrária e que a propriedade tem que exercer uma função social. Até porque já tínhamos o Estatuto da Terra, que definia bem o que significava isso. Defendi essa posição, mas não fomos vitoriosos. Ao se chegar ao ponto de não ter mais aon-de ir, por meio de uma emenda aglutinativa, saímos do “buraco negro”, na Constituinte, mas não no processo de reforma agrária. Esta realidade durou muito tempo e só veio a ser resolvido no governo Itamar, quando do Incra veio uma lei que definia a desa-propriação, regulamentando muitos desses discursos da Consti-tuição. Foi este o caminho que possibilitou começar o processo da reforma agrária no país.

C.V.– Você colocou a reforma agrária como um ponto importan-te e progressista, e essa reforma foi um tema que serviu para aglu-tinar, inclusive, os setores mais conservadores, criando condições para o advento da UDR, que viria a estar na base do Centrão.

R.F. – Sim, no Centrão estavam todas as forças conservadoras, ou de direita, como referencial político, presentes desde o come-ço. Só que elas eram minoria nos primeiros grandes embates, em torno da definição do regimento, o qual foi que permitiu viabilizar essa forma de se elaborar a Constituição.

C.V.– E eles já perderam aí.

R.F.– Sim, mas quando sentiram que esta derrota era o que poderia criar um grande problema por conta da sistematização, eles se organizaram no Centrão. Antes, eles não estavam organi-zados, talvez porque não tivessem uma visão de conjunto. A Co-missão de Sistematização foi o grande momento do Afonso Arinos, do seu ante-projeto. No entanto, nela a maior contribuição não foi de juristas ou de intelectuais da Comissão Afonso Arinos, mas dos parlamentares constituintes e da sociedade civil. Foi dessa fonte que surgiu o projeto da sistematização, já com a existência do Centrão. E, as últimas votações já eram feitas quase sem a participação do Centrão.

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C.A. – Talvez estivessem se guardando para o plenário.

R.F.– Sim, porque na Comissão de Sistematização já se sen-tiam perdedores. Lembro-me bem de três deles: Luiz Eduardo Ma-galhães, José Lourenço e Ricardo Fiúza. Foram os que ficaram até o fim brigando, mas apenas para cumprir tabela, já que sabiam estar perdendo.

C.V. – E marcar posição.

R.F. – Evidente. Mas a preparação foi para o plenário, onde começamos a ter perdas, nos grandes embates.

C.V.– Como você analisaria as forças conservadoras, no mo-mento de formalização da nova Carta? Qual o caráter delas? Esta-vam vinculadas a que interesses, naquele momento?

R.F.– O que podemos chamar de forças conservadoras? Os que defendem os interesses da propriedade da terra, do sistema financeiro, dos empresários, ou os do ponto de vista dos costu-mes, da religião, da família? Tinha tudo isso e os da inteligência, da universidade. Curioso é que o nacionalismo, vez por outra, pontificava na esquerda e também na direita. E quando se junta-vam os dois brotavam absurdos, como o da proibição de contratar professores estrangeiros. Não se tratava de uma concepção mera-mente proibitiva, mas de nacionalismo exacerbado. E proibimos, sem abrir exceções... A junção do conservadorismo com o nacio-nalismo resultou nessa excrescência.

C.V. – E lembrar que a USP foi fundada com professores fran-ceses...

R.F. – Sim, mas lembre-se que foi a emenda de Sérgio Arouca que resolveu isso. Muitas dessas dificuldades e contradições desa-guaram na Comissão de Redação. E aí vem a declaração de Nelson Jobim, ainda não bem esclarecida, de que a Comissão de Reda-ção teria incluido algumas redações que, segundo ele, não teriam sido aprovadas. Claro que não foi assim. O Jobim se expressou mal, gerando uma grande polêmica, mas o que aconteceu na Co-missão de Redação, da qual participei também, é que, em alguns processos, ocorreu o mesmo que numa emenda aglutinativa, isto é, necessidade de mudar algumas questões por serem contraditó-rias. E a redação é para isso, e não para contrariar uma decisão majoritária, mas tão somente garantir o nexo das decisões.

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II. Entrevista

28 Política Democrática · Nº 22

F.A. – Uma adequação de redação...

R.F. – Claro! Algumas vezes tinha que se fazer, mas ninguém decidiu contra o que o plenário tinha definido. Isso não houve, até porque se ele fizesse teria havido protestos. Jobim não é al-guém que passa desapercebido, e muito menos o que ele faz... Não houve isso. Aquela declaração gerou uma polêmica, e não foi nada disso. Houve alguns ajustes, evidentemente, e a Comissão de Redação é para isso. Eu participei dela, e esse foi o grande momento da cidadania brasileira. Disso, não tenho nenhuma dúvida. É uma data a ser celebrada. Foi um grande momento de afirmação – talvez o diga por ter participado diretamente como constituinte – mas não tenho nenhuma dúvida de que foi o mo-mento áureo da minha vida pública. Isso é tão verdadeiro que me possibilitou a honra maior de minha vida de ter sido candidato a presidente da República pelo Partido Comunista Brasileiro, e minha atuação que viabilizou essa candidatura, não tenho ne-nhuma dúvida disso. Acho que o PCB conseguiu se mobilizar em função da nossa participação, do que nós construímos lá na Constituinte.

F.A.– Além da questão do monopólio estatal do petróleo, havia outras questões?

R.F.– Havia sim, já que queríamos ampliar os monopólios, ficando o do petróleo e o da energia nuclear. Uma coisa interes-sante que aconteceu na questão da Petrobrás foi a composição de uma grande aliança de setores nacionalistas, unindo repre-sentantes dos setores mais à direita e conservadores com a es-querda, como o Jarbas Passarinho e Delfim Neto defendendo a Petrobrás.

C.A. – A Constituição propôs o monopólio da distribuição também?

R.F.– Claro. Houve propostas de outros monopólios. Por exem-plo, na área social, educação e saúde, havia propostas mais ra-dicais, como saúde só a pública, nada de saúde complementar privada, enquanto outros defendiam colocar, no mesmo patamar, a saúde pública e a privada. . E, ao final, foi aprovada a saúde complementar. O mesmo ocorreu com a educação privada. Havia os que não admitiam conceder recurso público nenhum, mas não podiam proibi-lo, e não o conseguiram. Na educação, por exemplo, houve interessante debate numa comissão a respeito do ensino

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religioso, e que dividia o PT ao meio, porque tinha a ala católica, defensora do ensino religioso, e outra ala liderada pelo Florestan Fernandes, que defendia o Estado laico. Lembro-me bem disso porque fiz dobradinha com ele, grande figura humana, que de-fendia que, na República laica, o Estado não poderia promover ensino religioso. A briga foi muito grande, mas nesse caso não jo-garam moeda, mas dinheiro de papel, o que foi mais fácil, porque pudemos continuar a sessão. No plenário, também houve uma briga imensa na qual até o microfone foi quebrado. Ou seja, hou-ve momentos de grandes acirramentos, grandes polêmicas. E no setor econômico era onde havia mais atrito.Como havia o pressu-posto da guerra-fria, da bipolaridade, da visão estatista, tinha-se sempre essa disputa.

C.A. – E o que acha das críticas ao texto aprovado em 1988?

R.F.– Em alguns aspectos, considero normais e convergentes com nossas observações. Porém, considero problemáticas certas afirmações, como as do senador José Sarney, recentemente, na Fo-lha de São Paulo. Somos reconhecedores que ele, como presidente da República, foi importantíssimo, do ponto de vista da democra-cia brasileira. Ninguém pode tirar dele esse papel. Ele assumiu e teve muita coragem, não só porque legalizou o Partido Comunista Brasileiro antes da Constituinte, mas fundamentalmente por ter removido os entulhos autoritários impostos pelo regime militar. Por sua postura, ele conseguiu se afirmar como um presidente demo-crático. Este é um papel que ninguém tira dele. Mas, ao afirmar, agora, que não sabia nada dos porões da ditadura, que não havia tortura, essa desastrosa afirmação beira o absurdo. O Brasil in-teiro e grande parte do planeta sabiam disso. Nós, como outras forças da resistência, tivemos muitos companheiros barbaramente torturados, assassinados e “desaparecidos”, sem falar de Vladimir Herzog e Manoel Fiel Filho, cujas mortes no crepúsculo da ditadura provocaram inclusive crises seríssimas no aparelho de repressão no próprio regime militar. Até oficiais sérios e honestos reconhecem os desmandos de setores militares. E Sarney dizer que não sabia de nada disso?E também ficar falando que a Constituição é um Frankstein, que não se podia governar com ela, que um exemplo maior disso seriam as quase sessenta emendas, e complementa sua declaração com uma infelicidade: compara nossa Constitui-ção à norte-americana. A Constituição norte-americana é profun-damente restrita porque trata apenas da relação entre os Estados e a União, e a relação desta com o mundo. Porque a relação entre

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o Estado, a cidadania e suas formas de organização estão regula-mentadas em 54 constituições, que são as estaduais. Nessas cons-tituições encontram-se garantias e direitos individuais os mais di-versos, porque de um Estado para outro tem pena de morte, prisão perpétua, alguns têm uma série de regulamentações de contratos que outros não têm, são relações as mais distintas possíveis. As in-tervenções dessas constituições se dão por meio da Corte Suprema, porque é esta Corte que, em última instância, julga a relação entre a União e os Estados. Este é um sistema completamente distinto do nosso, não podendo se comparar a Constituição norte-americana com a brasileira.

C.V.– No começo de sua intervenção, você colocou que a es-querda no processo do trabalho da Constituinte teve um papel muito importante, sobretudo nas comissões, trazendo a sociedade civil organizada que, num processo de fim de ditadura, exercia uma pressão muito grande, e o Congresso teve que aceitar isso, inclusive pela forma como foi pensada a Constituinte. E você de-pois afirmou que muitas das bandeiras que certos setores da es-querda tinham combatido, na Constituição de 1988, defenderam-nas depois como se fossem suas.

R.F. – Não diria que foram bandeiras. Eu diria que a Cons-tituição que iria para a revisão qüinqüenal não era em relação a pontos específicos. Quando foram contra a revisão, foram contra a possibilidade de revisão! Era como se a Constituição servisse para tudo. Ela não servia, quando votamos pela revisão no período de cinco anos. O discurso final do PT e do PCdoB, por exemplo, é algo impressionante. Parecia que a Constituição era um desastre com-pleto, quando era exatamente o inverso.E ressalte-se que, e assim sendo, a conquista da revisão foi dos setores de esquerda, particu-larmente os que mais radicalizavam contra o texto constitucional.

C.V.– A melhor conquista possível.

R.F. – Claro! É por isso que digo que precisamos comemorar, porque algumas pessoas têm afirmado não termos o que comemo-rar. Inclusive, o ex-deputado Fernando Lyra, em Pernambuco, de-fendeu há pouco a idéia de que a Constituição não prestou porque não foi exclusiva. Essa, a meu ver, é uma discussão bizantina.E nós não entramos “nessa”. A única ação nossa a respeito foi ter, tão logo abertos os trabalhos da Constituinte, levantado uma questão de ordem sobre o fato de haver “senadores biônicos”, isto

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é, não eleitos pelos brasileiros. A idéia era que, para fazer a Cons-tituição, tinham que ser todos eleitos, como se isso fosse algo que maculasse o texto constitucional. Se fosse apenas para ser eleitos, muitos daqueles não voltariam a ser parlamentares, se contenta-riam em ser constituintes, mas é uma discussão meio bizantina, porque os constituintes que estavam ali tinham o poder de votar, de acordo com a sua consciência, e de forma soberana. E ninguém foi limitado em nenhum momento nas votações. Assim sendo, não se pode dizer que se fosse uma Constituinte exclusiva seria me-lhor, ou não. Isso é um bizantinismo que justifica apenas posições ideológicas, como se isso fosse um grande debate no país.

C.V. – Concluída a Constituinte, em 1988, um ano depois, houve a queda do Muro de Berlim. Então, a revisão proposta para 1993 se daria com a esquerda em total defensiva, e a probabili-dade das conquistas de 1988 serem superadas ou retiradas da Constituição era muito grande. Talvez tenha sido esse um dos mo-tivos da esquerda ter resistido tanto a mudá-la, porque ela estava numa situação muito complicada?

R.F. – Sim, não nego haver justificativa, só que era completa-mente incoerente, pois as conquistas que eles achavam que po-deriam perder depois da queda do muro, com o fim do socialismo real, não eram conquista nenhuma! Não estou querendo dizer que não havia essa contradição. Claro que existia. Nós sabíamos dela, e dizíamos ser o PCB a única força de esquerda que defendeu a revisão constitucional, até porque fomos a favor dela, lideramos seu movimento e alertávamos que algumas conquistas poderiam ser perdidas (considerávamos conquistas, fomos a favor delas lá atrás, e sabíamos correr o risco de perdê-las, porque a correlação de forças tinha mudado). Não devemos esquecer que a esquerda não diminuiu em nada a sua representação. Quem a diminuiu foi o PMDB, depois do fim da moeda Cruzado. Se houve no mundo alguma perda da esquerda por conta da queda do Muro de Berlim, no Brasil isso não ocorreu. Aqui, ao contrário, surgiu o grande partido da esquerda no mundo, não era só no Brasil – o Partido dos Trabalhadores, o PT.

C.V. – Sem esquecer a raiz católica dessa experiência partidária.

R.F.– Sim, claramente. Já citei esse exemplo, de nossa alian-ça com o grupo de Florestan Fernandes na briga pela república laica, e perdemos... Incrível, já havia naquele momento a banca-

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II. Entrevista

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da evangélica. Era pequena, depois cresceu muito, e ainda bem que desinflou. Não é que não tenha mais esses representantes, mas não têm a força de antes. Talvez o envolvimento com todo o processo do “mensalão” os tenha desmoralizado, porque nunca vi tanto evangélico envolvido em picaretagem. Talvez por isso tenha diminuído mesmo. Na Constituinte, discuti muito com al-guns dos membros da bancada evangélica, argumentando que não entendia o fato de eles desejarem votar a favor do ensino religioso, quando este seria o da religião hegemônica. Vivemos no Brasil em um calendário católico, gregoriano, que tem as festas religiosas da Igreja Católica. Todo ele é assim. A posição correta para eles, como minoria, era garantir a república laica, para eles terem a igualdade de tratamento.Ensino religioso é assunto para as famílias, para a igreja, mas não uma função do Estado, que garante a todos a igualdade.

C.V. – De seu ponto de vista, qual foi a maior derrota nesse processo?

R.F. – Se houve uma derrota foi a manutenção do sistema presidencialista, comprovadamente um fator de impasses, de processos antidemocráticos, e não é o que melhor representa o mundo em que estamos vivendo, onde um maior nível de parti-cipação, de presenças mais constantes dos colegiados e coletivi-dades, e suas intervenções se dão com maior agilidade. A meu ver, os brasileiros perderam com a não aprovação do parlamen-tarismo. Há um momento a ser destacado: o de disputa sobre a questão do mandato de 5 anos do presidente da República, ante a tentativa de reduzi-lo de 6 anos para 4, e que no final ficou em 5. Esse debate teve no PT o partido que mais se mobilizou em torno da idéia dos 4 anos e, com isso, exercia uma pressão muito grande em relação aos outros partidos democráticos que discutiam essa questão. O PT defendia os 4 anos, mas com o presidencialismo, já que não eram parlamentaristas. Nós éramos parlamentaristas, e cometemos um equívoco, ao não admitirmos, em nenhum momento, e esse momento existiu, uma negociação de manutenção do mandato presidencial tal como estava, nos cinco anos, e uma discussão do sistema parlamentarista, depois do final do mandato. Por conta desta pressão dos 4 anos, exerci-da pelo PT e de um certo patrulhamento, deixamos passar essa oportunidade. Quando digo “nós”, refiro-me particularmente a Mário Covas e a mim, que poderíamos, e tínhamos condições, de

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discutir muito o que devíamos fazer, já que éramos parlamenta-ristas, e não aproveitamos aquela oportunidade como devíamos, de incentivar a discussão do parlamentarismo. Preferimos imagi-nar que iríamos ser vitoriosos no parlamentarismo e nos quatro anos. Foi um grande equívoco nosso, porque se ganhássemos o parlamentarismo podia o mandato presidencial ser até de sete anos. Naquele momento, o debate estava atrelado à duração do governo Sarney, de reduzir o seu mandato, o que era uma boba-gem, não tinha nenhum sentido. Poderíamos ter dado os cinco anos e ter feito um grande acerto, e quem sabe, o Brasil teria sa-ído daquele processo com o parlamentarismo, e estaríamos, sem dúvida alguma, muito melhores hoje.

C.V. – Mas isso tem muito a ver com a cultura da nossa so-ciedade e nossa própria formação histórica, quer dizer, em toda a América Latina não temos experiência de parlamentarismo. Ne-nhuma.

R.F. – O Brasil teve uma boa experiência.

C.V. – No Império.

R.F. – Não, não... Tivemos uma pequena experiência nos anos 1960. O grave é que nós, os comunistas, fomos contra o parlamentarismo, e o derrubamos. Não conseguimos entender nada. Foi um erro que cometemos no bojo da campanha da le-galidade pela posse de João Goulart. Tancredo Neves articulou um Ato Adicional para Jango assumir, porque os militares não o aceitavam. Havia um clima de guerra civil no Brasil, rede da legalidade, “reforma agrária na lei ou na marra”, essas coisas. Na Constituinte, mesmo derrotados no parlamentarismo, con-seguimos colocar nas disposições transitórias o plebiscito sobre o assunto. Plebiscito que teve até um aspecto interessante, ao anistiarmos os monarquistas, permitindo que eles apresentas-sem a Monarquia no plebiscito. Porque a República era cláusula pétrea, ninguém podia falar contra a República nem apresentar emenda contra ela.

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II. Entrevista

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C.A. – A República não é mais cláusula pétrea. A Federação sim.

R.F. – Quando votamos o plebiscito nas disposições transitó-rias, ele ia antes da revisão constitucional, para já dizer que na revisão iria entrar. O que aconteceu? Quando o governo Collor começou a desandar, José Serra e Ulisses Guimarães conver-saram com várias pessoas, comigo também, sobre a idéia de se apresentar uma emenda constitucional antecipando o plebiscito, não esperando os cinco anos, pois o governo Collor era de muita instabilidade, e poderia ocorrer um impasse por causa das de-núncias de corrupção, todo um quadro adverso, e o temor de um retrocesso. Então, pensamos em fazer o plebiscito, e, admitindo que ganhasse o parlamentarismo, qualquer problema que hou-vesse implantaríamos o parlamentarismo, decidido já em plebis-cito.Tudo calculando que, se o impeachment não acontecesse, teríamos o parlamentarismo aprovado pelo plebiscito. E o que aconteceu? Conseguimos aprovar a emenda do José Serra, an-tecipamos o plebiscito, e ele se deu após o impeachment a Collor ter ocorrido. Tal fato viabilizou a defesa dos presidencialistas ao afirmarem: “Quando há um vagabundo na Presidência, o sistema pode funcionar, porque se pode tirá-lo do exercício do poder”.

F.A. – Eram comportamentos do PT, do Brizola...

R.F. – PT, Brizola, e os conservadores da direita bem tradicio-nal, Marco Maciel e todos os outros.

C.V. – Porque, na verdade, parlamentarista era o Partidão, e até hoje somos parlamentaristas.

F.A. – E o PSDB.

R.F. – E o PSDB, cujo surgimento foi possível a partir da idéia de que 40 parlamentares podiam fundar um novo partido. O PSDB nasceu parlamentarista. E aí vem o grande drama bra-sileiro, pois tivemos Fernando Henrique Cardoso, um parlamen-tarista histórico, que passa oito anos no governo, e não propõe nada, quando tinha tudo para fazê-lo! Em vez de propor a ree-leição, deveria ter proposto um referendo de sua reeleição e do parlamentarismo, ao final. E não fez nada. E aí estamos hoje pa-gando um regime imperial que tem trazido e ainda vai nos trazer grandes problemas. E Fernando Henrique perdeu essa grande

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oportunidade histórica. Que fique registrado. E eu já lhe dis-se isso, pessoalmente. O PSDB não podia ter passado oito anos no governo e não ter proposto a emenda parlamentarista. Quem pensou isso e ainda tentou alguma coisa foi Franco Montoro.

C.V. – Foi o que eu disse, parlamentaristas somos nós...

R.F. – Somos nós, e eu vou sugerir ao José Serra que, se eleito, em 2010, no seu primeiro dia de trabalho, proponha uma emenda parlamentarista para 2014. Se um presidente da República fizer essa proposta, não será apenas uma decisão do Congresso. No Brasil, qualquer mudança dessas tem que ser por referendo, até porque também essas mudanças de regime acontecem com rup-turas, a não ser que um presidente da República faça a proposta e trabalhe por ela. Ele pode ter força política no Congresso e na sociedade para que seja aprovada.

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III. Tema de Capa20 Anos da

Carta de 1988

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Autores

Marcello CerqueiraAdvogado, ex-deputado federal, ex-presidente do Instituto dos Advogados do Brasil e Procurador-Geral da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro.

Marco MondainiHistoriador e professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Shirley NascimentoAssistente social e mestranda em Serviço Social da Universidade Federal de Pernam-buco (UFPE).

José Carlos AroucaAdvogado, desembargador aposentado do Tribunal do Trabalho da II Região, membro da Academia Nacional de Direito do Trabalho, do Instituto de Direito Social Cesarino Jr e do Instituto dos Advogados do Brasil.

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Batalhas para redigir e aplicar a nova Constituição

Marcello Cerqueira

Para Betinho

A ruptura com a extenuante ditadura militar de 64 foi feita atra-vés de negociações, como a anterior de 1946 (ruptura pactua-da). O que a aproximou do modelo espanhol (transición pacta-

da) e se afastou do modelo português (revolucionária, na origem).

Os setores mais avançados não queriam repetir o modelo anterior e propunham, como se recorda, “Constituinte livre, soberana e exclu-siva”. Livre se auto-explica e com “soberana” e “exclusiva” queria-se dizer que ela não teria funções legislativas ordinárias e que se dissol-veria após a promulgação do novo Texto, convocando eleições gerais.

A primeira questão que então se colocava para a OAB era a con-vocação da Constituinte, pois ela poderia definir, ou pelo menos for-temente orientar, seu modelo. Sabe-se que uma Constituinte só está vinculada aos termos de sua convocação.

Nesse sentido, o então presidente da OAB nacional, advogado Her-man Assis Baeta, levou ao ministro da Justiça Fernando Lyra os ter-mos da entidade. O ministro encarregou o consultor jurídico do Minis-tério de redigir o caminho por onde deveria caminhar a convocação:

Simples projeto de lei ordinária de iniciativa do Executivo submeteria ao Congresso Nacional a outorga de poderes constituintes aos repre-sentantes do povo eleitos em 1986. A lei daí resultante seria subme-tida a referendo popular. Evitava-se a convocação por Emenda Cons-titucional, já que a sistemática de sua aprovação exige quorum de dois terços em ambas as casas do Congresso. Ora, em 1982, foram

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eleitos um terço dos membros do Senado Federal que em sua maioria gostariam de participar da Constituinte, embora não tivessem poderes originários para tanto. A fixação do quorum de maioria simples con-tornaria esse obstáculo. Diferentemente, a hipótese de convocação por meio de Emenda Constitucional, teria de conciliar-se com a pretensão de Senadores residuais. (o texto original foi transcrito in Comentários à Constituição Federal, de Eugênio Haddock Lobo e Julio Cesar do Prado Leite, Edições Trabalhistas, Rio de Janeiro, 1989, p. 4).

Tal não se deu, e de certa forma embaraçou o passo dos traba-lhos constituintes. É que naturalmente os interesses permanentes de uma Assembléia Constituinte são diferentes daqueles que pres-sionam o Congresso no dia-a-dia.

De qualquer forma, a Constituinte foi promulgada e trouxe um aporte significativo de direitos fundamentais e sociais ao mesmo tempo em que seu texto, por demasiadamente analítico, incorporou normas que mais bem seriam tratadas em leis ordinárias.

Mesmo a lei que criou a Petrobrás, por exemplo, alçada à norma constitucional nem por isso viu protegida a integralidade do mono-pólio estatal do petróleo.

Pouco tempo após a sua celebração e a pretexto do fim do socia-lismo real, que teve a queda do muro de Berlim como seu ponto de maior expressão e exploração, setores inconformados com os ine-gáveis avanços da Constituição de 1988 já reclamavam a “revisão” dela brandindo dispositivo do Ato das Disposições Transitórias que chamava a plebiscito o eleitor para decidir entre a forma de governo (presidencialismo ou parlamentarismo) e a nostálgica volta ao passa-do com outro exótico Império nos trópicos. Isso, se o eleitor pudes-se escolher entre um sistema desconhecido (o parlamentarismo com vida efêmera com Jango) e a forte atração messiânica do presidencia-lismo. (Marx no VIII Brumário, ao comentar o golpe do II Bonaparte [que de alguma forma aqui se reproduziria com a recandidatura de Fernando Henrique], dizia que um parlamento eleito estava em rela-ção metafísica com o povo, ao passo que o presidente eleito mantinha com ele relação direta.)

Recorda-se que, presidente eleito, Tancredo Neves constituiu comis-são de estudos para oferecer um anteprojeto de Constituição, que res-tou conhecida pelo nome de seu presidente, professor Afonso Arinos.

A Comissão Arinos inclinou-se para o semipresidencialismo (ou o semiparlamentarismo) nos moldes já praticados na França desde De Gaulle e em Portugal (mais mitigado) após Constituição nascida

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Batalhas para redigir e aplicar a nova Constituição

da Revolução dos Cravos (e que permanece, mesmo após as reformas liberais que aproximaram o país da Comunidade Européia).

Já assumindo a curul presidencial e em face de divergências com o texto Arinos, sobretudo com a adoção do semipresidencialismo, que sugeria uma nova eleição para um novo governo, o presidente Sarney limita-se a publicar o relatório Arinos no Diário Oficial da União e não enviá-lo como proposta do governo para a nascente Constituinte.

Razoável que no projeto Arinos constasse a “medida provisória”, que vai buscar raízes na “ordenanza” italiana, cultura tão a gosto do saudoso professor. Só que, naquele contexto, a medida é expe-dida por um primeiro-ministro dependente do Parlamento que o escolheu e a qualquer momento pode derrubá-lo com uma moção de desconfiança.

Transplantá-lo para um regime presidencialista (forte), foi uma insensatez da qual se paga o preço da desorganização legislativa e mesmo do desequilíbrio entre poderes (Executivo versus Legislativo), pedra angular do princípio de separação de poderes. O excesso de po-deres do presidente da República enfraquece e desorganiza o Legislati-vo além de abrir passo para situações de exceção (como esse arremedo de “estado policial” que ora se apresenta desenvolto e incontrolável).

IIMal entrada em vigor e a nova Constituição já enfrentava a arreme-

tida de setores conservadores dentro e fora do governo de então. Logo em seguida, veio a investida do “Emendão” do governo Collor, que já usara o remédio amargo da “medida provisória” para confiscar a pou-pança. Depois, cláusula perempta das Disposições Constitucionais Transitórias seria ilegalmente ativada na pretensão inútil de operar uma ambiciosa “revisão constitucional”, instituto, como se sabe, es-tranho ao Direito Constitucional brasileiro, que só reconhece o Poder de Emenda ao seu texto.

A “revisão” seria convocada na forma do art. 3° do ADCT, mas sua fonte material estava no anterior art. 2° do mesmo diploma. Ou em outras palavras: na hipótese de o eleitorado sancionar o sistema “parlamentarista” ou a “monarquia”, então a norma seria ativada, mas apenas para compatibilizar o texto constitucional com a novida-de (parlamentarismo e monarquia). Os demais dispositivos da Consti-tuição restariam intocados.

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A pretensão de votar uma “revisão” ampla da Constituição (uma espécie de terceiro turno constituinte) iria esbarrar na dificuldade de operar interesses que se repelem. No início, observou-se até uma cer-ta euforia envolvendo setores que desejavam reformas para servir ex-clusivamente aos seus interesses. No curso dos debates, entretanto, verificou-se a impossibilidade de agradar a todos. Naturalmente, uma modificação atendia a uma parte, mas prejudicava outra, que, por sua vez, entrava em conflito com uma terceira, e assim sucessivamente. A reforma, aparentemente inovadora, é contida pelo conservadorismo.

O espírito que animou a Constituição parcialmente já deixou seu corpo. As reformas mutilaram a Constituição brasileira. As vi-cissitudes políticas afastaram a prática da aplicação da Constitui-ção dos ideais que a escreveram. A proposta da criação de um Esta-do Democrático de Direito fundado na soberania, na cidadania, na dignidade, nos valores sociais do trabalho e no pluralismo político foi substituída por um Estado liberal.

Os objetivos fundamentais da República, grafados no art. 3º da Carta Magna, mais parecem agora motivo de triste ironia: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimen-to nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

A Constituição de 1988, para além de retomar e ampliar a ordem democrática, antes ferida de morte pela ditadura militar, consolida como direitos – e também os amplia – aquilo que era um misto de conquistas populares e concessões das elites na esfera social. Ela adiciona à cidadania civil e política a dimensão social.

Desde a Revolução de 30, um pacto não escrito, impregnado de con-tradições, a que não faltaram períodos demorados de autoritarismo, dava curso a um projeto nacional. Seu conteúdo era a busca do desen-volvimento, às vezes acelerado, outras, lento. Mas sempre buscado.

A longa e penosa construção do pacto envolvia a coesão das mais diferentes forças sociais e políticas. O conflito entre essas forças, contudo, era menor do que o consenso na implementação do pacto. Militares, por exemplo, desferem o golpe de Estado de 1964 de que resultaria a longa e amarga ditadura. E mesmo assim, dão seqüên-cia, em parte, a um projeto que antes era conduzido por seus adver-sários, embora os governos militares exacerbassem o lado perverso do desenvolvimento capitalista no Brasil: a concentração de pro-priedade e de renda, que agravou a já secular discriminação social.

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A Constituição teria vindo para conduzir o mesmo processo, mas de forma a reduzir os seus aspectos negativos. Afinal, uma nação efeti-vamente para todos. Essa utopia foi frustrada pelas “reformas” que, mutilando o corpo da Constituição, afastaram seu espírito.

O desmanche do pacto constitucional produzido pelas forças do mercado e seus subalternos operou-se em fraude à Constituição. A acumulação democrática e social que o processo constituinte (cons-tituição material) fez desaguar na Constituição em vigor é subtraída pela vontade do governo federal conjugada à maioria congressual de três quintos, que modifica o texto ao sabor dos interesses do merca-do, de conveniências políticas casuísticas e, sobretudo, de insupor-tável pressão norte-americana.

No que respeita à soberania nacional, foram suprimidas da Cons-tituição significativas normas de proteção à economia do país: con-trole da remessa de lucros do capital estrangeiro; conceito de em-presa nacional; domínio da União sobre o subsolo; monopólio do petróleo, monopólio sobre a pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais de energia hidráulica; monopólio ou controle estatal sobre as telecomunicações. Tratou o texto consti-tucional de proteger a economia de aberturas tão insensatas quanto apressadas, que afinal ocorreram, acentuando a dependência exter-na que o país terá enorme dificuldade de reverter. As privatizações selvagens alienaram o patrimônio público e empenharam o futuro na medida em que haveremos de sofrer indefinidamente a remessa para o exterior de lucros de empresas que não exportam bens ou serviços. No limite, a ameaça mais grave foi a tentativa de privatização dos nossos rios, privatização que agora parece afastada. Os rios existem sem hidroelétricas, mas estas não podem viver sem os rios. O ar, as florestas e os rios não são bens do Estado e nem de particulares. São bens públicos, constitucionalmente indisponíveis, são direitos difu-sos, pertencem a toda a população.

Quanto aos direitos do cidadão, sua dimensão dá bem a medida do regresso a que o país continua, até hoje, sendo submetido.

Como se sabe, um dos grandes esforços dos socialismos desse sé-culo consistiu em desmercantilizar aspectos essenciais da relação de trabalho. A educação universal e gratuita, o sistema público de saúde, as várias formas de previdência e seguridade, consagraram direitos que passaram a fazer parte significativa da remuneração do trabalho; o mercado, ou seja, a força patronal, deixou de ser a principal regula-dora do comportamento dos seres humanos enquanto trabalhadores.

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Compatível com esses progressos da humanidade, a Constituição de 88 consagrou esses direitos, especificamente em seu Capítulo II. As “reformas” realizadas ou ainda em andamento e agora sob novo patrocínio, objetivam reduzir ou suprimir esses direitos. Trata-se re-gressivamente de empreender um esforço global de remercantilização das relações de trabalho.

Tornam-se mercantis as prestações de educação, a saúde pelo sistema de seguro privado, a previdência comandada por fundos de pensão, apenas para citar alguns exemplos. Os direitos sociais são substituídos pelo perfil da demanda de serviços em um mercado em expansão. O mesmo processo de encolhimento ocorre com a cidada-nia política.

As formas clássicas de supressão dos direitos políticos são as ditaduras ou tiranias. Desgraçadamente, o nosso país experimentou todas. Mas o neoliberalismo, oferece soluções mais sutis. Os anuários políticos revelam que nunca houve um número tão grande de demo-cracias liberais na história contemporânea como agora (excetuando episódios em curso na França e na Itália). Para alguns comenta-dores, trata-se de uma avassaladora onda de democratização que penetrou na América Latina, na África e nos antigos países do Leste Europeu. Contudo, nunca a forma democrática esteve tão dissociada da substância democrática que a ela dá vida.

A elite do poder busca impor um sistema político que se assenta em chefias de governo identificado com a “globalização” predatória, uma administração pública baseada em agências regulatórias que a experiência de outros países nos permite afirmar que se tornam independentes de tal forma que sobre elas não recaem controles de qualquer natureza E, finalmente, um Poder Legislativo esvaziado de suas atribuições, submetido ao garrote vil das medidas provisórias e ameaçado por reforma partidária e eleitoral restritiva à soberania po-pular e a imposição da perda de mandato por “infidelidade partidá-ria” imposta por um Judiciário ao qual falecem poderes para tanto.

IIIA economia mundial se retrai e os novos romanos já demonstram

sinais de exaustão ao manter suas conquistas guerreiras no Iraque e no Afeganistão. A chamada “Ata Patriótica” é o santo e a senha para ampliar as perseguições em Guantánamo aos suspeitos de sempre e também sempre em prejuízo das liberdades civis na América. O petró-leo alcança preços inesperados e a carência de alimentos assombra o mundo (“Um fantasma ronda a Europa ...”). Aqui em nossas praias,

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Batalhas para redigir e aplicar a nova Constituição

temos a constante ameaça à soberania da Amazônia e a Colômbia de Uribe como ponta-de-lança dos interesses norte-americanos, já agora respaldados pelo ressurgimento da desarquivada 4ª Frota. In-ternamente, a ação macarthista da Polícia Federal e do Ministério Público, às quais setores do Judiciário se associam.

Releio o texto e verifico que imprimi a ele um tom pessimista, longe do meu habitual ver e sentir o mundo e com isso pareceu-me ter desconsiderado as conquistas democráticas e sociais que vieram com a redemocratização e a Constituição em vigor. De certa forma, ao realçar os recuos da Constituição posso passar a impressão de que, longe de minha vontade, “anistiei”, por assim dizer, os que re-vogaram pela força a Constituição de 1946 os quais, entretanto, não foram anistiados pelas sucessivas leis de anistia: é que a anistia não foi recíproca e os torturadores, ou o que resta deles, não foram anis-tiados. Os subúrbios do autoritarismo se expressam não apenas nas milhares de escutas policiais, muitas e muitas clandestinas, ou na espetacularização das prisões sempre cobertas por uma rede de te-levisão, ou na “denúncia” do Ministério Público do Rio Grande do Sul contra o MST, que procura restaurar procedimentos próprios da ditadura militar, tentativa canhestra de repristinar a revogada lei de segurança nacional do regime militar.

É claro que sonhamos com “a volta do irmão do Henfil” e devemos render nossas homenagens aos que lutaram pela redemocratização do país. E ficar alertas.

Vida que segue.

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A Constituição e o início da era dos direitos no Brasil

Marco Mondaini e Shirley Nascimento

O ano de 1988 configura-se como um marco fundamental para toda e qualquer análise que pretenda ser realizada sobre o desenvolvimento dos direitos de cidadania nos últimos anos

da história brasileira. Então, há exatos vinte anos, foi promulgada a Constituição que representa o ato de fundação (ou refundação) de um país que teve raríssimos momentos de vida plenamente democráti-ca, nos seus quase dois séculos de independência nacional. Chamada pelo deputado federal Ulysses Guimarães – presidente da Assembléia Nacional Constituinte eleita em 1986 – de “Constituição Cidadã”, a nova Carta Magna inaugura, no Brasil, ainda que no plano formal, uma autêntica “Era dos Direitos”, responsável pela afirmação inédita de garantias tanto no plano individual, quanto no plano coletivo – no campo civil e político, da mesma forma que no campo social.

Com isso, tem início entre nós um novo momento histórico, qual seja, aquele marcado pelo nascimento de um Estado de Direito De-mocrático no Brasil.

É bem verdade que, nos países da Europa Ocidental e América do Norte, esse Estado de Direito que acabara de nascer no Brasil já havia completado, na pior das hipóteses, quatro décadas de existên-cia, tendo sido concebido mais generalizadamente junto ao fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945. Assim, ainda que tardia, esta nova configuração do Estado brasileiro é singularmente valiosa, pois traz por meio da sua nova Constituição a oportunidade histórica de livrar o país de um sombrio passado de regimes discricionários, a exemplo dos horripilantes pesadelos representados pelo Estado Novo varguista (1937-1945) e pelo regime militar (1964-1985) – ditaduras diretamente responsáveis pela inclusão do Brasil no seleto grupo de nações tristemente famosas por fazerem do desrespeito aos direitos fundamentais da pessoa humana uma prática constante. Isto, ao mesmo tempo em que vacinava o país contra quaisquer ameaças autoritárias vindouras.

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A Constituição de 1988 e o início da era dos direitos no Brasil

Dentro desse contexto, já no seu preâmbulo, a nova Carta Magna expõe o intuito de servir como referência legal para a construção de uma nova nação, assentada sobre os alicerces dos direitos humanos. Tal fato se revela de maneira clara à medida que se afirma a inten-ção de se “instituir um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”.

A partir de então, a República Federativa do Brasil passa a ser definida como um Estado Democrático de Direito, por intermédio da valorização de três princípios muito caros à tradição política liberal-democrática: o pluralismo político, a separação dos poderes do Es-tado e a representação eleitoral. No entanto, se o fio condutor da nova Constituição encontra-se localizado no pensamento liberal-de-mocrático, isto não implica dizer que o ideário defendido pela tradi-ção socialdemocrática tenha sido ignorado por completo, já que não faltam referências, ainda mesmo na identificação dos seus princípios fundamentais, às noções de participação e de combate às desigual-dades sociais e regionais, o mesmo podendo ser afirmado em rela-ção à tradição multifacetária presente nos assim denominados novos movimentos sociais, pois que é explícita a referência ao objetivo de promoção do bem comum sem qualquer espécie de preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade.

No campo dos direitos sociais, em particular, a grande inovação formal trazida pelo texto constitucional consistiu na ruptura estabe-lecida com a tradição varguista de conceber a cidadania como uma condição regulada pelo trabalho, ou seja, o acesso aos direitos de cidadania deixa de depender da ocupação profissional do indivíduo. A fim de que isso fosse feito, a seguridade social foi definida como “um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”, com base em três princípios fun-damentais: universalidade, descentralização e participação.

O desencontro entre o legal e o realNo plano legal, é indiscutível o fato de que, por intermédio da

Constituição promulgada em 1988, o Brasil conseguiu concretizar o desejo que há muito pairava no horizonte das mais diversas forças de

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vanguarda democrática, reconhecendo formalmente o que havia de mais avançado nas esferas dos direitos civis, políticos e sociais.

Porém, se a Constituição de 1988 conseguiu reavivar de fato a liberdade perdida durante os 21 anos de ditadura militar, o mesmo não pode ser afirmado em relação à igualdade, pois a questão social, com o seu complexo conjunto de implicações, permanece não resol-vida satisfatoriamente até os dias atuais. Por esta razão, durante os vinte anos que nos separam da entrada em vigor da nova Carta Mag-na, o Brasil viveu intensamente a dicotomia entre o que está posto no plano legal e o que é vivenciado por seus concidadãos no campo do real.

É inquestionável o fato de vivermos hoje no Brasil sob uma for-ma democrática de Estado garantidora dos procedimentos centrais que possibilitam a expressão da vontade popular. No entanto, se a liberdade de expressão e o direito universal ao voto foram conquis-tados na sua plenitude, muito ainda há de ser feito a fim de que a democracia brasileira não se limite apenas à forma, passando a ser também preenchida de conteúdo. Isto porque a desigualdade social continua a se fazer presente entre nós de maneira alarmante, não obstante os tímidos sinais de redução sentidos nos últimos dez anos. O conjunto dos indicadores sociais brasileiros fala quase por si só a esse respeito: as elevadas taxas de desemprego e trabalho informal, de um lado, e o crescimento vertiginoso da violência urbana e rural, de outro lado, podem muito bem ser vistos como as duas pontas do mesmo gigantesco iceberg da iniqüidade nacional.

No decorrer das duas últimas décadas, o país amadureceu poli-ticamente a ponto de ter sido capaz de afastar um presidente eleito (Collor) de maneira legal, dentro dos quadros institucionais. Assim, por meio de uma onda de manifestações que trouxeram à memória o movimento pelo restabelecimento das eleições para presidente, em 1984 (o Diretas Já), os brasileiros, principalmente os mais jovens, pressionaram o Congresso Nacional a abrir um processo de impe-dimento contra um político que, de arauto da moralidade durante a campanha eleitoral, se revelara responsável pela edificação de um esquema de corrupção absolutamente vergonhoso.

Além disso, por meio das lutas, nem sempre razoáveis do Movi-mento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a nação tomou conhecimento da sofrida realidade vivida no campo brasileiro por uma massa de seres humanos completamente alijados do mundo dos direitos, uma realidade resultante diretamente da situação de extrema concentração fundiária, característica do nosso meio rural.

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Com isso, tanto no campo indireto da representação, como no campo direto da participação, a democracia brasileira parece ter amadure-cido bastante. Isto, a ponto de não ser considerada mais absurda a hipótese de as instituições nacionais terem se fortalecido o suficiente para tornarem coisa do passado a tradição de resolução das crises políticas por intermédio de golpes de Estado.

Sem dúvida, as ameaças à jovem democracia brasileira não se en-contram localizadas no plano estritamente político e sim na área so-cial. Mais especificamente, na crônica insistência em não se resolver o problema da extrema concentração de riquezas em nosso país, com todos os males daí decorrentes. Dessa forma, a carência de igualdade acompanhada de suas inúmeras conseqüências poderá destruir a própria liberdade alcançada no decorrer dos últimos vinte anos.

Infelizmente, isso não se trata de uma previsão. A restrição a uma vida livre já se apresenta como uma constatação do dia-a-dia. Não no campo político, mas sim no civil. Dito de forma direta: a falta de con-teúdo social da democracia brasileira poderá minar as bases daquilo que foi arduamente conquistado em termos políticos.

Em virtude do assustador crescimento da violência urbana (e, também, da continuidade da crônica violência que assola o campo), os cidadãos brasileiros têm visto o direito à segurança individual ser negado cotidianamente, numa seqüência de atos que coloca em xeque a capacidade do Estado para se fazer presente no seu tradi-cional papel de detentor do monopólio da coerção física. A sensação de insegurança cresce na exata medida em que o Estado se apresen-ta cada vez menos capaz de garantir a ordem pública democrática, mantendo-se responsável pela realização da justiça, por intermédio das forças policiais (civil e militar) e do Poder Judiciário – fato que acaba por gerar um questionamento sobre a sua própria legitimidade para desempenhar as funções de justiça, dando forma a um verda-deiro círculo vicioso.

Para o crescente descrédito da população em relação à capaci-dade do Estado brasileiro ser o artífice da justiça, colaboram três constatações principais realizadas por qualquer cidadão comum. Em primeiro lugar, em função da grande impunidade dos crimes de co-larinho branco, a constatação de que a justiça está do lado dos mais ricos, já que os mesmos quase nunca são devidamente punidos. Em segundo lugar, mediante a observação do público que compõe a atual população carcerária e dos assassinatos diários de moradores – prin-cipalmente jovens – das favelas e periferias, a constatação de que a Justiça pune, em número significativamente maior, os mais pobres,

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seja com ou sem o respaldo legal. Em terceiro lugar, devido ao cres-cimento avassalador das ações de grupos como o Comando Vermelho (no Rio de Janeiro) e do PCC (em São Paulo), a de que a justiça não é capaz de fazer frear o avanço das organizações criminosas e do ban-ditismo em geral.

Com isso, para a maioria da população brasileira, uma inquie-tante conclusão não pode deixar de ser tirada: a de que os órgãos responsáveis pela afirmação e defesa da justiça em nosso país são completamente injustos. É possível que o exemplo mais contunden-te do caráter injusto de tais órgãos encontre-se localizado na série de chacinas praticadas por forças policiais contra membros das ca-madas subalternas da sociedade, no decorrer dos anos noventa: o fuzilamento dos 111 presos na Casa de Detenção do Carandiru, em São Paulo, no ano de 1992; as chacinas de Vigário Geral, com 21 moradores mortos, e da Candelária, com 7 menores assassinados, no Rio de Janeiro, respectivamente em 1992 e 1996; e o massacre de 19 trabalhadores rurais sem-terra, no Pará, em 1996. Reunidos, esses fatos assinalam o quanto a violência policial contra os cidadãos comuns continua sendo uma prática rotineira, mesmo o Brasil tendo deixado de ser um regime ditatorial, tornando-se um Estado Demo-crático de Direito.

Para além disso, cotidianamente, nos deparamos com notícias que demonstram o não aggiornamento das policias civil e militar em relação ao novo tipo de Estado comprometido com o respeito, garan-tia e proteção dos direitos humanos, o qual, somado ao forte despre-paro operacional dos seus agentes nos mais diferentes estados do país, resultam numa série de atitudes arbitrárias e, por vezes, de-sastrosas, praticadas por aqueles que deveriam garantir a segurança pública da população e que, por não conseguirem agir com êxito, nesse sentido, provocam exatamente o contrário: o crescimento da sensação de medo e insegurança já existente em função do avanço da criminalidade.

Não bastasse isso, o Poder Judiciário continua a ser, em grande medida, um poder inacessível para a grande maioria da população, não obstante as iniciativas de democratização do acesso à justiça, como, por exemplo, a criação dos Juizados Especiais Cíveis e Crimi-nais e a expansão da Defensoria Pública. No geral, porém, a presta-ção jurisdicional no país continua a ser excessivamente cara e lenta. Tal déficit de justiça responsável pela crise que atravessa os direitos civis atualmente no Brasil encontra-se intimamente associado a uma ordem de questões mais amplas, situadas, por um lado, nos funda-mentos sociais da estrutura capitalista brasileira e, por outro lado,

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A Constituição de 1988 e o início da era dos direitos no Brasil

nas opções econômicas realizadas nas duas últimas décadas por su-cessivos governos eleitos democraticamente.

Dito de outra maneira, a selvageria do capitalismo brasileiro – um capitalismo dependente, enraizado historicamente na tradição ibéri-ca patrimonialista – ganhou dimensões ainda mais brutais em vir-tude das escolhas feitas no plano das políticas econômicas, isto é, a adoção do receituário imposto por um liberalismo econômico renas-cido das cinzas na passagem dos anos setenta para os anos oiten-ta, nos países do capitalismo central, em especial, a Inglaterra e os Estados Unidos. A fundamentar esse neoliberalismo, encontra-se o pressuposto central de que cabe ao mercado o papel fundamental de gestão da economia, o que traz como corolário a diminuição drástica das funções socioeconômicas desempenhadas até então pelo Estado, isto é, seja na sua versão européia (o Estado de Bem-Estar Social), seja na sua versão latino-americana (o Estado Desenvolvimentista), o Estado deveria se tornar mínimo.

Ora, a grande contradição que nos assola, desde o ano de 1988, encontra-se justamente relacionada ao fato de termos uma legalida-de constitucional que traz em si a exigência de um Estado atuante, de um lado, e uma realidade político-econômica que se fundamenta na necessidade oposta da retirada do Estado, de outro lado. Será exatamente dessa grave contradição entre “uma legalidade consti-tucional progressista” e “uma realidade político-econômica conser-vadora” que advirá tanto a atual crise social, como grande parte dos nossos conflitos sociais. Os resultados não poderiam deixar de ser outros senão uma cidadania aviltada. O Brasil continua sendo um dos maiores PIBs (Produto Interno Bruto) do planeta, mantendo-se, também, entre os primeiros colocados na infame competição pelo título de campeão mundial de desigualdade social.

A situação de recesso dos direitos sociais se dá por todos os seto-res, ainda que com mais gravidade na região Nordeste e entre negros e pardos, tendo as suas expressões mais visíveis no crescimento do desemprego, do trabalho informal e das inúmeras formas de trabalho precarizado, incluindo-se aí o trabalho infantil e, até mesmo, o tra-balho escravo. Na Educação, o crescimento do número de matrículas no ensino fundamental não consegue encobrir os altíssimos índi-ces de reprovação e de analfabetismo funcional ainda existentes. Na Saúde, a visão não é menos apavorante, apesar da implantação do SUS (Sistema Único de Saúde), sendo a falta de leitos disponíveis e as filas para atendimento clínico e emergencial uma perversa rotina. Na Previdência Social, as sucessivas reformas levadas a cabo pelo governo FHC limparam o terreno para o avanço dos planos de previ-

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III. Tema de capa – 20 Anos da Constituição de 1988

dência privada, com a justificativa de redução do déficit do sistema previdenciário público.

De maneira esclarecedora, os grandes progressos realizados na área das garantias sociais deram-se no campo da Assistência Social, por meio da expansão dos programas sociais de caráter compensa-tório, dos quais o Bolsa Família implementado pelo governo Lula é o mais famoso.

Mas, até quando, o tecido social brasileiro suportará a ausência de trabalho formal com a compensação assistencial?

Um caminho para o encontro entre o legal e o realNão são poucas, muito menos de fácil solução, as tarefas ne-

cessárias para que o Brasil tenha não apenas uma “Constituição Cidadã”, mas que seja de fato uma “Nação Cidadã”, na qual todos os seus habitantes sejam reconhecidos como portadores de direitos (cidadãos) e não apenas como simples habitantes de um território (citadinos). No entanto, se são muitas as tarefas a serem realizadas, um princípio norteador não pode deixar de ser apontado, com risco de nos perdermos em meio à difícil luta contra o déficit de cidadania que caracteriza a sociedade brasileira: a construção de um espaço público solidamente republicano e radicalmente democrático.

Para que esse caminho seja trilhado, em primeiro lugar, é preciso fazer com que o ideal republicano de prevalência da coisa pública se afirme plenamente, neutralizando a chaga colonial patrimonialista, que insiste em se fazer presente confundindo os espaços público e privado, por intermédio da utilização do primeiro em benefício do segundo. Esse hábito herdado de nosso passado colonial do uso pri-vado da coisa pública enraizou-se de tal maneira no Estado e na so-ciedade brasileiros, que a própria idéia clássica de cidadania ganhou entre nós um sentido próprio, marcado pela confusão quase genera-lizada entre o que é próprio do ambiente doméstico-familiar e o que é específico do Estado.

Em conseqüência de tal noção pessoalizada de cidadania, é que se fazem presentes no nosso cotidiano, como se fosse algo perfeitamente normal, expressões como “sabe com quem está falando”, “aos amigos tudo, aos inimigos a força da lei”, “QI – quem indica” etc. E o Fernan-do Henrique perdeu essa oportunidade histórica. Que fique regis-trado. E eu já lhe disse, pessoalmente, que ele perdeu essa grande oportunidade histórica. O PSDB não podia ter passado oito anos no governo e não ter proposto a emenda parlamentarista. Quem pensou

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Batalhas para redigir e aplicar a nova Constituição

isso e ainda tentou alguma coisa foi Franco Montoro., que só fazem comprovar a tremenda incompreensão em relação à idéia de cidadania existente no Brasil, até mesmo quando pensada apenas nos termos da igualdade formal perante a lei, já que, por aqui, se todos são formal-mente iguais como cidadãos, alguns privilegiados são realmente muito mais iguais do que outros em virtude das suas relações pessoais.

Em outras palavras, a cidadania patrimonialista brasileira é exa-tamente aquela na qual as relações de caráter privado se impõem sobre as de caráter público, ou seja, entre nós, são as relações de conhecimento – parentesco e amizade – que servem de princípio ar-ticulador da idéia de cidadania e não o critério da impessoalidade. Assim, a fim de que uma cidadania autenticamente republicana – di-recionada para a realização do interesse público por meio de critérios absolutamente impessoais – possa se afirmar no Brasil, é urgente a eliminação deste passado que insiste em não passar, este passado que se reatualiza continuamente fazendo-se presente de forma crô-nica: o passado patrimonialista.

Em segundo lugar, é necessário que se implemente uma decidida oposição ao projeto neoliberal de ampliação dos espaços privados em detrimento dos públicos, oposição esta não apenas à sua apologia de uma economia de mercado, mas também, o que é muito mais grave, ao seu desaguar extremado em uma sociedade de mercado. Se a idéia de um Estado mínimo que não se intrometa nos negócios do mercado já representa um retrocesso no campo dos direitos, principalmente aqueles sociais, a noção de uma sociedade regulada pelos princípios mercadológicos do lucro e da competição assinala um verdadeiro pas-so atrás em termos civilizacionais, já que torna francamente possível a abertura das portas a um processo de mercantilização completa de todos os valores e relações presentes na vida social.

Infelizmente, dois sinais óbvios desse processo de mercantilização da sociedade já são percebidos claramente em curso na atualidade – uma lamentável constatação que só vem reforçar a urgência da resis-tência a ela. De um lado, a redução da idéia de cidadania ao campo do consumo, fazendo com que o ato de ser cidadão represente apenas e tão somente a ação de poder consumir e ter direitos de consumidor.

De outro lado, a transformação da própria política em instrumento de troca, fato que tem a sua face mais aberrante na relação de compra e venda de votos de deputados e senadores levada a cabo na rotina dos trabalhos parlamentares. Ademais, não se pode esquecer do simbolis-mo presente na entrega da responsabilidade pela direção das campa-nhas eleitorais de praticamente todos os partidos políticos aos espe-

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III. Tema de capa – 20 Anos da Carta de 1988

cialistas em marketing, uma inovação que faz com que o debate plural acerca dos projetos de sociedade e\ou governo passe a ser substituído pela apresentação de candidatos como se fossem produtos expostos à venda numa prateleira qualquer de shopping center.

O que se pretende afirmar com isso, em suma, é que, com a in-trodução do ideário neoliberal, o Brasil – e não apenas o Brasil, mas o sistema capitalista como um todo – passa a vivenciar a submissão da própria política (entendida como espaço de afirmação do interes-se público) aos ditames da economia (entendida como afirmação do interesse privado).

Assim, concluímos pensando ser na esteira dessa dupla batalha contra o passado patrimonialista e contra o presente neoliberal, que o “Brasil legal” e o “Brasil real” poderão finalmente se encontrar, fa-zendo com que de tal encontro surja uma nação integrada, com cida-dãos de um único país, sem fraturas internas. Não mais uma bizarra mistura entre Bélgica e Índia (uma “Belíndia”), formada por cidadãos incluídos (os “belgas”) e cidadãos excluídos (os “hindus”), mas uma nação chamada apenas de Brasil, composta por cidadãos plenos, na liberdade e na igualdade – os brasileiros.

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A Carta de 88 e a questão sindical

José Carlos Arouca

A origem de nossa legislação sindical não é boa. Formou-se com o Estado Novo, cópia do fascismo de Mussolini, juntamente com a Justiça do Trabalho, para substituir os sindicatos na solução

dos conflitos coletivos. Por isso mesmo, proibiu-se a greve. O modelo corporativo prendia-se à intervenção do Estado no domínio econômico e o sindicato assumia papel de seu auxiliar para que “a economia da população” fosse “organizada em corporações, e estas, como entida-des representativas das forças do trabalho nacional, colocadas sob a assistência e a proteção do Estado, como órgãos destes”, exercendo “funções delegadas de Poder Público”. Foi com esta roupagem que, em 1943, entrou como Título V da Consolidação das Leis do Trabalho.

Nossa primeira lei sindical, no começo do século XX, atendeu proposta da Igreja Católica que pregava a união do capital e do tra-balho no campo – afinal o Brasil era um país essencialmente agrí-cola. Um decreto de 1903 adotava a forma de organização de tra-balhadores e empregadores rurais, para o estudo, custeio e defesa de seus interesses. Era muito mais uma corporação cooperativa do que sindical. Seguiu-se o decreto de 1907, com a mesma origem e natureza, abrindo seu alcance para todos os trabalhadores, inclusi-ve profissionais liberais, mas sem mudar o âmbito de representação das duas “classes antagônicas”.

Getúlio Vargas chegou ao poder em 1930 e criou o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio para administrar a questão social. Em 1934, a Constituição assegurou a pluralidade sindical e a auto-nomia dos sindicatos, mas pela metade. A experiência teve pequena duração e minguados efeitos. O sistema só permitia dois sindicatos para um mesmo grupo em idêntica base e a tutela ministerial não foi afastada. A pluralidade serviu apenas para abrir espaço para a representação classista no Congresso e na Justiça do Trabalho, con-siderada “a gênese do peleguismo”.

Com o manto ideológico do Estado Novo, denominação pomposa para a ditadura de 1937, veio um decreto-lei de 1939, disciplinando o sindicato como órgão de colaboração com os poderes públicos no desenvolvimento da solidariedade das profissões e de sua subordi-

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nação aos interesses nacionais. Quanto à Justiça do Trabalho foi recriada com poder normativo para resolver os conflitos trabalhistas, até porque a greve era proibida.

O sistema atravessou a Constituição democrática de 1946, que se limitou a dizer no art. 159, que a associação sindical era livre, transferindo para a lei ordinária sua constituição, a representação legal nas convenções coletivas e o exercício de funções delegadas de Poder Público, redação que se repetiu na Constituição de 1969 imposta pelos militares. Finalmente, a Constituição de 1988, no art. 8°, assegurou a mais ampla autonomia conjugada com a unicidade de representação.

A situação presenteA organização sindical disciplinada no Título V, da CLT, deve,

hoje, necessariamente, ser aplicada atentando-se para as normas constitucionais democráticas, de modo a desprezar o que com ela não se compatibiliza. Quanto à liberdade sindical, o inciso V, do art. 8°, da Constituição, deu ênfase à liberdade individual, mas negativa de filiação a sindicato e desligamento a qualquer tempo. Todavia, a liberdade positiva, não só de ingresso, mas de participação nas as-sembléias e campanhas, de votar e ser votado constitui expressão da cidadania e vem posta no inciso II que, apesar de sua redação defeituosa, atribui aos trabalhadores ou empregadores interessados a definição da base territorial de suas organizações sindicais e, por-tanto, também de sua representação.

No tocante à autonomia sindical, a disciplinação da CLT transpor-tou para os arts.514, “a”, e 581, “c”, a natureza dada aos sindicatos de órgãos de colaboração com os poderes públicos, sujeitos à tutela exercida pelo Ministério do Trabalho mediante controle autoritário e repressivo. A representação teria que se ater ao quadro casuístico de atividades e profissões, distribuídas em planos de confederações, um dos empregadores, outro, correspondente, dos trabalhadores, isola-dos os profissionais liberais e trabalhadores autônomos, e excluídos os rurais e servidores públicos.

Possível hoje a definição da atividade empresarial ou do grupo profissional livremente, tendo-se presente apenas o princípio da ra-zoabilidade, que não é observado pelo Ministério do Trabalho e Em-prego, provocando o notável inchaço da estatística divulgada pela imprensa para descrédito do sistema. O enquadramento sindical, in-dividual e coletivo, era resolvido por uma comissão tripartite, na qual

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A Carta de 88 e a questão sindical

o peso da bancada governamental era decisivo, além do que possuía o ministro de Estado poder para avocar e decidir qualquer processo.

O procedimento eleitoral, por sua vez, era regido segundo instru-ções expedidas pelo Ministério tutelar que, de resto, tinha compe-tência para homologar o resultado do pleito. O Ministério controlava também a gestão financeira, impondo que a contabilidade seguisse suas instruções e modelos. A repressão ocupava toda a seção VIII, sob o título Penalidades, indo desde multa até fechamento da entida-de, passando pela suspensão e destituição de seus diretores.

A ingerência do Estado, na atuação interna dos sindicatos, con-fundia-se com o controle político, não sendo permitida a pessoas estranhas qualquer interferência na sua administração ou nos seus serviços, excetuados, naturalmente, os delegados do Ministério do Trabalho, além do que, proibia-se qualquer propaganda de doutrina incompatível com as instituições e os interesses da nação, de candi-datura a cargos eletivos estranhos ao sindicato, e atividades que des-toassem das permitidas: estudo, defesa e coordenação dos interesses profissionais ou econômicos, finalmente, cessão gratuita ou remune-rada da respectiva sede à entidade de índole político-partidária.

O art. 565 só admitia filiação às organizações internacionais me-diante autorização do presidente da República e o art. 565 vedava o exercício de atividade econômica. Quanto à primeira situação, hoje, é livre e comum. CUT, Força Sindical e CGT ligaram-se à Confederação Internacional de Organizações Sindicais Livres (CIOSL), próxima do sindicalismo americano, a CAT compunha o quadro da Confederação Mundial do Trabalho (CMT), católica, e a CGTB, da Federação Sin-dical Mundial (FSM), socialista, quase extinta. No final de 2006, em Congresso realizado na Áustria, CIOSL e CMT fundiram-se na CSI, Confederação Sindical Internacional. CUT, Força Sindical e a UGT participam do seu Conselho. Quanto à segunda, apesar da autono-mia amplíssima, poucos sindicatos foram seduzidos.

A Constituição de 1988 escreveu no art. 8° ser livre a associação profissional ou sindical, especificando no inciso I que a lei não pode-rá exigir autorização do Estado para a fundação de sindicato, veda-das ao Poder Público a interferência e a intervenção na organização sindical.

Excetuada, portanto, a organização com base no sistema de uni-cidade, isto é, um único sindicato para um mesmo ramo de atividade em idêntica base territorial, no mais, a autonomia atende o que se contém na Convenção n° 87, da OIT, que não foi ratificada pelo Bra-sil, ou seja, o direito de constituir, sem autorização prévia organiza-

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ções conforme a escolha dos interessados, bem como o direito de se filiar a elas, de elaborar seus estatutos e regulamentos administrati-vos, de eleger livremente seus representantes, de organizar a gestão e a atividade e de formular o programa de ação, vedada a dissolução ou suspensão pela via administrativa. Para grande parte dos teoriza-dores, o Brasil não poderá ratificar a Convenção enquanto mantiver o regime de sindicato único e a contribuição sindical compulsória.

Os governos Sarney, Collor, Itamar e Fernando Henrique Cardoso, através de seus ministros do Trabalho, apenas pensaram moderni-zar as relações coletivas de trabalho sacrificando a trindade maldita: unicidade, contribuição compulsória e solução arbitral dos conflitos pela via jurisdicional. Já no governo Lula, o Ministério do Trabalho cuidou de retomar o controle das organizações sindicais, restringindo a autonomia. Começou com o ministro Ricardo Berzoini (PT-SP) que, sem competência para tanto, quis regulamentar o inciso IV do art. 8º da Constituição e editou uma portaria para disciplinar o desconto da contribuição dita assistencial. O STF impediu o atrevimento, mas o ministro não se conteve e partiu para o recadastramento das entida-des já registradas, num processo de re-reconhecimento: só passava quem se ajustasse às exigências dos técnicos ministeriais.

Saiu o PT e entrou o PDT de Brizola; Lula trocou Berzoini por Carlos Lupi e veio a Portaria nº 282, de abril de 2007, instituindo o Sistema Mediador ou o registro de acordos e convenções coletivas, mediante depósito eletrônico, via internet. Só que foram ressusci-tados os “analistas”, com a missão de avaliar o que as assembléias aprovaram e decidir o que podia ou não podia figurar num instru-mento normativo; foi a volta do art. 614 que dava ao ministro do Trabalho poder para homologar os acordos e convenções negociados e ajustados para resolver conflitos coletivos; só para empubescer o ministro e sua equipe, a troca da homologação pelo simples registro foi obra da ditadura militar, decreto-lei 229 de 1965. E veio a Porta-ria nº 186, de abril de 2008, dirigida para ordenar o registro sindical. Em suma, a autonomia cantada em estudos sérios perdeu, pouco a pouco, sua força, justo no atual governo, composto, em sua grande maioria, por quem mais a defendeu.

Quanto ao registro, distinguem-se, na Constituição de 1988, as-sociação civil e sindical, ficando reservado para esta tratamento es-pecífico no art. 8°, enquanto a primeira teve disciplinação no art. 5°, incisos XVII a XXI. No inciso I, ficou ressalvada a obrigatoriedade do registro no órgão competente, sem especificá-lo. O Superior Tribu-nal de Justiça, todavia, entendeu que “a Constituição Federal erigiu como postulado a livre associação profissional e sindical, estabele-

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A Carta de 88 e a questão sindical

cendo que a lei não pode exigir autorização do Estado para a funda-ção de sindicato, ressalvando o registro no órgão competente, vedada ao Poder Público a intervenção na organização sindical”.

Com a redemocratização tardia e desatrelamento da tutela esta-tal, mesmo assim, cada ministro expediu pelo menos uma instrução normativa para disciplinar o registro. A última foi de todas a pior, editada na gestão de Carlos Lupi (PDT-RJ), extravasando os des-mandos do ministro anterior, a ponto de ser assumidamente ilegal e inconstitucional, no propósito de recuperar o poder de tutela per-dido, passando por cima do inciso XIX do art. 5°, da Constituição, para permitir a suspensão do registro sindical de federações e pior de tudo, atropelando o inciso II do art. 8°, e instituiu a pluralidade nos órgãos de grau superior da organização sindical. As confederações de trabalhadores e patronais responderam ajuizando ações diretas de inconstitucionalidade. As centrais silenciaram.

No que diz respeito à estrutura, tanto a Constituição de 1946 como a de 1967 permitiam que a lei ordinária adotasse o regime de sindicato único ou de pluralidade organizativa. Assim manteve-se o art. 516, da CLT, pois o inciso II, do art. 8°, da Constituição de 1988, optou pelo primeiro, vedando a criação de mais de uma organização sindical, em qualquer nível, representativa de categoria profissional ou econômica na mesma base territorial. O inciso IV, de outra parte, instituiu o sistema confederativo de representação sindical. As confe-derações de trabalhadores e de empregadores perderam espaço com o crescimento das centrais e, por isso, uniram-se e conseguiram, na Assembléia Constituinte, a inclusão no dispositivo que tratava da fonte de custeio dos sindicatos, do sistema que assegurava sua con-tinuação. Com isto, as centrais ficaram de fora, mesmo existindo de fato, com reconhecimento do Estado que as preferia para formar os colegiados de composição paritária.

As centrais não tinham existência legal, mas também não as-sumiram natureza sindical, constituídas num ambiente de plu-ralismo. Em 1983, foi fundada a Central Única dos Trabalhadores (CUT); em 1986, a Central Geral dos Trabalhadores (CGT); em 1991, a Força Sindical (FS), tendo em 1996 sua primeira dissidência, a So-cial Democracia Sindical (SDS); em 1994, surgiu a Central Autôno-ma dos Trabalhadores (CAT); em 1997, a União Sindical Independen-te (USI). As confederações reagiram e, em 2005, se organizaram na Nova Central Sindical dos Trabalhadores (NCST); em 2006, mesmo não se assumindo como central, a Coordenação Nacional de Lutas (Conlutas) se constituiu como dissidência da CUT; no início de 2008, a CGT, SDS e CAT, com dissidentes da Força Sindical, fundiram-se

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formando a União Geral dos Trabalhadores (UGT). Nesse ano, a Cor-rente Sindical Classista (CSC), desligou-se da CUT para se transfor-mar na Central dos Trabalhadores do Brasil (CTB).

O sistema confederativo inicialmente tinha estrutura vertical e triangular, formado por sindicatos na base, federações no meio e confederação no vértice, num regime de unicidade de categorias, as profissionais em correspondência às econômicas. Tardiamente, só em 2008, a Lei n° 11.648, de 31 de março, reconheceu as centrais, plurais, como entidades de representação geral dos trabalhadores em âmbito nacional.

Os sindicatos, por sua vez, em número de pelo menos cinco, orga-nizam-se em federações, para a coordenação de seus interesses, em nível estadual como regra, podendo, também, ter base interestadual e até nacional. Já as federações, com número mínimo de três podem organizar-se em confederações de âmbito nacional. Perderam eficá-cia os parágrafos do art. 535, de modo que além das confederações nomeadas, outras podem ser criadas, como de fato ocorreu, inclusive do ramo da agricultura.

No que se refere à área geográfica mínima de representação do sindicato deve corresponder a de um município, como exige o inciso II do art. 8° da Constituição. Deste modo, não se permite o sindicato por empresa. No regime da CLT, o ministro do Trabalho outorgava e delimitava a base territorial, agora a teor do texto constitucional, cabe aos trabalhadores e empregadores interessados definir a base territo-rial de suas organizações de classe. Os sindicatos podem ter extensão municipal, intermunicipal, estadual, interestadual e nacional.

A representatividade do sindicato tem a ver com a sua legitima-ção para assumir natureza sindical. Representação, de outra parte, constitui o núcleo abrangido. O art. 8° da Constituição, no inciso III, atribui ao sindicato a defesa de direitos individuais e interesses cole-tivos da categoria considerada como um todo. Por isso, a representa-ção é ampla e vai além do quadro associativo. Os interesses coletivos são definidos na assembléia e defendidos em negociações coletivas, como forma de auto-tutela, servindo, para tanto, a greve.

A receita das organizações sindicais é constituída basicamente pelas contribuições de sócios e sindical. A chamada “mensalidade” ou taxa associativa é fixada livremente pela assembléia geral e seu pagamento regular assegura aos sócios o exercício dos direitos esta-tutários, inclusive de votar e ser votado, além de acesso aos serviços mantidos. O desconto será feito em folha, pelo empregador e por ele recolhido ao sindicato, desde que o trabalhador assim autorize.

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A Carta de 88 e a questão sindical

Já a contribuição sindical teve como modelo a Carta del Lavoro, significando o poder de tributação dado ao sindicato. A contribuição, ex-imposto sindical, foi inserida na Constituição de 1988 diante da pressão das confederações patronais e de trabalhadores. Uma diária/salário, a cada ano, descontada em folha no mês de março e reco-lhida até final de abril, tratando-se de trabalhador assalariado; se avulso, o recolhimento será feito no mês de abril, se autônomo ou profissional liberal, corresponderá a 30% do maior valor de referên-cia, recolhida diretamente em fevereiro, podendo este, quando em-pregado, optar pelo pagamento em função do exercício da profissão. Quanto aos empregadores, o valor corresponde a alíquotas de 0,8% a 0,02% incidentes sobre o capital social, conforme tabela progressiva, com recolhimento em janeiro. O projeto de lei do governo Lula, reco-nhecendo as centrais sindicais, amparou-as financeiramente com a transferência da quota da contribuição sindical que ia para o Minis-tério, nada menos do que 10% do rateio.

A Constituição, no art. 9°, garantiu aos trabalhadores o direito amplo de greve para a defesa dos interesses coletivos definidos na assembléia geral, desde que assegurado o atendimento das necessi-dades inadiáveis da comunidade. A regulamentação veio com a Lei nº 7.783 de 1989, definindo como tais aquelas que não sendo aten-didas, colocam em perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população.

O Estado Democrático de Direito tem como sustentação, dentre outros pilares os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. O regime político cuida de apaziguar o conflito entre capital e trabalho reconhecendo os acordos e convenções coletivas, como tratados de paz, frutos de negociações entre sindicatos profissionais e patronais ou entre os primeiros com uma ou mais empresas, objetivando novas condições de trabalho. Os sindicatos de trabalhadores, diante do que estabelece o inciso VI do art. 8°, detêm o monopólio das negociações coletivas, o que não se dá com os patronais diante da previsão do art. 7°, inciso XXVI, que reconhece, também, os acordos coletivos negociados diretamente com empresas. A assinatura do acordo ou da convenção supõe autorização da assembléia dos interessados, a qual, também, definirá os interesses a serem defendidos nas nego-ciações coletivas.

Importante acentuar que as condições fixadas não poderiam ser contrariadas na celebração de contratos individuais, prevalecendo, quando as mais favoráveis se confrontassem acordos e convenções. No

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III. Tema de capa – 20 Anos da Constituição de 1988

entanto, a Constituição, nos incisos VI, XII e XIII, permitiu flexibilizar, mediante negociações, os dois componentes principais do contrato de trabalho: o salário e a jornada. E a Justiça do Trabalho concilia e julga os dissídios que tenham origem no cumprimento de convenções ou acordos, mesmo quando ocorram entre sindicatos de trabalhadores e empregadores. Recusando-se qualquer das partes à arbitragem, é fa-cultado o ajuizamento do dissídio coletivo, hipótese em que a Justiça do Trabalho exercerá seu poder normativo, respeitadas as disposições convencionais e legais mínimas de proteção ao trabalho.

Quanto à participação política, ficou como presença nos colegia-dos dos órgãos públicos, nos quais os interesses profissionais ou previdenciários sejam objeto de discussão e deliberação, segundo o comando do art. 10 da Constituição. A partir do governo FHC, as confederações de trabalhadores foram marginalizadas, substituídas pelas centrais, embora estranhas ao sistema confederativo da repre-sentação sindical. No que diz respeito à representação nos locais de trabalho, a Constituição de 1988 não foi generosa, diante da resistên-cia patronal, pois o art. 11 só permitiu a eleição de um representante dos trabalhadores e ainda assim apenas nas empresas com mais de 200 empregados, para o fim exclusivo de promover o entendimento direto com o empregador.

Fracassada a tentativa de uma reforma sindical, o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, anunciou outra, uma “mini”, como foi qua-lificada por ele e pela imprensa. E num mesmo dia, vieram duas medidas provisórias, uma, de nº 294 criando o Conselho Nacional de Relações do Trabalho no âmbito do Ministério; outra, de nº 293, reconhecendo as centrais. A inconstitucionalidade da segunda era manifesta diante da literalidade do inciso II do art. 8º da Constitui-ção. Mas a Câmara dos Deputados, atolada de projetos para aprovar, foi obrigada, com a conivência do Poder Executivo, a rejeitar as duas medidas provisórias. As centrais e confederações não reclamaram, acredito mesmo que aplaudiram.

Do hoje para o amanhãNesse quadro, pensar no futuro da organização sindical significa

pensar no avanço da globalização, no fatalismo que não vê remédio para o desemprego, na precarização da previdência social, e princi-palmente, no abandono da ideologia, com renúncia das bandeiras do socialismo de esquerda e até pálido de centro-esquerda. Se depender

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A Carta de 88 e a questão sindical

das lideranças e dos governantes de hoje, o sindicalismo continuará sendo assistencialista, reformista e cada vez mais burocratizado. O Ministério do Trabalho cada vez mais assumirá o controle dos sin-dicatos, recuperando seu poder de tutela repressiva. As negociações coletivas não serão livres enquanto a contribuição assistencial for moeda de troca para aceitação da produção neoliberal do governo Fernando Henrique Cardoso: contrato por prazo determinado para emprego de terceira categoria, por tempo parcial, passível de suspen-são e o banco de horas que liberou o trabalho extraordinário.

Mas necessário pensar, também, na reação política para discutir um novo modelo sindical para o Brasil, atento à nossa realidade e à indispensabilidade da união dos trabalhadores para o enfrentamento com os detentores do poder e do capital na retomada da luta para sua ascensão social que está a exigir o desenvolvimento do país, mas de forma a assegurar que todos participem do avanço tecnológico e científico, tornando verdade o que foi escrito na Constituição brasi-leira: Estado Democrático de Direito fundado, também, na cidada-nia, nos valores sociais do trabalho, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária com erradicação da pobreza, acesso ao Poder Judiciário, direito à educação, à saúde, à moradia, ao lazer, à segu-rança, à previdência social, à proteção à maternidade e à infância, à assistência aos desamparados, à valorização e ao primado do tra-balho, à existência digna conforme os ditames da justiça social e do bem-estar, priorizando o pleno emprego.

Constitui dever do sindicato a defesa dos interesses da classe trabalhadora, de modo que não poderá afastar-se da ação política, de resistência. Seu papel não se restringe às relações de trabalho e às negociações para a obtenção do salário justo capaz de atender as necessidades vitais básicas familiares, com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social além de melhores condições de trabalho, mas vai muito além para a defesa da soberania nacional em toda sua plenitude, compre-endendo a língua, a música, os costumes, o sentimento de nacio-nalidade. A organização da classe trabalhadora deve estar acima da organização dos partidos que representam, como regra, segmentos pouco ou mal identificados. A ação política-sindical tem que aten-der sua vocação internacionalista e lugar para combater a fome e a miséria, o que reclama a desglobalização imposta pelo imperialismo norte-americano.

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III. Tema de capa – 20 Anos da Constituição de 1988

Uma nova Lei Sindical é inevitável, mas se depender do consenso trabalho-capital-estado, as organizações de classe dos trabalhadores pouco avançará. Logo, independentemente da lei, todos os esforços de suas lideranças deverão conduzir à unidade para possibilitar a ação política eficaz e autêntica. Cabe às entidades de trabalhadores elaborar uma proposta unificada de lei sindical que assegure a auto-nomia e a liberdade positiva para defenderem no Congresso e no go-verno onde pontificam antigas lideranças com experiência bastante para entendê-la e atendê-la.

A organização sindical do futuro deve ser pautada conforme os princípios básicos da autonomia, da unidade, da democracia inter-na, da autenticidade, da garantia e exercício do direito de greve, da livre negociação, da ampla representação dos grupos profissionais, tanto nos setores administrativos como no Poder Judiciário.

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IV. ObservatórioPolítico

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Autores

Arnaldo JardimEngenheiro civil, formado pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli/USP), é o 1º vice-líder da bancada do PPS na Câmara Federal, onde também é membro da Co-missão de Minas e Energia e do Grupo de Trabalho para Consolidação das Leis (em que responde pelas áreas de mineração, águas e energia).

Dina Lida KinoshitaMembro da Cátedra Unesco para a Paz, Direitos Humanos, Democracia e Tolerância, do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo.

Arthur PoernerEscritor e jornalista, autor, dentre outros, de O poder jovem.

Fausto Mato GrossoEngenheiro civil, professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, e dirigente nacional do PPS. [email protected] e http://faustomattogrosso.blogspot.com/

Hamilton Garcia de LimaCientista político e professor da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Campos, RJ).

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Problema do Bush?

Arnaldo Jardim

O estouro da bolha especulativo-financeira começou nos EUA e logo se alastrou pelo mundo, colocando em xeque as estru-turas de um capitalismo que privatiza os lucros e socializa os

prejuízos. Alguns chegaram a relembrar a quebra da bolsa em 1929, mas comparações são sempre delicadas, principalmente quando se tratam de períodos tão distintos da nossa história. Além do mais, a atual crise não encontra paralelo na história, tanto pelo volume de recursos envolvidos, como pela amplitude dos seus impactos.

Nada parece suficiente para estancar liquidação violenta nos mercados de ações, nem mesmo a estatização de bancos privados, as reduções drásticas nas taxas de juros e os investimentos públicos, seja nos EUA, na Europa ou na Ásia. O rastro de pólvora não res-peita fronteiras. O que começou no setor financeiro começa a atingir gigantes do setor produtivo, como a General Motors, a General Ele-tric e a Exxon, só para citar algumas empresas que sofreram quedas abruptas no mercado de ações.

Entretanto, mais do que um problema de liquidez, acredito que o maior obstáculo a ser superado é a crise de credibilidade que se instalou no mercado financeiro, o que nos faz questionar se o caso da Enron (de fraudes fiscais e contábeis) foi mesmo isolado. De certo é que numa economia globalizada, quando a principal potência entra em parafuso, o mundo sente os seus efeitos.

Guardadas as devidas proporções, a atual “Crise Global” pode ser didática para o Brasil, partindo do princípio de que ela é resultante de uma combinação entre o descontrole de gastos públicos e priva-

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dos, as brechas regulatórias do mercado e sua primazia em detri-mento da produção, além de uma euforia consumista demasiada.

Não há dúvida de que os EUA têm uma parcela maior de res-ponsabilidade, diante da política belicista do Governo Bush (vide as guerras do Afeganistão e do Iraque), o grande desequilíbrio da sua balança comercial, a política de juros negativos do FED (Federal Re-serve, o Banco Central norte-americano), na época do ex-presidente Alan Greenspan, além da pressão chinesa por insumos básicos. To-dos estes fatores culminaram numa enxurrada de capital no mer-cado que acabou por estimular o seu descolamento dos meios de produção, criando um terreno fértil para especulação.

Assim, criou-se uma bolha especulativo-inflacionária, alimenta-da pelos “dólares vagabundos” que viajam atrás do lucro fácil e que turbinaram as cotações das principais commodities (agrícolas e mi-nerais), pressionaram para baixo a cotação da moeda norte-america-na em todo o mundo e usufruíram de altas taxas de juros de países emergentes, como o Brasil.

Num primeiro momento, essa movimentação impulsionou os paí-ses em desenvolvimento. O Governo Lula sempre apostou na exube-rância externa como motor principal do nosso crescimento. A forte alta nos preços dos produtos da nossa pauta de exportação gerou um aumento de renda, propiciando um ciclo de crescimento no se-tor privado e a ampliação de gastos no setor público. Este fenômeno mundial teve, entre outros efeitos, o aumento de fluxo de capital ao Brasil, possibilitando a expansão do crédito em nossa economia. A crise atual, portanto, coloca ambos os fatores em risco.

No plano externo, o Governo Lula precisa manter uma postura in-cisiva, sem dubiedades, no sentido de cobrar medidas dos governos centrais dos Estados Unidos, da Europa e da Ásia, principalmente dos integrantes do G8, no que diz respeito a sanear o mercado fi-nanceiro. Até agora, o que vimos são compras maciças de ações de instituições financeiras com dinheiro público, medida que até agora se mostrou ineficiente e questionável. Afinal, o povo deve pagar pela irresponsabilidade e a ganância de alguns?

No Brasil, para amenizar os efeitos desta crise, algo que deve ficar mais evidente no início de 2009, o governo, o Congresso Nacional e o Banco Central precisam se debruçar na elaboração de um pacote de medidas preventivas, sobretudo em relação à questão cambial, a política de juros (que continuam os mais altos do mundo e inibem sobremaneira o setor produtivo), além da questão tributária, ainda mais agora que o crédito em todo mundo começa a escassear.

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Problema do Bush?

Precisamos de uma reformulação total da atual política econô-mica para mudar o eixo do crescimento, a começar por uma coorde-nação verdadeira entre políticas fiscais, monetárias e cambiais para prover ao país as fontes de poupança internas para financiar o nosso crescimento de forma sustentável.

A partir de agora, o mercado tende a ficar mais conservador e os investimentos em países emergentes ainda é considerado de ris-co, devido justamente ao que chamamos de “Custo Brasil”, ou seja, infra-estrutura precária, elevada incidência tributária, a falta de in-centivos à exportação, frágeis marcos regulatórios e o uso de altas taxas de juros para combater a inflação.

Num primeiro momento, a revisão no câmbio será fundamental para respaldar e apoiar o fluxo das exportações diante de uma imi-nente queda do preço das commodities. O governo precisa utilizar o câmbio como um instrumento de desenvolvimento, por meio do fortalecimento de programas já existentes como o Proex (Programa de Crédito à Exportação) e oferecer mais linhas de Adiantamento de Contratos de Câmbio (ACC), além de elaborar um Plano de Exporta-ção, capaz de identificar novos mercados, promover a “Marca Brasil” e buscar investir na inovação tecnológica para exportarmos produtos de maior valor agregado.

Se nos EUA um dos estopins da crise foi à inadimplência imobi-liária, por aqui, o mesmo pode acontecer com as vendas a prazos, que chegam a 60 meses, para aquisição de um veículo, por exemplo. Desta maneira, o governo torna-se cúmplice de uma política de juros perversa que estimula o crédito sem lastro que pode fomentar um surto de inadimplência. Quem revisita as declarações do ministro Guido Mantega, no mês de setembro, se espanta com a sua aliena-ção. No dia 10 de setembro, ele convidou os brasileiros a continuar comprando e se endividando. Exatamente, três dias depois do so-corro do governo dos EUA à Fannie Mae e à Freddie Mac e quando qualquer desavisado sabia que a crise se agravava.

Este governo também tem se notabilizado pelo aumento dos gas-tos correntes, ano a ano, o que pode comprometer a sua capacidade de investimentos, mesmo batendo recordes sucessivos de arrecada-ção de impostos. Ou seja, o inchaço da máquina pública pode com-prometer ainda mais a liberação dos recursos para as obras estru-turais do PAC.

Por isso, o controle fiscal é uma medida de extrema importância para assegurar os investimentos em infra-estrutura e das Parcerias Público Privadas (PPPs). Afinal, é preciso garantir o fluxo de investi-

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mentos e de crédito, para atender os grandes empreendimentos no plano da logística, da infra-estrutura, dos desafios da exploração de petróleo e gás que exigem investimentos fartos e a custo adequado.

O caminho é ampliar a oferta de crédito oficial, sem o comprome-timento da estabilidade fiscal. Neste ponto, o BNDES pode desempe-nhar um papel ainda mais destacado na oferta de crédito, mas preci-sa reavaliar suas políticas de concessão de empréstimos sob a ótica do interesse público. Afinal, qual o interesse do BNDES em investir, por exemplo, na fusão da Oi com a Brasil Telecom (?!).

No Congresso Nacional, devemos rever não só a LDO (Lei de Dire-trizes Orçamentárias) como também a LOA (Lei Orçamentária Anual), diante da previsão de desaceleração da economia, para que a execução orçamentária não enfrente os mesmos problemas do início deste ano. Além disso, os parlamentares precisam se mobilizar para a aprova-ção da Reforma Tributária, a Lei Geral das Agências Reguladoras e a Lei do Gás, no sentido de prover estabilidade regulatória necessária para multiplicar os investimentos do setor produtivo e mantermos o crescimento econômico.

No médio prazo, proponho ainda o abatimento da nossa dívida pública interna, que chega a 40,8% do PIB, enquanto em economias que atingiram o grau de investimento a média é de 30%. Para isso, poderíamos fazer uso das nossas reservas em moeda estrangeira (hoje, na casa de US$ 200 bilhões), para readquirir títulos da dívida interna, mantendo o aquecimento da economia e escorando uma re-dução pragmática dos juros.

Temos de abrir mão da “visão escapista” propagada pelo governo. É hora de tomarmos as medidas necessárias, com a agilidade que a gravidade do momento requer, para que seus efeitos não contami-nem a nossa estabilidade econômica conquistada a duras penas ao longo dos últimos 15 anos.

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Chega de violência! Sem guerras justas e injustas!

Dina Lida Kinoshita

O século XX foi palco de duas guerras mundiais e um grande número de guerras localizadas, mas nem por isso menos vio-lentas, que causaram terríveis sofrimentos e imensas perdas

humanas e materiais. Assiste-se na atualidade à solução de certos conflitos exacerbados pela Guerra Fria e ao mesmo tempo afloram outros contidos anteriormente pelas grandes potências, num mundo que vem se redesenhando em função de profundas mudanças em to-das as esferas da vida humana (tecnológicas, econômicas, políticas, sociais e culturais), bem como pelo desenvolvimento econômico de regiões antes atrasadas.

Certas discussões que vêm ocorrendo nos meios de esquerda a respeito de conflitos regionais da atualidade me fizeram dar um pas-seio mental pela nossa história. Refiro-me ao Movimento Comunista Internacional, na tradição Terceiro Internacionalista que se vincula às idéias libertárias e revolucionárias da Revolução de Outubro de 1917. Embora o primeiro decreto da nova Rússia, após a Revolução de Outubro, tenha proclamado como primado do regime Paz, Pão e Terra, deixou de mencionar a liberdade. E os comunistas, em nível internacional, assumiram a vanguarda da mobilização pela paz, po-rém, vi comoa herança da violênciajacobina da Revolução France-sa (alguém já prestou atenção na letra da Marselhesa?), somadaà violência durante a Comuna de Paris e à falta de democracia dos bolcheviques na URSS, influenciaram a todos nós, em nível interna-cional. Como é difícil abandonar este arcabouço!

O historiador inglês Colin Lucas, entre outros, faz uma série de estudos muito interessantes a respeito das conseqüências da violên-cia durantee após osprocessos revolucionários.A questão da liberda-de e da igualdade não é nova e está presente no ideário da Revolução Francesa, razão pela qual, desde então, há pensadores que apontam a necessidade de desfazer o par revolução-terror. E esta discussão perpassa o debate entre marxistas na forma de ditadura do proleta-riado – liberdade democrática.

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Passamos décadas falando em paz, mas acabamos apoiando mui-tas guerras, inventamos uma distinção entre guerras justas e in-justas. Creio que devemos afastar-nos deste paradigma edefender a não-violência. Valter Veltroni já o fez durante a campanha eleitoral na Itália. O fato de ter perdido a eleição não significa que esteja er-rado; a médio e longo prazo suas idéias prevalecerão ou iremos para a barbárie.

FatosPelo menos desde os anos 30 do século passado, com a consoli-

dação do poder stalinista na URSS, a tradição autoritária da III Inter-nacional aflora com muita força. A justificativa da violência deixa de ser defensiva e assume, segundo F. Furet, um “caráter instrumental positivo de instauração do bom regime e da regeneração do homem”. Um primeiro momento em que isso se torna evidente ocorre na Guer-ra Civil Espanhola (1936-1939). Durante este episódio ocorrem vá-rios “ajustes de contas” com líderes das Brigadas Internacionais, e com a derrota da República Espanhola, os generais soviéticos e os comissários políticos que regressam à URSS são todos presos. Al-guns foram assassinados e outros amargaram o Gulag, onde vários morreram enquanto outros só seriam libertados para lutar contra o invasor nazista. Enquanto a palavra de ordem na Espanha era “Pela vossa e pela nossa liberdade”, ao regressar à URSS, estes quadros partidários e militares se depararam com um fechamento total da era dos Processos de Moscou (1935-1938). A primeira grande ambigüi-dade e dubiedade. Data da mesma época a dissolução dos partidos comunistas polonês e palestino e o expurgo em vários outros.

Segundo H. Smoliar, durante a II Guerra Mundial, muitos grupos guerrilheiros operavam nas zonas soviéticas ocupadas pelos nazis-tas. Estes grupos atuavam com mais liberdade, uma vez que o aces-so de militares e comissários se tornara muito difícil. Logo após a derrota do invasor, estes combatentes foram enquadrados, pois na prática, o “livre pensamento” não era tolerado. De novo aparecem dois discursos.

Ainda durante o período da guerra, Stalin formou um Comitê Antifascista enviado aos EUA para influenciar o povo americano vi-sando à organização de um movimento pela abertura da II Frente. Este Comitê era constituído de artistas e escritores, em sua maioria, judeus comunistas soviéticos. Entre 1948 e 1952, os membros deste Comitê foram presos e assassinados.

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Chega de violência! Sem guerras justas e injustas!

Em todos estes episódios, prevaleceu a teoria conspiratória, em que velhos companheiros experimentados poderiam ter-se passado para o inimigo. Neste período, ocorre uma série de episódios seme-lhantes nas Repúblicas Populares dos quais o processo de Slanski e Arthur London, na Checoslováquia, é o mais notório.

Em entrevista, Armênio Guedes recorda as aulas de história mi-nistradas na Escola de Formação de Quadros em Moscou, em meados dos anos 50. A professora afirmava o papel progressista do imperia-lismo russo na Ásia Central ao passo que negava este papel ao impe-rialismo inglês. Armênio discordava desta abordagem na medida em que ambos os capitalismos, ao chegarem a uma colônia, significavam um avanço nos modos de produção e nas relações de trabalho que não se encaixavam nos sistemas feudais, uma vez que surgiam nas colônias a indústria e o proletariado. Mas a lógica sempre era a de justificar tudo no âmbito do que viriam a ser as repúblicas soviéticas e condenar as ditas democracias burguesas.

Uma das resoluções dos Acordos de Yalta se referia à dissolução da III Internacional. Entretanto no imediato pós-guerra todas as es-truturas desta organização foram reconstruídas através do Comin-form, do Conselho Mundial da Paz, da Federação Sindical Mundial, da Federação Internacional de Mulheres Democráticas, da Federação Mundial da Juventude Democrática e da Revista Internacional. Após o lançamento das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki e com o advento da Guerra Fria, ao mesmo tempo em que se acentuavam as campanhas pela paz e pela abolição de artefatos bélicos de destrui-ção em massa, através dos organismos recriados já citados, assistiu-se a uma escalada armamentista jamais vista anteriormente e a uma série de conflitos regionais tais como os da Coréia, do Vietnã, do Irã com Iraque e do Afeganistão, entre outros, e a sempre preocupante tensão no Oriente Médio onde a URSS e as Repúblicas Populares apóiam um dos contendores. A cada avanço de um dos blocos, vinha uma resposta do outro lado.

Sem dúvida, houve no pós-guerra um decidido apoio internacio-nalista para a libertação dos povos do jugo colonial na África e Ásia e a criação de um vigoroso movimento dos não-alinhados, precursor do G-77. Por outro lado, sentindo-se cercado pelos mísseis da OTAN e da ASEAN, e pela existência de bases militares ocidentais em to-dos os mares e oceanos, o socialismo real busca desesperadamente parceiros, apoios logísticos e materiais que acarretam a crise dos mísseis em Cuba ou criam-se as ilusões de implantação de regimes socialistas em sociedades, muitas vezes tribais, na África, apesar do custo que acarretava aos povos que viviam na esfera do socialismo

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real e da dificuldade de construir sociedades socialistas em países atrasados. Neste caso, a posição soviética também foi ambígua, sen-do difícil a distinção entre os interesses do Estado Soviético e os in-teresses do Movimento Comunista Internacional.

Ressalte-se que, durante a Guerra Fria, praticamente todos os países acabaram sendo peões das duas superpotências e alguns peões, ao longo do tempo, mudavam de lado.

Apesar do degelo khruscheviano com dezenas de milhares de pes-soas libertadas do Gulag, da distensão na política internacional e do discurso da coexistência pacífica, este quadro não muda muito. Internamente, na URSS, Khruschev foi derrotado e substituído no poder por uma troika liderada por Brezhnev, responsável por um retrocesso neo-stalinista onde dissidentes não eram mais internados no Gulag, mas em hospícios.

Esta política só começa a mudar de fato com a “perestroika” e a “glasnost” de Gorbachev, num país em que o tecido social já está muito esgarçado e a Guerra no Afeganistão bem como a escalada armamentista até então jamais vista empreendida pelo presidente Reagan, nocauteiam a URSS economicamente e fica escancarado o esgotamento do modelo do socialismo real devido a um acúmulo de erros ao longo de décadas, em que a falta de democracia e liberdade é um fator de suma importância.

De todo modo, os anos gorbachevianos são muito importantes para o mundo, na medida em que conceitos novos são incorporados. Na era nuclear, é preciso reconhecer a existência de valores gerais que interessam a toda a humanidade e que estão acima dos inte-resses de classe ou nação. Nestas condições, é preciso solucionar primeiro os problemas globais de sobrevivência da humanidade (paz, desarmamento, meio ambiente, energia etc.) e só depois a questão das revoluções. Dentro desta lógica, existe um limite objetivo para a confrontação de classe em nível internacional bem como para a solidariedade de classe. Como corolário, as formas de luta de clas-ses devem ser mais sutis e sofisticadas, não podendo ultrapassar as fronteiras nacionais. É preciso salvar o mundo para transformá-lo, mas não é mais possível transformar o mundo para salvá-lo. Cer-tas teses da socialdemocracia são retomadas e discutidas. A Terra é considerada a casa comum de toda a humanidade e se consolida o conceito de que a via militar não é solução para dirimir conflitos uma vez que numa guerra moderna não há vencedores nem vencidos. Há um esforço para desideologizar as guerras bem como pela destrui-ção e abolição dos artefatos bélicos de destruição em massa. Neste

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contexto torna-se imperiosa a democratização da ONU e de todos os organismos multilaterais internacionais pela governança global demo-crática.

A esquerda democrática moderna já vinha incorporando estes conceitos desde os anos 70. O PCB consagra esta política em seu IX Congresso, realizado em 1991, e reitera-a no X Congresso que dá origem ao PPS.

A esquerda democrática moderna e os resquícios da velha política

No novo mundo que se delineia no fim da Era dos Extremos, forças conservadoras de direita e de esquerda continuam se confrontando.

Na África, alguns conflitos, como o de Angola, foram solucionados enquanto outros surgem com muita violência. Este continente é pal-co de regimes antidemocráticos com lutas tribais e além dos interes-ses históricos dos antigos colonizadores europeus, países emergen-tes buscam fincar posições visando uma nova divisão dos recursos naturais da região.

Na América do Sul, as ditaduras militares foram derrotadas, e, na América Central, houve acordos de paz com os grupos guerrilheiros. Na Colômbia, a maioria dos grupos de esquerda se uniu num partido político e optou pela luta no terreno democrático. Os únicos rema-nescentes que seguem pela via militar são as FARC e o governo deste país apóia os paramilitares de direita das AUC.

Persiste o barril de pólvora no Oriente Médio e na Ásia Central com suas diversas facetas numa região estratégica e detentora das maiores fontes de petróleo mundiais. São vários conflitos que se es-tendem numa vasta região que engloba Índia-Paquistão, Afeganistão, Irã, Iraque, o conflito palestino-israelense, a região dos Bálcãs (no sul da Europa) e atualmente atinge as franjas da antiga URSS no Cáuca-so e na Ásia Central. Todos estes conflitos apresentam formas mistas ou transicionais uma vez que têm características étnicas, raciais e de fundamentalismo religioso e altamente correlacionados a problemas econômicos e de deslocamentos populacionais e alguns destes países são detentores de artefatos bélicos de destruição em massa.

Os conservadores da direita, sobretudo nos EUA, com seus alia-dos da OTAN não desistem da velha ordem, não atentam para a crise ambiental na medida em que se recusam a assinar os Protocolos de Kyoto e os seus sucessores, e tentam normalizar vários destes confli-

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tos pela via armada, notadamente no Afeganistão e no Iraque. A es-querda conservadora continua utilizando um discurso antiimperia-lista ultrapassado de uma lógica primária na qual é inimigo dos EUA necessariamente seria amigo da esquerda. E defende qualquer grupo de esquerda ainda que utilize métodos injustificáveis, na lógica de que os fins justificam os meios. Assim continuam sendo justificadas as guerras justas e injustas.

Seria impossível tratar neste espaço de todos estes conflitos. Pre-tendo me ater a alguns deles e advogar um novo paradigma de solu-ção de conflitos pela negociação e pelo diálogo na medida em que a via militar não leva a soluções de paz duradouras.

Não há muita diferença, por exemplo, entre a guerrilha colombiana e o conflito israelense-palestino, no Iraque ou no Afeganistão, apesar de ocupação de território por potências estrangeiras nos três últimos.

Quem vamos mesmo defender no Afeganistão, no Iraque e no conflito palestino-israelense?

O Iraque, berço de antigas civilizações, é um dos problemas deixa-dos pelo Império Britânico no Oriente Médio. Estado artificial criado nos anos 20 do século passado é um aglomerado de três províncias do Império Otomano que entra em colapso no fim da I Guerra Mun-dial, com populações árabes xiitas e sunitas e o complicador curdo. É uma região riquíssima em petróleo e uma das poucas com recursos hídricos expressivos e que sofre instabilidades sociopolíticas inter-nas ao longo do século XX. Saddam Hussein dá um golpe e se torna ditador em 1980. Alguém, por acaso se lembra que os americanos, ao perderem um de seus grandes aliados, o Irã, após a Revolução Islâmica, apoiaram Saddam Hussein na guerra Irã-Iraque para der-rubar os ayatolás e quando Saddam contrariou os seus interesses no Kuweit, virou o demônio? Mas Saddam foi um ditador brutal e matou centenas de milhares de curdos e comunistas iraquianos. Por que ninguém fala da questão curda pelo menos tão antiga quanto a palestino-israelense?

O Afeganistão fazia parte da Rota da Seda e é ponto estratégico desde a Antiguidade. O conflito afegão não é recente, e foi objeto de um artigo de Engels no século XIX, e Rudyard Kipling, o poeta do colonialismo inglês na Ásia, denominava-o “O Grande Jogo”, em que se definiam as complicadas maquinações anglo-russas pelo controle da Ásia Central. Mais precisamente sobre as regiões situadas entre o norte da Índia e o Mar Cáspio, enfrentamento travado entre a Rai-nha Vitória e os czares da Rússia ao longo do século XIX, coadjuvado pelo Império Otomano. Desde o colapso da URSS, este embate vem

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se reproduzindo, mas os EUA substituíram a Grã-Bretanha no papel de fazer frente a uma Rússia fragilizada. Na atualidade, trata-se da dominação das grandes reservas petrolíferas da bacia do Mar Cáspio e do controle dos dutos que levam esta riqueza para os grandes cen-tros consumidores. No entanto, um fato novo vem permeando esta disputa de titãs e ganhando vulto – o fundamentalismo islâmico. Pois bem, os americanos armaram até os dentes, nos anos 80, o que havia de mais conservador e retrógrado naquelas terras para derrotar um governo modernizador apoiado pela URSS, no contexto da Guerra Fria. E o feitiço viroucontra o feiticeiro. E setores da esquerda, na lógica de “quem é inimigo dos EUA é nosso amigo”, apóiam grupos como os mujahedin e taleban ou Akhmadinejad, presidente iraniano apoiado pelos ayatolás.

A situação do conflito palestino-israelense é mais complexa mas está na mesma lógica. Não há bandidos e mocinhos neste conflito. Chamar o Estado de Israel de terrorista é uma visão parcial na me-dida em que, ao longo de décadas, nenhum país árabe da região re-conheceu este Estado criado por uma Resolução da ONU e, por sua vez,ao mesmo tempo, todos estes paísesfacilitaramas incursões de grupos guerrilheiros palestinos que atacavam a população civil ju-daica cotidianamente. Estes fatos, objetivamente contribuíram para o crescimento das forças de direita no seio da sociedade israelense que utilizava soberbamente o discurso da segurança num país onde parte expressiva da população era constituída por sobreviventes do Holocausto e seus parentes e descendentes. Em alguns pontos, o ter-ritório israelense tinha uma largura inferior a 10 km e havia ameaças diárias à integridade do Estado. O governo tomou então a decisão de ocupar os territórios da Cisjordânia e Gaza, as colinas do Golan, o Sinai e Jerusalém Oriental. E a extrema direita adotou o discurso dos fundamentalistas religiosos da Grande Israel bíblica que inclui a Judéia e Samaria. O PC israelense luta pela criação do Estado Pa-lestino (sem solução, até o momento) desde 1948, visando ao cum-primento integral da Resolução da ONU e é contrário à ocupação, há mais de quatro décadas. Mas as forças de centro-esquerda, socia-listas sionistas (a partir dos anos 80) e trabalhistas (num processo de aggiornamento pós-Guerra Fria) tentam resolver o conflito com o campo da paz palestino dentro da OLP. Cada vez que se chega pró-ximo a uma solução, as forças fundamentalistas de ambos os lados se revezam em provocações e os atentados terroristas inviabilizam as negociações. Apesar disto, os governos de direita que se sucediam devolveram o Sinai e fizeram as pazes com o Egito. Mas não assumi-ram completara tarefa. Ao contrário, foram acirrando cada vez mais a situação e os grupos que optam pela via militar foram se fortale-

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cendo e adquirindo caráter fundamentalista. Vamos ficar culpando Israel e apoiar o Hamas, a Jihad, o Hezbolah? Esta é uma questão de ovo e galinha; enquanto ficarmos tentando descobrir quem veio antes, o ovo ou a galinha, vamos patinar. Sem acusações mútuas, as forças laicas do campo da paz depalestinos e israelenses devem re-tomar as negociações o quanto antes por uma paz justa e duradoura para todos os povos da região.

É preciso retomar o discurso de “nossa casa comum” de Gor-bachev, a luta pela redemocratização da ONU e todos os organis-mos multilaterais bem como pela governança global democrática. A esquerda democrática mundial assumiu este discurso e o PCB, em particular, na Resolução Política do IX Congresso e não há razão para retroceder. As “guerras justas” não ajudam neste sentido, ao contrário, só atrapalham. Em um congresso de cientistas america-nos e soviéticos, realizado no fim dos anos 80, Andrey Y. Melville chama a atenção para “o obstáculo mais importante e talvez o mais difícil de vencer: a mudança da mentalidade humana; as barreiras psicológicas e emocionais resultam da relutância natural da mente humana em aceitar mudanças. Trata-se de uma defesa psicológica, muitas vezes atrativa, que nos salva do incômodo de pensar nos di-fíceis problemas da atualidade e permite o uso de idéias e conceitos ultrapassados, porém bem conhecidos. Assim, o papel exercido pela “Cultura da Paz”, através da educação e pela informação, torna-se fundamental tanto para a formação dos jovens como para as gera-ções adultas que cresceram com as tradições do passado e freqüen-temente consideram-nas como normas únicas”.

E como afirma Peter Demant, “os graves problemas de violência que acometem a humanidade neste momento podem evoluir, a longo prazo, através de uma transição difícil e dolorosa para uma situação mais positiva em que através da auto organização, (ver: Prigogine, I. e Stenger, I em “Order out of Chaos: man’s new dialog with nature”), a humanidade seja capaz de controlar os seus destinos para viver em paz, com liberdade, democracia e justiça social numa sociedade planetária de identidades reconstruídas. Nunca houve um contraste tão agudo entre esperança e realização. Sem determinismos, esta é uma possibilidade”.

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Tsunami sistêmico com batida de umbu no Pelô

Arthur Poerner

Até mesmo no Pelourinho, sorvendo batida de umbu depois de uma palestra, a convite da UNE, na Universidade Católica de Salvador, foi impossível ignorar os estrépitos e as marolas do tsu-

nami no coração do capitalismo, no “areópago do mercado mundial” do poema que Drummond dedicou ao FMI. Esse Mercado que, como Deus, mereceria inicial maiúscula, padece de moléstia grave e insidiosa, con-seqüência da desenfreada cobiça que estimulou nos banqueiros e espe-culadores, sedentos de lucros fáceis, sem trabalho, a qualquer preço.

O diagnóstico que grassava entre os turistas das mesas próximas já era dos mais sombrios: crise sistêmica, isto é, bem mais ampla e generalizada do que as periféricas que acometeram alguns países e regiões nas últimas décadas, como a da Ásia, em 1997. Na medicina, equivaleria a câncer com metástase. As células afetadas que migram, há ano e meio, da lesão inicial, no sistema de crédito imobiliário e hipotecário dos Estados Unidos, estão provocando a maior crise do sistema desde a Grande Depressão que se seguiu ao crash da Bolsa de Nova Iorque em 1929, com a derrota do capital financeiro e o “formidá-vel enterro” de uma quimera que não é a única nem a “última” – como a do Augusto dos Anjos – do capitalismo, mas, certamente, uma das mais resistentes: Ele, o Mercado, seria auto-regulável. Falácia pro-movida, no início dos anos 80, conforme o megainvestidor húngaro-americano George Soros, a “dogma ideológico”, pelo presidente Ronald Reagan e pela primeira-ministra britânica Margareth Thatcher.

O candidato republicano John McCain perdeu logo alguns pon-tos na disputa com o democrata Barack Obama, por insistir na tese da solidez dos fundamentos da economia norte-americana, um dos sagrados mandamentos dos fundamentalistas do Mercado, os ado-radores do Charging Bull, o touro de bronze que simboliza a força do capitalismo no distrito financeiro nova-iorquino.

O que eles estarão pensando agora, depois da estatização de ban-cos e do pacotão antifalências, socorro governamental, à custa dos contribuintes (socialização dos prejuízos), de US$ 850 bilhões para

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IV. Observatório Político

a compra dos papéis podres das subprimes, que os economistas es-tão chamando de “lixo tóxico” – para Soros, um band-aid para quem está com hemorragia? E as receitas neoliberais que nos prescreviam? Será que os “irmãos do Norte”, como eram chamados pelos “revolu-cionários” da ditadura, entendem de finanças tanto quanto de direi-tos humanos e respeitam os princípios da economia tanto quanto o Direito Internacional e a autodeterminação dos povos?

Sei que, lá do alto dos templos de Wall Street, Ele, que tudo vê, sabe, mercantiliza e coisifica, inclusive eu e o umbu, pode não gostar, mas quero mais uma batida. Que desce ainda mais redonda quando me lembro de que, antes de ACM, a Bahia viveu sob o reinado de Ju-raci Magalhães, também criador, em 1965, de um dogma ideológico, sacralizado pela ditadura e responsável por uma era de vassalagem em nossa política externa: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Não era, como também não é necessariamente, mau para nós o que é ruim para eles.

Com a redução da nossa vulnerabilidade externa nos governos Lula, podemos, ao longo do maremoto, diminuir, com os três outros emergentes do Bric (Rússia, Índia e China), a distância que nos sepa-ra dos países ricos. Desde 2003, a dependência do Brasil em relação às exportações para os EUA caiu de mais de 23% para 15%; na Chi-na, é inferior a 3%. E é por isso que o vagalhão chega ao Pelô como marola, sem os redemoinhos em que se afogam os bancos norte-ame-ricanos. Aqui, o processo de submissão ao Consenso de Washington, iniciado com a atabalhoada abertura da economia no governo Collor e continuado com as privatizações e desnacionalizações de Fernando Henrique, ainda pôde ser contido.

Embora o colapso de Wall Street assinale a decadência do império norte-americano e a História já tenha demonstrado que hegemonias e sistemas não são eternos, ainda não é hora de comemorar o acerto das previsões de Marx quanto ao fim do capitalismo. Mesmo porque é impossível prever que sistema o sucederia. Para o cientista político norte-americano Imannuel Wallerstein, no momento, “a única alter-nativa no cardápio é o Fórum Social Mundial”.

No que se refere à hegemonia, que ele define como “um fenômeno do sistema capitalista mundial”, a China desponta como favorita, inclusive porque já vem promovendo a reconversão da sua economia para o mercado interno. A se confirmar o prognóstico, que o em-baixador brasileiro Miguel Osório de Almeida já fazia, baseado em projeções econométricas, há algumas décadas, eu me permitirei uma profecia: a Grande Muralha desbancará a Disneylândia como supre-mo objetivo de consumo cultural da nossa classe média.

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ONGs, sem preconceitos

Fausto Mato Grosso

ONGs são comitês da cidadania e surgiram para ajudar a construir a sociedade democrá-tica com que todos sonham”

(Herbert de Souza – Betinho)

As organizações não-governamentais (ONGs) estão no centro de um grande debate. A tônica das discussões tem sido, quase sempre, a suspeição dos seus financiamentos e objetivos. A

“teoria da conspiração” volta à tona com a mesma sanha do pas-sado quando apontava para o “ouro de Moscou” e para as “ligações com potências estrangeiras”. Não se discute a validade ou não de suas propostas e sim se busca descredenciá-las como interlocutoras. Agora é o ouro do príncipe Charles, da rainha Sofia, de alguma mul-tinacional ou dos países centrais interessados em nossos recursos naturais.

No geral, essa discussão é eivada de uma grande confusão. Afinal se tem algo difícil de se definir é esse tipo de instituição, pela ampli-tude e fluidez de seu campo de existência. É ONG desde a Pastoral da Criança, da dra. Zilda Arns, exemplar no combate à desnutrição infantil, aliás, com dinheiro público bem usado, até “Meu Guri” da esposa do deputado Paulo Pereira da Silva (Paulinho), da Força Sin-dical, agraciada com generosas doações do BNDES.

Tudo que não é governo, nem mercado, pode ser classificado como ONG. A expressão surgiu pela primeira vez no âmbito da ONU, após a segunda guerra mundial, para designar organizações supra-nacionais e internacionais que não foram estabelecidas por acordos governamentais, ou seja, as ONGs nasceram primariamente como organizações internacionais e, desde esse início, são reconhecidas pelos relevantes serviços prestados à humanidade – Anistia Interna-cional, Greenpeace, Médicos pela Paz e outras tantas que se dedicam a defesa de valores e princípios universais, como direitos humanos, conservação ambiental, tolerância e paz.

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Os impulsos mais recentes para a proliferação dessas instituições foram a revolução científico-tecnológica e a globalização. Esse dois fatores, inter-relacionados que são, produziram o espaço virtual on-line, fazendo desaparecer o tempo e a distância no intercâmbio entre os homens, ao mesmo tempo em que modificava o papel dos Estados nacionais. A moeda e os bancos centrais – a expressão mais tradi-cional do poder nacional – hoje são controlados pelas instituições mundiais do capital e pelo mercado da economia desprovida de base material.

Paralelamente ao Estado e ao mercado, surgiu o chamado Ter-ceiro Setor, espaço de existência das ONGs. Esse novo segmento é a nova sociedade civil assumindo o papel de fiscalização das políti-cas públicas e das estripulias deletérias do mercado. São elas que começam também a cumprir funções na esfera pública não-estatal, muitas vezes com maior competência que o Estado crescentemente despreparado para cumprir as suas presentes e futuras indelegáveis funções.

Nesse período, dois segmentos com visões antagônicas confluíram para o apoio e criação das ONGs, o pensamento neoliberal, que as via como um artifício para esvaziamento do Estado, que deveria ser mínimo, e o pensamento libertário, que enxergava a oportunidade de controlá-lo, ao controlar suas políticas. O pensamento de direita e de esquerda, com diferentes perspectivas, se somaram, então, na idéia de criação dessas organizações.

Portanto, pode-se gostar ou não gostar das ONGs, mas elas vie-ram para ficar, por que não são frutos de conspirações e sim, formas novas que estão nascendo sintonizadas com o processo de implan-tação de um novo momento da civilização, marcado pela aceleração das mudanças do padrão produtivo, que clama por novos atores e novas relações sociais.

Que as ONGs nos diversos países se articulem internacionalmen-te não há nada a se criticar, afinal os Estados se articulam também nesse nível e ainda mais evidente é a internacionalização do mercado e do capital. Essa articulação internacional das ONGs tem o gran-de mérito de permitir a atuação local da cidadania, informada pela experiência internacional. O que estamos vendo é o surgimento de uma opinião pública e de uma sociedade civil mundiais, com maior possibilidade de enfrentar os desafios da humanização global. Quem sabe o conceito de estrangeiro esteja com os dias contados.

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ONGs, sem preconceito

Essa articulação global das ONGs tem se dado através do meca-nismo ultra sofisticado de formações de redes de atores sociais locais e globais, que lhes dá enorme capacidade de influenciar localmente, com a visão de mundo e mundialmente com a riqueza da visão das diversas comunidades locais. Essas redes estão cada vez mais pre-sentes nas decisões mundiais, realizando reuniões paralelas às dos chefes de Estados, e a das agências de articulação do capital. Para desespero destes, as redes estão em todas as partes e são difíceis de combater, afinal, elas nunca são, estão em constantes vir-a-ser típicos do processo de mudanças rápidas e generalizadas do tempo em que vivemos.

Mas e a corrupção, o uso indevido do dinheiro público e os atrela-mentos espúrios que a política tem feito delas? Serão elas antros de corrupção? A transparência, o controle público, as CPIs e a Justiça são os remédios para isso, quando o dinheiro público estiver envol-vido. Tenho certeza que menos será encontrado de nocivo do que no Estado e no mercado.

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A tragédia do clientelismo

Hamilton Garcia de Lima

Vem se tornando bastante comum, no meio acadêmico e entre os formadores de opinião, a percepção de que o clientelismo é um falso problema, pois manifestação hodierna, mesmo

que enviesada, da inclusão política e social. Para estes intelectuais, o clientelismo vem ao encontro dos anseios de cidadania dos excluí-dos, derivando daí a razão de sua popularidade entre as maiorias carentes de políticas públicas e sua impopularidade entre a minoria já atendida por elas ou pagadora de serviços privados.

Os argumentos positivantes do clientelismo são, como ocorre em grande medida à maioria dos produtos da perspectiva funcionalis-ta de viés conservador, bastante simplificadores, não obstante sua aparente sofisticação. O aspecto mais problemático deste tipo de abordagem encontra-se em sua relativa alienação histórica: partin-do de uma literatura estrangeira e de sua tosca adaptação ao nosso contexto nacional, perde-se de vista que não se trata de fenômeno assincrônico, ou seja, desconectado de um contexto específico que lhe empresta determinado sentido em vez de outro.

Se alguma inteligibilidade tal análise nos permitisse, ela não ultrapassaria os umbrais das periferias das maiores cidades brasi-leiras nos anos 1960-1980, quando a expansão econômica criou as grandes cidades-dormitório carentes de Estado. Neste cenário, as políticas públicas adentraram a vida cotidiana pela mão de chefes políticos locais que manipulavam discricionariamente recursos de estruturas estatais embotadas – como foi o caso da Baixada Flumi-nense sob o tenorismo e o chaguismo.

Hoje, ao contrário, a função social do clientelismo é marginal-mente prover serviços onde eles não existem e muito mais perverter estruturas estatais razoavelmente desenvolvidas e estruturadas, em proveito de grupos privados de poder. Não que não existam buracos na malha estatal de serviços – no plano federal, estadual e muni-cipal –, mas tais “buracos” são politicamente construídos visando

IV. Observatório Político

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A tragédia do clientelismo

a enfraquecer o Estado em proveito do empoderamento dos grupos que controlam o voto popular.

Neste novo contexto predominante, em níveis diferentes confor-me o desenvolvimento regional, estes “buracos negros” atraem uma massa compacta de interesses privados que impedem o fluxo nor-mal do interesse público, promovendo-o por caminhos perversos. Apesar da irracionalidade burocrática do procedimento, sua legiti-mação ocorre pela prevalência do senso comum popular, que tende a perceber o interessse privado como mais palpável e seguro que o interesse público – pecado venial da superficialidade leiga, que não poderia ser repetido por intelectuais de alta cultura.

Na modernidade, o interesse público é provido através de estru-turas burocráticas, cujos objetivos são o de maximizar os benefícios ao maior número possível de pessoas a um custo economicamente sustentável. Nela, o clientelismo atua não como agente catalizador de políticas públicas, como na protomodernidade, mas como corro-sivo de estruturas burocráticas que as canalizariam em proveito da cidadania, restringindo, ao invés de ampliar, o alcance e a efetivi-dade das políticas de bem-estar.

É o caso, por exemplo, das freqüentes interferências de verea-dores e deputados, ou pretendentes, nas organizações públicas de ensino, saúde, assistência social etc., visando a privatizar parcelas de suas estruturas de atendimento em benefício de seus cabos elei-torais e potenciais eleitores. Neste esforço político predatório, os agentes públicos são coagidos, sob pena de perderem seus cargos ou bônus de promoção, a fraudarem a ética pública em proveito da ética egoísta dos dirigentes do Estado e seus asseclas, sacrificando, em proveito de critérios eleitorais, os critérios técnicos e impessoais de seleção para admissão em creches, escolas e leitos hospitalares dependentes da rede pública.

O clientelismo, sob esta ótica, é muito mais perverso do que ou-trora, quando as estruturas burocráticas do Estado mal se forma-vam. Isto porque, hoje, ele se limita a corromper as possibilidades de atendimento generalizado de boa qualidade, criando, de quebra, um grave problema político: a desmotivação e o desvirtuamento do funcionário público, bem como a fragmentação da própria cidada-nia. Ambas as vítimas do clientelismo perdem sua autonomia e pas-sam a cultivar laços de dependência com quadrilhas “políticas” que as transformam em verdadeiros vassalos, pedintes de seus algozes, em meio a uma anomia civil e corporativa que lembra mais o velho “coronelismo” que a tão almejada modernidade.

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As eleições municipais que acabam de se materializar, sem as reformas políticas que fortaleceriam os partidos e outros atores co-letivos democráticos, em vários de seus momentos, repuseram o status quo do clientelismo hodierno e seus malefícios, marca regis-trada do Brasil: um país desigual e injusto que tropeça na tacanhez histórica de sua elite política.

IV. Observatório Político

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V. Batalhadas Idéias

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Autores

Alberto AggioGraduado em História pela Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP (1982), tem mestrado (1990) e doutorado (1996) em História Social pela mesma fa-culdade. Realizou estudos de pós-doutoramento na área de História da América Con-temporânea na Universidade de Valencia (Espanha), entre 1997 e 1998. É atualmente professor adjunto da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, campus de Franca.

Tony JudtHistoriador britânico, diretor desde 1995 do Instituto Erich Maria Remarque de Estu-dos Europeus da New York University, autor, dentre outros, do livro Após-guerra: uma história da Europa a partir de 1945.

Clayton Cardoso RomanoDoutor em História pela UNESP, campus de Franca.

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Uma identidade reformista para a esquerda

Alberto Aggio

Qual o significado, no mundo e no Brasil de hoje, de uma es-querda contemporânea, reformista e transformadora? A iden-tidade da esquerda – algo que, a bem da verdade, sempre

esteve em questão – é um tema em permanente debate e permane-ce aberto no século XXI. Como sabemos, o problema é intrincado e merece muito cuidado tanto na aproximação a ele quanto no seu desenvolvimento. O que se quer aqui é organizar algumas idéias e um conjunto de argumentos com o intuito de contribuir para uma reflexão sem a qual ficará cada vez mais difícil agir no presente e projetar o futuro.

De início, podemos anotar que, em sua integralidade, uma es-querda com esse perfil ainda não existe, não está abrigada em ne-nhum partido político e tampouco se encontra expressa oficialmente em governos ao redor do mundo – ainda que, em alguns países, pos-sa se notar vivamente que um processo rumo a sua construção ga-nhe um curso expressivo (a despeito de todas as suas dificuldades). Assim, é forçoso reconhecer, antes de mais nada, que a afirmação de uma esquerda com esse perfil configura-se como uma criação polí-tica e cultural de grande envergadura. Mas ela não se inicia nem se desenvolve a partir do vazio.

Em função da crise que hoje vive a esquerda, há uma necessi-dade imperiosa de que o percurso dessa criação revele capacidade para superar várias idéias que se afirmaram como identificadoras da esquerda ao longo da história – e que representaram verdadeiros

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V. Batalha das Idéias

desastres políticos – e, ao mesmo tempo, reafirmar outras tantas, às vezes equivocadamente desprezadas.

Como sabemos, “esquerda” é um conceito contextual e situacio-nal. Ela se define em relação a uma direita e a um centro, ambos histórica e conjunturalmente determinados. Mesmo assim é possível rascunhar algumas referências ou valores da esquerda que perma-necem como eixos da sua identidade política e cultural, a saber: (1) a defesa do bem-estar social ao invés do bem-estar individual; (2) a valorização das responsabilidades coletivas; (3) a extensão da igual-dade de oportunidades para todos; (4) a vigência de um Estado forte que seja capaz de corrigir as injustiças sociais por meio de uma ação distributivista da riqueza material produzida pela sociedade; e, por fim,(5) a perspectiva de uma mudança das estruturas de poder por meio da democratização e da participação política.1

Além desses propósitos de caráter geral, que deram e ainda dão sustentação a uma prática política de esquerda, não há como negar que historicamente a perspectiva de conquista e exercício do poder por parte da esquerda deu a ela um sentido de finalidade que, regra geral, foi semantizado na palavra socialismo. E este, por sua vez, transformou-se no horizonte político e/ou utópico da esquerda. Da mesma forma, não há duvida de que, embora não integralmente iden-tificáveis, os vínculos entre esquerda e socialismo são historicamente incontestáveis. O socialismo foi reconhecidamente um programa de mudança social e um movimento político que mobilizou milhões de pessoas no correr dos séculos XIX e XX.

As três últimas décadas do século XX produziram mudanças de tal ordem na estrutura do mundo que as bases de referência do so-cialismo ruíram integralmente: a estrutura produtiva foi alterada de maneira drástica, reduzindo muito a necessidade de mão-de-obra; um cenário pós-fordista foi se estabelecendo, ao mesmo tempo em que diminuíam a auto-organização coletiva, a vida associativa e di-versas dimensões que davam sustentação ética à cultura política do socialismo. Para a esquerda e para o socialismo talvez essa mudança histórica tenha sido mais decisiva do que a própria queda da URSS e o colapso do chamado “socialismo real”.

Por outro lado, há que se incorporar definitivamente a idéia de que somente uma visão crítica da história do socialismo nos permiti-rá construir uma nova síntese para se pensar o futuro. Uma atitude

1 Ainda que não idênticas tais indicações são expostas em SMITH, Peter H. “Perspec-tivas de la izquierda latinoamericana” In PÉREZ HERRERO, Pedro (Ed.). La “izquier-da” en América Latina. Madrid: Editorial Pablo Iglesias, 2006, p. 291-305.

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Uma identidade reformista para a esquerda

profundamente crítica ao passado do socialismo nos ajuda a pensar que devemos, hoje, ir além dele. Não há como não reconhecer o fato de que hoje o socialismo não se configura mais como um programa de ação revolucionária tal como pretendeu ser ou, de fato, foi no correr dos séculos XIX e XX. De um ponto de vista cultural ou inte-lectual, o socialismo não se sustenta nem mais como uma tradição, hoje isolada e anquilosada no pensamento marxista. Resta a ele en-contrar a melhor maneira de colher os frutos de uma necessária e real contaminação cultural que possa lhe alargar os horizontes e im-pulsionar a afirmação de um novo reformismo, estratégia que poderá lhe dar um novo sentido histórico.

Entretanto, surpreendentemente, é possível recolher alguns ele-mentos da história do socialismo que apontam para o caminho da sua superação. Por um lado, alguns historiadores do socialismo o criticam fortemente em razão de alguns equívocos em sua trajetó-ria. Para esses estudiosos, o socialismo pecou profundamente na sua concepção de “homem novo”, foi fechado e estreito em relação à questão das mulheres, desconheceu rotundamente o tema da “fra-ternidade” etc. Por outro lado, há elementos extremamente virtuosos nessa trajetória. De acordo com Giuseppe Vacca, presidente da Fun-dação Instituto Gramsci, de Roma, os socialistas do início do século XX realizaram uma mudança de paradigma nas suas concepções que representou, para a época, uma verdadeira renovação da cultura po-lítica do socialismo. Essa mudança foi muitas vezes relegada a um segundo plano na interpretação mais geral da história do socialismo. Se refizermos essa trajetória, perceberemos que:

(...) desde os anos trinta do século XX, a distinção entre “reformistas” e “revolucionários” torna-se anacrônica. (...) a disputa sobre o “fim úl-timo” baseava-se num equívoco. A idéia da “superação do capitalismo” nascia da contraposição entre capitalismo e socialismo, que é históri-ca e conceitualmente infundada. Capitalismo e socialismo referem-se a dois planos diversos da realidade e não são comparáveis: o capita-lismo é um modo de produção, o socialismo é um critério de regulação do desenvolvimento econômico, que, portanto, não se contrapõe ao primeiro, mas propõe-se orientá-lo .2

O resultado foi que “para superar este falso dilema, foi necessário elaborar o conceito de regulação, e, naturalmente, não estamos fa-lando de elaboração puramente intelectual, mas de experiência his-tórica concreta”. Para Giuseppe Vacca, esse é um marco histórico es-sencial que deve ser recuperado. É efetivamente o “ato de nascimento

2 VACCA, G. “A esquerda italiana e o reformismo no século XX”. Política Democrática, n. 18, p. 111-125, 2007.

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do reformismo: a crise dos anos trinta e a invenção de um ‘modo de regulação’ do desenvolvimento alternativo ao do velho liberalismo, que entra em colapso”.3

Outra idéia a ser superada pela esquerda é a idéia de revolução como fiat da história. Para a esquerda do século XXI realmente se constituir numa esquerda contemporânea, reformista e transforma-dora é necessário superar a idéia e a representação da revolução como seu eixo e lugar simbólico. Esse pressuposto implica conceber a esquerda a partir de uma definição clara pelo ideário e pela política das reformas. Contudo, esta não é uma formulação muito clara no campo da esquerda real, isto é, no mundo dos homens e mulheres que se identificam com a esquerda. Não é difícil de se observar isso dentro de partidos como o PT, o PCdoB ou mesmo na recente traje-tória dos comunistas brasileiros, do PCB para o PPS. A compreen-são de que uma esquerda democrática e moderna é uma esquerda reformista é algo ainda não inteiramente assimilado. O sentido do reformismo como o núcleo da política de esquerda no Brasil é muito rarefeito ou praticamente inexistente.

Entendo que é precisamente esse o ponto ou a pista que se deve perseguir: organizarmos um debate a respeito dos sentidos do refor-mismo, de como construir uma esquerda de reformas no Brasil. Isto porque pensar uma esquerda de reformas na Europa Ocidental já é algo que se pode fazer a partir da revisão de uma história concreta. No Brasil e na América Latina é ainda um problema a ser definido, a ser pensado em inúmeras variáveis, inclusive na superação da con-denação ao reformismo que marcou a geração de jovens desde os anos sessenta. Por outro lado, no caso brasileiro, especificamente, é preciso lembrar que até mesmo a palavra reforma foi capturada e se afastou do campo da esquerda, desde o governo de Collor de Melo, no inicio da década de 1990.

De qualquer forma, há algo a se recuperar. Se observarmos bem, em termos de idéias e conduta política, havia alguma coisa na tra-jetória do PCB que indicava para essa direção. O socialismo sempre foi um referente importante na história do PCB, ainda que a sua prática, especialmente depois de 1958, tenha sido abertamente a de um reformismo político que tinha como ênfases as noções de demo-cratização e desenvolvimento. Contudo, não há espaço para que aqui possamos examinar essa história e tampouco levantar uma série de aspectos que julgamos pertinentes para essa reflexão a partir daque-

3 Idem, ibidem.

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Uma identidade reformista para a esquerda

la experiência do PCB. Apenas vamos partir de um ponto que para nós configura-se como emblemático.

É indiscutível que há na história da esquerda brasileira uma par-cela ou fração que assumiu para si, desde o final da década de 1970, o tema da democracia e que efetivamente se afastou das idéias dog-máticas que habitavam o ideário mais convencional da esquerda, tanto da “esquerda tradicional” quanto da chamada “nova esquerda”. Sua maior expressão emergiu com a publicação do famoso ensaio de Carlos Nelson Coutinho, A democracia como valor universal (1979), formando-se, a partir daí, um entorno de militantes ativos dessa idéia, que jogava por terra o entendimento de que a democracia não era mais do que uma tática a ser desprezada depois da conquista do poder. Dessa linhagem há que se destacar, sem nenhuma dúvida, a revista Presença, que circulou entre 1983 e 1992. Reconhecidamen-te, esse movimento fez parte daquilo que Maria Alice Rezende de Car-valho, em texto recente, chamou de “breve história do ‘comunismo democrático’ no Brasil’.4

Ainda assim, passados alguns anos e depois de inúmeras trans-formações, no mundo e no Brasil, é forçoso reconhecer que o fim do tempo histórico das revoluções, como método e critério para a mu-dança histórica, não foi capaz de produzir, entre nós, uma nova fór-mula identitária que garantisse, simbólica e politicamente, uma nova expressão para a esquerda. Os fatos do mundo e do Brasil no final do século XX são os responsáveis diretos pelo esgotamento dos dois mais potentes núcleos de identidade da esquerda brasileira, a saber, o núcleo bolchevique/soviético e o núcleo cubano/guerrilheiro.

Surpreendentemente, a esquerda pós-1989, que havia surgido pouco antes e ambicionava se configurar como um novo paradig-ma, fracassou mais rapidamente que aquela dos modelos anteriores. Contudo, o cenário que ela deixa depois da sua fulgurante trajetória é ainda mais inconsistente: fundada no mercado, a esquerda repre-sentada pelo PT se expressa como uma esquerda de simulacros, nos quais realidade e ilusão se integram em erráticas metamorfoses.

A história e a vida é que colocaram para nós o desafio de superar simultaneamente três dimensões históricas da esquerda brasileira. Mas aqui a história não deve e nem merece ser repetida. Essa não pode ser uma das muitas oportunidades perdidas na trajetória de construção da esquerda e da democracia brasileira. Dentre muitas

4 REZENDE DE CARVALHO, Maria Alice. “Breve história do ‘comunismo democrático’ no Brasil” In p. 261-281. FERREIRA, J. e AARÃO REIS, D.(org.) Revolução e Demo-cracia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007 (As esquerdas no Brasil, v.3).

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V. Batalha das Idéias

razões porque o nosso penoso e débil processo de modernização e de democratização somente se consumou, em seus traços conhecidos, devido a não existência, entre nós, de uma esquerda radicalmente democrática e reformista.

Por essa razão, é preciso recapturar o tema das reformas para o campo da esquerda brasileira, por meio da elaboração de um progra-ma que concentre suas propostas nas demandas democratizadoras do mundo do trabalho e da vida, condenando tanto o Estado inefi-ciente (independente do seu tamanho) quanto o mercado ególatra e desqualificado. Baseado numa política aberta e em amplo diálo-go com a sociedade, é preciso pensar as reformas como mudanças que envolvam a democratização do poder na sociedade brasileira, ou seja, é preciso conectar as reformas com o tema da civilização demo-crática. É preciso pensar as reformas para além do minimalismo e da lógica de mercado a que elas foram reduzidas na política brasileira recente. Em outras palavras, é preciso resgatá-las como uma pers-pectiva de realização da modernidade.

O país necessita forjar outra esquerda, com amplas bases sociais, legitimada como reformista e que fale ao coração de milhões. No Bra-sil, um partido das reformas deve defender a melhoria da vida das pessoas e, em função dessa perspectiva, deve privilegiar a elaboração e implementação de um programa que tenha as características e o sentido de um “reformismo desenvolvimentista”. Esse “novo refor-mismo” deve ser enfim a base de uma nova cultura política para uma esquerda moderna e democrática, o correlato, no discurso político, daquilo que o filosofo Antonio Cícero reivindicou recentemente como “um reformismo profundo e conseqüente”.

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Um poder de sedução que cresce1

Tony Judt

O marxismo, como o reconhece abertamente um de seus críticos mais virulentos, o historiador polonês Andrzej Walicki, tem sido o mais influente movimento “de reação às múltiplas taras

das sociedades capitalistas e da tradição liberal”. Se o marxismo saiu de moda, no último terço do século XX, foi em grande parte porque os piores defeitos do capitalismo pareciam ter sido enfim resolvidos.

A tradição liberal, tentando com sucesso, de forma inesperada, adaptar-se às dificuldades da crise de 1929 e da Segunda Guerra Mundial, e a dotar as democracias ocidentais de instituições esta-bilizadoras como o New Deal e o Estado-providência, tinha manifes-tamente triunfado de suas críticas antidemocráticas, de esquerda como de direita. Uma doutrina política perfeitamente bem colocada para explicar e explorar as crises e as injustiças de um outro período parecia, a partir de agora, a ponta da placa.

Hoje, portanto, as coisas estão, uma vez mais, prestes a mudar. O que os contemporâneos de Marx, no século XIX, chamavam a “ques-tão social” – isto é, como acabar com o enorme abismo entre ricos e pobres, e com as odiosas desigualdades em matéria de saúde, de educação e de oportunidades – talvez tenha se fixado no Ocidente (enquanto o fosso entre ricos e pobres, que parecia à época dever de-saparecer, reaparece novamente após alguns anos, no Reino Unido e principalmente nos Estados Unidos), mas opera um retorno de força na atualidade internacional.

O que aparecia aos seus ricos beneficiários como sendo um cres-cimento econômico mundial e a abertura dos mercados nacionais e internacionais aos investimentos e às trocas era percebido, de mais em mais, por milhões de outras pessoas, como uma redistribuição da riqueza mundial em proveito de um punhado de multinacionais e de detentores de capitais.

1 Extratos de artigo publicado na revista The New York Review of Books, edição de julho, e reproduzidos na revista parisiense Courier International nº 924 (de 17 a 23 de julho de 2008).

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V. Batalha das Idéias

Nestes últimos anos, críticas respeitáveis começaram a moder-nizar o discurso radical do século XIX e a aplicar com um sucesso perturbador as relações sociais do século XXI. Não há necessidade de ser marxista para reconhecer o que Marx e outros chamavam o “exército industrial de reserva”, o qual hoje volta à superfície não mais nos quarteirões pobres das cidades industriais européias, mas por toda a parte, no mundo.

Contendo os custos de mão-de-obra – graças às ameaças de ex-ternalização, de deslocalização das fábricas ou de desinvestimento – esta reserva mundial de trabalhadores pouco remunerados contribui para preservar os lucros e manter o crescimento, como ela fazia na Europa industrial do século XIX, em todo o caso antes que as organi-zações sindicais e os partidos operários de massa se tornassem sufi-cientemente fortes para impor aumentos de salários, uma legislação fiscal redistributiva, e, enfim, no século XX, uma mudança decisiva da relação das forças políticas, contradizendo as predições revolucio-nárias de seus próprios dirigentes.

Em suma, o mundo parece dar início a um novo ciclo, um ciclo que era familiar a nossos predecessores do século XIX, mas do qual os ocidentais não tiveram experiência recente. Nos próximos anos, com o aprofundamento dos sinais visíveis de riqueza e a exacerba-ção de conflitos decorrentes dos termos de troca, a localização dos empregos e o controle de recursos naturais em vias de rarefação, entendemos verdadeiramente ser oportuno falar de desigualdade, de injustiça, de iniqüidade e de exploração – nos países ocidentais, mas principalmente no resto do mundo. Desta forma, à medida que a lembrança do comunismo se esmaece, o marxismo é suscetível de exercer uma atração moral ainda maior em uma versão renovada ou uma outra.

Isso pode parecer algo difícil de acreditar, mas não esqueçamos que, na América Latina ou no Oriente Médio por exemplo, o mar-xismo, em uma ou outra de suas versões, jamais perdeu seu poder de sedução junto aos intelectuais e políticos radicais. Enquanto ex-plicação convincente da situação local, o marxismo conserva muito de sua atração, como entre os que pensam e lutam por um mundo melhor, os chamados altermundialistas. Estes últimos vêem nas ten-sões e nas fraquezas da economia capitalista internacional de hoje exatamente as mesmas injustiças e as mesmas possibilidades que conduziram os observadores da primeira “mundialização” econômi-ca, dos anos 1890, a aplicar a crítica do capitalismo formulada por Marx e pelas novas teorias do “imperialismo”.

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Um poder de sedução que cresce

E porque ninguém, por sua vez, não parece ter estratégia mais convincente a propor para corrigir as injustiças do capitalismo moder-no, o lugar está novamente livre para aqueles que têm a história mais coerente a narrar e a receita mais radical a fazer. Lembremo-nos do destaque profético que fazia Heinrich Heine a propósito de Marx e de seus amigos em meados do século XIX: “Estes doutores em revolução e seus discípulos impiedosamente determinados são as únicas pesso-as na Alemanha que têm vida e é a eles que pertence o futuro”.

Eu não sei se o futuro do radicalismo político pertence a uma nova geração de marxistas, indiferentes aos crimes e às derrotas de seus antecessores comunistas (e talvez não estejam deles informa-dos). Espero que não, mas não me arriscaria a apostar nisso.

Jacques Attali publicou, em 2005, um grosso livro escrito às pressas sobre Karl Marx (Karl Marx ou l’esprit du monde, éd. Fayard, 2005). Ele estima que a queda da União Soviética libertou Marx de seus herdeiros, autorizando-nos a ver nele o profeta inspirado do capitalismo que soube antecipar os dilemas contemporâneos, nota-damente as desigualdades mundiais engendradas por uma concor-rência desenfreada. Sua tese foi amplamente debatida na França, mas também na Grã Bretanha.

Claro que se poderia responder a Attali o que disse a respeito o filósofo polonês Leszek Kolakowski ao historiador britânico Edward P. Thomson, que afirmava que faltava talvez salvar as boas idéias do comunismo de sua lamentável atualidade: “Faz anos que não espero nada das tentativas visando a emendar, renovar, limpar ou corrigir a idéia comunista. Péssima idéia, olá! Eu o sabia, Edward. Esta cabeça de morto não sorrirá nunca mais”.

Porém, Jacques Attali é um homem dotado de antenas políticas ultrasensíveis que captam as menores variações do humor do mo-mento. Se ele pensa, e nisso ele certamente não está só, que a cabe-ça do morto pode sorrir de novo e que as explicações moribundas e totalizantes estão realmente chamadas a renascer – não seria senão como um contraponto à irritante arrogância da direita ultraliberal – então, isso não é tão falso assim.

Nestes primeiros anos do novo século, encontramo-nos assim face a duas miragens opostas e, portanto, estranhamente similares.

A primeira destas miragens é bem conhecida dos americanos, mas ela tem curso em todos os países desenvolvidos. Consiste em crer, como o martelam beatamente comentaristas, políticos e experts, que o consenso atual sobre a economia de mercado é a condição de toda

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democracia moderna bem gerida e que ele durará eternamente; e que aqueles que se opõem são mal informados, caluniadores, e em todos os casos, condenados a pregar no deserto.

A segunda miragem é a de crer que o marxismo tem um futuro intelectual e político, não em razão da decadência do comunismo, mas precisamente deste fato. Relegado até aqui à “periferia” interna-cional e às margens da instituição universitária, esta fé renovada no marxismo é devida, em grande parte, à não existência de nenhuma concorrência neste terreno, o denominador comum dos movimentos contestadores internacionais.

A similaridade destas duas miragens reside, seguramente, em sua incapacidade comum de extrair lições do passado. Elas apresentam para além disso uma interdependência simbiótica, já que é a miopia da primeira que oferece uma credibilidade falaciosa aos argumentos da segunda.

Aqueles que aplaudem o triunfo do mercado e o recuo do Estado, aqueles que gostariam de nos ver celebrar o campo livre deixado à iniciativa econômica no mundo “plat” (plano, cuja superfície não tem relevo) de hoje, esqueceram o que se passou na última vez que segui-mos este caminho. Um rude choque lhes espera (qualquer que seja este choque, se se crer na experiência do passado, tem boas chances de afetar quem quer que seja).

Quanto àqueles que sonham difundir novamente o filme marxis-ta, remasterizado e liberado de suas ranhuras comunistas, seriam bem informados de se perguntar, antes que não seja muito tarde, o que faz que os “sistemas” de pensamento totalizante conduzam ine-xoravelmente a “sistemas” políticos totalitários.

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A gênese do petismo1

Clayton Cardoso Romano

Antonio Gramsci ensina que a virtude da política está na com-binação do uso da coerção com consentimento. Seu conceito de hegemonia afirma que a constituição de um bloco histórico

– isto é, de um projeto político-cultural capaz de legitimar perante a sociedade o poder usufruído por determinada elite dirigente – come-ça propriamente no campo das ideologias, esfera em que os homens e suas classes tomam consciência da realidade.

Em sociedades complexas, com interesses variados e em perma-nente estado de tensão, diz Gramsci, as elites dirigentes são obriga-das a fundar canais de diálogo com demais setores e classes sociais, além daqueles aos quais estão vinculados de modo orgânico. A força cede lugar à astúcia e as elites são convidadas a demonstrar outras virtudes, que não sejam verificadas apenas através de métodos efica-zes no uso exclusivo e legal da violência.

Muito embora a hegemonia política de determinado grupo sobre o conjunto social possa ser conquistada e sustentada por certo tempo com base na coerção, no arbítrio, na força, mesmo nas modernas so-ciedades capitalistas, Gramsci alerta que, em algum momento, esse regime terá de fazer “concessões” para garantir sua legitimidade e as-sim consolidar a hegemonia alcançada. Para que as concessões não ameacem a estabilidade do poder constituído, o grupo dirigente pas-sa a mobilizar instrumentos político-culturais com vistas à “formar” os interesses dos outros grupos sociais e difundir “novos” valores no interior da sociedade.

Numa relação dialética, portanto, a longevidade de um bloco his-tórico está associada à capacidade de seus dirigentes em manusear armas e palavras com igual destreza, extraindo disso uma síntese possível. Nas sociedades democráticas, com a arena da política livre de impedimentos, a lógica do consenso se torna a principal estratégia na luta por posições no interior da sociedade política e, em casos as-sim, as palavras costumam fazer as armas baixarem. Nas ditaduras,

1 Este texto é um fragmento da tese de doutorado intitulada “Do ABC ao Planalto: a cultura política do petismo”, defendida em 2008 no Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Unesp/Franca.

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ao contrário, com os meios políticos interditados pela força, as táti-cas de conflito costumam prevalecer alimentadas pela convicção de que há um inimigo a ser vencido, num contexto em que as palavras são geralmente incapazes de acompanhar o ritmo frenético imposto pela guerra de movimento. Em ambos os casos, porém, coerção e consentimento são necessários para preservar a hegemonia políti-ca, legitimar a elite dirigente e realizar o projeto político-cultural promulgado por determinados setores e classes sociais.

E, historicamente, a teoria se aplica à prática.

Após a queda do Estado Novo, o Brasil viveu uma experiência democrática então sem precedentes em sua história. Entre 1945 e 1964, em detrimento das teses de populismo, de fato os brasileiros foram às ruas: para saudar a FEB na volta da campanha contra o fascismo, para dizer ao lado de Getúlio Vargas que “O Petróleo é Nosso” e mais tarde chorar a morte do fundador do trabalhismo brasileiro; para comemorar o primeiro título de campeão mundial de futebol e depois também o segundo; para exigir reformas de base ou mesmo marchar em devoção a Deus, à família e à propriedade.

De acordo com Jorge Ferreira, durante aquele período, a polí-tica nacional passou a ser discutida nas ruas, nos sindicatos, na imprensa e nos quartéis. E não foram poucos os episódios que mo-bilizaram a sociedade em torno dos ideais de democracia e de refor-mas. Ferreira cita o “queremismo”, tornado um amplo movimento de massas, como expressão marcante da cultura popular registrada entre as décadas de 1940 e 1960 (FERREIRA, 2005: 375-376).

A política fora apropriada por parcelas da população secular-mente excluídas do jogo político. Estas tomavam o céu de assalto e faziam da política matéria-prima na produção de identidades in-dividuais e de classe. Aos trancos e barrancos, isto é, colecionando toda sorte de conflitos, contradições, imperfeições, a República pa-recia finalmente completar o arco inaugurado em 1889 e ampliado a partir de 1930, sob evidente base autoritária.

No plano da organização sindical, cerca de 500 sindicatos, 49 federações e 4 confederações atuavam sem restrições no Brasil até 1° de abril de 1964 (CAMARGO, 1976: 131). E até 27 de outubro de 1965, data da promulgação do Ato Institucional n° 2, eram 13 os partidos políticos que dispunham de registro eleitoral e funciona-vam livremente no país, sem falar do clandestino PCB. (SCHMITT, 2001: 11-30)

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A gênese do petismo

Os militares golpearam tudo isso. Em nome da democracia, pro-moveram intervenções nos sindicatos, fecharam os partidos e insti-tuíram o bipartidarismo. Conciliaram eleições livres, diretas e regu-lares para assentos parlamentares de todos os níveis – municipal, estadual e federal – com escolhas indiretas, muitas vezes extempo-râneas, para cargos executivos e de senadores da República. Sacri-ficaram e excluíram do território nacional as principais lideranças e referências da época. Enfim, parecendo encarnar o genuíno espírito revolucionário – afinal, aquilo se autoproclamava uma “revolução” –, os militares se dedicaram com empenho à premissa reservada aos “novos” regimes de apagar os vestígios do passado e executaram uma esterilização política sem paralelo na trajetória do republicanismo brasileiro.

Quanto aos métodos coercitivos empenhados pelos militares na consolidação da “nova” hegemonia, existe uma literatura realmente extensa dissertando sobre o assunto. No entanto, ainda pouco se sabe sobre as relações de consentimento estabelecidas durante as duas décadas de vigência do regime militar (1964-1985).

Admitindo a vitalidade explicativa da tese gramsciana, a ditadura brasileira pode ser vista então enquanto a representação política de um “novo” bloco histórico, este portador de “novas” bases político-culturais a serem difundidas na sociedade. Esta seria a motivação derradeira para a instalação do “novo” regime, fundar um “novo” pro-cesso civilizador no Brasil. Nestes termos, portanto, cabe a pergunta: qual a matéria que compõe a cultura política legada pelos militares a toda uma geração de brasileiros, formados sob o manto do autorita-rismo e do cerceamento político?

Tecnocracia costuma ser a resposta mais lembrada. Um governo de técnicos, comandado de cima para baixo por um príncipe desper-sonalizado e que suplanta as contradições através do esmagamento da antítese. E se todos os conflitos de interesses e valores desaguam na política, que se interditem então seus afluentes ou que se mante-nha sua vazão sob estrito controle. Retirados os homens, entram em cena as máquinas, as coisas; é a vez dos técnicos.

Não resta dúvida: o viés tecnocrático do militarismo impregnou vários setores da sociedade brasileira, contaminando sucessivas ge-rações. Dotados de certo nível de conhecimento – ainda que espe-cífico –, os tecnocratas formavam também uma elite dirigente, em boa medida, separada do todo social em função dos baixos índices educacionais colecionados no país. Intelectuais orgânicos (GRAMS-

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CI, 2007: 15), oriundos de classes que participavam daquele vigoroso processo de produção capitalista empreendido pelos militares. Diri-gentes no mundo da produção; estes eram os tecnocratas.

Mas a tecnocracia, enquanto projeto político-cultural, não parece ter sido capaz de afirmar-se de modo preponderante sobre a socieda-de brasileira como um todo. Atuando como uma espécie de “cultura de especialistas”, a tecnocracia não dispunha de condições estrutu-rais totalmente favoráveis, algo que lhe permitisse enterrar de vez a cultura popular do período anterior ao golpe. Mesmo que através do mundo do trabalho tenha sido transformada em parâmetro de disci-plina por uma quantidade enorme de trabalhadores, definitivamen-te, a tecnocracia não resume a cultura política daquele período pelo simples fato de não ter alcançado o status de cultura popular; talvez, os populares se sentissem mais bem representados por um jogador de futebol, tricampeão mundial, do que pela figura aritmética de um técnico industrial.

Do ponto de vista econômico, o nacionalismo entoado pelos milita-res não se revelava estatista, ancorando sua idéia de “Brasil Grande” no substantivo fomento dado à iniciativa privada. Numa arriscada ci-rurgia, operada pelos tecnocratas, irmãos siameses foram separados e o eixo nacional-desenvolvimentista do pré-1964 foi enfim desarti-culado. Antes, o desenvolvimento estava a serviço dos interesses da nação; com os militares, o nacional é que parecia se submeter aos ditames do capital industrial.

A indústria de bens duráveis e semiduráveis colecionava recordes de produção e vendas, instituindo novos padrões de consumo. A me-diação daquele Estado protetor do pré-1964 dava lugar a uma pos-tura que instigava a livre iniciativa econômica e estimulava a com-petição. Fortalecido, o mercado surgia como “novo” ente mediador. Colecionando índices de crescimento econômico jamais vistos, o Es-tado se concentrava na emergência do “espírito do capitalismo” e na promoção da “paz social”, deixando à própria sorte todos os milhares de migrantes que seguiam a trilha da industrialização brasileira.

Pela TV a cores – uma das novidades da época – aquela nova so-ciedade de massas se descobriria. E justamente através da tela colo-rida, coincidência ou não, o enigma começaria a ser revelado. Num comercial dos cigarros Vila Rica, um dos campeões mundiais com a seleção brasileira de futebol em 1970 aparecia no vídeo e indagava-afirmando: “Você gosta de levar vantagem em tudo, certo?” A versão impressa da mesma propaganda trazia um cartaz com o jogador ao

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lado do maço de cigarros, em baixo da marca e dos dizeres: “Leve mais vantagem”; logo abaixo, o preço em destaque (Cz$ 18,00). Esta-va promulgada a “Lei de Gerson”.

De início, a peça publicitária não causou qualquer polêmica. Mais tarde, incorporada pela cultura popular, a lógica da vantagem seria narrada como uma nova versão do “jeitinho brasileiro”, definida como elemento constitutivo da identidade nacional. A “Lei de Gerson” pas-sava então a figurar no rol das leis que realmente parecem valer algo neste país, a saber, as não escritas; outro traço da cultura brasileira.

A idéia de levar vantagem em tudo sintetizava a fórmula dos tec-nocratas de superexposição do mercado – e superexploração do tra-balho, é sempre bom lembrar – combinada com o cerceamento dos espaços políticos. A “Lei de Gerson” expunha, sobretudo, o predomí-nio da noção de competição – esta francamente estimulada pela livre concorrência – convertida em matéria-prima das relações sociais en-tão estabelecidas. Na ausência de valores político-culturais, aquela nova sociedade de massas valia-se daquilo que estava disponível na tentativa de soldar suas identidades individuais e coletivas, tomando de empréstimo termos e procedimentos retirados de sua – recém-ostensiva – convivência com o capital. E assim, equações econômicas se transformavam em cultura política.

Outra face do mesmo processo pode ser vista na profusão de or-ganizações associativas de novo tipo. Criadas à margem do Estado e alijadas da política, as Sociedades de Amigos de Bairro (SABs) e as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) têm nas questões sociais uma fonte comum em suas demandas.

A perversa combinação de crescimento e pobreza produzia um rastro de degradação ambiental e humana. Cidades inteiras foram erguidas no entorno dos pólos industriais, sobrepondo-se barracos, expandindo-se avenidas. Pontes de concreto armado para escoar o tráfego pesado, por “milagre”, se tornaram improvisados conjuntos habitacionais, que, em detrimento do improviso e das condições pre-cárias, duraram anos até serem removidos. E como tantos outros di-reitos conquistados neste país, também a urbanização se fez, melhor dizendo, quando se fez, utilizando-se a via da reivindicação.

Mas, na época dos militares, o Brasil não se expandiu apenas nos grandes centros. Intenso no eixo Rio-São Paulo, o fluxo migratório de entradas também foi constante nas regiões Norte e Centro-Oeste. Diante da ineficiência – quando não, total inexistência – do Estado

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na prestação de serviços e garantia de direitos, parcelas significativas das populações localizadas nos chamados grotões do país tiveram de se organizar do mesmo modo que ocorria nos centros urbanos. Em localidades assim, as CEBs cumpriram um papel fundamental no sentido de sistematizar os pleitos colhidos da realidade social e transformá-los em vontade coletiva.

O impacto do novo associativismo não se fazia sentir apenas nas classes populares. Setores médios da sociedade registraram igual profusão de associações esportivas e grêmios recreativos. Era o mundo privado, laico ou não, dando forma a uma prática associativa responsável por formalizar novos comportamentos e valores sociais, auxiliando de modo decisivo a composição da identidade político-cultural de toda uma geração de brasileiros.

Não se trata aqui de desqualificar ou diminuir a importância dos atores mais decididamente empenhados na resistência democrática emedebista. Ao contrário, o que se busca afirmar é a configuração de outras formas de resistência ao excessivo controle exercido pelos militares sobre a política. Formas estas nascidas da iniciativa priva-da, vinculadas ao social e cujo ponto de unidade sugeria uma mútua negação ao Estado, aos políticos e à política. Fenômeno que pôde ser observado de Norte a Sul do país, desde o início da década de 1970; talvez, fruto da concessão de um regime temeroso em moderar o rígi-do domínio mantido sobre o mundo político.

A escolha democrática feita pela sociedade brasileira no come-ço dos anos 1980 apresentava uma fissura que, em boa medida, determinaria o curso da transição democrática no Brasil. Ensaiada desde meados da década de 1970, ainda no contexto da abertura, a dissociação entre democratização política e democratização social (AGGIO, 1997: 101-134) deixava claro que os atores envolvidos na-quele processo haviam sido formados em diferentes locais durante os últimos vinte anos.

A escolha dos brasileiros foi antes uma recusa ao autoritarismo. Esta era a conclusão de José Álvaro Moisés, em meados dos anos 1990, após analisar a mudança de atitudes e opiniões da socieda-de brasileira quanto a instituições e participação política (MOISÉS, 1995: 117). Dentre tantas questões possíveis, especificamente duas chamam a atenção em relação aos dados reunidos por Moisés: (1) a queda nos percentuais de adesão à presença dos militares na políti-ca, entendida como uma negação às formas autoritárias de governo, não foi acompanhada de crescimento correspondente nos índices de

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apoio aos partidos ou à participação eleitoral, termômetros impor-tantes de qualquer sistema democrático que se preze; (2) a trajetória descente dos apoiadores do autoritarismo é seguida da rota ascen-dente nos números de brasileiros que rechaçavam a intervenção es-tatal ao livre direito de associação e organização dos trabalhadores e de seus interesses.

E diante dos fatos, duas conclusões são inevitáveis. A primeira diz respeito às bases político-culturais da legitimidade democrática no Brasil. Tendo em vista que os índices aferidos por José Álvaro Moisés não sofreram qualquer alteração substancial desde então, especialmente em relação aos níveis de apoio aos partidos e às elei-ções, caberia indagar: os processos de transição e consolidação da democracia no país logram êxito em difundir uma cultura política democrática capaz de assegurar a hegemonia conquistada por anos a fio, sem riscos de retorno ao arbítrio?

A escolha democrática dos brasileiros não significou um decidido gesto de afirmação e apego aos valores democráticos, mas sim uma fir-me opção contrária ao domínio dos militares. Este novo ciclo da demo-cracia no Brasil foi inaugurado negando-se o autoritarismo, ao invés de assumir-se de modo integral as responsabilidades, os desafios e as possibilidades colocados por aquele regime democrático que brotava.

A segunda conclusão se refere à notável ascendência nos percen-tuais de brasileiros que se manifestavam contrários à intervenção do Estado no direito de greve e na livre associação; vale dizer, o úni-co quesito que registrou crescimento ininterrupto durante o período 1972-1994. Isto seria reflexo do associativismo dos anos 1970-1980 ou do “espírito do capitalismo” e de seu “instinto animal”? De todo modo, a negação à presença estatal em temas de interesse dos entes privados, esta sim, parecia consolidada em meados da década de 1990, nos “anos dourados” do neoliberalismo.

Portanto, fica a impressão de que aquela versão de americanismo (VIANNA, 2004) posta em prática pelos militares no Brasil resultou numa obra estranha. De um modo, consentiu no desenvolvimento de um novo tipo de associativismo, aparentando estimular a organi-zação cívica da sociedade. De outro, retirou-lhe a dimensão política, obrigando as novas práticas associativas a tomar de empréstimo re-ferências e procedimentos específicos às outras esferas da vida em sociedade. Raciocínios econômicos e questões sociais ditariam a par-tir de então o comportamento adotado em cena pelos novos atores.

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Livre das amarras autoritárias de um ator que, embora desperso-nalizado, trazia consigo a marca da Ibéria, o americanismo ressentiu-se, no curso da transição, de uma cultura política que lhe subsidias-se e de um partido que fosse seu legítimo porta-voz. Na escassez de valores político-culturais, teve de se contentar em dispor da equação custo-benefício sem o auxílio de qualquer tradição democrática ou mesmo de qualquer outra tradição política.

Diferente do que supõe a sociologia contemporânea, a escolha racional (rational choice) – isto é, a livre opção de mobilizar a fór-mula perdas-e-ganhos para determinar atitudes e comportamentos políticos – não exigiu uma cultura política democrática robusta por parte dos brasileiros como condição necessária à sua efetivação. Se-gundo os teóricos da escolha racional (GREEN e SHAPIRO, 2000), o procedimento é geralmente verificado em sociedades complexas, com predomínio das relações de mercado e profundo compromisso democrático.

Nestes casos, afirmam, costuma ser grande a possibilidade de transferência desta lógica da vantagem, própria aos raciocínios e equações econômicas, às questões referentes ao universo da política. No entanto, a escolha racional não substitui ou invalida a presença de elementos políticos-culturais, ao invés disso, por se tratar de um modo de proceder, um comportamento em relação ao mundo político, busca selecionar racionalmente os valores e as tradições que deverão ser empregados em tal ou qual oportunidade. Em função disso, a escolha racional dependeria de um ambiente cívico consolidado, com culturas políticas enraizadas e de forte apelo democrático.

Na prática, contudo, a teoria se mostrou outra. Proclamada no Brasil pela “Lei Gerson”, a lógica da vantagem, a relação perdas-e-ganhos, a equação custo-benefício, todas passavam diretamente do mercado para a política. Sem tradição democrática capaz de lhe dar suporte, o que de início era para ser uma atitude assumiu status de valor e princípio político-cultural.

Nascia uma nova cultura política na sociedade brasileira: a esco-lha racional. Sem contar com um portador que lhe garantisse vazão integral, o americanismo no Brasil se abrigou então em uma de suas criações mais originais. Um organismo novo, aparentemente desper-sonalizado, avesso a teorias e sem tradições políticas a lhe guiar o caminho, que deveria ser trilhado na prática.

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A gênese do petismo

Mas havia um problema. Aquele moderno partido valia-se da “vantagem do atraso” (VIANNA, 1989: 79) para se inserir no merca-do da política. Nascido a partir de estratos avançados daquela nova sociedade, logo, igualmente interessado em fazer escolhas racionais, o novo partido compartilhava o comportamento registrado pelo as-sociativismo, de negação do Estado e da política. Estes deveriam ser tomados e “purificados” pelos instintos egoísticos da sociedade civil. E, assim como faziam os sindicalistas autênticos, as CEBs e algu-mas SABs, a arma daquele novo partido era o conflito, convertido por seus adeptos em método político. A fundação do PT selou o encontro entre escolha racional e lógica do conflito. Nascia uma nova cultura política partidária no Brasil: o petismo.

Referências

AGGIO, A. Revolução e democracia no nosso tempo. Franca:Unesp/Franca, 1997.

CAMARGO, C.P.F. (et al). São Paulo 1975 – Crescimento e Pobreza. São Paulo: Loyola, 1976.

FERREIRA, J. O imaginário trabalhista. Getulismo, PTB e cultura popular 1945-1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere. 3. ed., v. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

GREEN, D.P. e SHAPIRO, I. Teoria da escolha racional e ciência política: um encontro com poucos frutos? Perspectivas, São Paulo, n. 23, p. 169-206, 2000.

MOISÉS, J. A. Os brasileiros e a democracia. Bases sócio-políticas da legitimi-dade democrática. São Paulo: Ática, 1995.

SCHMITT, R. Partidos políticos no Brasil (1945-2000). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

VIANNA, L.W. A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil. 2. ed., Rio de Janeiro: Revan, 2004.

______. A transição. Da Constituinte à sucessão presidencial. Rio de Janeiro: Revan, 1989.

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VI. O Social e o Político

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Autores

Andréa BandeiraProfessora Assistente da Universidade de Pernambuco.

Sergio Augusto de MoraesEngenheiro, Diretor do Clube de Engenharia do Rio de Janeiro.

Gustavo Souto MaiorGustavo Souto Maior é engenheiro, com mestrado em economia do meio ambiente, e atualmente preside o Instituto Brasília Ambiental, órgão de meio ambiente do Governo do Distrito Federal.

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Resistências cor-de-rosa-choque

Andréa Bandeira

É notável na literatura histórica atual, o aparecimento de livros que têm como objeto a crescente participação das mulheres em todas as esferas de atividades na sociedade brasileira,

bem como seus diferentes papéis. Antes esquecido ou minimizado, o papel das mulheres vem-se modificando nas falas e nos discursos produzidos sobre o feminino, falas estas que são resultado do espaço aberto nas academias por uma nova metodologia que insere, como objeto da pesquisa, os diversos sujeitos da história.

Sabemos que a contrapartida à violenta ditadura militar, que se instalou no Brasil em 1964, foi a explosão de uma vigorosa cultura de resistência, que se expressou na crítica ao regime, assim como em propostas de modos alternativos e libertários de vida em sociedade. Em princípio dirigida ao regime militar, a revolução que se deu nas artes, nas letras, nos costumes, nas décadas de 1960 e 1970, no Bra-sil, estendeu seus questionamentos à sociedade patriarcal e burguesa mais amplamente, ao par com várias correntes do pensamento que, naquele momento, envolveram-se com uma crítica à modernidade.

Assim, no momento em que se viveu no país uma violenta repres-são política e cultural, afetando radicalmente a vida pública, cercean-do a palavra e a ação, desfazendo os conhecidos espaços de sociabi-lidade e interação social, assistiu-se à emergência de novas formas de produção cultural como resultado da ação de vários segmentos da sociedade. Foi nesse contexto de crise e de construção de novos modelos de subjetividade que surgiram, nos anos 1960–1970, movi-mentos de mulheres, provenientes das camadas médias, intelectua-

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VI. O Social e o Político

lizadas, buscando novas formas de expressão da sua individualidade (GOLDEBERG, 1987). Muitos desses movimentos foram retomados de antigas lutas já empreendidas em favor de sua igualdade política e social, realizadas dentro de clubes, associações e federações, quando não eram formas individuais de expressão na corrente de um movi-mento mais amplo que culminou na “primavera” de 1968.

Na luta contra a ditadura militar, essas mulheres se defrontaram com o autoritarismo masculino dentro das organizações de esquer-da, o que muitas vezes impediu sua participação em condições de igualdade nos grupos que se formaram. Elas demonstraram atitudes de recusa radical dos padrões sexuais e do modelo de feminilidade construídos na história da mulher brasileira, modelo este que a colo-cava sempre como auxiliar do crescimento masculino. Questionaram enfaticamente as relações de poder entre os gêneros que se estabele-ciam no interior dos grupos políticos de esquerda, tentando, a partir de um referencial marxista de relação entre os sexos, impedir que a dominação machista fosse diluída ou subsumida pelo discurso tra-dicional da revolução.

Assim, em um contexto de crise, de repressão e de construção de novos modelos de subjetividade, observamos as diversas formas de inserção delas nos movimentos de reação ao regime autoritário, ins-talado no Brasil, pós-1964, com especificidade em Pernambuco. Pois escolher o tema das várias participações da mulher nordestina, nota-damente a pernambucana, no processo de resistência ao regime ins-taurado, ao mesmo tempo que dá voz a uma sujeita pouco observada na historiografia, recupera parte da história recente do nosso país.

Sabemos também que a História de Pernambuco é marcada por movimentos políticos refletores das lutas cotidianas entre os diver-sos grupos que formam a sua sociedade. Essas lutas se alternam desde conflitos entre setores de um mesmo grupo até os conflitos entre grupos, demonstrando a complexidade e a instabilidade das relações sociais, transversadas por diferentes interesses (das eco-nomias material e sexual) dialeticamente integrados, possibilitando o desenvolvimento desigual e combinado desses grupos (LÖWY, Mi-chael, 1995; NOVAK, George, 1977). As lutas estabelecidas entre os grupos e entre os setores podem e geram movimentos de resistências que muitas vezes resultam apenas em reequilíbrio (de forma dialéti-ca) do sistema, sem alteração do status quo dos conflitantes, porém sempre marcados por uma mudança nas relações de força/reprodu-ção das partes. A História de Pernambuco é, então na micro-história (REVEL, J., 1998), a história dos conflitos entre os grupos e entre os setores que formam a sua sociedade (MARX, K., 2007), e, na macro-

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história ou história totalizante (BRAUDEL, F., 1992), a história das lutas entre os grupos inter e multinacionais do mundo globalizado (HOLANDA, F., 1998; IANNI, O., 2001).

A história do golpe, ainda não terminada, abre muitas lacunas, do viés metodológico ao temático. Por isso, pesquisamos os diversos movimentos de lutas e resistências femininas ao advento da ditadura militar, em Pernambuco, observadas as premissas analíticas funda-mentadas na história social (BURKE, P., 2002; CARDOSO e VAIN-FAS, 1997), tranversada pelo conceito de gênero (SCOTT, Jean, 1991 e 1992) e utilizando como marco a teoria marxista para uma leitura e escritura materialista-dialética da História (MARX, K., 1989, 1991, 1997 e 2007; PLEKHÂNOV, G., 1989), bem como, entendendo as razões do golpe a partir do avanço do sistema do capital, na sua fase neoliberal, e na crise resultante dos conflitos gerados entre os setores da burguesia multinacional (internacional e brasileira, DREI-FUSS, R. A., 2006) que, no desenvolvimento das suas contradições, possibilitou a ingerência das mulheres em assuntos restritos aos ho-mens, o monopólio dos bens de produção e sua reprodução pública (ARENDT H., 2000; BANDEIRA, A., 2003; BARTLER, J., 2003).

É possível e necessário destacar a atuação das mulheres em di-versos momentos do processo implantado para conter o paradigma do Well fare State, instituir uma nova hegemonia do capital multina-cional e dos setores que o conduziram, assim como um novo modelo de relações interpessoais entre humanos, dando às mulheres um moderno lugar na estrutura econômica, política e social como marca do avanço do sistema de mercadoria para o arquétipo pós-moderno (HARVEY, D., 1992; HELLER, A. e FEHÉR, F., 2002).

A partir das premissas elencadas, entende-se que as mulheres participaram dos diversos movimentos de resistência mais como por-tadoras de uma nova ordem social que revolucionaria as relações entre os sexos do que como transformadoras das relações de gêne-ro, porque exigiria uma mudança nas relações de poder advindas apenas com uma mudança na estrutura econômica. Observamos na pesquisa que as lutas se travaram no campo das resistências às desigualdades de sexo na práxis social e menos no campo das desigualdades de classe. O resultado dessas lutas foi a manutenção do status quo do capital multinacional no Brasil, porém realinha-do ao moderno paradigma do capital internacional, uma vez que a paridade das mulheres aos homens na inserção pública da relação capital/trabalho é antes um facilitador para a reprodução do regime no período neoliberal. É importante salientar, também, que as lutas das mulheres poderia reverter-se em luta revolucionária e, para a

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História, o estudo ganha significado quando pensadas as suas con-seqüências como discurso político. Entender a apropriação feita pelo sistema de mercadoria dos atuais modelos de relações interpessoais entre os sexos é garantir sua desapropriação e assegurar uma outra moral (JOFFILY, O. R., 2005; LEVY, Nelson, 2004) mais humana, que admita a igualdade com respeito às diferenças entre homens e homens, homens e mulheres e mulheres e mulheres (YANNOULAS, S. C., 1994).

Ao analisarmos o período de autoritarismo militar (1964-1979), vemos que as restrições à liberdade de manifestação de pensamento foram a sua característica marcante, a qual se expressava no exer-cício sistemático da censura dos meios de comunicação à produção cultural e científica, além do agravamento do “Estado de Exceção”, com o cerceamento de outras liberdades. Neste clima desfavorável ao pensamento crítico, sobretudo no que dizia respeito à interpretação da realidade política, econômica e social do país, surgiram grupos de uma oposição coesa, que se manifestaram das mais variadas formas no dia-a-dia da sociedade. Seus componentes pertenciam a setores intelectuais da Igreja e da sociedade civil (DREIFUSS, R. A., 2006; ALVES, M. H. M., 2003), e de diversos segmentos sociais nacionais. Também estavam presentes as mulheres que, nas suas várias ins-tâncias de ação, desempenharam papéis, muitas vezes, sem visibili-dade na memória nacional. Ao incluí-las, estabelecemos uma ponte no processo do Golpe, uma vez que é notável a origem de muitas dessas lutas e resistências em movimentos populares remontados ao período democrático-popular (FERREIRA. J. e DELGADO, L., 2003), muitas delas conduzidas por militantes de partidos de esquerda, mulheres provenientes da classe média, mas também das classes populares, refletindo o avanço das mobilizações dos trabalhadores e da sociedade civil como um todo, no bojo das idéias democrático-populares, do “bem-estar-social”, quando não em ideais socialistas e comunistas.

Até à realização do golpe de 1964, o Brasil foi palco de muitos movimentos rurais e urbanos que emergiram nas diversas camadas sociais influenciados pela conjuntura ou forjados nas lutas partidá-rias, com destaque para os grupos liderados por militantes ou simpa-tizantes do Partido Comunista Brasileiro, nesse período colocado na clandestinidade. As décadas anteriores ao golpe conviveram assim com uma luta marginal tecida cotidianamente nas ruas e nos cam-pos, sendo Pernambuco liderança dessas ações. As ligas camponesas na zona rural pernambucana e os clubes de mulheres nos bairros da Área Metropolitana do Recife refletem a atuação do povo e o seu

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envolvimento na luta por mudanças na conjuntura do país. Lutas diárias desenhadas em campanhas por melhores condições de vida, de trabalho e solidariedade contra a repressão institucional.

Essas lutas empreendidas pelas mulheres deixaram vestígios em documentos produzidos por elas mesmas, pelos órgãos de repressão ou de informação. São exemplos: Carta de Solidariedade da União Feminina de Marupiava, no Estado do Ceará, pela ação que sofreu a Associação de Mulheres de Pernambuco pela polícia do governador Barbosa Lima Sobrinho, datada de Fortaleza, 15/12/1950 e assina-da pela presidente Diassis Queiróz:

(...) vem junto a esta entidade solidarizar-se com as valorosas comba-tentes em defesa da paz e que sofreram a ação mais brutal e covarde por parte da polícia [...] Portanto conclamamos as nossas amigas não esmorecer diante desta selvageria. Pelo contrário devemos nos fortale-cer mais e continuar a luta em defesa da paz mundial, pelo progresso e bem estar da humanidade. (Prontuário Funcional do DOPS-PE, Fun-do SSP Nº 28.717, doc nº 14)

Carta essa enviada em repúdio pela ação repressiva e violenta da polícia de Pernambuco contra o ato de coleta de assinaturas promo-vido pela Associação de Mulheres de Pernambuco contra a bomba atômica. Violência que não se restringiu apenas ao impedimento do ato público, mas resultou em torturas contra as mulheres envolvi-das na organização do evento, como bem expressa a Carta Denúncia enviada pela Federação das Mulheres do Estado de São Paulo, data-da de 09/11/1950 ao Ministro da Justiça, Bias Fortes, informando que foram presas, tiveram os cabelos cortados à faca e ainda foram submetidas a atos imorais que só nos vem mostrar que as garantias de liberdade individual não existem naquele estado e que os mante-nedores da ordem pública são indivíduos que deviam estar segrega-dos da sociedade. (Prontuário Funcional do DOPS-PE, Fundo SSP Nº 28.717, doc nº 14)

Atos de tortura que se repetirão e serão depois relatados pelas vítimas da repressão. Quatorze anos depois, a polícia atuará com o apoio do Exército em cerco sistemático aos opositores do Golpe e com a autoridade de uma instituição que foi considerada o lastro do regime. Presa política em Recife, no ano de 1964, aos 17 anos, Sílvia Lúcia Viana Montarroyos era militante e integrava o Partido Operário Revolucionário Trotskista, uma seção brasileira da IV Internacional. No seu relato, o passado se restaura e sua fala representa a memó-ria da tortura de todas as mulheres que viveram a experiência do silêncio autoritário. Há uma permanência nos modos de violentar mulheres que se relaciona com o próprio discurso social sobre a fe-

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VI. O Social e o Político

minilidade: “eu estava com os cabelos por aqui, na altura abaixo dos ombros, bastante abaixo dos ombros, e foi todo arrancado à mão” (FUNDAJ – CEHIBRA: Entrevista transcrita com Sílvia Lúcia Viana Montarroyos, em 10/09/2004, p 6). Essa violência sistemática, para além da tortura física, busca no imaginário as suas raízes e os arqué-tipos Maria e Eva se tocam e trocam constantemente de lugar e na troca estabelecem um vazio de identidade: a torturada. São histórias, as suas histórias das mulheres.

Com o conjunto da documentação produzida e memória pessoal é possível refazermos os passos dessas mulheres e conhecer seus nomes e atividades, bem como acompanhar suas histórias, refazen-do a história da luta e da resistência. Tal o documento que contém uma lista de nomes de mulheres, e seus respectivos prontuários, que participaram de reunião na sede da Associação das Mulheres de Pernambuco, feita pela Secretaria de Segurança Pública de Pernam-buco, datada de 23/01/1953. “Adalgisa Cavalcanti, prontuário nº 5306; Áurea Góes, prontuário nº 10.530; Júlia Santiago, prontuário nº 1811 [...] Neuza Cardim da Silveira Barros, prontuário nº 10.153” (Prontuário Funcional do DOPS-PE, Fundo SSP Nº 28.728, doc nº 14). Entre outros, que informam inclusive batida nessa sede feita pela polícia de Pernambuco, numa clara demonstração da preocu-pação do Estado sobre esses movimentos e como esses movimentos mobilizavam a população.

Atos que, quando públicos, realizados pela Associação, eram no-ticiados pela imprensa local, como a Folha do Povo que, na sua edi-ção de 10/03/56, informou a presença de Ofélia Cavalcante, editora da revista Momento Feminino, no ato em comemoração ao 8 de Março e que terminou com um show de música popular, com a presença do Trio Arco-Íris.

Esses movimentos e lideranças populares mantiveram suas con-dutas de lutas, articulando protestos e incentivando a resistência até a instauração da repressão militar pós-golpe. O desbaratamen-to dos muitos movimentos, então instalados nas periferias urbanas e rurais, bem como nas rodas das classes médias e intelectualiza-das ao longo dos anos de chumbo não amorteceram completamente essa oposição que, naquele momento, se articulou a outros desafios, questionando não apenas o governo, mas toda a sociedade burguesa, numa forte crítica à modernidade. Através da arte panfletária (músi-ca, literatura, teatro), das atitudes “ousadas” na moda de cabelos e roupas, essas mulheres demonstraram sua insatisfação e uma forte liderança com objetivos nítidos, ora dúbios de mudanças.

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Seguindo esses passos, podemos observar as vidas ao longo dos anos até à emergência do golpe e suas conseqüências, quando as reencontraremos para ampliar o conhecimento sobre o evento da di-tadura militar. Em entrevista, Adalgisa Rodrigues Cavalcanti conta a perseguição do Estado aos resistentes e aos militantes de esquerda, como ela mesma foi caçada pela Justiça em, segundo ela, processos fraudulentos, “Fui funcionária da Prefeitura e lá abriram um inqué-rito falso sobre mim. Um inquérito imundo, nojento, mentiroso, frau-dulento, toda espécie de adjetivo negativo que se possa empregar. Esse inquérito me condenou a um ano de prisão” (FUNDAJ – CEHI-BRA: Entrevista transcrita com Adalgisa Rodrigues Cavalcanti, p 41), e depois pelo Exército e pela Polícia do DOPS, no Governo Militar:

Ah! Esse Golpe me atingiu... Não tive prisão imediata, fui muito pro-curada [...] Logo reconheci a batida do policial na porta [...] Também quando estive fora do meu lar recebi a visita, inclusive do Exército [...] a polícia veio ao meio dia e me levou... Num grande aparato, as varan-das cheias de policiais. Chegando lá fui apresentada ao delegado do DOPS. Ele muito irritado... Uma série de invencionices”. (Idem, p. 48)

Assim, também reencontraremos Júlia Santiago da Conceição, Ofélia Cavalcanti e outras militantes que fizeram das suas Histórias a História das Mulheres (PERROT, M. Minha História das Mulheres) e a História de Pernambuco.

Da mesma forma, na contramão das lutas contra a opressão do Estado Militar, porém integrando o avanço nas relações de gênero, numa sociedade marcadamente patriarcal, observamos a atuação de mulheres, líderes nas ações em apoio ao governo do golpe, a partir das diversas instâncias de convivência social, refletindo o moderno papel do feminino na sociedade contemporânea: a expressão políti-ca, a participação no mundo do público. Nas memórias de Ângela de Araújo Barreto Campelo, sobre o período do governo estadual de Miguel Arraes, e as muitas manifestações populares e da classe mé-dia, que ela integra, tal como as marchas conduzidas pela Cruzada Democrática, assim ela entre outras se inseriram no movimento:

A tomada de posição da Cruzada foi uma coisa espontânea. Elas iam ali se reunir [no Colégio São José, no Recife], discutir entre si, o que é que uma pensava, o que é que a outra pensava e dizer, eu estou com você [...] precisamos fazer alguma coisa [...] E diziam [entre si] que nós devemos fazer alguma coisa, nós vamos fazer alguma coisa. E de repente aquela multidão viu que já era uma força em si mesmo e saiu à rua (FUNDAJ – CEHIBRA: Entrevista transcrita com Ângela de Araújo Barreto Campelo, p. 7-8).

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VI. O Social e o Político

Observamos que a fala dessa mulher reflete uma necessária in-clusão do feminino nos acontecimentos, como se ela, e as mulheres, que seu discurso abarca, naturalmente não se pudessem abster. E, no entanto, a essas mulheres foi negada a sua própria história.

Por isso, além de atender à necessária inclusão de outros ato-res na construção histórica, objetivamos também suprir, como já foi dito, a falta de informações sobre o cotidiano pernambucano das mulheres participantes das resistências ao regime militar, sem negar outras realidades, que não são objeto dessa narrativa, articulado a outras críticas nas estruturas objetivas e subjetivas da sociedade.

É preciso entender que as práticas cotidianas ao construírem o conhecimento estão reafirmando um conhecimento construído e fun-damentado (ideológico) nas diferenças e conseqüentemente na exclu-são de parcela significativa da sociedade. Ou seja, pelo conhecimento aprendido em sala de aula produz-se um conhecimento que reproduz a exclusão de outros muitos sujeitos e, entre eles, as mulheres.

A economia política do sexo faz parte de sistemas sociais totais, costurados em arranjos econômicos e políticos, numa interdepen-dência que não subestima a total significação de cada elemento sub-jetivo e/ou objetivo integrante do complexo humano e social. E ao adotar tal critério de análise da realidade humana, estamos nos po-sicionando ideologicamente (ética) em favor da igualdade política e social e no direito às diferenças particulares (identidades individuais) de cada integrante da sociedade.

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Notas sobre a Questão Urbana

Sergio Augusto de Moraes

Desaparecerá a cidade ou – o que seria outro modo de desaparecimen-to – transformar-se-á todo o planeta numa enorme colméia urbana? Podem as necessidades e desejos que impeliram os homens a morar em cidades recuperar, num nível ainda mais elevado, tudo aquilo que Jerusalém, Atenas ou Florença pareciam outrora prometer? Existe ainda uma alternativa real a meio caminho entre Necrópolis e Utopia – a possibilidade de construir um novo tipo de cidade que, livre das contradições interiores, enriquecerá e incentivará de maneira positiva o desenvolvimento humano? (Lewis Mumford)

Durante milênios, o homem viveu deslocando-se, de um a outro lugar, em busca de alimentos. Era uma vida duríssima, pois a caça e a coleta eram incertos, disputados com outros grupos humanos e/ ou animais selvagens.

Dois fatores concorreram para que ele se tornasse sedentário: o ponto de encontro cerimonial, que servia de meta para a peregrina-ção, sítios aos quais os clãs eram atraídos, a intervalos determinados e regulares de tempo, e a domesticação de vegetais, que lhe permi-tia um abastecimento regular de alimentos. Esses são os germes da aldeia, que surge a aproximadamente quinze mil anos a.C. Foi um salto qualitativo para a humanidade.

Cumpre notar que a mulher joga aqui um papel decisivo: é a ne-cessidade de criar seus filhos, sua intimidade com os processos de crescimento, que a levam a desenvolver essas novas atividades. Era a mulher que manejava o bastão de cavar ou a enxada, foi ela que fabricou os primeiros recipientes, tecendo cestos e dando forma aos primeiros vasos de barro.

Esse processo de colonização e a regularidade alimentar permiti-ram o desenvolvimento da domesticação de outros vegetais, de ani-mais; a utilização da irrigação, primeiro natural, depois artificial; a utilização da força do boi e depois a do jumento e a do cavalo. A produtividade agrícola atinge um nível que permite a uma parte da população viver sem produzir alimentos.

O homem não abandonou de imediato suas antigas funções de caçador e coletor, mas elas foram, a cada milênio, diminuindo de

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VI. O Social e o Político

importância. Aqui a primeira grande divisão do trabalho coincide com a distinção de sexos. Mas eles, especialistas no uso de armas, passam, pouco a pouco, a desempenhar novas funções, de proteção da aldeia, dos rebanhos, das plantações e com isso aumentam seu poder na comunidade. Surgem os Conselhos de Anciãos, o primeiro germe de Estado.

O crescimento e o adensamento da população permite a difusão do conhecimento, estimula a divisão do trabalho, potencializa a pro-dutividade social. No período neolítico (também chamado de “pedra polida”), que vai aproximadamente de 9000 a 5000 a.C., a população mundial estimada cresce de seis a quase 100 milhões de pessoas. A transição entre a cidade rural neolítica, pouco mais que uma aldeia, até os primeiros aglomerados urbanos se dá nesse período. O homem aprende a fundir e a usar o cobre. No centro do surgimento da cidade está o templo, o celeiro, a fonte e o palácio, vale dizer a religião, a técnica, a política. Para protegê-los, além do surgimento de grupos armados, erguem-se muros.

Munford1 descreve a cidade como “...uma estrutura especialmen-te equipada para armazenar e transmitir os bens da civilização e suficientemente condensada para admitir a quantidade máxima de facilidades num mínimo de espaço, mas também capaz de um alar-gamento estrutural que lhe permite encontrar um lugar que sirva de abrigo às necessidades mutáveis e às formas mais complexas de uma sociedade crescente e de sua herança social acumulada”.

Na segunda metade do quarto milênio a.C., surge a escrita e a fundição do bronze; a produtividade social cresce tanto que passa a ser mais vantajoso manter vivos os prisioneiros de guerra do que matá-los como se fazia até então. Aparece a escravidão, a primeira divisão da sociedade em classes.

Evolução e TransiçãoCombinando, em proporções variáveis, trabalho livre e trabalho

escravo, a cidade se desenvolve no mundo até chegar a aglomerações de centenas de milhares de pessoas, como aconteceu em Roma. A penetração da cultura greco-romana em outras civilizações toma a forma de uma colonização urbana, suporte, ao mesmo tempo, das funções administrativas e de exploração mercantil.

1 MUMFORD, Lewis, A cidade na história. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1982, p. 38-9.

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Notas sobre a Questão Urbana

A cidade ganha também as funções de gestão e de domínio, li-gado à primazia social do aparelho político-administrativo. Não é de estranhar, portanto, que a queda do Império Romano do Ocidente – as invasões bárbaras começam no século III d.C. e vão até o século XIII – ocasione quase o desaparecimento da forma socioespacial da cidade, pois, tendo as funções político-administrativas centrais sido substituídas pelas dominações locais dos senhores feudais, não hou-ve outro fundamento social a encargo das cidades a não ser o das divisões da administração da Igreja ou a colonização e defesa das regiões de fronteira.2

Em vista do poder feudal, forma-se, com efeito, uma classe negociante que, rompendo o sistema vertical de distribuição do produto, estabe-lece elos horizontais servindo de intermediária, ultrapassa a economia de subsistência e acumula uma autonomia suficiente para ser capaz de investir nas manufaturas. Como a cidade medieval representa a libertação da burguesia comerciante na sua luta para emancipar-se do feudalismo e do poder central, sua evolução será bem diferente, conforme os laços estabelecidos entre burguesia e nobreza3.

A transição da burguesia mercantil para a burguesia industrial vai refletir-se nas cidades. “A urbanização ligada à primeira revolu-ção industrial e inserida no desenvolvimento do tipo de produção capitalista é um processo de organização do espaço (grifo meu , S.M.) que repousa sobre dois conjuntos de fatos fundamentais:

1. A decomposição prévia das estruturas sociais agrárias e a emi-gração das populações para centros urbanos já existentes, fornecen-do a força de trabalho essencial à industrialização.

2. A passagem de uma economia doméstica para uma economia de manufatura e depois para uma economia de fábrica, o que quer dizer, ao mesmo tempo concentração de mão-de-obra, criação de um mercado e constituição de um meio industrial.

As cidades atraem as indústrias devido a estes dois fatores es-senciais (mão-de-obra e mercado)... Mas o processo inverso também é importante: onde há elementos funcionais, em particular matérias-primas e meios de transporte, a indústria coloniza e provoca a urba-nização (idem, idem).

2 DERRY, T. K. e WILLIAMS, T. I. História de la Tecnologia. Madrid: Oxford Univ. Press-Ed. Siglo XXI, 1977.

3 CASTELLS, M., A questão urbana. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 2006, p. 43-44.

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VI. O Social e o Político

A cidade no BrasilDizia Marx que todo regime histórico concreto de produção tem

suas próprias leis de reprodução da população. Marx inferiu esta lei estudando as sociedades “clássicas”, particularmente a inglesa. Os vínculos do modo de produção com as mudanças urbanas também existem, mas não são lineares, são complexos. Uma das variáveis que integra esta complexidade é o momento histórico em que se plas-mam os modos de produção.

No Brasil, a conquista portuguesa tumultua e subverte o desen-volvimento das aldeias aqui existentes que viviam a transição do nomadismo para o sedentarismo. Bota pelo avesso do avesso qual-quer lei de desenvolvimento das populações pré-existentes. Dizima e escraviza indígenas, importa e escraviza milhares de africanos. O Brasil e os países da África negra pagam um preço incalculável à acumulação primitiva do capital europeu.

No Brasil, como em outros países da América, as primeiras aglo-merações urbanas se dão no litoral, em torno dos portos e dos contin-gentes civis e militares destinados a organizar e garantir a pilhagem e o comércio colonial. No interior, aparecem também aglomerações urbanas nas regiões de mineração.

À importação massiva de escravos africanos – do século do des-cobrimento até 1860 entram no Brasil 4,3 milhões4 – soma-se, par-ticularmente após a abolição da escravatura, a migração massiva de milhares de trabalhadores do campo provocando nas cidades brasi-leiras um crescimento urbano desordenado e difícil de ser expresso por qualquer lei.

Fora de dúvida que as melhores condições de vida da cidade são um atrativo para essa migração. Mas na base desse fenômeno está a desorganização da sociedade rural, a crise das relações no campo. Um seminário da Unesco para a América Latina chega a atribuir a este fator 50% da responsabilidade pelo crescimento da população urbana sendo a outra metade atribuída aos fatores naturais.

M. Castells constata, para a América Latina “...uma disparidade entre um ritmo de urbanização alto e um nível e um ritmo de indus-trialização nitidamente inferiores aos de outras regiões também ur-banizadas.” Daí o crescimento desproporcional do setor de serviços, denominação “enganadora” segundo esse estudioso, pois, sob esta rubrica, esconde o subemprego e até a marginalidade.

4 ALENCASTRO, Luiz Felipe de, O Trato dos Viventes. São Paulo: Ed. Cia. das Letras. 2000, p. 69.

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Notas sobre a Questão Urbana

No Rio de Janeiro, por exemplo, mesmo após a redução do fluxo migratório, a cidade convive com problemas originados no ambiente rural e transferidos para nossas favelas, como é o caso da taxa de reprodução da população. Segundo o Instituto Pereira Passos5, a po-pulação favelada do Rio cresceu 71,3% entre 1980 e 2000, taxa seis vezes maior que a das áreas formais.

Estas são as marcas profundas deixadas pelo capitalismo tardio e dependente que ainda domina nosso país.

Como diz Mumford, “Sem uma longa carreira de saída pela História, não teremos a velocidade necessária, em nosso próprio consciente, para empreender um salto suficientemente ousado em direção do futuro...”6. Talvez seja essa uma das lacunas que vêm dificultando os dirigentes de nossas cidades a encontrar soluções para nossos problemas.

Nota do autor: Para uma visão mais detalhada dos problemas das grandes cidades brasileiras remeto o leitor para as matérias pu-blicadas no Le Monde Diplomatique/Brasil, de agosto de 2008, em especial para: “Quem pode fazer?” Editorial de Silvio Caccia Bava; “Precisamos plantar a semente da mudança” – Entrevista com Luiza Erundina; “A lógica da desordem”, de Raquel Rolnik; “O desafio das metrópoles”, de Luiz César Queiroz Ribeiro; e “Propostas para um futuro melhor”, do Movimento Nossa São Paulo.

5 IETS – Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (www.iets.org.br) 6 Idem nota 1, p. 9

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Economia e conservação da natureza1

Gustavo Souto Maior

A segunda metade do século XIX testemunhou mudanças mar-cantes no conhecimento humano sobre teorias econômicas e sobre estratégias de conservação da natureza. Preocupações

manifestadas por alguns economistas europeus sobre crescimen-to populacional, disponibilidade de recursos naturais e progresso econômico no início do século XIX, passaram a ser compartilha-das por intelectuais em ambos os lados do Atlântico norte ao final do século. Muitos desses intelectuais estiveram envolvidos com a criação das primeiras unidades de conservação ao final do século. Apesar de terem em comum os mesmos temas, cientistas naturais discordavam das relações entre eles estabelecidas pelos economis-tas, taxando-as de grosseiras simplificações.

A partir de então, e durante os cem anos seguintes, o raciocí-nio econômico e a conservação da natureza ficaram cada vez mais distantes. Na verdade, eles pareciam crescentemente incompatíveis. Somente na segunda metade do século XX, Economia e Conserva-ção voltaram a demonstrar certa compatibilidade. A partir dos anos 60, passou-se a utilizar crescentemente a análise econômica para a identificação das causas da degradação do meio ambiente e das di-ficuldades de se alcançar metas de conservação da natureza. Na dé-cada seguinte, inicia-se a difusão crescente do uso de instrumentos econômicos na política de meio ambiente.

Teorias e práticas econômicas continuam sendo, no entanto, encaradas com desconfiança por certas áreas do pensamento e da prática da conservação da natureza. Isto é particularmente evidente entre os proponentes de espaços protegidos – unidades de conser-vação da diversidade biológica. Uma desafiadora questão surge da análise histórica: qual eficiência tem predominado entre os defenso-res contemporâneos de áreas protegidas/unidades de conservação? A eficiência física dos conservacionistas, a eficiência econômica tão

1 A elaboração desse artigo teve a valiosa colaboração do Professor Titular Jorge Ma-deira Nogueira, do Departamento de Economia da Universidade de Brasília – UnB.

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Economia e conservação da Natureza

ao gosto de economistas de diferentes vertentes, ou nenhuma das duas? Aceitando o desafio de tentar fornecer respostas para elas, mostraremos que as três opções estão presentes no atual estágio de definição e implantação de áreas protegidas/unidades de conserva-ção. Essas têm por objetivos básicos proteger a diversidade biológica, disciplinar o processo de ocupação e assegurar a sustentabilidade do uso dos recursos naturais.

Unidade de conservação é, assim, uma especialização do espaço protegido, possuindo regras próprias de uso e de não uso, mane-jo e definição legal para sua criação. Mais especificamente para o caso brasileiro, as unidades de conservação são “espaços territoriais e seus componentes, incluindo as águas jurisdicionais, com caracte-rísticas naturais relevantes, legalmente instituídos pelo Poder Públi-co, com objetivos de conservação e limites definidos, sob regime es-pecial de administração, ao qual se aplicam garantias adequadas de proteção” (SNUC, art. 2°, I). Logo, as unidades são áreas específicas criadas pelo Poder Público, cujo domínio pode ser público ou priva-do, podendo ter ou não proteção integral de seus recursos naturais, e, dependendo do tipo, ser compatível com a presença de populações tradicionais no seu interior.

Atualmente, temos no Brasil, segundo dados do Ministério do Meio Ambiente, 4,8% do território sob proteção governamental na forma de Unidades de Proteção Integral – estação ecológica, reserva biológica, parque nacional, monumento natural e refúgio de vida sil-vestre – e 6,8% de Unidades de Uso Sustentável – área de proteção ambiental, área de relevante interesse ecológico, floresta nacional, reserva extrativista, reserva de fauna, reserva de desenvolvimento sustentável e reserva particular do patrimônio natural.

Governos em todo o mundo, incentivados por organizações inter-nacionais dedicadas à conservação, têm respondido à perda de biodi-versidade destacando áreas com importância ecológica, para protegê-las contra a influência humana adversa. As áreas protegidas , assim, emergiram como uma solução global para as ameaças locais à biodi-versidade. Em 1985, existiam cerca de 3.500 sítios protegidos, distri-buídos em 136 países, cobrindo cerca de 423 milhões de hectares. Já em 1992, a quantidade de áreas protegidas em todo o mundo subiu para aproximadamente 8.000, abrangendo um território de quase 750 milhões de hectares, e representando 5,1% dos ecossistemas terres-tres. E, em 1997, as áreas protegidas já somavam mais de 30.000 unidades, envolvendo uma parcela do globo terrestre de cerca de 13,2 milhões de km2, uma área maior que a Índia e a China juntas.

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Parques nacionais, e outras áreas protegidas equivalentes, são, com freqüência, descritos como “ilhas”. E essa é uma descrição bem adequada da forma como muitas das áreas protegidas têm sido ge-ridas, como se fossem efetivamente “ilhas” isoladas do contexto re-gional socioeconômico e político em que se inserem. Atualmente, é reconhecido que o modelo histórico de conservação da natureza, que constrói uma cerca – virtual ou real – em volta da área protegida para preservá-la da influência humana, afastando-a do contexto social, econômico, cultural, e mesmo ecológico em que se insere, tem gerado conflitos, assim como resistências locais, e argumenta-se ser social e ecologicamente contraproducente, e, em certos casos, nocivo à pró-pria biodiversidade.

As áreas protegidas contêm alguns dos cenários e paisagens mais espetaculares do planeta. Em algumas localidades as suas atrações se tornaram a pedra de toque para turismo e atividades recreativas. Contudo, turismo e recreação não são os únicos ou principais papéis da maior parte das áreas protegidas. A conservação da biodiversi-dade e o provimento de recursos naturais permitem que cientistas, educadores e a comunidade em geral encontrem material para suas pesquisas e satisfação de diversas necessidades. Porém, conflitos en-tre a gestão de áreas protegidas e o desenvolvimento econômico local são intensos em muitas regiões, demandando novas abordagens para se proteger a biodiversidade, bem como os direitos da população que vive ao redor das unidades.

Assim, qualquer que seja o papel desempenhado pelas áreas pro-tegidas é de suma importância o debate travado em torno da questão do desenvolvimento ou não dessas áreas. Deve-se mantê-las em seu estado natural, ou próximo a este, ou deve-se desenvolvê-las e explo-rá-las? Os argumentos pró e contra cada um dos questionamentos são de origens diversas, e pode-se enquadrá-los em argumentos de origem científica, político-administrativos e sociais. A comunidade internacional de conservação tem percebido que áreas protegidas não podem ser administradas isoladas dos ecossistemas, assenta-mentos humanos e usos da terra existentes ao seu redor.

As abordagens tradicionais para a gestão das áreas protegidas, principalmente de parques nacionais, geralmente são antipáticas e constrangedoras para a comunidade local, reprimindo-as com vigi-lância e penalidades. De fato, a gestão de parques nacionais tem enfatizado o papel policial visando o cerceamento e a exclusão da população local. O resultado é que conflitos sociais e econômicos surgem ao longo dos limites das áreas, e a consciência popular e o apoio político para os programas de gestão das áreas protegidas

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diminuem. Nesse contexto, áreas protegidas não podem ser conside-radas “à parte” do desenvolvimento sustentável de um país. Elas são, desta forma, parte do processo de desenvolvimento.

Se essa percepção predominar, a análise econômica tem muito a dizer sobre como essas unidades podem melhor contribuir para o processo de desenvolvimento. Todos os programas de gestão de áreas protegidas refletem um conflito de interesses entre usos alternativos de recursos escassos – escassez relativa, portanto econômica, e não necessariamente escassez física –, e, por conseguinte, envolvem um componente econômico.

Usar para não degradar: possibilidades e limitaçõesO debate sobre a gestão das áreas protegidas no Brasil é usualmen-

te colocado em termos de se tentar alcançar o equilíbrio deixando as áreas protegidas em seu estado natural, ou desenvolvê-las e explorá-las. Será que o modelo tradicional de gestão, que tenta isolar, por exemplo, os parques nacionais da influência humana e do contexto social e econômico que os rodeiam, tem obtido sucesso? Ou, pelo contrário, gerou conflitos, resistências locais, e é social, econômica e ecologicamente improdutivo, e, por conseqüência, nocivo à proteção da biodiversidade? Será que se pode almejar alcançar a proteção de uma mancha de um determinado ecossistema promovendo-se o de-senvolvimento socioeconômico, integrando-se a população local no gerenciamento da área e viabilizando-se mais áreas para visitação pública, tornando as áreas protegidas mais conhecidas da sociedade em geral?

Estudos indicam um impacto de 35 bilhões de dólares anuais da indústria “outdoor” na economia dos EUA, o que representa 0,5% do PIB americano. Associado a isso, pode ser computada a manutenção de mais de 700 mil empregos diretos em atividades relacionadas com a recreação em ambientes naturais naquele país. Segundo dados de 1998 da IUCN, os gastos de turistas em atividades relacionadas com áreas protegidas no Canadá sustentaram 159.000 postos de traba-lho, contribuindo com 6,5 bilhões de dólares canadenses no Produto Interno Bruto. Já a Austrália recebe mais de 2 bilhões de dólares australianos em gastos realizados em oito parques nacionais, com investimentos governamentais de cerca de 60 milhões de dólares. E, na Costa Rica, aproximadamente 12 milhões de dólares são gastos anualmente na manutenção dos Parques Nacionais, mas os gastos de cerca de 500.000 visitantes em 1991 foram maiores do que 330

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milhões de dólares, sendo o turismo gerado a partir dos parques, a segunda maior indústria no país.

Fica claro, então, que as áreas protegidas são muitas vezes en-tidades que podem gerar rendimentos significativos, e assim contri-buir de forma importante para as economias locais. Assim, o investi-mento em áreas protegidas pode prover um benefício expressivo para as economias locais e mesmo nacionais. A questão é se identificar os bens e serviços, ou produtos, que as áreas protegidas oferecem, e que são adequados para a obtenção de renda para as mesmas. Com uma administração apropriada, o produto em “oferta” pode ser “ven-dido” continuamente sem que se diminua o valor respectivo, sendo que a renda pode ser utilizada para a manutenção da área protegida. Alternativas inovadoras em relação às fontes tradicionais de manu-tenção das áreas protegidas são necessárias, principalmente para assegurar a sua viabilidade e existência a longo prazo.

Por outro lado e contraditoriamente, enquanto a quantidade de áreas protegidas implantadas teve um rápido crescimento no mun-do todo, especialmente em países em desenvolvimento, as unidades criadas não têm alcançado o sucesso previsto inicialmente na manu-tenção da biodiversidade. As razões do insucesso incluem aspectos econômicos, a saber:

• débil apoio nacional – os benefícios numerosos advindos das áreas protegidas são raramente apreciados pela sociedade, e principalmente pelos governos em geral, porque tais áreas são vistas mais como lugares de recreação “exótica”, ou de vida sil-vestre remota, do que como uma contribuição efetiva para o bem-estar nacional; a falta de apoio redunda em recursos de gestão insuficientes – humanos e financeiros;

• conflitos com a população local – a criação de uma área protegi-da geralmente requer a implantação de medidas restritivas em relação ao uso dos recursos existentes pela população local, em favor dos interesses da nação e das futuras gerações;

• conflitos com outras agências governamentais – as agências responsáveis pelas áreas protegidas tendem a ser relativamente frágeis na estrutura governamental, sendo assim vulneráveis em relação a conflitos de políticas adotadas e a cortes orça-mentários; as ameaças vêm, por exemplo, da área de transporte (tentativas de se construir estradas em áreas protegidas), de tu-rismo (ao se atrair mais turistas do que a área suporta, sem que sejam degradados os recursos existentes), de saneamento (ao se

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tentar construir barragens), de desenvolvimento (ao se instala-rem setores industriais e comerciais próximos às áreas) etc.;

• gestão limitada – ainda se considera que os maiores desafios de gestão em áreas protegidas são primariamente de cunho ecoló-gico, e não social, econômico e político; assim, os administrado-res consideram seus problemas administrativos sob uma visão estreita, meramente preservacionista, tentando isolar a área do ambiente em que ela se insere, e não tendo uma visão mais am-pla, envolvendo as áreas adjacentes e a sociedade local, entre outros setores.

Um modelo alternativo tem como característica fundamental a participação de todos os setores afetados ou interessados na criação e na gestão de uma área protegida, especialmente as comunidades locais. As comunidades locais participam, desde o início, da criação da unidade e têm poder de fato para intervir na sua gestão. Tam-bém no que diz respeito à gestão das áreas protegidas é fundamental existirem mecanismos com o propósito de assegurar a participação das comunidades locais. A relação custo-benefício de conservar uma área protegida deve no final ser positiva para a população local se se aspira à prosperidade dessa região e para isso as populações devem ser envolvidas no planejamento e manejo das áreas protegidas, e participar de seus benefícios.

Não obstante, modelos alternativos não são panacéias. Eles exigem criatividade e eficácia do gestor ambiental. Criatividade no sentido de estabelecimento de planos de manejo que permitam a exploração socioeconômica da área com um mínimo sacrifício da di-versidade biológica que se busca proteger. O gestor ambiental precisa ser sensibilizado, motivado e estimulado na busca de atividades no interior das áreas protegidas que permitam a auto-sustentabilidade econômica da unidade, sem que isso implique destruição da fauna e da flora locais. Com certeza é muito difícil se isolar a diversidade biológica da influência humana adversa, pois mesmo nas Unidades de Proteção Integral se conviverá diuturnamente com um poderoso predador, o ser humano. Assim, a eficácia do gestor ambiental, no caso das áreas protegidas, dependerá de sua capacidade de criar, implementar e gerir projetos, programas e políticas ambientais, e não apenas do seu poder de polícia, de coerção, de proibição.

A socioeconomia de uma região “deve ir bem” para que uma área protegida nela contida “possa ir bem”. Só há uma alternativa: para as áreas protegidas terem sucesso na proteção ambiental, o desenvolvi-mento econômico deve ser bem sucedido na proteção das aspirações

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sociais de níveis de renda e de bem-estar mais elevados. Ou ambos “vão bem” ou ambos “vão mal”. Eis aí a oportunidade de Economia e Ecologia se encontrarem na busca do sempre polêmico “desenvolvi-mento sustentável”. Sem dúvida, uma oportunidade única para trans-formar um conceito vazio, teórica e operacionalmente, em um objetivo concreto da intervenção pública e privada em assuntos ambientais.

A mais evidente e relevante das motivações comuns ao pensa-mento econômico e ao conservacionista era (e tem sido) o repúdio ao desperdício no uso de escassos recursos naturais. Conservacionistas e economistas concordam que escassez exige uso eficiente. No entan-to, para os primeiros, eficiência física; para os economistas, eficiên-cia econômica. Conservacionistas e economistas precisam discutir possibilidades de aproximar a eficiência física da econômica.

Pode-se argumentar que a meta da conservação da biodiversidade deve ser apoiar o desenvolvimento sustentável por meio da proteção e do uso de recursos biológicos sem reduzir a variedade mundial de genes e espécies, nem destruir habitats e ecossistemas importantes. Desse modo, a estratégia para conservação deve ser também abran-gente, podendo ser resumida em três elementos básicos: salvar a biodiversidade, estudá-la e usá-la de modo sustentável e eqüitativo. Entretanto, necessário se faz uma mudança do enfoque defensivo, preocupado apenas em defender a natureza das repercussões do de-senvolvimento, para um enfoque mais ativo, com o objetivo de satis-fazer a demanda humana por recursos biológicos e, ao mesmo tem-po, garantir a sustentabilidade da riqueza biótica, no longo prazo.

Alternativas inovadoras em relação às fontes tradicionais de manu-tenção das áreas protegidas passaram a ser buscadas para assegurar a sua viabilidade e existência no longo prazo. Essa percepção levou a uma mudança no significado de conservação. A noção de proteção da natureza deixou de ser apenas proteção “contra” (por exemplo, con-tra o desenvolvimento desenfreado e a pressão humana), buscando também a proteção “a favor” (por exemplo, a favor da conservação da biodiversidade, do turismo, do aumento do desenvolvimento humano local em bases sustentáveis). Atualmente reconhece-se que a apro-vação e o apoio da comunidade local são especialmente importantes para a segurança das áreas protegidas. Assim, a comunidade local, ao invés de ser excluída do processo de conservação, deve na verdade é nele ser introduzida.

Essa abordagem sugere que o objetivo dos administradores de sistemas de áreas protegidas deve ser o de incrementar o valor das mesmas, maximizando os seus benefícios e a quantidade de pesso-

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as que podem ser beneficiadas – sem causar danos ecológicos e no custo mínimo possível. Tal mudança reflete-se, por exemplo, na De-claração da IUCN (Imperatives for Protected Áreas), na qual se con-voca toda a comunidade envolvida com áreas protegidas no mundo a demonstrar que elas contribuem para as economias locais e para o bem-estar humano, e que é necessário o estabelecimento de parce-rias e de cooperação com todos os interessados e interventores que têm relações com elas.

Isso exige informação sobre os benefícios do desenvolvimento a longo prazo de áreas protegidas, e também a consideração de meto-dologias apropriadas que sirvam para avaliar todos os benefícios que as áreas protegidas proporcionam à sociedade. Pelo fato dos benefí-cios não serem bem definidos, e geralmente subestimados, eles não têm servido para se contrapor aos custos imediatos associados com a implantação e manutenção das unidades de conservação. Assim, o comportamento da administração pública geralmente tem sido o de levar em conta o custo de oportunidade ao não desenvolverem as ter-ras para outros fins, e o custo do manejo, da manutenção e da infra-estrutura. A conclusão a que geralmente se chega é que os custos são elevados face os benefícios incertos que se podem obter.

Fatores como ocupação desordenada do solo, usos conflitantes do solo, desemprego, políticas de manejo de recursos naturais distorcidas e informação inadequada contribuem para a ocorrência de uma série de ameaças. Ameaças não só internas, relativas à gestão, mas princi-palmente externas, que colocam um grau de incerteza significativo em relação à sua sobrevivência e quanto ao cumprimento das finalidades para as quais as unidades foram criadas. Raramente se percebe que os comportamentos que afetam a manutenção da diversidade biológi-ca podem ser alterados providenciando-se novas abordagens para a conservação, que alterem a percepção das pessoas em relação a qual conduta é a de seu interesse próprio. Como os interesses são, cons-tantemente, definidos em termos econômicos, a conservação também necessita ser promovida por meio de incentivos econômicos.

Para saber qual é a estratégia ótima de conservação da diversida-de biológica é preciso: decidir o que vai ser preservado; examinar as características econômicas e sociais da região detentora dos recur-sos e determinar o mecanismo de financiamento, ou seja, determi-nar o montante de recursos disponíveis para a preservação. Ou seja, aplicar uma das ferramentas básicas da análise econômica, que é a avaliação de custos e benefícios, com a aplicação da análise custo-benefício.

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Esse tipo de avaliação é essencial para a manutenção das áreas protegidas, e para definir o espaço que essas áreas ocupam em uma sociedade moderna.

Para que a sociedade demonstre aos administradores seus verda-deiros desejos em relação à manutenção do meio ambiente natural, é essencial que a população tenha uma idéia clara dos benefícios que obtêm da natureza em seu estado mais preservado – em outras pala-vras, o valor das áreas protegidas. Não se pode esquecer, no entanto, que os benefícios econômicos advindos das áreas protegidas, embora sejam difíceis de medir e variem de sítio para sítio, são limitados na es-cala local, aumentam no nível regional e nacional, e são potencialmen-te substanciais na escala global. Por outro lado, os custos econômicos das áreas protegidas seguem uma tendência oposta, sendo significan-tes do ponto de vista local, e pequenos, pensando-se globalmente.

Desde que essa postura vem sendo disseminada, o pensamen-to conservacionista tem rejeitado largamente as políticas puramen-te preservacionistas e tem abraçado o conceito de “desenvolvimento sustentado”, o qual encoraja a utilização dos recursos naturais para gerar renda local e a inclusão da sociedade local no planejamento e na administração das áreas protegidas, fazendo a conservação mais aceitável para ela. Com essa perspectiva, a conservação da natureza é vista como uma forma de desenvolvimento econômico, baseado no uso racional dos recursos.

Não há a menor dúvida de que a ciência econômica tem as suas limitações. Não é fácil, por exemplo, atribuir valores econômicos na preservação de espécies, devido aos fatores de irreversibilidade que acompanham espécies em extinção, das dificuldades em se medir as preferências das futuras gerações, da oposição entre custos pre-sentes e benefícios futuros, e da distinção entre valor de mercado (commodity) e valor moral. E é sempre necessário contrastar o que é benéfico para alguns segmentos da sociedade do que é amplamente benéfico para a sociedade como um todo, o que, em última instância, é um julgamento político. Mas não temos dúvida: o casamento da economia com o meio ambiente trará benefícios para todos nós.

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VII. Ensaio

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Autor

Fernando MiresNasceu no Chile, doutor em Ciências Econômicas e Sociais e atualmente é professor de Política Internacional na Universidade de Oldenburg, na Alemanha.Publicado originalmente em Nueva Sociedad, Buenos Aires, nº 22, p. 60-73, março/abril de 2006.

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Esquerda, empresários e política

Fernando Mires

Quando a revista Nueva Sociedad me solicitou um artigo a res-peito da possibilidade dos empresários serem de esquerda, um certo reflexo-condicionado por paradigmas que apesar de

haverem desaparecido continuam me perseguindo como almas pe-nadas me fizeram pensar de modo automático que se tratava de uma impossibilidade. É que, de acordo com os antigos paradigmas, a per-tinência à esquerda se definia, em primeiro lugar, por uma posição de classe determinada por supostos interesses frente aos quais alguém, como intelectual orgânico da classe despossuída, devia declarar-se inimigo ou servidor confiável. Não obstante, um segundo olhar me levou a concluir que essa pergunta, ainda de acordo com o antigo paradigma, é perfeitamente lógica. Basta recordar que a chamada “esquerda mundial”, hegemonizada pelo movimento comunista sovi-ético – com exceção dos breves períodos em que se viu afligida pela “doença infantil (esquerdista) do comunismo”– postulou um projeto de alianças em que as chamadas “burguesias patrióticas ou nacio-nais” tinham um lugar privilegiado.

Recordações do passado

O “movimento comunista mundial”, máximo depositário da iden-tidade simbólica da esquerda durante a Guerra Fria, postulava para os países do chamado Terceiro Mundo um projeto de revolução por etapas. Na primeira, a democrático-nacional, o proletariado deveria

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VII. Ensaio

recorrer à unidade com as “burguesias patrióticas”. Em termos mais práticos que ideológicos, esse suposto movimento comunista propi-ciava ganhar a afluência das classes médias, que continham, natural-mente, muitos empresários intermédios. Inclusive em alguns países europeus, onde não podia ocorrer um projeto de libertação nacional, os comunistas propunham uma estratégia baseada na luta contra o “capitalismo monopolista”, de acordo com a qual os capitalistas (em-presários) eram segmentados em duas camadas: uma pró-monopo-lista e outra antimonopolista. Com a primeira, o proletariado devia estabelecer uma aliança tática em função de um projeto estratégico de tomada do poder que, passando pela ante-sala de um “capitalismo monopolista de Estado”, deveria culminar na fase final, a comunista.

Portanto, a idéia de que parte do empresariado, ainda que não fosse de esquerda, podia ser ganho para um projeto de esquerda, não era alheio à antiga esquerda marxista. De certo modo, essa inten-ção provinha não só de uma ideologia soviética, mas também de uma constatação realista: nunca o proletariado (isto é, seu partido) poderia tornar-se poder sem uma aliança com as burguesias nacionais, ou das camadas médias, ou do “capitalismo não monopolista”, ou de quem fosse (as denominações diferiam ao longo do tempo e do espaço).

Daí, que, para cumprir esse objetivo, era necessário o apoio de outras “classes subalternas”. O aliado natural ou estratégico do pro-letariado devia ser o campesinato. Um aliado menos natural, não es-tratégico, ou melhor, tático, era constituído por determinados grupos do “empresariado patriótico”.

A fim de realizar um programa que integrasse setores da burgue-sia (empresários), a esquerda pró-soviética começou a favorecer, de-pois da Segunda Guerra Mundial, a formação de frentes ou blocos de ação política, de que surgiram algumas expressões na América La-tina, na Unidade Popular chilena e na Frente Ampla uruguaia. Que essas formações políticas efetivamente tivessem conseguido arrastar setores empresariais para posições de esquerda é outra história. A dificuldade para alcançar aquela meta residia no corte que essa es-querda fazia entre os objetivos estratégicos e os objetivos táticos. Os setores empresariais, bem como as camadas médias, deveriam seguir o proletariado só até chegar a um determinado ponto: os em-presários, não sem certa lógica, entendiam que iam ser usados para chegar ao poder, e que depois seriam fuzilados como já havia ocorri-do com a “classe camponesa progressista” durante a era de Stalin na ex-União Soviética.

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Esquerda, empresários e política

Além disso, os partidos comunistas mais realistas do Ocidente estabeleceram uma relação puramente instrumental com a “demo-cracia burguesa”, o que, decerto, não era o meio mais adequado para conquistar o amor das camadas burguesas deslocadas pelo “imperialismo” ou pelo “capital monopolista”.

O único partido comunista do mundo que estabeleceu uma rela-ção não instrumental com a democracia foi o italiano, mas para isso teve que deixar de ser comunista ainda antes da queda do Muro de Berlim. Mas apesar dos chamados formuladores pela esquerda pró-soviética, ocorreu que alguns setores empresariais se integraram nas socialdemocracias européias que, pelo menos, lhes garantiam não ser fuzilados em uma fase “mais avançada” do “processo histó-rico”. Isto significa que, no passado, a pergunta sobre a possibili-dade de alguns empresários ser de esquerda foi respondida afirma-tivamente: para a esquerda pró-soviética, a aliança com setores da burguesia era necessária, mas foi impossível; para a socialdemo-cracia (que, segundo os comunistas, não era esquerda, mas direita, e que, segundo a direita, era de esquerda), era e foi possível.

Até aqui temos as recordações. Voltemos agora ao presente lati-no-americano e à pergunta formulada por Nueva Sociedad: um em-presário pode ser de esquerda? Para responder a este interrogante é necessário, antes, responder a outro: que significa ser de esquerda hoje na América Latina?

O que é ser de esquerda hoje na América Latina?Algumas respostas a esta pergunta foram incluídas no núme-

ro 197 de Nueva Sociedad1. É interessante constatar que cada um dos autores definiu a esquerda de um modo distinto, ainda que todos estivessem de acordo em um ponto: na América Latina há duas esquerdas, uma “arcaica”, que equivale aos restos marxistas-leninistas da Guerra Fria, e outra “moderna”, presente em diversos governos como os da Argentina, Brasil, Chile e Uruguai. A maioria coincidiu em assinalar, como um caso à parte, o governo da Vene-zuela, que parece representar uma síntese entre o velho populismo nacionalista, a antiga esquerda da Guerra Fria e algumas conota-ções menores que correspondem à esquerda moderna, às que se

1 A edição inclui textos de Carlos M. Vilas, Demetrio Boersner, Teodoro Petkoff, Wilfredo Lozano, Rodrigo Arocena e Manuel Antonio Garretón e está disponível em <www.nuso.org>.

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VII. Ensaio

somam certas expressões fascistóides; isso é, um embróglio que, em algum momento. os venezuelanos teriam que desatar.

Em que pese a qualidade dos artigos, dois temas enormes ficaram sem explicação. O primeiro é a referência à esquerda latino-america-na como se fosse parte de alguma esquerda universal cuja existência “quintessencial” se dá como certa.

Por outro lado, todos se esqueceram que para existir uma esquer-da é preciso que haja uma direita, isto é, que a esquerda exista em in-tensa relação com uma direita ou, dito de outro modo, é parte insubs-tituível de uma relação e não uma identidade moral que se explica por si mesma. Decorre daí que ninguém conseguiu definir politicamente a esquerda a não ser moralmente, adjudicando-lhe atributos imaginá-rios como os de lutar pela igualdade, a emancipação, os trabalhadores etc. A direita, desde logo, poderia dizer o mesmo de si.

O tema tem certa importância: se a esquerda latino-americana é um atributo da política de uma esquerda universal, a pergunta sobre a possibilidade dos empresários serem de esquerda só pode ser res-pondida em termos teóricos. Ao passo que, se a noção de esquerda não é universal, isto é, se está sujeita às particularidades das regiões onde esta esquerda existe, se faz necessário responder em termos não universais, analisando caso a caso, de acordo com as relações que se dão em cada país. Nesta última situação, a resposta tem que ser política e não teórica (não existe uma política universal; o próprio conceito de política é a negação de todo universalismo).

O fim do universalismo de esquerdaPois bem, se analisarmos o tema com certo cuidado, é evidente

que nem mesmo no passado, durante a Guerra Fria, a esquerda teve uma expressão universal. Existia, tanto em sua forma comunista como em seu modo socialdemocrata, na maioria dos países da Eu-ropa Ocidental. Também existiu, durante um breve período, como esquerda estudantil extraparlamentar, que se fez presente no espaço moral, mas muito debilmente no político.

Essa esquerda já não existe. Tampouco a esquerda dos países da órbita soviética, uma vez que ali foram os próprios comunistas que suprimiram o jogo político, que é o mínimo necessário para a existên-cia de uma esquerda. E menos ainda existia uma esquerda no mun-do islâmico ou nos países asiáticos, e menos ainda na África. Não foi pouco, é preciso acrescentar já que a lógica política dos Estados Unidos nunca se deixou reger pelos esquemas esquerda-direita.

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Esquerda, empresários e política

Isto é, “a” esquerda era, ainda nesse período, um fenômeno eu-ropeu e latino-americano, e em nenhum caso universal. Depois da queda do Muro de Berlim, a esquerda perdeu, ademais, seus cata-lisadores planetários e regionais. Não só porque a URSS não existe, mas porque a China embarcou num colossal projeto capitalista. Os catalisadores sub-regionais também desapareceram. Cuba, por exemplo, só tem seguidores em setores ideológicos reduzidos disso-ciados da realidade política. O castrismo, certamente, espera incre-mentar sua influência em países extremamente empobrecidos ao surgirem governos “socialistas-nacionais”, como já ocorreu na Bo-lívia com o triunfo de Evo Morales. Mas, mesmo que estes governos consigam se manter por algum tempo, não seria o suficiente para converter Cuba em um catalisador.

Segundo os autores mencionados, o atual presidente da Venezuela poderia herdar a liderança que o ditador cubano já não pode exer-cer numa reduzida fração da esquerda latino-americana (a chamada “arcaica”). No entanto, não se pode esquecer que Cuba pôde ocupar esse lugar somente graças a sua extrema dependência, econômica e ideológica, em relação ao império soviético. Hoje, por sua vez, não existe nenhuma potência mundial que queira abrigar em seus braços a Venezuela de Chávez. A imagem internacional do presidente Chávez não é positiva, e não só nos EUA. Os contatos que ele tem travado com o totalitarismo islâmico do Irã têm prejudicado sua imagem interna-cional, sobretudo na Europa, onde o perigo islâmico “é sentido”. Além disso, Chávez conta com uma oposição local que, embora desagrega-da, é numerosíssima, e seu governo não se encontra em condições de destruir fisicamente, como ocorreu em Cuba (com execuções, prisões, torturas e exílio). Naturalmente, Chávez pode mostrar internamente alguns êxitos em matéria social, mas o que importa em política inter-nacional não é isso, mas as contribuições à ampliação das relações democráticas, tanto locais como externas.

Mas, para além de qualquer avaliação particular, a perspectiva da instalação dos “socialismos nacionais” em alguns países latino-americanos dificilmente pode ser atrativa para os setores empresa-riais, tema do presente artigo. E mais: mesmo que um «socialismo nacional» consiga manter-se no governo em um país como a Bolí-via, não existem ali setores empresariais relevantes, de modo que a pergunta, também nesse caso, perde seu sentido. Desta maneira, o interrogante principal – podem alguns empresários ser de esquerda? – seria válido apenas para a esquerda política (“moderna”) e, em ne-nhum caso para a esquerda antipolítica (“arcaica”). Antes de tentar

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VII. Ensaio

continuar avançando com uma resposta, permitam-me uma obser-vação sobre a pergunta em si.

Trata-se de uma pergunta puramente latino-americana. Ninguém na Europa poderia formular um interrogante similar, e não só por-que já no passado era lógico que um empresário fosse de esquerda ou de direita, mas porque a relação esquerda-direita se encontra em extinção no planeta. Unicamente no sul da Europa tem certo uso o termo “esquerda”, ainda que mais como um atributo simbólico do passado que se utiliza para designar espaços regulatórios da políti-ca. O fato de que o tema da esquerda adquira na América Latina um sentido tão mítico, quase sacramental, escapa à centralidade deste breve artigo.

As regras do jogoA esquerda definida como moderna, ou modernizada, em contra-

posição à esquerda arcaica, não é moderna porque haja aparecido recentemente (em muitos casos é tão antiga como a arcaica), mas porque forma parte de um sistema de regulação política moderna, que lhe permite entrar em uma relação negativa e positiva com uma determinada direita, isto é, que lhe permite participar do jogo político em uma contenda que aponta desde o extremo até o centro.

Utilizo o conceito “jogo político” para me referir a uma ordem di-nâmica de posições onde diversos atores vinculam suas demandas com determinadas organizações que as representam simbolicamente no espaço público, demandas que se contrapõem a outras que tam-bém buscam ser representadas. Ditas representações são partidárias em dois sentidos: partem (dividem) o espaço político em duas ou mais partes, e compartilham o mesmo espaço dividido. Gera-se, então, um modo de relação negativa e positiva entre esquerda e direita que su-põe, além de se opor à política do opositor, cuidar do espaço político compartilhado, a fim de poder continuar se opondo. Na confronta-ção entre dois ou mais posições (podem ser democratas contra repu-blicanos, moderados contra radicais, conservadores contra liberais, esquerda contra direita, bons contra maus), se encontra a origem e o próprio sentido do político. Sem confrontação não existe política. Mas sem espaço político não pode haver confrontação (pelo menos, não uma que exclua a violência).

A precariedade do espaço político em países como a Bolívia, o Equador e inclusive a Argentina da “grande crise econômica” permi-tiu que movimentos sociais sem espaço constitutivo se dedicassem

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Esquerda, empresários e política

alegremente a derrubar governos, sem oferecer alternativas de subs-tituição. De fato, não há nada mais destrutivo que um movimento social sem órbita política. É por isso que uma ordem política demo-crática supõe a divisibilidade antagônica de suas partes (partidos), mas também a capacidade de realizar coalizões de umas com outras no caso de aparecerem ameaças que atentem contra o espaço político comum. O ideal de uma ordem democrática implica que cada parti-do pode ser, em determinadas circunstâncias, vinculável com outro. Esse ideal vem despontando recentemente em alguns países do Cone Sul, e de um modo ainda muito débil.

O espaço político se vê ameaçado quando é ocupado por forças puramente confrontativas. Nesse sentido, a qualidade política de um partido se dá somente quando reúne a capacidade de confrontação com o diálogo. Ao se limitar ao aspecto da confrontação é, no melhor dos casos, uma organização pré-política.

Pois bem, essa é a diferença essencial entre a esquerda moderna – que a meu ver deve ser chamada esquerda política – e a esquerda arcaica que, em muitos casos, é não política, e inclusive antipolítica. Não só os empresários, mas também a maior parte da população (se é que não está atravessada por um emocionalismo fora de controle) desejam representar seus interesses no espaço público e necessitam, ademais, preservar esse espaço frente à ameaça de representações antipolíticas (populistas, etnicistas, comunistas, fascistóides e mili-tares). Essa é, sem dúvida, uma razão adicional que explica porque os empresários, do mesmo modo que boa parte dos setores sociais médios, preferem aderir a organizações políticas que garantam uma ordem que permita a representação política de interesses e idéias opostos.

As esquerdas puramente confrontativas não oferecem as míni-mas condições de ordem que todo empresário requer. Por isso, como ocorreu em passado recente, os empresários não apóiam as esquer-das não políticas (quando têm outra opção), ainda que lhes ofere-çam todo o ouro do mundo. Os partidos políticos não só existem para, representando interesses, lutar gramaticalmente uns contra os outros, mas também para não destruir a ordem que lhes permite existir como tais. Se os empresários se dão conta que os partidos de esquerda não oferecem garantias para a conservação dessa ordem, buscarão sua segurança de outro modo, representando-se eles mes-mos, apoiando a direita política (se existir) ou, como tem sido mais freqüente, apelando aos militares. O fato de que em muitos países latino-americanos os empresários estejam dispostos a apoiar uma esquerda política não se deve a nenhuma razão ideológica, mas ao

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VII. Ensaio

fato dessa esquerda se encontrar em melhores condições de garantir a ordem política que a direita.

A tarefa da esquerda política na América Latina é muito grande, porque é dupla. A primeira consiste em representar os interesses de vastos setores excluídos politicamente, isto é, canalizar para a política real os grupos que, de outro modo, poderiam ser vítimas de demagogos inflamados (de esquerda ou de direita) ou da destrutiva ação dos partidos da esquerda arcaica.

A segunda consiste em preservar o espaço político. Esta última tarefa é tanto ou mais difícil ao se levar em conta que, em algumas ocasiões, não só se deve preservar, mas também criar esse espaço, o que implica construir alternativas para a politização da direita que, em muitos casos, se situa em posições tanto ou mais selvagens que a esquerda arcaica. Talvez a resposta à possibilidade dos empresários serem de esquerda implique contestar antes a pergunta a respeito deles reunirem as condições para se deixarem representar por um partido democrático, seja de direita ou de esquerda, em uma ordem caracterizada pelo jogo político da afirmação e da negação.

O problema primário, então, é a vinculação dos empresários com a política e, em um lugar secundário, a definição sobre a possibili-dade de ser de esquerda ou de direita. Se existe política em termos reais, isto é, se existe antagonismos articulados, os empresários podem ser de esquerda ou de direita, e não só como empresários, mas como cidadãos. É importante sublinhar este último, porque não existe no mundo um empresário que seja unicamente empresário, sem ser ao mesmo tempo cidadão, crente de uma religião ou ateu, membro de uma família etc. Cada uma dessas pertinências implica uma determinada identidade, e cada identidade produz interesses próprios que, ao se darem as condições, podem ser representados no cenário político, pois não existe nenhuma lei que estabeleça que os únicos interesses dignos de ser representados são os econômicos. Esta última é uma lenda liberal que o marxismo assumiu como pró-pria.

Entretanto, o fato da esquerda política não conseguir cumprir essas duas tarefas de modo simultâneo, ou de que ao fazê-lo expe-rimente um desgaste que a leve a perder eleições, não deve ser visto como um fracasso, nem como a perda de uma “oportunidade histó-rica”, nem muito menos como uma tragédia social. O poder político não está aí para ser ocupado de uma vez e para sempre, como reza o ideário da esquerda arcaica. O poder também existe para “ser per-dido”, já que quem ingressa na política pensando que vai ganhar a

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Esquerda, empresários e política

entrada para a eternidade, se equivocou de lugar. Por definição, em um regime político, todo governo é – e deve ser – transitório.

O trauma revolucionárioHoje, por exemplo, existe certa euforia porque, em alguns países

da região, têm coincidido diversos governos de esquerda, a tal ponto, que muitos comentaristas falam de uma “nova era” latino-americana. Essa euforia se vê acrescentada pelo fato de que não poucos empre-sários têm optado por inclinar-se para a esquerda. Não obstante, em mais quatro ou cinco anos, a correlação pode ser a inversa. É impor-tante, portanto, que cada governo de esquerda assegure lugares de exercício da oposição para a direita, pois cedo ou tarde esses mesmos lugares vão ser ocupados por eles, o que não tem nada de negativo. Em uma política democrática sói ocorrer que a partir da oposição se tenha mais poder que a partir do governo ou, pelo menos, mais liberdade. O exercício do governo desgasta e inclusive corrompe os partidos.

A oposição é o lugar da renovação, tanto programática como pes-soal. Essas premissas são ainda o abecê de toda política, mas não na América Latina, onde a “classe política” ainda se encontra intoxicada com tanta ideologia de “tomada do poder” propagada pela esquerda antipolítica do passado, cujos representantes ainda atuam no pre-sente, inclusive dentro de alguns governos democráticos.

Para muitas pessoas, inclusive pertencentes à esquerda política, resulta difícil aceitar a idéia de que ser de esquerda não significa ser revolucionário. Efetivamente, ser de esquerda e ser revolucionário são duas identidades distintas. São, inclusive, antagônicas. Ser de esquerda significa formar parte de um jogo de relações (esquerda-centro-direita) e, por isso mesmo, supõe a integração dentro desse jogo. Ser revolucionário supõe não aceitar o jogo, isto é, romper com as regras do jogo. Desta maneira, quando um governo se declara a si próprio revolucionário, divide o espaço político em duas partes irreconciliáveis. Os opositores, segundo a própria lógica do gover-no “revolucionário”, já não podem ser opositores, mas simplesmente “contra-revolucionários”. Mediante o apelo à idéia de revolução, se suspende a lógica política e os adversários se convertem definitiva-mente em inimigos, pois, de acordo com Montesquieu, Kant e Arendt, toda revolução é “guerra interna”. E na guerra, tanto interna como externa, não podem existir esquerdas nem direitas. Este é um tema decisivo (que terá que ser tratado mais detidamente em uma próxima

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VII. Ensaio

ocasião), não só no que respeita ao papel dos empresários na políti-ca, mas para a teoria política em geral.

É interessante constatar que existem esquerdas políticas na Amé-rica Latina que, ao renunciar ao apocalipse revolucionário, têm civi-lizado parcialmente não só a direita, mas também a esquerda arcai-ca. Este é o caso, por exemplo, da esquerda política chilena que, ao constituir-se como esquerda democrática, tem obrigado a ambos os pólos a integrar-se ao jogo, algo que, para uma direita cujo passado recente era radicalmente ditatorial, tem significado um processo mais que complicado. Na Argentina, Uruguai e Brasil começa também a estruturar-se um espaço de confronto político cuja força democrática de integração provém mais do lado esquerdo que do direito.

A grande novidade na América Latina não reside só na confluên-cia de diversos governos de esquerda, mas na crescente politização democrática da esquerda, que a vem convertendo na criadora de um espaço para o jogo político que, até há pouco, só existia de um modo precário.

Que essa esquerda apareça como um meio fundacional do pro-cesso político democrático é um fato que começa a ser reconhecido por um eleitorado já cansado de traumas «revolucionários» e «contra-revolucionários». A esse eleitorado também pertencem, sem dúvida, alguns empresários que vêem na esquerda – e não na direita – a principal força democrática.

Sobre os empresáriosAinda supondo que os empresários ingressem no cenário político

só como empresariado (o que do ponto de vista antropológico não é possível), mais importante que saber se optam pela esquerda ou pela direita é a forma que assume sua integração política em algum parti-do. Da perspectiva de uma tipologia quase weberiana, seria possível distinguir três formas de adesão partidária por parte do setor empre-sarial: como militantes, como clientes ou como eleitores.

Para qualquer partido, não só de esquerda, é altamente proble-mático contar com as associações empresariais como forças militan-tes. Se alguns empresários ingressam em um partido de esquerda como cidadãos, não há, certamente, nenhum problema. Mas se en-tram como empresários-militantes, o mais provável é que façam todo o possível para que esse partido atenda seus interesses particulares. Convertem-se então em um grupo de pressão dentro do partido e ten-tarão direcionar sua política. Nesse caso, estaríamos diante do perigo

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Esquerda, empresários e política

da “economicização da política”, uma realidade em alguns partidos políticos latino-americanos.

A segunda opção é o clientelismo, mediante o qual setores empre-sariais brindam seu apoio (incluído o financeiro) a um determinado partido político em troca do cumprimento de certos objetivos. Aqui se repete o fenômeno de “economicização da política”, ao que se agrega o correspondente grau de corrupção que implica toda relação clien-telista. Dita relação se articula geralmente entre os empresários e os partidos de direita, ou os partidos nacional-populistas, que tendem a estabelecer comunicações de tipo vertical com os grupos econômicos, sejam estes empresariais (associações) ou assalariados (sindicatos). O clientelismo, empresarial ou sindical, é um dos males mais graves da política latino-americana, e nenhum partido de governo está livre dele. Que grau de clientelismo pode suportar um partido de esquerda democrático sem deixar de ser de esquerda e, sobretudo, sem deixar de ser democrático?

A terceira opção é, politicamente falando, a mais saudável. Que determinados grupos empresariais se convertam durante um período em eleitores de um partido de esquerda pode obedecer a muitíssimas razões. Entre elas, uma central é a capacidade da esquerda para oferecer uma maior estabilidade social que garanta investimentos a longo prazo. O apoio eleitoral não implica nenhum compromisso fixo, é uma relação sujeita a prazos, e não converte um partido político em um meio de acesso ao poder econômico. Se for essa a relação que se vem estabelecendo entre os empresários e a esquerda moderna polí-tica, não há nenhuma razão para gritar alarmado.

Por último, antes de terminar este artigo, permitam-me uma bre-ve referência ao setor empresarial na atualidade. Em princípio, é pre-ciso observar que já não se trata de uma só classe, como a ideologia marxista definiu em seu tempo aos “capitalistas” ou à “burguesia”. Os empresários estão hoje longe de ser um setor unificado e, por isso mesmo, se encontram sujeitos a diversas classificações internas. Por exemplo, os grandes empresários de hoje já não são só aqueles que exercer um maior controle quantitativo sobre a chamada força de trabalho, o que implica que “empresários pequenos” podem ser mais poderosos que os “grandes” se é que dispõem de uma melhor infra-estrutura informática e um acesso mais direto aos mercados. Isso significa que, na chamada “composição orgânica do capital”, deve-se integrar – além da força de trabalho e o maquinário (termos quase em desuso) – a informação, a comunicação e a inteligência, tanto computacional como pessoal.

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VII. Ensaio

Por outro lado, e como resultado da globalização, a atividade em-presarial não se encontra sujeita aos limites de uma nação, e ope-ra em um espaço de navegação transnacional que já articula não só postos estáveis de trabalho, mas “projetos” que produzem, e ao mesmo tempo destroem, lugares ocupacionais. Isso tem acarretado como consequência que a atividade empresarial já não seja específica e que se difunda a múltiplas atividades cotidianas. Os empresários do crescente setor de serviços são mais bem caracterizados como empresários ocasionais, que podem ser também, em determinados momentos, profissionais ou simples trabalhadores. Empresários são, inclusive, alguns empresários que não sabem que são empresários.

Um dentista, para dar um simples exemplo, pode ser um traba-lhador profissional ao cumprir quatro horas de trabalho em um hos-pital; empregado, se é que trabalha quatro horas mais em uma clíni-ca privada; empresário, se, além disso, é co-proprietário da clínica, e acionista de grande empresa, se investe parte de seus excedentes na bolsa. Nesse sentido, não há nenhuma razão específica para que esse dentista vote ou não vote pela esquerda, pois ele mesmo é (ou chegou a ser) um ser “multidimensional”. Que dimensão é a mais decisiva na hora de definir suas opções políticas é algo que só ele pode decidir diante da urna, algo que não se encontra escrito em nenhum tratado de sociologia. Em minha própria atividade, a acadêmica, conheço co-legas “de esquerda”, inclusive da mais arcaica, que inventam projetos “de investigação” que são financiados por bancos e fundações – que distribuem postos de trabalho e inclusive fixam salários – que um dia desaparecem para dar lugar a outros. Ditos acadêmicos dirigem, de fato, microempresas de pesquisa e são, além de acadêmicos, em-presários (ainda que não lhes agrade). O empresário “puro” ameaça transformar-se em uma relíquia do passado, uma relíquia arqueoló-gica, igual à esquerda arcaica. A transformação da vida empresarial continuará tendo lugar no marco de uma ordem chamada capitalista que, em capacidade de transformação, deixa cada vez mais de se parecer consigo mesma. Isto, porém, é outro tema, sobre o qual se poderiam escrever livros volumosos. Cheguemos então até aqui: cada artigo, ao fim, não é mais que um breve fragmento do pensamento de seu autor.

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VIII. Mundo

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Autores

Alfredo ReichlinEx-membro da secretaria, da direção e do comitê central do PCI, além de responsável pelo Departamento Econômico e ministro do “governo sombra” daquele partido. Foi também presidente da Direção Nacional dos DS (Democratas de Esquerda). Recente-mente, esteve à frente da comissão responsável pela redação da “Carta de valores” do PD (Partido Democrático). Dirige a Fondazione Cespe (Centro Studi di Politica Econo-mica), em Roma.

Ernst HillebrandDoutor em Ciências Políticas; atual representante da Fundação Friedrich Ebert, em Paris.

Immanuel Wallerstein Sociólogo americano, foi esporadicamente diretor de estudos associado na École de Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, e presidente da Associação Internacional de Sociologia entre 1994 e 1998. Desde 2000, é investigador sénior na Universidade de Yale.

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O mundo está mudando1

Alfredo Reichlin

Michele Salvati reconhece, no Corriere della Sera, que não explodiu só uma bolha especulativa. Aconteceu algo mui-to grande que marca uma virada. Chegou ao fim da linha

um ordenamento econômico. Mudam as relações entre os poderes mundiais. Peço desculpas por não ser economista, mas se deve falar disso. Assistimos a um acontecimento inteiramente novo na história moderna, isto é, ao fato de que uma oligarquia político-financeira quis governar o mundo submetendo a política ao seu poder, enten-dendo política como soberania do Estado (inclusive a moeda), direi-tos universais do cidadão, independentemente da sua capacidade de consumo, e entendendo sociedade como histórias, culturas, laços, projetos não redutíveis à troca econômica. Disso é que se tratou. E é bem verdade que o mundo exulta, porque os Estados europeus mos-traram a intenção de restituir o comando ao “Soberano”.

Era evidente (pelo menos para as mentes livres) que não podia continuar ao infinito um sistema com base no qual somas imensas de dinheiro (muitas vezes maiores do que a riqueza real produzida) movimentam-se de um lugar para o outro do mundo em tempo real, prescindindo das necessidades reais das pessoas, das relações hu-manas, dos direitos sociais, dos recursos reais, dos territórios. O fenômeno foi, de fato, grandioso, e certas polêmicas anticapitalistas de “revolucionários” envelhecidos não têm efeito algum. Deste modo, também se favoreceu a abertura de novos mercados e o financiamen-to de coisas extraordinárias, como a inteligência artificial, os remé-

1 L’Unità & Gramsci e o Brasil. Tradução: A. Veiga Fialho. Outubro 2008)

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VIII. Mundo

dios (e, por que não, as armas do século XXI). E tudo isso também possibilitou um salto no desenvolvimento dos países emergentes.

Todavia, graças a este sistema é que o país mais rico do mundo pôde viver de crédito e muito acima dos seus recursos, atraindo, gra-ças ao papel imperial do dólar, 80% da poupança mundial. Ao mes-mo tempo (mas não só dentro dos Estados Unidos), desenvolvia-se um enorme jogo especulativo: crédito fácil, endividamento de massa, muito além do rendimento do próprio trabalho, criação de uma eco-nomia de consumo, a qual se traduziu num crescente aumento das desigualdades e numa pressão devastadora sobre os bens públicos e os recursos naturais. E, enquanto se oferecia aos trabalhadores e às camadas médias a eterna ilusão de que, endividando-se, podiam se enriquecer ao infinito, com a idéia de que se pode fazer dinheiro com dinheiro, ocorria na realidade uma impressionante redistribuição do poder e das riquezas em favor das oligarquias dominantes.

Um enorme jogo de espelhos, que se quebrou quando – como di-zia Keynes – “o desenvolvimento do capital real de um país torna-se o subproduto das atividades de um ‘cassino’”. Salvati não usa estas palavras. Mas me pareceu significativo sua referência ao livro de Ro-bert Reich ferozmente polêmico com este sistema. Bem. Mas, se é as-sim, não pode deixar de se colocar um problema muito grande – po-lítico, mas também intelectual e moral. E não só para quem escreve. Parece-me evidente que começar a pensar num modelo diverso para a gestão da economia mundial é uma tarefa (mas também um dever ético-político) não mais adiável. Além do mais, os governos europeus puseram na mesa algo como dois ou três trilhões de dólares (tira-dos, evidentemente, do bolso das pessoas, inclusive de aposentados e operários). Muito bem. Pode-se pelo menos começar a pensar num futuro diferente?

Salvati não evita este problema. Não nega que seria necessária uma alternativa e reconhece que os modelos capitalistas podem ser diferentes entre si, até mesmo profundamente: o modelo keynesiano, isto é, o compromisso entre o capitalismo e a democracia era inteira-mente diferente da virada ultraliberista dos anos 1970. O problema que ele levanta é outro, e é o verdadeiro problema que desafia hoje a esquerda e justifica sua inércia. Faltam – diz – as condições. E as condições de que fala não são tanto as objetivas (a profundidade da crise, a insustentabilidade do modelo atual) quanto as “grandes re-orientações ideológicas, culturais, teóricas e, por fim, reorientações políticas igualmente profundas”, que permitiram aquelas duas gran-des transformações (o keynesianismo entre os anos 1930 e 1940) e o neoliberismo dos anos 1970.

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O mundo está mudando

Tenho muito respeito por Salvati, um velho amigo que sempre escuto com atenção. Mas não resisto à necessidade (até moral) de lembrar, a propósito de condições culturais, o que foi nestes anos a verdadeira destruição do pensamento político da esquerda e de qual-quer visão autônoma da esquerda em relação ao pensamento único da oligarquia financeira. Uma repetição cotidiana nunca vista antes contra os salários (sempre altos demais), os sindicatos (inúteis), a privatização das aposentadorias como condição para o desenvolvi-mento (é o que vão perceber os aposentados americanos ligados aos títulos de Wall Street).

Para não falar das empresas que valem só pelo valor das ações e não por aquilo que produzem. E a escala dos valores dominantes: a reverência até ridícula diante da riqueza e da genialidade dos ban-queiros, estes novos heróis do nosso tempo.

Talvez fale em mim um velho comunista, que deveria ficar calado. Então que falem os liberais. Expliquem-nos aonde vai terminar não a “classe”, mas a liberdade da pessoa, se a sociedade for reduzida à sociedade de mercado, se os homens forem postos em relação entre si sem tomar como referência sua substância humana, mas sim suas “máscaras”, sob as quais não existem criatividade nem projeto de vida, só indivíduos que se medem com uma só medida: a capacidade de consumo, o dinheiro.

Por que Salvati chama este sistema de “liberal”? Lamento, não es-tou de acordo. E não porque não compreenda a necessidade de uma revolução cultural ou subestime a fraqueza da esquerda, que tam-bém paga pela ilusão de delimitar para si um espaço (uma “terceira via”?) no “cassino” destes anos. Não havia as condições: foi o que nos disseram. É muito triste ouvir isso de novo. Por certo, eu também, como Salvati, não vejo por aí um novo Keynes e não creio que Oba-ma tenha a estatura de Roosevelt. Mas recuso a idéia da política que existe neste modo de pensar.

É exatamente isso que nos levou não ao risco de perder (pode-se sempre perder e depois voltar a vencer), mas de sermos irrele-vantes. Condições são criadas. É o que não se compreendeu e se continua sem compreender: mais do que a riqueza, conta a inteli-gência das pessoas. As condições não existirão nunca, se a políti-ca não voltar a ser, antes de mais nada, conhecimento, descoberta da realidade, liberdade de pensamento, idéias fortes e, portanto, novas energias recolocadas em movimento. A história destes anos deveria ensinar algo.

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VIII. Mundo

Homens como Salvati têm a inteligência e o nível para contribuir para criar estas famosas condições, pelo menos culturais. E mui-tos, muitos deles não o fizeram nestes anos. No entanto, não era preciso nenhuma cigana para adivinhar que este gigantesco jogo de dívidas era insustentável. Por isso, não gosto quando, agora, são os mesmos a nos dizer que a crise é grave, acrescentando, porém, que não existem as condições para mudar. Também sei que não será fácil mudar. Mas ponho uma condição: poder dizer às pessoas que existe uma grande e nobre razão pela qual construímos um novo partido. E esta consiste na convicção de que chegou o momento de lutar por um mundo mais justo, no qual uma nova esquerda euro-péia seja protagonista.

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A esquerda depois da “terceira via”1

Ernst Hillebrand2

A presença dos partidos de esquerda no governo dos países da Europa ocidental vem diminuindo, o que marca o fim do ciclo da esquerda tecnocrática e reformista no estilo “terceira via”.

Este fracasso se explica pelo impacto negativo da globalização e a europeização sobre seu eleitorado tradicional, pelas promessas in-cumpridas da revolução educacional e pela falta de respostas frente a fenômenos sociais fundamentais como a imigração.

Para recuperar terreno, a esquerda deverá reorientar sua estraté-gia, desembaraçando-se do economicismo cerrado, sem abandonar o apelo estratégico ao centro da sociedade. Só assim poderá enfrentar com êxito os desafios do conservadorismo light.

Os partidos de centro-esquerda da Europa ocidental estão em crise. Desde os princípios dos 90, quando a esquerda ainda exercia o governo em muitos países europeus, sua presença no poder vem caindo.

Em vários países, entre eles a Alemanha, seu papel se limita ao de sócio menor de governos de coalizão, com predomínio conservador. Chefes de governo de orientação conservadora exercem o poder inclu-sive em quatro dos cinco países escandinavos, que muitos observado-res consideram como sociedades socialdemocratas por excelência.

O mais inquietante de tudo isto é que esta tendência não reflete apenas as oscilações habituais das preferências políticas. Os parti-dos de centro-esquerda perdem votos em favor de seus tradicionais adversários de centro-direita, mas também, cada vez mais, frente a partidos populistas de direita ou de extrema direita de recente for-

1 Publicado originalmente na revista Nueva Sociedad nº 211, setembro-outubro de 2007, ISSN: 0251-3552, www.nuso.org).

2 Este não é apenas o caso da Itália (Força Itália, Movimento Social Italiano, Liga do Norte) e da França (com a Frente Nacional), mas também o dos Países Baixos (a Lista Pim Fortuyn), da Bélgica (Vlaams Belang), da Áustria (o Partido da Liberdade da Áustria, FPÖ), da Dinamarca, da Suécia e, até certo ponto, também da Grã Breta-nha, onde o crescimento do nacionalista Partido Nacional Britânico se converte em uma dor de cabeça para o Partido Trabalhista.

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VIII. Mundo

mação3. Em alguns casos, o enraizamento destes partidos entre os eleitores tradicionais da esquerda tem alcançado níveis alarmantes: no primeiro turno das eleições presidenciais francesas de 2002, Je-an-Marie Le Pen se converteu no candidato mais votado pelos assa-lariados do país.4

O projeto da nova esquerda reformistaAs derrotas eleitorais dos últimos anos marcam o fim de um ci-

clo político-ideológico: o projeto tecnocrático e centrista no estilo da “terceira via” da Grã Bretanha, o “novo centro” da Alemanha ou a “triangulação” de Bill Clinton, tão bem sucedido durante muitos anos, chegou a seu limite. Este projeto se caracterizava por uma adaptação bem sucedida dos partidos de esquerda à política e à eco-nomia globais.

Foi a expressão de uma interpretação acertada do espírito da épo-ca e permitiu que, desde a segunda metade dos 90, os partidos de centro-esquerda se afirmassem como a força política predominan-te na Europa. Compartilhavam aspectos programáticos similares: a combinação entre uma posição moderadamente neoliberal no econô-mico e fiscal, a insistência em um papel limitado mas ativo do Esta-do, e uma perspectiva liberal progressista com respeito a questões culturais e de valores que, ao serem apresentadas como evidência simbólica de uma convicção progressista, adquiriram um peso polí-tico importante.

Os aspectos mais relevantes do projeto desta “esquerda tecno-crática reformista”5 na Europa ocidental foram, em princípio, as re-formas do Estado social, com ênfase em reformas no mercado de trabalho e a redução ou redefinição das prestações sociais, a dimi-nuição dos elementos redistributivos nos sistemas tributários e a privatização de empresas e serviços públicos em áreas não essen-ciais, visando reduzir o déficit fiscal. Ao mesmo tempo, se propiciou uma adaptação da economia e dos sistemas de previsão ao espaço

3 Philippe Guibert e Alain Mergier: Le descenseur social. Enquête sur les milieux popu-laires, Fondation Jean-Jaurès/PLON, París, 2007, p. 18, disponível em www.jean-jaures.org/PUB/ledescenseursocial.pdf.

4 Esta tendência vem acompanhada de uma profunda crise das organizações par-tidárias: como consequência da redução maciça do número de filiados (o Partido Trabalhista Britânico, por exemplo, perdeu quase a metade de seus membros desde 1997), os partidos estão perdendo a capacidade de organizar campanhas eleitorais e mobilizações.

5 Werner A. Perger: “Die Lage der Progressiven in Europa” [A situação das forças pro-gressistas na Europa] em Berliner Republik N. 3/2007, p. 52-61.

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A esquerda depois da “terceira via”

europeu: profundização do mercado interno, políticas européias de desregulação e competência, moeda única e forte restrição das polí-ticas industriais nacionais.

A oferta política se orientou para o centro e para a classe média. Os partidos de centro-esquerda se apresentaram ante estes grupos como os gestores mais eficazes do capitalismo. Esta reorientação foi necessária para ampliar a aliança eleitoral e recuperar a possibili-dade de converter-se em maioria. Partiu do pressuposto de que os eleitores tradicionais dos partidos de centro-esquerda não teriam outras opções para apoiar e que, a longo prazo, os respaldos sociais tradicionais da esquerda – os setores operários e a classe baixa da era industrial – se desintegrariam como conseqüência da passagem a uma economia de serviços pós-industrial.

Paralelamente, a educação foi colocada no centro do projeto po-lítico. Atribuíram-lhe algumas tarefas que excediam o papel clás-sico das escolas e das universidades. No novo projeto, a educação assumiu o papel que a política fiscal redistributiva havia cumprido no pós-guerra como instrumento fundamental da estratégia refor-mista. De agora em diante, os investimentos em educação tinham que apontar soluções aos problemas de justiça social, desemprego e competitividade internacional.

As causas do fracassoEstas políticas permitiram aos partidos progressistas atravessar

três lustros ganhando eleições e com governos bastante bem sucedidos. No entanto, na atualidade, esta oferta política já não resulta suficiente-mente atraente para gerar maiorias e garantir vitórias eleitorais.6

Um dos problemas que explicam esta situação é o impacto nega-tivo da globalização e da europeização (como versão especificamente européia da internacionalização) sobre a situação econômica relativa dos trabalhadores. Nos últimos 25 anos, a cota salarial – isto é, a porcentagem do produto total de uma economia que corresponde a soldos e salários – tem decrescido continuamente na União Euro-péia, passando de 72,1% a 68,4%. Ao mesmo tempo, o número de pessoas empregadas aumentou: a taxa de emprego passou de 61,2%, em meados da década de 1990, a 64,5%, na atualidade. Isto significa que a um número crescente de empregados deve se repartir um volu-me decrescente de salários. Paralelamente, aumentou a desigualda-

6 Ibid.

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de do ingresso. Em muitos países da Europa ocidental, o Coeficiente de Gini vem piorando desde os 807. À raiz destas tendências, o com-promisso central da esquerda reformista de representar melhor os interesses econômicos e sociais das «pessoas humildes», mediante a aplicação de uma política tecnicamente eficiente e de reformas «fac-tíveis», perdeu a credibilidade.

Da mesma maneira, perdeu aceitação a segunda resposta dos partidos de centro-esquerda diante das mudanças econômicas: a promessa de criar um espaço econômico europeu integrado que esta-belecesse um marco novo e eficiente para a política social e econômi-ca. Na atualidade, muitos cidadãos têm uma visão negativa da União Européia, não só na França e nos Países Baixos, onde fracassaram os plebiscitos sobre a Constituição8. E não se trata de uma reação irracional: embora a UE tenha atuado com êxito como instrumento de política exterior e de paz, seus avanços em matéria de crescimento econômico e desemprego são insuficientes.

As promessas da “revolução educacional” se revelaram vazias. Segundo estatísticas oficiais, na Europa o desemprego juvenil se si-tua em 18,7%, embora a porcentagem real pudesse ser mais elevada. A possibilidade de que os europeus nascidos em lares pobres alcan-cem os níveis mais altos do sistema educacional não tem melhorado (ao contrário, tendencialmente está piorando), e a porcentagem de estudantes com formação secundária completa continua quase igual 20 anos atrás9. Paralelamente, o financiamento insuficiente tem mi-nado a qualidade dos títulos universitários. Os novos empregos não se criam nos setores bem remunerados da economia de serviços, mas na base: na Grã Bretanha dos 90, a profissão de cabeleireiro cresceu mais que todas as outras10. Na Europa de hoje, os jovens, inclusive aqueles com uma boa formação, padecem taxas de desemprego su-periores à média e seu ingresso se situa abaixo da média: na Grã Bretanha, entre os menores de 30 anos, 37% são estatisticamente “pobres”; na Alemanha, 42%; nos Países Baixos, 49%11.

Ao mesmo tempo, têm surgido novos desafios sociais, para os quais a esquerda não tem encontrado respostas adequadas. Isto vale

7 Roger Liddle e Frederic Lerais: “Europe´s Social Reality. A Consultation Paper from the Bureau of European Policy Advisers”, Comissão Européia, Bruxelas, 2007, p. 30.

8 René Cuperus: “European Social Unease: A Threat to the EU?” en Internationale Politik und Gesellschaft N. 1/2006, p. 65-90.

9 R. Liddle y F. Lerais: op. cit., p. 24.10 Larry Elliott y Dan Atkinson: Fantasy Island, Constable and Robinson, Londres,

2007, p. 79.11 R. Liddle y F. Lerais: op. cit., p. 28.

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A esquerda depois da “terceira via”

sobretudo para o tema da imigração. O conceito de “sociedade mul-ticultural”, núcleo ideológico da resposta da esquerda à imigração maciça na Europa, fracassou. Este conceito criou sociedades frag-mentadas e guetos de minorias marginalizadas que não vêm se inte-grando com êxito. Ao mesmo tempo, as frustrações, tanto dos “velhos europeus” como dos imigrantes, se intensificaram. Isto é particular-mente correto para os imigrantes procedentes de países islâmicos, entre cujos descendentes de segunda e terceira geração se observam amiúde posições muito mais hostis frente às sociedades ocidentais que entre os da primeira. Durante anos, a esquerda se negou a dis-cutir essas tendências e as converteu em um tabu. Isso explica por-que, hoje em dia, a imigração seja o tema sobre o qual os ativistas e os funcionários dos partidos de centro-esquerda estejam mais afas-tados das opiniões e manifestações de seu eleitorado tradicional12.

Outro problema que deve ser enfrentado pela esquerda é o dis-curso passivo diante das tendências globalizadoras e internacionali-zadoras. A esquerda reformista e tecnocrática sustentou que só res-tava adaptar-se, como indivíduo e coletivo, a essas tendências, já que não podem ser detidas ou modificadas. Este discurso reflete cada vez menos o sentimento da população, que aspira a que os Estados-nação assumam um papel mais pró-ativo do que aquele que a nova esquerda lhes assinalava. Em muitos países, se vive um processo de renacionalização emocional radicalmente oposto ao discurso pró- eu-ropeu e favorável à globalização.13

Existem indícios de uma paulatina mudança de valores que os partidos de centro-esquerda não sabem entender nem têm conse-guido aproveitar politicamente. O espírito da época (Zeitgeist) parece inclinar-se para posições mais conservadoras. Segundo algumas pes-quisas, se registra um deslocamento do barômetro de valores para posições mais tradicionais. Como conseqüência, existe uma crescen-te percepção crítica do liberalismo sociocultural e do relativismo de valores característicos das sociedades hedonistas ocidentais das úl-timas décadas (e muito importantes para os tecnocratas de centro-

12 Segundo uma pesquisa recente de YouGov, na Grã Bretanha, sobre as prioridades do futuro governo de Gordon Brown, 65% do eleitorado em geral – e 53% dos eleito-res do Partido Trabalhista – mencionaram a imigração como o desafio mais impor-tante para o novo primeiro ministro. Por outro lado, somente 20% dos filiados do Partido Trabalhista consideraram que este fosse um tema prioritário.

13 René Cuperus: “Populism against globalisation: A new european revolt” em AAVV: Rethinking immigration and integration: A new centre left agenda, Policy Network, Londres, 2007, p. 101-120. V. também David Goodhart: “National Anxieties” em Prospect N. 123, 6/2006, p. 30-35, disponível em <www.prospect-magazine.co.uk/article_details.php?id=7478>.

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VIII. Mundo

esquerda como prova de sua contínua orientação “progressista”). Cada vez mais, a direita se faz eco deste estado de ânimo: em sua bem sucedida campanha eleitoral, Nicolás Sarkozy dedicou muito tempo ao “ajuste de contas” com a Geração 68.

Como resultado destes problemas, na atualidade os partidos de centro-esquerda de muitos países da Europa ocidental se encontram distanciados de uma parte substancial de seu eleitorado tradicio-nal.14 Justamente é com os setores mais humildes da sociedade com os quais estes partidos já não sabem se comunicar nem se relacionar culturalmente: não falam seu idioma nem compartilham suas preocupações e problemas. Nas zonas desfavorecidas de mui-tas cidades européias, as forças políticas de centro-esquerda prati-camente já não contam com organização nem infra-estrutura. Este vazio está sendo ocupado pelos novos movimentos populistas de di-reita, que são utilizados em forma crescente como um veículo para manifestar a frustração e que são percebidos como forças dispostas a se ocupar daqueles problemas cotidianos que os partidos majoritá-rios – sobretudo de esquerda – não querem ver.15

Os partidos de centro-esquerda não encontram respostas à perda de credibilidade de seu discurso tecnocrático, que tem minimizado o potencial emancipador da política e oferecido somente uma adapta-ção sem alternativas à realidade “pós-moderna” no econômico, social e cultural. Nesse contexto, uma pesquisa da Fundação Jean Jaurès, próxima ao Partido Socialista francês, sobre as condições de vida dos “setores populares” na França, cita um habitante de uma banlieue francesa: “Não somos nós que nos tornamos apolíticos; são os políti-cos que têm dado as costas à política”. Pela primeira vez em décadas, se vislumbra a ruptura da aliança social estratégica entre a classe baixa e a classe média baixa a partir da qual os partidos progressis-tas da Europa se converteram em majoritários.

Um novo projeto é necessárioDiante desta situação, a centro-esquerda se vê obrigada a for-

mular um novo projeto capaz de conquistar as maiorias. Para isso

14 W. A. Perger: ob. cit.15 Ver Jörg Flecker (ed.): Changing Working Life and the Appeal of the Extreme Right,

Ashgate, Aldershot, 2007 e P. Guibert e A. Mergier: op. cit. Uma pesquisa do Partido Trabalhista entre simpatizantes do Partido Nacional Britânico sobre os termos asso-ciados a este partido obteve um resultado deprimente para os trabalhistas: “liberda-de de expressão” e “tratamento justo” foram os termos com os quais se associou ao Partido Nacional Britânico nos distritos eleitorais tradicionalmente trabalhistas.

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A esquerda depois da “terceira via”

deverá desembaraçar-se do economicismo cerrado da “terceira via”, sem abandonar o apelo estratégico ao centro. Não pode haver um recuo para os conceitos dos 70 e 80. Necessita-se de um discurso po-lítico que não só interprete corretamente as ambições da população – um dos pontos fortes do projeto tecnocrático reformista que não se deveria abandonar –, mas também que se ajuste a seus crescentes temores em um mundo cada vez menos previsível.16 Deve pôr fim à estigmatização de determinados grupos da sociedade (“perdedores da modernização”, “conservadores do statu quo”) e reconhecer que, para muitas pessoas, os últimos anos têm deixado um saldo negativo em termos econômicos e sociais.

Ao mesmo tempo, será iniludível que a esquerda deixe de lado alguns tabus ideológicos, sobretudo em relação à questão da imi-gração. Neste tema, mais que em qualquer outro, a esquerda tem se negado a enfrentar as realidades sociais, o que tem contribuído a afastá-la de seu eleitorado tradicional.17 A esquerda, além disso, deve buscar uma nova posição a respeito do Estado-nação e da temática da identidade nacional.

Nos últimos cem anos, tem utilizado o Estado-nação como o ins-trumento central para conseguir seus objetivos políticos e sociais e, até o momento, não tem encontrado um substituto capaz de cumprir essa função.

Hoje, muitas pessoas esperam que o Estado-nação recupere um papel mais ativo, atuando como “protetor” contra a globalização e não como seu executor, como durante os governos da “terceira via”. Tra-ta-se de uma tarefa complexa: formular um reclamo positivo sobre o Estado-nação, mas sem deixar de aprofundar a integração européia.

Em última instância, a esquerda deve voltar a desenvolver proje-tos políticos que beneficiem seu eleitorado. Durante os últimos anos, tem optado por situar os espaços de construção de políticas exclu-sivamente na esfera dos temas socioculturais. Ao mesmo tempo, as questões econômicas, fiscais e político-institucionais (duras) foram declaradas “zonas proibidas”.

À luz da crescente desigualdade e do bloqueio das possibilidades de ascensão social das classes baixa e média baixa, isto terá que mudar.

16 Cf. Richard Sennett: The Culture of the New Capitalism, Yale University Press, Lon-dres, 2006, sobre todo cap. 2, “Talent and the Spectre of Uselessness”, p. 83-130. [Hay edición en español: La cultura del nuevo capitalismo, Anagrama, Barcelona, 2006.]

17 V. também R. Cuperus: op. cit., y E. Hillebrand: “Migration and Integration. The Er-rors of the European Left” en AAVV: Rethinking Immigration and Integration…, cit., p. 35-44.

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VIII. Mundo

Um dilema adicional: a direita também se renovaAlém dos desafios assinalados, as forças progressistas devem en-

frentar uma ameaça adicional: a direita também se renova. Nos últi-mos anos tem se afastado do neoliberalismo radical para recuperar espaço no centro da sociedade.

O “retorno ao centro” dos conservadores se observa em vários países: George W. Bush ganhou duas campanhas eleitorais com a promessa de um conservadorismo compassivo (compassionate con-servatism); os conservadores suecos, sob a condução de Fredrik Reinfeldt, aceitaram não abandonar o Estado social e, desta manei-ra, ganharam as eleições contra o Partido Social Democrata; a União Democrata Cristã (CDU) alemã, logo depois de seu quase desmanche eleitoral de 2005, resultado de sua campanha de inspiração neolibe-ral, voltou-se a uma orientação de centro-direita mais tradicional; na Grã Bretanha, o Partido Conservador, liderado por David Cameron, logrou uma reorientação surpreendente (e bem sucedida, segundo as pesquisas) que incluiu a promessa de realizar investimentos pú-blicos, manter o sistema estatal de saúde e defender a ecologia e o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo; por último, durante a campanha eleitoral na França, Nicolás Sarkozy não só destacou a “dignidade do trabalho” e a laicidade da República, como se referiu também a Victor Hugo e a Léon Blum, figuras sagradas para a es-querda. A estratégia do novo conservadorismo light já não passa pela rejeição aos objetivos do projeto de centro-esquerda – previsão e so-lidaridade social com limites, ênfases na igualdade de oportunidades educacionais e nos direitos das minorias –, mas por um questiona-mento ao caminho escolhido para concretizar tais objetivos.

Segundo este enfoque, o Estado não é o instrumento idôneo para alcançá-los; o mercado, a oferta privada e o compromisso voluntário seriam mais apropriados.

Paralelamente, se relativizam as diferenças em matéria de políti-ca econômica e financeira, pelo menos nos países com governos de centro-esquerda bem sucedidos. Mais uma vez, a estratégia deste novo enfoque da direita consiste em centrar a crítica em uma su-posta burocratização excessiva e nos problemas técnicos: a política da esquerda ofereceria pouco value for money ou, mais diretamente, estaria malfeita. Naqueles países em que os governos de centro-es-querda lutaram com êxito contra o desemprego, como na Grã Breta-nha ou Estados Unidos durante a gestão de Clinton, se assinala um suposto exagero da importância da política para a criação de fontes de trabalho. O setor privado – se argumenta – se encarregaria disto.

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A esquerda depois da “terceira via”

No fundo, trata-se da versão conservadora do slogan do Partido Socialdemocrata Alemão durante a campanha eleitoral de 1998 con-tra Helmut Kohl: “Não mudaremos tudo, mas melhoraremos muito”. Hoje, a nova “direita branda” promete: “Não mudaremos tudo, mas melhoraremos muito... com menos fundos”. Até o momento, os par-tidos de centro-esquerda não encontraram uma resposta eficiente a este conservadorismo light. Parece que a oferta de uma política eco-nômica e social similar à da esquerda tecnocrática, sem suas parti-cularidades em matéria social e cultural, resulta bastante atraente.

Uma eventual contra-estratégia deverá atacar muitas frentes, das quais o papel do Estado é o mais importante. Neste ponto, existe sim uma diferença entre as visões da nova direita e da nova esquerda, particularmente quando se trata da questão do papel do Estado na produção das prestações de serviços sociais e bens públicos (public goods). Há claros indícios de que, em tempos de crescente incerteza, muitas pessoas preferem um Estado forte e ativo, em lugar de um sistema no qual as prestações de serviços sociais passem da esfera dos direitos cidadãos à esfera do arbitrário, seletivo e assistencial dos setores comerciais e não estatais. Em tempos de incerteza vital e profissional, a esquerda deveria poder ganhar esta batalha. Mas será igualmente importante romper duas vantagens eleitorais adicionais da direita: a monopolização da nação e o posicionamento sincero com relação aos problemas ligados à imigração.

Os atuais partidos de direita e de esquerda já não dispõem de muito tempo para formular novos projetos políticos. A crise de re-presentação começa a superar os partidos e afeta, cada vez mais, a legitimidade do sistema político em geral, cujo caráter democrático e participativo está sendo questionado. Uma pesquisa Gallup, de fi-nais de 2006, revelou que só 30% dos britânicos, 28% dos italianos, 21% dos franceses e um alarmante 18% dos alemães responderam afirmativamente à pergunta “se seu país está governado segundo a vontade do povo”18.

18 Encuesta Gallup “Voice of the people”, www.voice-of-the-people.net, p. 101-120.

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Ai dos que crêem no Império

Immanuel Wallerstein

Ainda que muito breve, a guerra entre Geórgia e Rússia revelou algo chocante para o pensamento convencional. Menos de vin-te anos após vencerem a Guerra Fria, os EUA já perderam a

condição de poder mundial solitário. Na verdade, deixaram até mes-mo de ser superpotência...

O mundo assistiu recentemente a uma mini-guerra no Cáucaso. A retórica, embora apaixonada, foi muito irrelevante. A geopolítica é uma série gigantesca de jogos de xadrez a dois, nos quais os joga-dores buscam vantagens de posição. Nestes jogos, é crucial saber as regras que permitem os movimentos. Cavalos não podem mover-se em diagonal.

De 1945 a 1989, o principal jogo de xadrez era jogado entre os Es-tados Unidos e a União Soviética. Era conhecido como Guerra Fria, e as regras básicas eram chamadas “Yalta”. A mais importante delas dizia respeito à linha que dividia a Europa em duas zonas de influên-cia. Foi chamada por Winston Churchill de “Cortina de Ferro” e ia de Stettin a Trieste. A regra era: não importava quanto conflito fosse provocado na Europa pelos peões, eles não deveriam provocar uma guerra real entre os Estados Unidos e a União Soviética. E ao fim de cada episódio de conflito, as peças deveriam retornar para os postos de onde haviam saído. Esta regra foi observada meticulosamente até o colapso do comunismo em 1989, episódio marcado notoriamente pela destruição do muro de Berlim.

É perfeitamente claro, como todo o mundo observou na época, que as regras de Yalta foram revogadas em 1989, e que o jogo entre os Estados Unidos e a Rússia (a partir de 1991) mudou radicalmente. O maior problema desde então é que os Estados Unidos não com-preenderam bem as novas regras. Eles proclamaram a si próprios — e foram proclamados por outros — a superpotência solitária. Em termos de regras de xadrez isto foi interpretado como se estivessem livres para mover-se pelo tabuleiro da forma que bem entendessem. E, em particular, para trazer os antigos peões soviéticos para sua esfera de influência. Sob o governo Clinton, e de forma mais espeta-

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Ai dos que crêem no Império

cular sob o de George Bush, os Estados Unidos foram levando o jogo dessa forma.

Havia um único problema: os Estados Unidos não eram a super-potência solitária; e sequer, uma superpotência. O fim da Guerra Fria fez com que deixassem de ser uma das duas superpotências, para se tornarem um Estado forte, em uma redistribuição verdadei-ramente multilateral de poder real, no sistema interestatal. Muitos países grandes são agora capazes de jogar os seus próprios jogos de xadrez sem ter de pedir licença às duas superpotências de outrora. E eles começaram a fazer isso.

Derrotada a União Soviética, Clinton age para conquistar seus peões e ampliar a OTAN. Mas o grande delírio veio com Bush, que renegou acordos, invadiu o Iraque e quis controlar a Ásia Central

Duas grandes decisões geopolíticas foram tomadas nos anos de Clinton. Primeiro, os Estados Unidos forçaram bastante, e foram relativamente bem-sucedidos, para incorporar os antigos satélites soviéticos do Leste Europeu à OTAN. Tais países estavam ansiosos por este ingresso, ainda que os Estados-chave da Europa Ocidental – Alemanha e França – relutassem de algum modo. Percebiam que a manobra norte-americana também os transformava em alvo, ao limi-tar a liberdade de ação geopolítica que recém haviam adquirido.

A segunda decisão estratégica norte-americana era tornar-se par-te ativa nos realinhamentos de fronteiras na antiga República Fede-ral da Iugoslávia. Isto levou-os a sancionar – e reforçar, com suas tropas – a secessão de fato do Kosovo em relação à Sérvia.

Mesmo sob Yeltsin, a Rússia sentia-se descontente com estas duas iniciativas geopolíticas norte-americanas. No entanto, a desor-dem politica e econômica naqueles anos era tão grande que o máxi-mo que podiam fazer era reclamar — deve-se dizer que de um modo um tanto débil...

George W. Bush e Vladimir Putin assumiram o poder mais ou menos simultaneamente. Bush decidiu levar adiante as táticas da potência solitária (em que os Estados Unidos decidem por si mesmos como mover suas peças) com muito mais audácia do que Clinton havia feito. Em 2001, recuou do tratado antimísseis assinado com a União Soviética, em 1972. Depois, anunciou que os Estados Uni-dos não se prontificariam a ratificar os novos tratados assinados por Clinton em 1996; o Tratado de supressão dos testes nucleares [Compreensive Test Ban], e as mudanças acordadas para o tratado de desarmamento nuclear SALT II. Para completar, comunicou que

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VIII. Mundo

Washington manteria seu projeto de militarização do espaço, conhe-cido como “escudo antimísseis”.

E, é claro, Bush invadiu o Iraque em 2003. Como parte deste envolvimento, os Estados Unidos vislumbraram e obtiveram direi-tos às bases militares e de sobrevôo nas repúblicas da Ásia Central – que anteriormente faziam parte da União Soviética. Além disso, promoveram a construção de óleodutos e gasodutos que procuravam tornar desnecessários os sistemas russos. E finalmente entraram em acordo com a Polônia e a República Tcheca para estabelecer pontos de defesa de mísseis, sob alegação de defesa contra o Irã. A Rússia, porém, os viu como voltados contra si.

Duas causas imediatas explicam a guerra. Diante da independên-cia do Kosovo, a Rússia reivindicou direitos iguais. E, sem exército, Saakashvilli acreditou no conto do poder unilateral de Washington

Putin estava disposto a resistir com mais força que Yeltsin. Como jogador prudente, porém, ele se preocupou primeiro em fortalecer sua base, restabelecendo a autoridade central e revigorando o apara-to militar russo. Neste período, as marés da economia mundial mu-daram, e a Rússia tornou-se de repente um rica e poderosa controla-dora de reservas e linhas de abastecimento de petróleo e gás natural, dos quais os países ocidentais dependem fortemente.

O presidente russo começou a agir. Negociou acordos com. Man-teve relações próximas com o Irã. Começou a pressionar os Estados Unidos para fora das bases militares na Ásia Central. E se posicio-nou firmemente contra a extensão da OTAN em duas zonas estraté-gicas: Ucrânia e Geórgia.

O colapso da União Soviética deflagrou movimentos separatistas em diversas de suas antigas repúblicas, inclusive a Geórgia. Quando, em 1990, a Geórgia buscou acabar com o status de autonomia das zonas étnicas não-georgianas, estas imediatamente proclamaram-se Estados independentes. Não foram reconhecidos, mas a Rússia ga-rantiu sua autonomia.

As causas imediatas para a mini-guerra deste ano têm dupla ori-gem dupla. Em fevereiro, Kosovo institucionalizou sua autonomia de fato. Este movimento foi apoiado por e reconhecido pelos Estados Uni-dos e por boa parte dos países europeus. A Rússia alertou, na época, que a lógica deste movimento aplicava-se igualmente às secessões de fato nas antigas repúblicas soviéticas. Na Geórgia, a Rússia agiu ime-diatamente, pela primeira vez, reconhecendo a independência de jure da Ossétia do Sul, em resposta direta aos fatos em Kosovo, Em abril, os Estados Unidos propuseram, durante reunião da OTAN, que a Ge-órgia e a Ucrânia fossem recebidas, em um plano de adesão chamado

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Ai dos que crêem no Império

Membership Action Plan. Alemanha, França e o Reino Unido opuse-ram-se a isso, alegando que seria uma provocação à Rússia.

Neoliberal e fortemente pró-Washington, o presidente da Geórgia, Mikhail Saakashvili, estava agora desesperado. Ele deu-se conta de que a reafirmação da autoridade georgiana na Ossétia do Sul (e na Abkházia) poderia perder-se para sempre. Aproveitou-se de um mo-mento em que a Rússia estava supostamente desatenta (Putin, agora primeiro-ministro nas Olimpíadas; o presidente Dmitri Medvedev, de férias) para invadir a Ossétia do Sul. Seu exército fracassou completa-mente, como era de esperar. Mas Saakashvili imaginou que estivesse forçando a mão dos EUA (aliás, da Alemanha e da França também).

Como nota irônica, a Geórgia, uma das últimas aliadas dos Es-tados Unidos na coalizão no Iraque, retirou todos os 2 mil soldados que ainda mantinha por lá

Ao invés disso, ele teve uma resposta imediata da força militar russa, que esmagou a pequena armada georgiana. De George W. Bush, obteve retórica. Mas afinal de contas, o que Bush poderia fa-zer? Os Estados Unidos não são uma superpotência. Suas forças ar-madas estão atoladas em duas guerras sem perspectivas no Oriente Médio. E, mais importante que tudo, eles precisam muito mais da Rússia do que o contrário. O ministro de Relações Exteriores russo, Sergei Lavrov, frisou, num artigo publicado pelo Financial Times, que a Rússia é um “parceiro do Ocidente no Oriente Médio, Irã e Coréia do Norte”.

A Rússia também controla, em essência, o abastecimento de gás da Europa Ocidental. Não por acaso, foi o presidente Sarkozy da França – e não Condolezza Rice – quem negociou a suspensão do conflito. No acordo firmado entre os dois países, a Geórgia faz duas concessões essenciais. Compromete-se em não mais utilizar a força contra a Ossétia do Sul, e aceita um documento que não faz nenhu-ma referência a sua integridade territorial.

A Rússia saiu, portanto, muito mais forte que antes. Saakashvili apostou tudo o que tinha e está agora geopoliticamente falido. Como nota irônica, a Geórgia, uma das últimas aliadas dos Estados Unidos na coalizão no Iraque, retirou todos os 2 mil soldados que ainda man-tinha por lá. Estas tropas jogaram um papel importante nas áreas xii-tas, e agora precisam ser substituídas por tropas norte-americanas, que terão que deixar outras áreas.

Quem joga o xadrez geopolítico precisa conhecer suas regras. Do contrário, corre o risco de ficar emparedado.

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IX. Vida Cultural

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Autores

Ivan Alves FilhoHistoriador, autor, dentre outros, do clássico Memorial de Palmares.

Vladimir CarvalhoCineasta e documentarista, integrou o chamado movimento do cinema novo. Dentre seus filmes destacam-se Conterrâneos velhos de guerra e O engenho de Zé Lins.

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Livros que eu li

Ivan Alves Filho

Há um exercício extremamente salutar e que gosto de prati-car de vez em quando. Trata-se de estabelecer, mentalmente, uma lista dos livros que mais me impressionaram na vida.

Uma lista que sempre fica alojada na minha memória e que hoje, pela primeira vez, tento colocar no papel de forma organizada. Certamen-te, haverá graves omissões, por conta de nossas próprias insuficiên-cias. Há obras para lá de clássicas que ainda não li e, outras, que talvez não tenham tanta importância assim aos olhos de alguns.

Começando pelas minhas primeiras leituras, o primeiro livro que gostaria de lembrar é Caçadas de Pedrinho. Para o menino da cidade grande que eu era, ele abria as portas – ou as porteiras... – do mun-do. Quando eu partia de férias para a casa dos meus avós, em Minas, eu me sentia o próprio herói-mirim de Monteiro Lobato: minha vida por um quintal! Eu era o dono daquela porçãozinha de terra com árvores frutíferas por todos os lados, um riozinho ao fundo e a Maria Fumaça sacolejando e apitando pelos trilhos da estradinha de ferro que passava atrás da casa. Além de avistar o trenzinho caipira, eu ainda percebia, da janela do quarto do meu avô, as palmeiras impe-riais que enquadravam o quintal. Infelizmente eu não me chamava Pedro – mas o meu filho não escapou de ter este nome...

Outro clássico da literatura infanto-juvenil que me fascinou foi Robinson Crusoé, do inglês Daniel Defoe. Trata-se de uma história verídica, na origem. O naufrágio do marinheiro que passou anos iso-lado em uma ilha no Pacífico serviu de pretexto para o autor – um antigo membro do serviço de espionagem de Sua Majestade – tra-

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IX. Vida Cultural

balhar magistralmente a oposição civilização versus natureza. Moby Dick, do norte-americano Herman Melville, é mais um desses livros que povoaram a minha infância. As referências às minhas leituras de guri ficariam incompletas se eu não citasse Os meninos da Rua Paulo, do húngaro Ferenc Molnár, em tradução de Paulo Rónai. Um livro triste – mas de beleza ímpar. E não só: Meu pé de laranja lima, de José Mauro de Vasconcelos, é um livro que me comove ainda hoje. Digo o mesmo de Rosinha, minha canoa, também dele.

Outro livro delicioso, já por conta das minhas leituras de adoles-cência, foi A Moreninha. Eu o reli há uns dez anos, por influência do saudoso Nelson Werneck Sodré, admirador da obra. Reli e continuei gostando, o que nem sempre é muito comum. De um romantismo ar-rebatador, escrito como um folhetim, era uma história com começo, meio e fim – e eu aprecio histórias assim, mesmo que não sejam for-çosamente lineares. Mas histórias têm que fazer sentido. Outro livro arrebatador do romantismo brasileiro? Inocência, de Alfredo Taunay.

Essas notas ficariam incompletas se deixasse de citar outros ro-mances, de uma fase mais madura minha. Vamos àqueles de Ma-chado de Assis. Curiosamente, não tenho preferência por nenhum romance seu. Li-os todos, acredito, e gosto de todos, sem exceção. Mas... – vá entender porque motivo – devo confessar que sou particu-larmente atraído pela atmosfera de Helena, romance passado na bu-cólica Santa Teresa. E acho imbatível o início de Memórias póstumas de Brás Cubas: “Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte.” Não tenho como decidir...mas, lá no fundo, Brás Cubas...

Vidas secas é outro livro marcante. Pela economia de diálogos – pois o sertanejo é acima de tudo um taciturno, antes mesmo de ser um forte. E o velho Graça conhecia o homem do sertão melhor do que ninguém. Afinal, era um deles. Mas a grande cena do livro envolve um cão. Eu me pergunto quem mais, além de Graciliano Ra-mos, conseguiria ver o mundo sob a ótica de um animal. O Baleia, no caso, cuja morte é descrita de forma pungente. “Madame Bovary, c´est moi!”, exclamou Flaubert. E Baleia é o Graça, digo eu.

Jorge Amado merece um capítulo à parte.Talvez ninguém saiba contar uma história como ele. Jubiabá é meu livro preferido dele. Mas tem também Tereza Batista Cansada da Guerra, o livro de memórias Navegação de cabotagem e a formidável trilogia Os subterrâneos da liberdade, que narra a luta dos comunistas contra a ditadura Var-gas. Amado Jorge. Outro que possui o dom da narrativa: o paraense

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Livros que eu li

Dalcídio Jurandir. Dele li a bela obra Chove nos Campos de Cacho-eira e deveria ter lido muito mais coisas. Eu li Chove nos Campos de Cachoeira ao mesmo tempo que Incidente em Antares, no começo dos anos 70. Foi mais uma dessas obras impressionantes de Érico Verís-simo, de quem já admirava não só a trilogia O tempo e o vento como As aventuras de Tibicuera, uma saborosa narrativa infanto-juvenil.

Dos romances estrangeiros – se é que algum romance é de fato es-trangeiro a alguém – eu destacaria, lá atrás, Razão e sensibilidade, de Jane Austen. Livro saboroso, retratando a Inglaterra pastoril, de mo-cinhas suspirando por seu amor, em cenas de doce romantismo que se desenrolam na quietude do ambiente rural. O livro de Jane Aus-ten representa um mergulho quase sem igual na alma humana (como mais tarde somente Dostoiévski saberia fazer). Jane Eyre, de Charlotte Brontë, é mais um belo livro sobre a Inglaterra romântica e um libelo pela emancipação da mulher. Outro retratista extraordinário de seu tempo foi Honoré de Balzac, o autor preferido de ninguém menos do que Karl Marx. Dotado de incrível capacidade de trabalho – dizem que labutava em média 15 horas por dia –, Balzac estabeleceu um pai-nel impressionante da classe dominante francesa de seu tempo, tanto mais impressionante quanto ele não poupava críticas ao comporta-mento de uma classe que apoiava resolutamente...Mas a honestidade do artista, a sua genialidade mesmo, estava acima de suas preferên-cias políticas. O homem era um; o artista outro. Do que li dele, o que mais gostei foi Lírio no vale, um caso de amor trágico. O que Karl Marx percebeu em Balzac, Astrojildo Pereira notou em Machado.

Há pelo menos seis ou sete outras obras, um pouco mais recen-tes, que me fascinaram. A primeira delas é Os irmãos Karamazov, do mestre F. Dostoiévski, cuja densidade aumenta à medida que rele-mos a obra. Outro livro que emociona – e muito – é A dama das camé-lias, o romance-verdade de Alexandre Dumas Filho. Outro ainda é A cidade e as serras, hino ecológico de Eça de Queirós, sobre as agru-ras da civilização industrial. Toda a vida pela frente, de Emile Ajar, pseudônimo de Roman Gary, de um humor refinadíssimo e uma ter-nura sem limites, é uma das leituras mais agradáveis que fiz na vida. O país das neves, de Yasunari Kawabata, toca pela fragilidade do ser humano diante da vida, tema recorrente da obra desse magnífico autor japonês. Drácula, do irlandês Bram Stocker, não poderia, até pelo pioneirismo, deixar de figurar em qualquer lista. Do colombiano Gabriel Garcia Marquez li Cem anos de solidão, que me reteve do começo ao fim da história. E o último que gostaria de citar é o épico Dr. Jivago, de Boris Pasternak, uma das obra-primas do século XX e

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que versa sobre as vicissitudes da Revolução Russa. Aqui, o romance como que se encontra com suas origens, resvalando para a epopéia.

Bem, as novelas. As russas me encantam. Acho a Rússia o país mais fascinante do mundo e isso talvez se deva ao fato de se encon-trar na fronteira do Ocidente com o Oriente. De todos aqueles gênios da literatura russa – Gogol, Dostoiévski, Tchécov, Turgueniev – o que mais me impressionou foi A. Pushkin e sua formidável descrição do modo de vida dos camponeses de seu país. A rudeza dos seus escri-tos guarda um amor quase inigualável pelo povo – mesmo se com-parado a Máximo Górki e outros autores engajados. Para mim, seu mais belo livro é A dama de espadas.

“Ao despertar após uma noite de sonhos agitados, Gregor Samsa encontrou-se em sua cama transformado num inseto gigantesco.” Esse o começo de Metamorfose, de Franz Kafka. Não existe metáfora maior do homem moderno do que essa. E início mais impactante de novela do que esse, que causasse tanta estranheza ao leitor. Franz Kafka não era russo – era checo. Isto é, gravitava de qualquer forma em torno da cultura eslava. Percebia a gestação da alienação do ho-mem moderno como ninguém. As instituições burocráticas substi-tuindo as relações sociais. Não saberia dizer se Kafka era pessimista, pois um autor não tem que apontar diretrizes, acho eu.

Outra novela que leio com prazer sempre é O velho e o mar, de Hemingway. Trata-se de um hino de louvor à tenacidade humana. O final do livro é apoteótico. É o chamado pequeno grande livro. Sempre volto a ele. Outra novela que reputo formidável? O chamado selvagem, de Jack London – verdadeiro triunfo das leis da natureza. E de início arrebatador também. Mais uma novela? O estrangeiro, do franco-argelino Albert Camus. A derrradeira? Uma vida em segredo, de Autran Dourado, obra-prima em matéria de sensibilidade.

Ainda no âmbito da literatura de ficção, eu não poderia deixar de lado os contos. Eles possuem as mesmas características do roman-ce, mas são bem mais concisos, senão precisos e surpreendentes. Os contos mais extraordinários que li são aqueles de Giovanni Boc-caccio, reunidos no belíssimo Decamerão. Depois, os que mais gosto são os escritos por Guy de Maupassant, o mestre incontestável do gênero na modernidade. Alia crítica de corte social e profundidade psicológica na análise das personagens. O seu Bola de sebo é um dos maiores livros que li. Maupassant fez escola e Somerset Maugham pode ser considerado um filho literário seu. Histórias extraordiná-rias, do norte-americano Edgar Allan Poe é outro livro quase que de cabeceira meu. Guimarães Rosa, com Sagarana, realiza a proeza de

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Livros que eu li

unir o universal e o regional. Seu magistral A hora e vez de Augusto Matraga é uma aula de conto. Dele também li com prazer Famigerado e A terceira margem do rio. Entre os contistas nacionais, destacaria ainda dois: Samuel Rawet e Breno Accioly.

Os poetas não ficam atrás dos grandes pensadores, demonstran-do, muitas vezes, que a sensibilidade rivaliza com o conhecimento e pode até se antecipar a ele. Nomes? Horácio, Virgílio... As Bucólicas (e também as Geórgicas) cantam a vida campestre como nenhum outro poeta cantou depois de Virgílio, esse filho de lavradores. São os poemas que mais me agradam, até hoje. Sem prejuízo do prazer que provocam em mim a leitura dos sonetos de Camões ou Marília de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga, ou ainda Castro Alves e Álvares de Azevedo e os poetas mais modernos, de versos livres. Poema sujo, do Gullar, é uma obra-prima: “O homem está na cidade / como uma coisa está em outra / e a cidade está no homem / que está em outra cidade...” Entre os antigos, Li T´ai Po, Ovídio e Omar Kahyyam são os que mais me dão prazer. E eu não poderia fechar esse parágrafo sobre os livros de poesia sem mencionar Manoel Bandeira e Manoel de Barros, os dois fantásticos manoéis da nossa literatura. Gosto especialmente de Ritmo dissoluto, de Bandeira, pois foi nesse livro que ele publicou Vou embora para Pasárgada. Do segundo Manoel, aprecio particularmente O livros das ignorãças. Imensos, os dois.

Não leio teatro. Penso que o texto teatral é para ser encenado e não lido. Provavelmente me equivoco. Mas... William Shakespeare acaba com as nossas eventuais resistências. Seus livros são porta-dores dos dialógos mais bonitos que alguém jamais escreveu! Quem duvidar que leia Hamlet, por exemplo, esta bela defesa da necessida-de de se colocar ordem em nossas vidas.

Aprecio muito a leitura de livros sobre gêneros literários. Cartas a um jovem poeta, de Rainer Maria Rilke, descortinou para mim o hori-zonte da poesia, quando tinha 16 anos. Demonstrou Rilke que poeta é aquele que retira inspiração do cotidiano e, acima de tudo, alguém que morreria se não escrevesse poesia. A cidade e o campo, do in-glês Raymond Williams, é outro estudo primoroso, centrado sobre o impacto da transição da vida rural para a urbana na literatura mo-derna. Aprecio ainda os ensaios sobre poesia e literatura em geral de Jorge Luis Borges, Italo Calvino, Mario Vargas Llosa e Octavio Paz. Eu não saberia classificar o Mitológicas, de Roland Barthes. Livro de crítica? Só posso dizer que raramente um livro me deu tanto prazer ao lê-lo. Mitológicas, na verdade, põe em discussão todos os ícones culturais da modernidade.

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Romance, conto ou novela – o importante é que a literatura trans-borde de humanismo e seja prazerosa.

Encanta-me também um gênero brasileiríssimo (se fosse fruta seria, logicamente, jabuticaba...): estou me referindo à crônica. Ai de ti, Copacabana, do carioca honorário Rubem Braga é a bíblia do gênero. O próprio Braga é um ícone do gênero. O charme da crônica, a meu juízo, é que cabe tudo nela – da reflexão de caráter filosófico aos pequenos fatos do cotidiano das gentes -, sempre sob uma óti-ca intimista. Outros mestres da crônica? Raquel de Queirós, Paulo Mendes Campos, Stanislaw Ponte Preta, Elsie Lessa, José Carlos de Oliveira, Lygia Fagundes Telles, Cecília Meireles, Antônio Maria, Ar-tur da Távola e Caio Fernando de Abreu. E peço perdão antecipado por alguma omissão.

As máximas e aforismas também me encantam e muito. Nume-rosos filósofos da Antigüidade – como Marco Aurélio – recorreram a essa forma de expressão, que quase sempre revela um sistema aberto de pensamento. Mais perto do nosso tempo, homens como Friedrich Nietzsche também se valeram do aforisma para expor suas reflexões e inquietações. O livro de máximas que li com maior pra-zer se intitula Reflexões, do moralista francês Le Rochefoucauld. O jesuíta Baltasar Gracián y Morales, autor de A arte da prudência, é outro pensador que se expressa magistralmente por intermédio das máximas: “Por maior que seja a tarefa, o que a desempenha deve demonstrar uma grandeza ainda maior”.

Há uma obra que representou um divisor de águas na minha vida e, creio, na vida de muitas outras pessoas: trata-se do Manifesto do Partido Comunista, dos alemães Karl Marx e Friedrich Engels. Que universo esse livro descortinou na minha existência! Que lição de História e que sopro humanista! Desde então, o fantasma do capita-lismo não deixaria mais de rondar o meu mundo. E eu não poderia deixar de mencionar, já que estamos no terreno do marxismo, um livro... muito criticado por Marx: O direito à preguiça, de seu genro Paul Lafargue. Para Marx, Lafargue era um pouco ingênuo em suas observações sobre o fim do trabalho. Mas trata-se sem dúvida de um panfleto formidável contra o trabalho embrutecedor.

Há um livro, ainda na área que poderíamos denominar de política ou de estudos sociais, que provocou grande impacto em mim, como se estivesse lendo um Friedrich Engels atualizado. Refiro-me ao en-saio Os danados da terra, do psiquiatra martiniquês Franz Fanon, uma análise das mais aprofundadas sobre o fenômeno colonial e suas conseqüências para o desenvolvimento mental dos colonizados.

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O prefácio desse livro é de ninguém menos do que Jean-Paul Sartre. Franz Fanon morreu aos 36 anos de idade, deixando o nosso pensa-mento certamente mais pobre. O ensaísmo político me fez entrar em contato com autores como Astrojildo Pereira, Ernest Bloch, Antonio Gramsci, Walter Benjamin, Roger Garaudy e Norberto Bobbio.

Não posso deixar de lado o domínio da Arte. Muitos livros sobre a prática artística me marcaram ao longo das minhas leituras. Mas nenhum como A necessidade da arte, do austríaco Ernest Fischer. Com sensibilidade extraordinária, o autor sobrevoa a história da arte, estabelecendo como cada um de nós precisa da imaginação e da beleza para alcançar uma existência mais rica. Para quem quer se iniciar nos estudos das artes plásticas e da poesia, não recomen-daria obra melhor.

Há livros que decidem um destino. O Quilombo dos Palmares, do antropólogo Edison Carneiro, praticamente selou o meu. Explico. Fi-quei tão fascinado pela epopéia dos escravos rebelados na Serra da Barriga, em Alagoas atual, que resolvi estudar a sua história. Posso dizer que, desde 1974, pelo menos, nunca mais abandonei os es-tudos sobre Palmares, produzindo desde então pesquisas, disserta-ções, livros e artigos sobre o assunto. Outros dois livros que influen-ciaram decisivamente nessa minha paixão pelos estudos históricos: A República comunista-cristã dos guaranis, do jesuíta Claude Lugon, bela pesquisa sobre a saga dos índios na América do Sul, e História da riqueza do homem, de Leo Huberman, um relato extremamente bem escrito da luta dos trabalhadores através dos tempos. “Dezes-sete anos antes do fim do século XIX, Karl Marx morria. Dezessete anos após o início do século XX, Karl Marx tornava a viver”. Outro livro de História – na realidade, a meio caminho da História com H maiúsculo e da história pessoal, ainda que com P maiúsculo... – é o denso Tempos interessantes – Uma vida no século XX, de Eric Hobs-bawn, provavelmente o mais influente historiador do século passado. O homem e o mundo natural, do inglês Keith Thomas, é também um dos melhores livros de História que conheço. Mais, até: trata-se um dos melhores livros que já li em toda minha vida.

Prosseguindo. Se a antropologia se apresenta, hoje, como um campo fascinante da reflexão humana isso se deve em boa medida a um centenário senhor chamado Claude Lévi-Strauss. E em parti-cular ao seu Tristes trópicos, um dos primeiros livros a reconhecer o direito à História aos índios das Américas e aos demais povos que desconheciam o Estado e a divisão da sociedade em classes. Mais: Lévi-Strauss deu aos mitos indígenas uma dignidade de tratamento desconhecida até então. Outros antropólogos franceses cujas obras

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muito admiro são Maurice Godelier e Pierre Clastres. O primeiro trabalhou o espaço da economia nas sociedades ditas primitivas, o outro, se esforçou – com sucesso, na visão de alguns – para provar que essas sociedades queriam evitar a qualquer preço a formação do Estado, do Um.

A Antigüidade clássica revelou pensadores extraordinários. Os pré-socráticos, Aristóteles (que conheço menos do que deveria), Pla-tão (este, o primeiro a dizer que a sociedade era passível de conheci-mento, inaugurando assim as ciências sociais) e, sobretudo, Epicu-ro, pelo seu apego à liberdade e ao prazer. Carta sobre a felicidade (a Meneceu) é um dos meus livros preferidos. Com Epicuro aprendi algo fundamental: a importância da serenidade – ainda que eu mesmo tenha grande dificuldade em praticá-la.

E, acima de tudo, Epicuro nos ensina sobre a necessidade de exercer controle sobre nossa própria existência. Outros autores – e penso em Montaigne do Ensaios, escrito na linha da valorização ou aproximação da filosofia com os problemas do cotidiano e da sub-jetividade – enveredaram pela mesma seara. Sêneca foi um deles também. Marco Aurélio outro. Mas Epicuro segue sendo inigualável, único.

A psicanálise me reservou leituras profícuas. A começar pelo Mal estar na civilização, livro no qual Sigmund Freud expõe o quanto o processo civilizatório depende da repressão aos instintos agressivos presentes no homem. Mais do que um livro, Mal estar na civilização é um código de conduta, como os Dez mandamentos, por exemplo. Outro trabalho que me encantou foi o relato Memórias, sonhos, re-flexões, do psicanalista suíço Carl Jung, cujo pai achava que ele não seria nada na vida. Se o genitor era ruim de diagnóstico, o mesmo não poderia ser dito a propósito do filho, discípulo – depois dissidente – de Sigmund Freud.

Ainda na linha dos livros de ou sobre a psicanálise, não poderia deixar de lado o fundamental A arte de amar, de Erich Fromm. O au-tor repõe, com muita propriedade, o amor no centro de nossas vidas, seja ele materno, paterno, fraternal ou aquele de um homem por uma mulher. Nem que seja por esse motivo, o livro é insubstituível.

O tempo das lembranças e da valorização do Eu. Assim vejo os relatos memorialísticos. O mais incrível que conheço são as Memó-rias de Pedro Nava. Li somente os três primeiros volumes. São seis, ao todo. Emocionante, lascivo, contundente, estonteante, lírico, des-pedaçado, abusado, cruel por vezes, Pedro Nava é o maior escritor barroco que conheço. Um livro seu tem a leveza de um poema de

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Livros que eu li

Bandeira, a profundidade das reminescências de Proust, a beleza do corpo de mulher amada e a transparência de uma mina d´água. Um livro seu é simplesmente puro esplendor. Confesso que vivi, de Pablo Neruda, emociona pelas circunstâncias em que o livro nasceu: foi ditado pelo poeta poucos dias antes de sua morte, acelerada pelo golpe militar de Augusto Pinochet. Reconheço que em matéria de literatura do Eu, tudo começou com Agostinho de Hipona, com suas Confissões, um relato que impressiona pela sinceridade.: “Deus, dai-me castidade, mas não já!”

O homem certo no lugar certo – a fórmula entrou para a história da literatura. É a força do relato, a qual está presente em Os ser-tões, de Euclides da Cunha, e também em Os dez dias que abalaram o mundo, do norte-americano John Reed. Sem esquecer o formidá-vel Dersu Uzala, do militar russo Vladimir Arseniev, uma espécie de Rondon eslavo.

Livros de viagem têm uma característica interessante. Ou seja, podem nos transportar a todos os lugares do mundo sem que pre-cisemos sair do nosso quarto. A literatura de viagem configura, no fundo, uma evasão do mundo pasteurizado, do modo de vida único. Pode ser um documento histórico ou científico; um relato de aven-tura ou um diário pessoal – mas é sempre uma descrição singular, intransferível, subjetiva quase ao extremo. Há livros abolutamente extraordinários, os quais revelam, muitas vezes, que a grande viagem é aquela que o autor faz em torno de si mesmo – através dos outros. O primeiro livro que destacaria – e que possui, justamente, um tom irresistivelmente intimista – é Caminhada, de Herman Hesse. Trata-se de um travessia de uma parte dos Alpes, mais exatamente dos alpes alemães por parte do autor. É um livro de reflexão filosófica sobre a solidão e também a imensidão da natureza.

De certa forma, segue no rastro do célebre Devaneios de um ca-minhante solitário, de Jean-Jacques Rousseau, outra obra-prima do gênero. Um dos inspiradores da Revolução Francesa – que iria colo-car forças incontroláveis em movimento pelo mundo afora – Rousse-au era, paradoxalmente, um homem só. Henry David Thoreau, que passaria dois anos de sua vida sozinho no lago Walden, era um par-tidário dessas idéias. Seu livro Walden, datado de 1854, descreve seu isolamento – e sua busca pela autosuficiência – em uma floresta norte-americana, tornando-se por assim dizer a bíblia da geração beatnik um século depois. Era uma figura mística, solteirão convicto, cultíssimo.

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Lugares exóticos sempre atraíram os viajantes. Penso em Via-gens, de Marco Polo – clássico dos clássicos –, e também em Viagem pela África, de Paul Theroux, além do ótimo Nos Mares do Sul, de Robert Louis Stevenson. E penso igualmente em Viagem ao Tibet, da orientalista francesa Alexandra David Neel (não tenho certeza se existe tradução desse livro em língua portuguesa). Há muitos e mui-tos outros relatos fascinantes, como o estupendo Patagônia, de Bruce Chatwin, autor precocemente desaparecido e o não menos estupendo Sob o sol da Toscana, de Frances Mayes, um livro de cultura, A outra Europa, do alemão Hans Enzensberger, e Um ano na provence, do in-glês Peter Mayle, são dois outros livros que podemos ler com imenso proveito e prazer. Em matéria de livros de viagens, teve até um relato sobre o México – quase um guia turístico, pela precisão –, elaborado pelo português José Agostinho Baptista, que simplesmente nunca estivera por lá, na terra de Emiliano Zapata e David Alfaro Siqueiros. Trata-se de uma viagem imaginária.

No fundo, talvez todas as viagens o sejam.

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Forma e conteúdo no vôo do Ícaro do sertão1

Vladimir Carvalho

A propósito do Romance do Vaqueiro Voador, filme, ocorreu-me, logo que o assisti no ano passado, o que à primeira vista pode parecer rematada extravagância: fosse o pintor flamengo Pie-

ter Brueghel, o Velho, nosso contemporâneo, o tema da construção de Brasília não escaparia à sua palheta tão chegada aos escancara-dos espaços e às gentes que nele circulam. Aqui ele poderia trocar de inspiração e ao invés de se inspirar em Hyeronimus Bosch procu-raria um outro quase homônimo, o João Bosco, autor do cordel que deu margem ao filme de Manfredo Caldas.

Logo em sua abertura magnificente, com os créditos de apresen-tação de Fernando Pimenta, senti-me planar junto com a câmera, flutuando com ela sobre a Esplanada dos Ministérios e o cenário em sua volta. E, tomado pela vertigem do movimento e da música impactante de Marcus Vinícius, experimentei a sensação de reen-contrar a obra do mestre renascentista que quase sempre abarcava com a vista do alto os seus temas como se os sobrevoasse até os di-fusos horizontes. Mas olhados mais de perto no foco desses plongês se viam as cenas que flagrava, cheias de movimento e intenções, de figuras prestes a se mexerem para o deleite de uma invisível câmera de filmar. Assim são as suas telas célebres como o Porto de Nápoles, A Colheita do Feno, A Torre de Babel, A Luta de Carnaval e Quaresma ou a apavorante O Triunfo da Morte, aterradora “panorâmica” sobre o tema da guerra e da destruição.

Já havia esquecido o pintor com relação ao Vaqueiro Voador, quando revendo agora o filme e relendo o longo e tocante poema de João Bosco Bonfim, tornou-me a baixar o fantasma de Brueghel e dessa feita mais explicitamente. É que casualmente decifrei nos ver-sos do cordel o nome Oraci, um dos apelidos do Vaqueiro, que lido

1 Integrante da significativa leva de documentários de longa metragem que veio a público este ano, O Romance do Vaqueiro Voador, de Manfredo Caldas, tematiza o pouco conhecido episódio da chacina de operários durante a construção de Brasí-lia. Com excelente crítica quando do seu lançamento, o filme conquistou também o principal prêmio do Festival de Cinema de Toulouse, na França.

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ao contrário é Ícaro, justo o tema do holandês na fabulosa Paisagem com a Queda de Ícaro, quadro que tem a mesma e característica vi-são do alto a contemplar a condição e a faina humanas, alimentadas de sonho e utopia. E aí associei essas ilações à estratégia poética adotada por Manfredo Caldas e seu roteirista Sérgio Moriconi para traduzir no cinema a narrativa literária de JB. Ele sobrevoa com sua câmera em plongê os amplos espaços da grande urbe já construída e movimentada, prenunciando o assunto que persegue, até descer ver-tiginosamente em mergulho e aterrissar nas tensões da tragédia que vai contar. Nesse lance, primeiro procede sorrateiro como se cercasse a caça à maneira do gavião que a espreita do alto antes do bote final. Essa é a primeira manifestação de uma “forma” de que Manfredo se acerca e termina por se apossar por inteiro no transcurso do filme, como se aos poucos fabricasse a carnadura que vai encobrir e visibi-lizar o esqueleto de um duro e implacável conteúdo.

Nunca antes Manfredo foi tão obsessivo no encalço de sua expres-são. Diferente do seu primeiro filme de longa duração, Uma Questão de Terra, como de seus curtas (Feira, Boi de Reis e Cinema Paraiba-no – Vinte Anos ), O Vaqueiro Voador está longe de ser um registro puramente documental, radicalmente fiel à tradição do gênero que procurava no real a sua razão de ser e quando, mais do que tudo, era ao chamado conteúdo que se dava mais atenção. No caso em tela, não. É a busca obstinada de um modo particular de “dizer”, de expressar-se na língua do cinema que importa. E aqui ele claramente faz côrte à forma como se ela existisse por si só, e em si, separada do seu conteúdo, como se dirigindo a uma musa difícil de conquis-tar. Nesse sentido, o Vaqueiro Voador é um salto em sua carreira, quase uma ruptura drástica. O aparente impulso inicial advém, a meu ver, do fato de o poema de JB configurar flagrantemente uma metáfora via ficção – o vaqueiro no vôo da morte – com toda carga de iniludível imaginário, mas o tema que subjaz, motiva e permeia é de fundo documental inarredável – um massacre de operários durante a construção de Brasília nos idos de 50. A estória do vaqueiro é a sublimação inequívoca da tragédia coletiva.

Entretanto, não há qualquer contradição e a empreitada se tor-na viável e bem sucedida, quando a aranha da criação, ao dar início à sua teia, adota como método narrativo a “reiteração”, quer dizer, trazer de novo à baila e desdobrar um tema que já esteve sob o crivo do cinema em pelo menos três documentários (Brasília Segundo Feldman, Perseghini e Conterrâneos Velhos de Guerra), o que deflagrou outras manifestações no rastro da faraônica construção, como teses acadêmicas, romances, composições musicais e cordel.

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Forma e conteúdo no vôo do Ícaro do sertão

E Manfredo manteve-se consciente do desafio que enfrentou, isto é, se avizinhar e assumir a ficção para reelaborar a matéria vencida no tempo, e tratar intertextualmente não só a poesia escrita como um considerável acervo de imagens de amplo espectro na linguagem do cinema. Um copioso arsenal que esteve disponível e que foi criterio-samente incorporado, desde reportagens e antigos “jornais da tela”, institucionais da era JK, como, e sobretudo, filmes conhecidos como Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, e Memória do Cangaço, de Paulo Gil Soares, entre outros.

Nesse processo, joga papel importante a criação da figura do ator-narrador e é interessante acompanhar a maneira curiosa como esse assimila, também por força da montagem, o personagem do drama, numa tríplice operação. E não há aqui ambigüidades e sim ambiva-lências. Primeiro, talhadíssimo para o papel do Vaqueiro, Luís Carlos Vasconcelos chega a Brasília e é filmado como qualquer profissional numa espécie de aquecimento e aparece lendo ou decorando seu tex-to. Ato contínuo já encourado se esgueira cerrado adentro na pele de Raimundo (ou Oraci?), o Vaqueiro, num lance brechtiano, num jogo de lúdico e proposital vai-e-vem. Oportunidades em que os versos da narração já se instalaram com seu estribilho e se repetirão com-passivos: “Ei-lo caído de bruços/Para o campo paramentado (...”). E aqui cabe um parêntese para frisar a total felicidade na escolha de Vasconcelos. É quando, em curta seqüência de Memória do Cangaço, aparece no canto do quadro, mas quase em close, o rosto de um ho-mem do bando de Lampião do qual o ator é praticamente um clone tal a estarrecedora semelhança física.

Tanto é assim que a edição não foi indiferente ao fato e o cor-te vem rápido e certeiro para o ator aproximando-o do seu “mode-lo”. Isso empresta naturalmente enorme verossimilhança e concorre para a força do filme que se nutre do diálogo com outros materiais. E tratando-se da montagem foi crucial para o êxito do Vaqueiro Voador o concurso absolutamente providencial de Ricardo Miranda, num re-encontro com o Manfredo dos tempos da então chamada “sala de montagem” com película, hoje remoto ancestral das ilhas de edição e dos final cut, quando ambos militavam quase tão somente como montadores.

Esse diálogo de almas irmãs também trouxe enorme benefício ao filme. E o seu efeito se faz sentir sobretudo na longa trajetória e estruturação dramatúrgica do personagem até o terço final quan-do o filme “vira”. Especialmente quando o entrecho se torna mais autoral no código do cinema e exige sutil condução em que nunca se sabe onde termina o ator, o narrador e começa o personagem.

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Exemplos disso são os pequenos travelling em que sibilinamente (ou claramente?) a câmera se afasta para acompanhar em separado Vas-concelos andando absorto e introvertido, decorando o seu texto. Pri-meiro, numa visita a lugares significativos do tempo da construção. A mesma coisa acontece numa exposição de fotografias onde o ator interage conversando com seus interlocutores, quase assumindo o papel de entrevistador e depois se afasta, parando em frente a uma foto desse tempo “antigo”, imprescindível para a instauração de um certo e determinado clima ou clímax.

E destaque-se, não de passagem, que aqui brilha generosa a es-trela de Waldir de Pina, senhor absoluto de seus recursos de ilumi-nação e trabalho de câmera.

Por outro lado, a recorrência insistente do estribilho domina todo o filme e cadencia o tempo da montagem, promovendo simultanea-mente a sensação de que toda imagem usada – num diálogo com a cidade de hoje – assume a mesma função de um ritornelo reforçando o madrigal do Vaqueiro na sua caminhada de trágico flaneur. E todo esse aparato estético segue sendo um inestimável achado, até o filme cruzar com seu ponto de inflexão e rumar de rota batida em dire-ção ao seu encapsulado tema que é o da matança de trabalhadores.

O primeiro sintoma dessa virada para os mais atentos aconte-ce no momento em que numa entrevista um dos três homens que aparecem sentados num banco de praça introduz timidamente o as-sunto que não quer calar: – E a matança? pergunta ele fora do foco do som, enquanto o parceiro que está com a palavra faz ouvido de mercador e segue em frente.

Prossegue o deambulante Vaqueiro com seu séqüito de imagens e sons recorrentes, mas a pista da chacina já foi dada e exerce sua perturbadora função subliminar na memória do público. Vinte mi-nutos depois o Vaqueiro sofre uma desmoralização num entrevero que termina em surra e cadeia (em contraponto imagens de Fabiano e o soldado amarelo em Vidas Secas, este último da mesma cepa dos bate-paus da GEB que metralharam seus irmãos durante a constru-ção) e vem lamber suas feridas no acampamento.

Depois daí chega-se, ou volta-se, enfim à barbearia (foi numa barbearia da Vila do IAPI que ouvi falar do massacre pela primeira vez, em 1970) já vista e ouvida antes sobre as péssimas condições do trabalho na construção, mas não ainda sobre o massacre.

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Forma e conteúdo no vôo do Ícaro do sertão

Para terminar, vamos nos deter embora rapidamente nesse ponto apenas para sublinhar o feliz domínio do tempo da narrativa (logo depois, em outro lance de distanciamento brechtiano, a equipe de edição se faz retratar no próprio filme como a chamar para a reali-dade) fazendo-a infletir no momento exato em que ficção e documen-tário definitivamente se acoplam, ensejando a esperada modulação. Essa curva de ascensão leva o filme até a sua culminância catártica, quando o drama do indivíduo e a tragédia dos trabalhadores se tor-nam praticamente simbióticas.

Na barbearia, diante de meridiana verdade pode-se dizer sem medo de estar sendo tosco, que o filme faz barba, cabelo e bigode. O serviço é completo. Sob os cuidados do fígaro suburbano, os depoi-mentos sobre a chacina, muito bem disfarçados em conversa, fluem contundentes e duram pouco mais de dez minutos, levando o filme ao seu pico máximo, alçando seu vôo derradeiro e arremetendo com toda força para o seu desenlace, após o que alcança a conseqüente ressaca como que acordando das profundezas do transe. Nunca an-tes de Raimundo (ou Oraci?) precipitar-se como um ícaro sertanejo no vazio de discutível suicídio. Nessa altura, o rotativo vem subindo e a música faz a “festa” até o final, narradora e participativa como foi desde o início.

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X. Resenha

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Autores

Martin Cezar FeijóOrganizador do livro, é escritor e professor universitário na FACOM-FAAP e no pro-grama de pós-gradução em Educação, Arte e História da Cultura na Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo.

Gonzalo Adrián RojasDoutor Ciência Política (USP). Pesquisador Colaborador e Pós-doutorando no Depar-tamento de Ciência Política – IFCH/Unicamp. Professor da Escola Nacional Florestan Fernandes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (ENFF/MST). Email: [email protected]

Alexandre de Freitas BarbosaPesquisador do Cebrap e doutor em Economia Aplicada pela Unicamp.

Michel ZaidanProfessor da Universidade Federal de Pernambuco.

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Uma antologia de agraristas políticos

Machado de Assis e Astrojildo Pereira: O livro e o filme

Martin Cezar Feijó

Em 1939, centenário do nascimento de Machado de Assis, As-trojildo Pereira, então afastado da militância política no PCB, vendendo frutas em uma quitanda, publicou um curto ensaio

com o título sugestivo de “Machado de Assis, Romancista do Segun-do Reinado”. Um estudo pioneiro, de base pretensamente marxista, mas não dogmático, que inseria a obra de Machado de Assis em seu contexto histórico. O ensaio pode ser considerado, talvez até por ele próprio, como o mais importante trabalho intelectual escrito em sua vida, pois além da publicação em revista no ano de 1939, ainda o republicou em mais dois livros, Interpretações (1944) e Machado de Assis – Ensaios e Apontamentos Avulsos (1958); este último agora relançado em edição comemorativa pela Fundação Astrojildo Pereira, com apoio significativo – tanto no sentido material como simbólico – da Academia Brasileira de Letras, e contando com a inclusão de um sensível curta-metragem de Zelito Viana, produção da Mapa Filmes do Brasil, intitulado A Última Visita.

A relação de Astrojildo Pereira com a obra de Machado de Assis antecede sua militância política e, paradoxalmente, sua ação públi-ca, cujo primeiro ato se deu de forma anônima, mas de repercussão nacional, quando ainda nem havia completado 18 anos, exatamente no dia, ou no princípio da noite, que antecedeu a morte de Machado de Assis: 28 de setembro de 1908. Exatamente cem anos atrás, logo após a morte do Mestre do Cosme Velho, esse ato foi registrado em texto primoroso de Euclides da Cunha, intitulado “A Última Visita”.

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X. Resenha

Uma crônica que se tornou célebre, publicada no dia 30 de setembro, depois reproduzida em vários jornais do país, inclusive por duas ve-zes no Jornal do Commercio.

Na crônica, que deu base ao belo filme de Zelito Viana, com Mar-cos Palmeira no papel de Euclides da Cunha, ele dizia que aquele rapaz deveria ficar anônimo, e talvez não fosse ser nada na vida, mas naquele momento havia representado toda uma nação, emocionando a todos os presentes e deixando com sua partida a “impressão visual de uma posteridade”. Com estes dois elementos, Zelito Viana cons-trói sua narrativa visual, cujos sete minutos nos informam e emocio-nam, como deve ser a missão do melhor cinema, em que formato for, ou tempo de exposição.

Zelito Viana realizou um grande curta-metragem, unindo sua ha-bilidade já demonstrada em vários filmes – destacando-se aqui esta referência cinematográfica que é o Villa-Lobos – Uma Vida de Pai-xão, de 1998, agora relançado em DVD com comentários do diretor, acompanhado pela excepcional trilha sonora do filme em CD, basica-mente com músicas de Villa-Lobos.

Em A Última Visita, – DVD que acompanha o livro – Zelito Viana demonstra toda uma capacidade de síntese, sensibilidade e criati-vidade. Com uma equipe altamente profissionalizada – que vai dos atores (Marcos Palmeira já citado, Archimedes Bava como Machado de Assis e Cleber Salgado como Astrojildo Pereira); equipe de realiza-ção (Walter Carvalho na fotografia, Zezé D’Alice no som, Sérgio Sch-mid nos efeitos, Kika Lopes no figurino, entre outros profissionais de ponta) – à produção executiva de Vera de Paula.

Em suma, além de um livro que já é um clássico nos estudos sobre Machado de Assis, agora disponível com belas ilustrações de Cláudio de Oliveira (também autor da capa), numa edição primoro-sa de Tereza Vitale – como merecem tanto o autor como o escritor estudado nesta edição comemorativa e em tiragem limitada – ainda há uma novidade, em que o diálogo entre literatura e cinema se faz possível, que é a bela realização de Zelito Viana em torno da visita do adolescente, então anônimo, ao escritor momentos antes de sua morte. Morte que, tanto pelo livro quanto pelo filme, não significa do ponto de vista simbólico fim; mas começo, re-começo, vida, enfim.

Sobre a obra: Machado de Assis – Ensaios e Apontamentos Avul-sos, de Astrojildo Pereira. Brasília: Fundação Astrojildo Pereira; Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2008.

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Aconteceu longe demais1

Gonzalo Adrián Rojas

As classes subalternas, por definição, não estão unificadas; portanto, a importância da política radica na possibilidade da sua unificação histórica. Diferentemente das classes domi-

nantes, cuja unidade orgânica se dá no Estado ou na sociedade polí-tica, a história das classes subordinadas é uma função desagregada e descontínua da história da sociedade civil. Na esteira de Gramsci, podemos entender as classes subalternas como um conjunto hetero-gêneo de frações de classes que não formam parte do bloco histórico dominante em uma formação econômico-social dada.

Com espírito militante e rigor acadêmico, Paulo Ribeiro da Cunha convida-nos a atravessar esta ponte que liga as lutas dos posseiros de Formoso e Trombas em Goiás (1950-1964) e a atualidade das lu-tas populares no Brasil.

A pouco conhecida “República de Formoso e Trombas”, uma vitó-ria na história construída dialeticamente pelo campesinato brasileiro na sua luta pela terra, é analisada no marco dos processos políticos da sua época. O autor debruça-se, assim, na análise dos processos de ocupação e das lutas que o precederam, da fase de resistência, do período da luta revolucionária e do papel de José Porfirio, principal liderança que se incorporou como militante comunista nesse mesmo processo da luta.

Uma das hipóteses mais instigantes, trabalhada com força e bem argumentada é que os comunistas locais da região estudada e mem-bros do Partidão (desde 1962, Partido Comunista Brasileiro – PCB) estariam em descompasso com a política partidária do Comitê Esta-dual em Goiás. Esta conclusão advém da análise das diversas formas de luta e organizações, nas distintas fases do conflito. A idéia da autonomia é necessária para se apreender a tensão entre as direções e as bases, entre a teoria e a prática. Logo, autor critica com clareza uma dada bibliografia, cuja leitura expõe que o PCB, no campo, so-mente teria elaborado uma estratégia deliberada de contenção dos

1 Publicado originalmente na revista Crítica Marxista, nº 26, 2008.

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X. Resenha

movimentos sociais, já que os critérios adotados pelo Partido veicula-riam uma postura ambígua entre a proposta política e a ação prática decorrente dos seus militantes.

É neste sentido que Cunha procura entender historicamente a ação do PCB. Nos movimentos localizados, em particular os geogra-ficamente mais distantes dos grandes centros, defende a existên-cia de uma autonomia política significativa em muitos momentos das direções partidárias intermediárias. Os principais fundamentos dessa defesa estão pautados nas crises de 1956, após o informe de Kruschev apresentado no XX Congresso do Partido Comunista da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (PCUS) e nas contra-dições internas às várias tendências partidárias. Uma estratégia, a “via chinesa”, viabilizaria as condições de cerco das cidades, a partir do campo, sendo a luta armada o eixo norteador. Esse impasse du-rou até o início de 1958. Lembremos que esta discussão é realizada internamente ao PCB; já o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) é conseqüência da ruptura de 1962. A corrente stalinista é quem fun-da o PCdoB por não admitir a mudança de nome e a supressão da ditadura do proletariado como palavra de ordem.

Em termos teóricos, o livro reflete com profundidade as elabora-ções acerca das relações sociais no Brasil – feudais ou capitalistas? – um debate encerrado na “academia”, mas que ainda se encontra em aberto entre os movimentos populares. Retoma, assim, as teses de Caio Prado Junior, Alberto Passos Guimarães e Nelson Werneck Sodré, bem como as polêmicas decorrentes desse debate.

Ao problematizar, em termos teóricos e políticos, o conceito de campesinato, Cunha introduz agudas observações às teses desen-volvidas por Eric Hobsbawm e Eric Wolf, privilegiando como sujeito da história o povo organizado e criticando, assim, as análises mar-xistas – as quais denomina “ortodoxas” – centradas no proletariado urbano enquanto sujeito. Os traços essenciais dessas críticas estão presentes em intelectuais militantes do PCB como Mário Alves e Nes-tor Vera, os quais reavaliam o papel do campesinato, que passa a adquirir centralidade no processo revolucionário brasileiro.

O autor retoma, portanto, a trajetória do PCB – partido do qual foi militante – fazendo, no entanto, emergir as dificuldades da inter-venção do Partido, principalmente no campo, em virtude de vários fatores: sua debilidade, tanto organizativa, como da sua formação teórica, bem como as crises políticas nacionais e internacionais que o afetaram naquele momento.

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Aconteceu longe demais

Abordando, em particular, a formação de PCB no estado de Goiás, Cunha faz um levantamento dos elementos que dificultaram sua in-serção no campo até a década de 1950. Procura, pois, apontar as mudanças ocorridas nas políticas e nos elementos delineadores da estratégia política do PCB e de seu Comitê Central, mudanças estas concernentes à luta de Formoso e Trombas, no marco da crise do XX Congresso de PCUS, assim como aos impasses e às dicotomias entre lideranças intelectuais e camponesas até 1964.

Desta forma, resgata o processo de luta e a intervenção do PCB nesta região, analisando, assim, a complexa articulação, entre o PCB, a Associação dos Trabalhadores e Lavradores Agrícolas de Formoso e Trombas (fundada em 1955) e a criação dos Conselhos de Córregos, que viabilizaram e facilitaram a comunicação e a atuação dos possei-ros que resistiam à repressão policial. É, pois, através deste resgate que tenta demonstrar que o real poder político estava inserido naqui-lo que denomina Núcleo Hegemônico, o eixo político e organizacional condutor do processo de luta na região, sendo a Diretoria da Asso-ciação composta de uma maioria comunista.

O autor propõe uma discussão política, necessariamente polêmi-ca e aberta, acerca do caráter das revoluções camponesas, criticando deste modo as leituras preconceituosas e superficiais sobre o PCB do referido período. Considera, a partir dessa crítica, ser um equívoco a avaliação, após 1954, da possibilidade de um completo controle orgânico do comitê central de todo o processo político, independente-mente das particularidades regionais e locais, nas quais os militan-tes comunistas estavam inseridos.

Cunha faz uma reconstrução sistemática e polêmica. Sistemática por conter a expectativa de restauração da ponte entre um passado de lutas e a atualidade; polêmica porque, muitas vezes, tanto em sua sagaz crítica aos críticos do PCB, como na sua idéia de autonomia política das direções locais, parece existir uma excessiva diferencia-ção entre a direção e os quadros intermediários, algo difícil de ser imaginado num partido com a característica organizativa do PCB, ou seja, formalmente centralista democrática, mas, nos fatos, muito provavelmente centralista burocrática.

Cunha também nos faz lembrar que a estratégia das Ligas Cam-ponesas (LC), dirigidas por Francisco Julião, gerou resultados dia-metralmente opostos aos esperados. No momento em que abandona a linha legalista em 1962 propõe, externamente ao PCB, a fundação de um Partido Revolucionário. Os resultados – dúbios – dessa fun-

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X. Resenha

dação acarretaram, pois, a perda da sua influência junto ao cam-pesinato e o crescimento, junto ao PCB, de setores da Igreja e da Ação Popular (AP). A debilidade das LC faz com que elas se ausen-tem da fundação da Confederação dos Trabalhadores da Agricultura (Contag), controlada pelo PCB e aliada à AP. O autor não temeu a intenção do “moralista” de julgar se essa possibilidade era correta, reconhecida e coerente, procurando, assim, analisar como se jus-tifica essa posição política ou quando e como os atores pensaram as possibilidades fornecidas pela realidade para organizar sua ação. É importante antecipar a seguinte elucidação: tanto as estratégias políticas “reformistas” como as “revolucionárias” foram derrotadas, embora não de maneira definitiva. Disto resulta que, na tentativa de análise do processo político não se deve confundir categorias políti-cas com categorias analíticas.

Finalmente, é através de uma importante reflexão que o livro nos mostra que as lutas não começam sempre do zero ou do mesmo ponto de partida; há sempre uma tradição de luta que devemos re-cuperar para o entendimento as lutas atuais como sua continuida-de; e esse é um aporte político de suma importância. Sem dúvida, as ditaduras militares na América Latina procuraram destruir essa memória histórica das lutas dos setores subalternos, através das prisões, assassinatos e desaparecimentos. Mas qualquer alternati-va contra-hegemônica que procure construir um novo bloco históri-co deve reconstruir essas pontes, tal como pretende o autor. Neste sentido, Aconteceu longe demais... é um livro que combina, na dose certa, a energia de um militante e o rigor teórico e acadêmico de um importante pesquisador.

Sobre a obra: Paulo Ribeiro da Cunha. Aconteceu longe demais. A luta pela terra dos posseiros de Formoso e Trombas e a Revolução Brasileira (1950-1964). São Paulo, Editora Unesp, 2007, 306 p.

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O que Adam Smith foi fazer na China

Alexandre de Freitas Barbosa

Não poderia haver nada mais insólito. O filósofo escocês de-fensor da mão invisível acampando no país do capitalismo selvagem. Ou insólitos não seriam os clips que a mídia oli-

gopolizada e a opinião pública catequizada nos querem transmitir sob o disfarce de bons sentimentos?

O livro de Giovanni Arrighi lança uma artilharia pesada contra os mitos construídos ao redor da muralha chinesa e do pensamento do “pai da economia”. A partir de um olhar antieurocêntrico e antinorte-americano, este intelectual multifacetado – que também rompe com as muralhas acadêmicas, transitando com desenvoltura pela histo-riografia, economia e sociologia – resgata o melhor do pensamento ocidental de modo a devassar os dilemas e as possibilidades abertas ao sistema mundial neste momento de ultrapassagem histórica.

Não se trata de um panfleto maoísta, ou de um libelo em defesa do partido único. Este italiano do Norte, professor radicado nos Es-tados Unidos, e que publicou em terras brasílicas O longo século XX (Ed. Contraponto) e A ilusão do desenvolvimento (Ed. Vozes), associa numa mesma obra três discursos paralelos e complementares, cada qual com seu respectivo método.

Depois de um mergulho sobre o melhor da sociologia histórica do capitalismo, passando por Smith, Marx, Schumpeter e Braudel, o autor empreende uma análise factual da ordem global, em que a crise terminal da hegemonia norte-americana e a ascensão chinesa compõem os dois lados de uma mesma moeda; para, finalmente, empreender uma reconstrução do padrão de desenvolvimento chinês antes da Revolução Industrial, durante a grande divergência que se-para o Sul do Norte na aurora do capitalismo, até o momento do seu renascimento, agora sob novos moldes.

Comecemos pelo último argumento, mesclando-o ao primeiro. Não é verdade que a China foi superada pela Europa, no início do século XIX, por possuir piores instituições ou por contar com um

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X. Resenha

Estado onipotente que tornava a sua economia ineficiente. Ou tam-pouco que o Estado Nacional, o sistema internacional de Estados e a economia de mercado interno sejam criações ocidentais.

Arrighi, fazendo uso de uma rica pesquisa em fontes bibliográfi-cas, traça o nascimento de um sistema político multicentrado no Su-deste Asiático durante a Era Song (960-1276), o qual encontraria o seu centro na China durante a Dinastia Ming (1348-1643), quando a Europa sequer existia. Desequilibrado em favor da China, e desprovi-do de tendências expansionistas e militaristas, este sistema lograria uma invejável estabilidade política.

Economicamente, por meio da construção de canais, criara-se durante os séculos XV e XVI, um mercado interno chinês com grande desenvoltura e crescente especialização, fornecendo recursos fiscais ao Estado centralizado, que procurava regular o comércio externo. O modelo se esgota por suas próprias fraquezas, e depois pela ex-pansão européia, que combina extroversão comercial e militarismo. Uma maior liberdade do comércio poderia ter incrementado a riqueza nacional chinesa, mas os ideais confucianos de harmonia social fa-laram mais alto.

Na leitura arrighiana, diferentemente do senso comum, Smith, em A riqueza das nações – um dos livros mais citados e menos lidos por economistas do mundo inteiro –, encara o padrão chinês como aquele que melhor refletia a sua concepção de desenvolvimento, acionado por uma progressão da divisão do trabalho, da agricultura para indústria, e desta para a expansão do comércio exterior. Enfim, um padrão de ampliação do mercado que reforça os laços sociais, ao invés de dissolvê-los.

O padrão “não-natural” de Smith, que Arrighi chama de capi-talista, e localiza na Europa, é uma outra história. A sua fonte de inspiração é o próprio Smith, ainda que este não utilizasse o termo “capitalismo”. Para não deixar margem a dúvidas, o filósofo esco-cês é, por várias vezes, chamado ao texto. Esta citação é exemplar: “o capital investido no comércio interno possui o mais positivo dos impactos, porque acarreta um maior incremento de renda, ao criar mais empregos para as pessoas do país”.

Mas então por que os chineses perderam o bonde da história, ao menos temporariamente? Porque o padrão capitalista engendra con-sigo um maior poderio militar. Ao contrário da hipótese metafórica de Marx no Manifesto comunista, não foi a artilharia pesada dos pro-

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O que Adam Smith foi fazer na China

dutos europeus competitivos que destruiu a muralha chinesa, mas a Guerra do Ópio.

Marx pode explicar o desenvolvimento capitalista, dos países eu-ropeus, e do sistema em escala planetária, mas não o padrão de desenvolvimento de uma economia de mercado, regulada nacional-mente, na qual se amplia a divisão social do trabalho, a partir da concorrência entre as unidades produtivas, e se constrange o proces-so de expropriação da força de trabalho.

O que tudo isto tem a ver com a China pós-Deng Xiaoping? Acom-panhemos a seqüência do raciocínio de Arrighi. A China perdeu o bonde da história porque recorrera a uma “Revolução Industriosa”, cujo traço distintivo estava na gestão de uma estrutura institucional e tecnológica voltada para a absorção de mão-de-obra. O foco estava, tanto nas comunidades rurais como nas cidades, na mobilização de recursos humanos.

A sacada japonesa, ao longo do século XX, e da China nas últi-mas décadas, foi a de fundir os dois padrões de desenvolvimento. Surgem então redes de indústrias e empresas com variados níveis de utilização de capital e trabalho, focadas sempre no incremento da competitividade. Trata-se não apenas de substituir capital por trabalho, já que a qualidade do trabalho é um diferencial em si, pro-piciando a ampliação da divisão social do trabalho na direção das atividades intensivas em conhecimento.

Desta feita, o mercado externo não seria desprezado, mas vita-minaria – a partir das zonas de processamento das exportações – o crescimento intensivo em trabalho que vem de dentro e propicia, graças aos ganhos de escala, excedentes vultosos.

A China aperfeiçoa e amplifica o modelo japonês, contando para tanto com o apoio vital da diáspora chinesa capitalista, que havia fer-tilizado em Hong Kong e Taiwan, durante o período pós-Revolução, uma rede de interações sociais e econômicas, transplantada para o continente com a abertura. As empresas multinacionais chegariam bem mais tarde. Ao Estado chinês caberia promover o encontro entre empresários, funcionários públicos e trabalhadores chineses, o capi-tal da diáspora e as empresas “imperialistas”.

Seria, portanto, ingenuidade imaginar que o diferencial da China se encontra na mão-de-obra barata. Não fosse a capacidade de esti-mular a expansão da oferta e da demanda, via investimento estatal, atração de capital externo e formação das empresas rurais não-agrí-

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X. Resenha

colas, de forma gradual no tempo e no espaço. Ou de realizar refor-mas no sistema agrícola e fiscal, conferindo maior poder às comuni-dades rurais e aos governos locais. E a o motor da acumulação não teria sido acionado.

Finalmente, pasmem!, a China pode ser descrita como um caso de acumulação sem expropriação. Não, Arrighi não desconsidera a superexploração dos imigrantes rurais e nem a apropriação corri-queira pelos novos magnatas do setor privado de propriedades e be-nefícios públicos.

Ele ressalta que existem contradições internas à sociedade e ao Partido Comunista, as quais podem levar a uma afirmação do capita-lismo selvagem na China. Esta tendência parecia inclusive provável durante o governo anterior de Jiang Zemin. Já a nova geração de líderes vem defendendo de forma exaustiva os princípios confucia-nos de “sociedade harmoniosa”, tendo inclusive lançado a proposta de “um novo interior socialista”, que congrega um conjunto de ações voltadas para a expansão da educação, da saúde e de programas sociais no campo.

Trata-se, não de um movimento espontâneo, mas de uma reação do Estado – a partir da combinação de medidas repressivas e de con-cessões – num contexto de crescentes lutas sociais nos campo e nas cidades.

Em síntese, o professor italiano desmonta cada um dos mitos perpetrados pela mídia ocidental sob a sociedade chinesa, sem cair na repetição monótona das fórmulas gastas utilizadas pela burocra-cia do PC chinês, que continua falando de “socialismo com caracte-rísticas chinesas”.

Como se não bastasse, o autor de Adam Smith em Pequim nos brinda com um escopo teórico robusto, que permite situar a pro-blemática chinesa no âmbito do sistema capitalista contemporâneo, além de revelar com detalhe as idas e vindas do governo Bush nas relações com a nova potência.

O resultado da “trapalhada” no Iraque teria sido justamente o de consolidar a ascensão chinesa, envolvendo os Estados Unidos numa armadilha tecida na melhor tradição da política realista. Na sua visão, a sinofobia norte-americana pode ser explicada como a “constatação de que a China é a grande beneficiária pelo projeto de globalização bancado por este país”.

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O que Adam Smith foi fazer na China

Vez por outra, Arrighi toma partido do seu objeto e sugere a pos-sibilidade de que a ascensão chinesa, junto com a de outros países do “Sul”, possa trazer consigo uma mudança da ordem internacional, propiciando um padrão de desenvolvimento mais justo e sustentável ecologicamente. Haja pretensão! A sua utopia não impede, contudo, que ele forneça os elementos para compreensão da atual desordem in-ternacional e das várias forças econômicas e políticas em ação, além de apontar para as possibilidades entreabertas, goste-se delas ou não.

Sobre a obra: Giovanni Arrighi. Adam Smith em Pequim: origens e fundamentos do século XXI. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008.

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Uma antologia de agraristas políticos

Michel Zaidan

Raimundo Santos, reconhecido pesquisador do pensamento comunista, associa com muita competência a sua especiali-dade na teoria política marxista e o crescente interesse pelo

estudo das idéias agrárias de vários publicistas do Partido Comunis-ta Brasileiro (PCB). Há muitos anos, Santos vem se dedicando a uma paciente exegese de textos e documentos e textos no sentido de recu-perar os “perfis políticos” desses intelectuaisque constituem amatriz agrarista “Caio Prado Jr.–PCB”, como os considera.

Com base nesse projeto, já organizou uma antologiade textos agrários pecebistas e publicou vários ensaios sobre a obra desses autores, notadamente Caio Prado Jr., a quem dedicou todo um vo-lume, sem falar que,há pouco,lançou uma nova coleção de escritos caiopradianos num só volume, por ele chamado de Caio Prado Jr.: dissertações sobre a revolução brasileira, sob o selo editorial da Fun-dação Astrojildo Pereira e da histórica Editora Brasiliense.

Surge agora o novo livro de Raimundo Santos Agraristas políticos brasileiros, publicado por um pool de editores (a mesma Fundação Astrojildo Pereira, o Núcleo de Estudos Agrários (NEAD–MDA) e o Instituto Interamericano para a Cooperação na Agricultura (IICA). No livro, Santos apresenta três substanciosos ensaios sobre Caio Prado Jr., Alberto Passos Guimarães e Ivan Otero Ribeiro. E acrescenta tex-tos representativos das visões agrárias de cada um deles. É mais um serviço prestado pelo antologista à sociologia rural e ao pensamento político brasileiro.

Na parte dedicada a Caio Prado Jr., o interesse de Raimundo Santos é resgatar a contribuição do “marxismo político” caiopradia-no, como ele o chama, para a questão da agricultura brasileira, ao acentuar o reformismo agrário do historiador e o papel subordinado das mudanças agrárias nos caminhos da revolução brasileira.

Coerentemente com o seu “circulacionismo” (para Santos, base do seu “marxismo político”), Caio Prado nega qualquer importância revolucionária à luta pela pequena propriedade e à reforma agrária

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Uma antologia de agraristas políticos

redistributiva,privilegiando o desenvolvimento da indústria, para o que deveria ser subordinada qualquer política agrária. Como se sabe, o “marxismo político” do autor paulistano e seu reformismo agrário entraram em choque direto com o programa do seu Partido Comu-nista, e ele sempre foi mais valorizado como historiador marxista do que como político.

Em seguida, Raimundo Santos passa para o pensamento do diri-gente comunista Alberto Passos Guimarães,responsável por uma po-sição mais ortodoxa ligada ao partido comunista. Os textos de Alberto Passos são emblemáticos da posição do PCB no que diz respeito à questão agrária. Santos sublinha a referência do autor a uma passa-gem de Lenin sobre o caso hipotético de uma “revolução agrária não-camponesa”, onde o capitalismo já subordinara toda a agricultura.

Segundo Santos, esse cenário inspira o autor de Quatro séculos de latifúndio a imaginar no Brasil uma variante de revolução rural, ou seja, uma revolução (reforma) agrária que começaria sem ser pro-tagonizada pelos camponeses. Postos em ação por sindicatos rurais criados com este fim tático, os pequenos produtores assumiriam, no decurso do processo revolucionário, a direção da reforma agrária tornando-a uma reforma camponesa.

Santos pretende que esse argumento amparou a política dos co-munistas de “fundar sindicatos de assalariados e semi-assalariados agrícolas para mobilizar camponeses”, bem-sucedida quando, nos anos 1950-1960, o PCBA criou a União dos Trabalhadores e Lavra-dores da Agricultura (Ultab, 1954) e a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (Contag, 1963).

Finalmente, Raimundo Santos aborda a ensaística de Ivan Otero Ribeiro, morto durante a Nova República no acidente de avião que vitimou o ministro da reforma agrária Marcos Freire e membros da sua equipe da qual fazia parte. A reflexão desse jovem pesquisador desperta grande interesse, ao acentuar a sobrevivência do pequeno camponês no mundo inteiro (que é difícil negar) e trabalhar com o conceito de via prussiana do desenvolvimento capitalista.

Para Ribeiro, o processo de desenvolvimento capitalista da agri-cultura brasileira foi de cima para baixo, não eliminando a questão da pequena propriedade e da mentalidade camponesa. Daí o seu em-penho militante, quando estava no Ministério da Reforma Agrária, de levar adiante um programa de fomento à agricultura familiar; tema de suas pesquisas na Universidade Rural do Rio de Janeiro da qual era professor. Infelizmente, a trágica morte do Ribeiro o impediu de extrair as conseqüências de seu pensamento teórico.

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X. Resenha

Toda essa discussão é de uma atualidade indiscutível, se se tem em conta os rumos da política do governo Lula para o mundo rural, sobretudo no que diz respeito à reforma agrária e à pequena agri-cultura familiar. Oxalá esses estudos desenvolvidos por Santos no âmbito do pensamento social e a releitura dos próprios textos dos intelectuais comunistas ajudem a pensar os rumos dessa política e inspirem um programa agrário condizente com os interesses da “maioria da população”, no dizer de um deles (Caio Prado), ao insistir sobre o “ponto de vista do trabalho”na hora da definição das políticas públicas.

Sobre a obra: Raimundo Santos. Agraristas políticos brasileiros. Brasília: Fundação Astrojildo Pereira–NEAD (MDA)/ IICA, 2007. 200p.